Federação Nacional dos Professores
www.fenprof.pt
Licínio Lima: “À ponta da baioneta, as escolas são transformadas
em repartições”
Na sequência da sua participação no recente encontro nacional promovido pela FENPROF sob o lema “Democracia na
Escola”, colocámos ao Professor Licínio Lima, prestigiado investigador e docente da Universidade do Minho
(Departamento de Ciências Sociais da Educação) , algumas das questões que marcam o governo das escolas e os seus
desafios, num contexto marcado, entre outros factores, pelos mega-agrupamentos e pelo reforço do poder
centralizador a partir do Ministério 5 de Outubro.
Há vários anos que o Professor tem chamado a atenção para a contínua
afirmação centralizadora da administração educativa sobre as escolas. Houve
alguma evolução?
Licínio Lima (L.L.) – Como já tive oportunidade de referir em textos e em conferências
e outras iniciativas um pouco por todo o País, continua a existir, na verdade, uma
contradição insanável entre a centralidade educativa e pedagógica das escolas e o seu
carácter periférico em termos de governo e autonomia. Ao invés, a política e a
administração da educação revelam-se, na tradição portuguesa, altamente
centralizadas, embora fatalmente periféricas no que concerne à acção educativa e
pedagógica concreta, que ocorre necessariamente em contexto escolar e não nos
departamentos centrais ou nas instâncias pericentrais desconcentradas do ministério
respectivo.
Esse centralismo, além de não criar soluções, envolve também uma faceta autoritária?
L.L. – Sem dúvida. Como os problemas mais típicos e complexos da "escola de massas" exigem soluções políticas e
organizacionais diversas e contextualizadas, única forma de responder positivamente à crescente diversidade das escolas públicas
e dos seus alunos, o centralismo revela-se inconsequente em termos educativos e pedagógicos, assumindo dimensões
autoritárias, próprias de uma oligarquia que, por definição, é incapaz de corrigir os seus erros e de se descentrar das suas lógicas
de controlo. À ponta da baioneta, as escolas são transformadas em repartições.
A recentralização avança. A política dos mega-agrupamentos também aponta nesse sentido?
L.L - Os agrupamentos representam um novo nível no reforço de centralização. A lógica dos agrupamentos poderia ter sido
interessante, conduzida de outra forma; a que temos é uma visão tecnocrática, centralizadora. Criaram, na verdade, um novo nível
de centralização…
É interessante ver como os profissionais se referem ao Agrupamento. Quando vão à sede, dizem ”vamos ao Agrupamento”…Eles
estão na escola e, quando precisam, vão ao agrupamento, quer dizer: vão à sede do agrupamento…
Agora, é possível acabar com as direcções regionais!... O poder central controla tudo através das plataformas de controlo
informático. O Director está na sede do agrupamento e é o rosto estampado do Ministério da Educação, não é o rosto da escola.
Ainda voltaremos à figura do Director. Para já, a questão da centralização é mesmo um grave problema para a escola
pública?...
L.L. – Certamente. A forte centralização da administração educativa é o principal problema que atinge hoje a Escola Pública em
Portugal e ou damos passos importantes na democratização do governo das escolas ou não resolveremos nenhum dos outros
problemas.
Em Portugal descobrimos uma teoria nova, um contributo que damos para a Humanidade: nas escolas pequenas os alunos não
aprendem. E assim, enquanto na Finlândia uma escola secundária tem uma média de 400 a 500 alunos, no nosso país a
administração quer fundir escolas e criar super-estruturas organizativas com centenas de professores e milhares de alunos…
E a autonomia? Continua na gaveta… É a tal “terra prometida”, eternamente adiada?
L. L. - Apesar da recente retórica em torno da "autonomia da escola", uma promessa insistentemente repetida mas eternamente
adiada em termos minimamente substantivos, tem-se assistido a fenómenos de recentralização que asseguram o protagonismo
insular das equipas governativas e respectivos aparelhos administrativos. São exemplos disso mesmo a lei orgânica do ME e o
reduzido número de contratos de autonomia assinados, independentemente das críticas que vêm sendo apresentadas a esta
figura, normativamente estabelecida há mais de uma década. Ao mesmo tempo que os discursos autonómicos se generalizam, sem
consequências visíveis, emerge, pelo contrário, um maior protagonismo do governo, seja através da tradicional produção
normativa e hiper-regulamentadora, seja por intermédio de novos dispositivos de governamentalização da administração central,
das direcções regionais e, sobretudo, das escolas. A este propósito, a criação do conselho das escolas tem-se revelado, até
agora, mais um elo de ligação entre o governo e as escolas, garantindo a centralidade do primeiro, do que um fórum de expressão
das segundas e um locus de concertação e produção de políticas participadas.
Isso tem consequências…
L.L. - Entre outros, dois fenómenos emergem daquela situação. Em primeiro lugar uma disputa sem precedentes pelo
protagonismo e pela visibilidade pública entre governo, e administração, e as escolas, com o resultado que é do conhecimento de
todos; os protagonistas centrais do ministério da educação reafirmaram-se como os mais importantes actores político-educativos,
tornaram-se notícia incontornável, concentraram sobre si todas as atenções, frequentemente em termos personalizados. O
anunciado, e relevante, projecto de defesa e dignificação da escola pública aparece, hoje, secundarizado por uma acção política
contraditória. Medidas de alcance potencialmente elevado foram contrariadas, ou pelo menos diminuídas, por lógicas antagonistas,
pela intransigência, pela incapacidade negocial, configurando uma estratégia que se assemelha várias vezes a um certo
vanguardismo e dirigismo de feição leninista: a conquista, o slogan, a campanha, o marketing, revelam-se instrumentos centrais de
uma lógica modernizadora em que, como há muito criticou Paulo Freire, a estrutura que se pretende transformar é entendida como
um mero objecto, e não como sujeito da sua própria transformação.
Em segundo lugar, assiste-se a um processo de reificação das escolas, inscritas no discurso governamental como entidades mais
ou menos abstractas e homogéneas, como se não fossem habitadas por actores concretos e atravessadas por múltiplas
racionalidades. Daquele modo, contudo, mais manejáveis pela acção governamental e, no limite, apresentadas de forma atomizada
e em oposição à expressão, considerada minoritária ou sem legitimidade institucional, de todas as posições divergentes face aos
projectos governamentais. Não por acaso, em todos os conflitos que opõem ministério e professores, o que nos é assegurado é
que, independentemente das agendas sindicais ou da expressão das associações ou movimentos de professores, "as escolas" já
estão as aplicar a legislação, já estão a resolver os problemas, a encontrar soluções...porque são a favor, e não contra, porque, no
limite, seriam mais independentes e representariam melhor o interesse público. De há muito, porém, a legislação escolar vem
fazendo referência à "administração educativa", por um lado, e às "escolas", ou "subunidades de gestão", por outro, como se a
administração escolar fosse uma prerrogativa do centro.
Na verdade, tenho chamado a atenção para a natureza estranhamente atópica da direcção de cada escola concreta; fora do seu
lugar, antes se localizando para além de cada organização escolar, ou seja, no centro político-administrativo, concentrado e
desconcentrado.
O Professor tem abordado a figura do Director como o representante do
Ministério no terreno…
L. L. - A recente criação da figura do "director", enquanto primeiro responsável perante o
governo, e "rosto" de cada escola, não devolve minimamente a direcção escolar às
escolas, ao contrário do que seria de supor. Não é o governo das escolas que se
pretende partilhar com os órgãos próprios das escolas, mas sobretudo a gestão
corrente, procurando garantir uma mais fiel operacionalização local das políticas
educativas centrais, embora sempre subordinada a um extenso corpus de regras supraorganizacionalmente produzidas. E por isso a autonomia de que se fala tende a coincidir
com o elogio da diversidade da execução periférica das decisões centrais, limitada a
uma autonomia operacional, mesmo assim fortemente vigiada. Nestes termos, mesmo a
eleição do director e a existência de um "conselho geral", de resto quesitos
constitucionais mínimos, não deixam de ser inscritos numa organização política e administrativa mais global que garante a sua
função de legitimação democrática e, simultaneamente, a sua subordinação, e eventual cooptação, perante o poder central.
O director será, muito provavelmente e de acordo com a nossa tradição, o primeiro representante do poder central junto de cada
escola, o "rosto" do Ministério, ainda que localmente escolhido, uma contradição que a seu tempo poderá ser resolvida.
A escola não é uma ilha. As políticas da administração dirigidas à escola fazem parte de opções políticas muito
concretas…
L . L. - É verdade. Mas deixe-me, para já, sublinhar uma das mais interessantes conexões entre a tradição centralista e o novo
cânone gerencialista, este último uma das expressões mais conhecidas da "Nova Gestão Pública" no campo da educação. Em
princípio, a burocracia estatal e respectiva centralização são fortemente criticadas pelas correntes reformistas, que adoptam os
quadros de racionalidade mais típicos das organizações económicas e empresarias.
A reforma do Estado é considerada central, atribuindo maior protagonismo ao mercado, à iniciativa privada, ao conceito de rede
nacional, e não já ao de rede pública de estabelecimentos de educação e ensino, conforme estabelece a nossa Constituição.
Novas formas de regulação da educação emergem, com destaque para os conceitos de supervisão estatal e de meta-regulação,
no quadro dos quais a "gestão democrática" e a colegialidade nas escolas tendem a ser vistas como utopias políticas herdadas da
revolução e como irracionalidades de gestão; neste quadro, o gerencialismo significa mais gestão para menos democracia. A
avaliação, das escolas dos professores e dos alunos, é transformada num instrumento de controlo, garantindo a mensuração,
comparação e hierarquização, a partir das quais se legitimam orçamentos competitivos, contratos de performance, mercados
internos, lideranças fortes de tipo unipessoal, concorrência entre distintos fornecedores de educação e formação. A autonomia das
escolas é, consequentemente, entendida como um instrumento ao serviço de distintos projectos educativos em concorrência, uma
autonomia sistematicamente aferida em termos de padrões estabelecidos centralmente, uma autonomia merecida e conquistada
em ambiente de competitividade, uma vez que "competir para progredir" é um dos lemas de referência.
Entre muitas outras, as dimensões que referi encontram-se em processo de introdução nas políticas educativas portuguesas ao
longo das duas últimas décadas, conforme várias investigações têm chamado à atenção. Contudo, com variações acentuadas de
governo para governo, de formas por vezes contraditórias, com distintas características consoante os níveis de ensino, e,
especialmente, em tensão permanente com a tradição centralizada do nosso sistema educativo.
Vivemos, portanto, uma complexa fase de transição, na qual a introdução do cânone gerencialista suscita diversas resistências e
oposições, não apenas em termos estritamente pedagógicos e profissionais, mas também no que concerne à própria administração
central, aos municípios e às comunidades locais, às associações de pais, aos interesses económicos, etc. Basta lembrar temas
como a racionalização da rede escolar e os agrupamentos de escolas, a avaliação dos professores, o ensino privado, a gestão das
escolas, a intervenção dos municípios, as parcerias com as IPSS, entre outros.
E entramos, então, no campo das contradições…
L. L. - As contradições entre a burocracia estatal centralizada e o gerencialismo de feição competitiva e descentralizada, este
apresentado como tipicamente pós-burocrático, vêm-se traduzindo, entre nós, num hibridismo complexo e sem precedentes. Não é
tanto o problema das contradições entre soluções centralizadas e descentralizadas, matéria em que criativamente se têm
engendrado soluções mistas e movimentos simultâneos de descentralização e de recentralização, dando lugar a novas formas de
regulação e meta-regulação da educação, seja accionando formas de regulação pelo mercado, seja instituindo novas agências de
regulação privadas ou supra-nacionais. O mais curioso, e perturbante, é o retorno a concepções instrumentais e técnicoburocráticas de organização escolar, entendida como um instrumento (organum), reactualizando concepções organizacionais
mecanicistas. A crítica ideológica à burocracia pública estatal, ignorando os fenómenos de burocratização empresarial e das
organizações privadas, e a tentativa da sua superação através de modelos de governação pós-burocrática, considerados
inovadores e flexíveis, mas à margem de soluções governativas mais democráticas e participadas, tem resultado,
contraditoriamente, na emergência de uma hiper-burocracia.
O controlo aperta cada vez mais a vida das escolas…
L. L. - O controlo central que se abate sobre as escolas, a radical mudança dos quotidianos escolares e da acção dos professores,
o taylorismo informático, os procedimentos de todos os tipos de avaliação, são apenas alguns exemplos notáveis do regresso ao
positivismo, às pedagógicas científicas e racionalizadoras, ao protagonismo dos objectivos em educação, à mensuração para a
competitividade e o produtivismo.
A burocracia está aí em grande força…
L.L. - Isso também não é novidade. As alternativas à governação burocrática das organizações escolares, que têm evacuado e
deslegitimado várias formas de gestão democrática e colegial, a favor de soluções de tipo gerencial, anunciadas como
pós-burocráticas, não só não têm assegurado uma governação mais democrática das escolas nem combatido a burocratização das
escolas e da educação, como, paradoxalmente, têm radicalizado o seu burocratismo tradicional e contribuído para a emergência de
uma hiper-burocracia incompatível com uma educação democrática.
O que é que o sistema educativo precisa realmente?
L. L. – A forte centralização da administração educativa é o principal problema que atinge hoje a Escola Pública em Portugal e ou
damos passos importantes na democratização do governo das escolas ou não resolveremos nenhum dos outros problemas.
As escolas precisam de mais autonomia, de mais responsabilidade. É ineficaz uma política que pretende impor soluções a régua
e esquadro – do poder central sobre os professores.
Para ser rápido, posso dizer-lhe que precisamos de um Ministério da Educação mais humilde, mais moderado, com mais
consciência dos problemas, mais próximo das escolas, mais solidário. O poder central atrapalha muito…
Já agora: precisamos de um órgão de verdadeira direcção, que não é o actual Conselho Geral.
José Paulo Oliveira
Jornalista
Download

Abrir como PDF