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A MEMÓRIA VIVA DA RAINHA NZINGA:
IDENTIDADE, IMAGINÁRIO E RESISTÊNCIA
MAURÍCIO WALDMAN 1
Avaliando a sucessão de agravos cometidos pelo colonialismo em África, seria possível alinhar extenso prontuário
de estratégias criadas para impor sua hegemonia. Nessa averbação, o amordaçamento da memória popular
constituiu uma das práticas mais recorrentes.
Todavia, a resistência africana somada à dos afro-descendentes da diáspora, logrou suplantar as omissões das
narrativas ocidentais, assim como a lógica eurocêntrica e a investidura de regimes de sentido alheios ao
continente, procedimentos que predicavam a meta comum de submeter a África.
Nesse cenário, a atuação da Rainha Nzinga (1582-1663), Ginga para os brasileiros, aufere prestígio incomum.
Através de muitos feitos memoráveis que se estenderam ao longo de quarenta anos de lutas, Nzinga celebrizou-se
pelo sucesso no enfrentamento dos colonialistas portugueses e do tráfico de escravos.
Exercendo papel de liderança com audácia, argúcia e clareza política, seu nome tornou-se personificação icônica
do repúdio ao domínio colonial e exaltação das lutas pela autodeterminação, que em Angola culminaram na
Dipanda, tal como a independência é referida pelos angolanos (1975). Heroína nacional por consenso 2, a rainha é
lembrada no nome dos logradouros, equipamentos públicos e monumentos.
Nzinga nasceu em Kábàsa, um dos prestigiados assentamentos das dinastias reais do Ndongo 3. Descrita pelos
cronistas como mulher de beleza marcante e dotada de personalidade forte, Nzinga distinguiu-se como chefe
militar, estrategista e diplomata. Os relatos mencionam também um indomável de espírito de luta. Frequentemente
a rainha é citada liderando em pessoa seus comandados, marchando para o combate à frente da tropa.
Nzinga organizou formidável coligação política sob sua égide. Apoiada numa coalizão reunindo os reinos da
Matamba, Ndongo, Congo, Kassanje, Dembos e Kissama, a rainha combateu sem tréguas a invasão portuguesa.
Resistiu até os últimos dias de sua vida sem jamais ter sido capturada. Quando de sua morte, aos 82 anos, Nzinga
já tinha seu nome inscrito na história: estivera à testa do mais longo empreendimento guerreiro contra o
colonialismo português em todo o mundo.
Claro sinal da simbiose a toda prova de Nzinga com as mais heterogêneas texturas sociais, culturais e políticas em África e na diáspora negra - a rainha foi brindada com abundante repertório onomástico: Ginga, Singa, Zhinga,
Jinga, Nxingha, Nzingha, Nzinga I, Nzinga Mbandi Ngola, Nzinga Mbandi, Nzinga Mbande e paralelamente à
nominativa de base Bantu 4, versões portuguesas como Ana de Souza e Rainha Dona Ana; grafias compósitas
1
Maurício Waldman é colaborador do Centro de Estudos Africanos da USP, colunista permanente da revista Brasil Angola Magazine e consultor
internacional ad hoc da Câmara de Comércio Afro-Brasileira (AFRO-CHAMBER). É Pós-Doutor pelo Instituto de Geociências da UNICAMP e Pós
Doutorando em Relações Internacionais na USP, com pesquisa centrada em Angola (Financiamento da FAPESP). Autor e coautor de 16 livros, dentre os
quais Memória D’África - A Temática africana em sala de aula (Cortez Editora, 2007). Site pessoal www.mw.pro.br. E-mail: www.mw.pro.br.
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As duas principais correntes nacionalistas de Angola, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e a União Nacional para a Independência
Total de Angola (UNITA), exaltam Nzinga como prócer do “proto-nacionalismo” angolano (FONSECA, 2012:10).
3
Como em muitas formações estatais africanas, a monarquia do Ndongo possuía caráter itinerante, deambulando sazonalmente pelo território do reino
(Ver a esse respeito COELHO, 1995a e 1995b).
4
A palavra Bantu circunscreve área geográfica contígua e um complexo cultural específico na África Negra. Originalmente designava numeroso conjunto
linguístico com raízes comuns, passando depois a identificar um complexo cultural ou civilizatório, decorrente da contiguidade territorial e múltiplos
2
como Rainha Nzingha de Ndongo, Ana Nzinga, Ann Nzingha e Ana de Sousa Nzingha Mbande; por fim, Dizonda,
como ela mesma assinava os documentos.
Nessa ótica, afiançada por uma memória viva, o fascínio despertado pela biografia incomum da rainha terminou
por ungir Nzinga como representação emblemática de uma Africanidade que não se deixa subjugar, creditando
assim a determinação do continente na defesa dos seus desígnios civilizatórios 5. Em tal linha de abordagem,
atentemos para as ponderações apresentadas a seguir:
“Nzinga Mbandi Ngola, rainha da Matamba e Angola nos séculos XVI-XVII (15871663), foi uma das mulheres e heroínas africanas cuja memória mais tem desafiado
o processo diluidor da amnésia, dando origem a um imaginário cultural na diáspora,
tal como no folclore brasileiro com o nome de Ginga; despertou o interesse dos
iluministas com a criação de um romance inspirado nos seus feitos (Castilhon,
1769) e citação na Histoire Universelle (1765); é cultuada como a heroína angolana
das primeiras resistências pelos movimentos nacionalistas de Angola: e tem
despertado interesse dos historiadores e antropólogos para a compreensão
daquele momento histórico que caracterizou a destreza política e de armas desta
rainha africana na resistência à ocupação dos portugueses do território angolano e
consequente tráfico de escravos” (SERRANO, 1995/1996).
Deste modo, uma vez evidente a proeminência de Nzinga no imaginário negro e africano, o cerne desse ensaio
tem por aspiração registrar pontuações e feedbacks testemunhados pelo autor do texto que segue nos cursos
promovidos pelo Centro de Estudos Africanos da USP (CEA). Resultantes de interação com a clientela discente
nos sempre animados debates suscitados pela Rainha Nzinga 6, a fascinação despertada pela soberana mostra o
quanto o tema é não só angolano mas também, brasileiro de corpo e alma.
Nessa declinação, ao lado de considerações matriciais relacionadas à história, ciência política e geografia,
pautaremos entendimentos filiados ao percepcionamento da Rainha Nzinga pela consciência social. That is to say,
à sua inserção no campo de análise da antropologia.
Com base nessas aferições, sumarizemos a trajetória de Nzinga, destacando os pontos que singularizam o
percurso de vida da rainha no tempo e no espaço. Nesse prisma, em meio à geografia política da Angola précolonial (Figura 1), uma apreciação axial estaria dirigida para o Reino do Ndongo (ou Dongo), onde Nzinga assume
o poder em 1623. A edificação do Ndongo deu-se no frigir de articulações políticas travadas na sociedade Mbundu.
Etnia que integra o universo Bantu, os Mbundu adentraram-se em Angola entre os séculos XIII e XVI, apoderandose desde o litoral das imediações de Luanda até territórios situados 600 km em direção ao Leste, tendo por eixo os
cursos médio e inferior do rio Kwanza 7.
A pesquisa histórica encontra dificuldade em datar com precisão os primórdios do Ndongo. Com base em
levantamentos da literatura oral, acredita-se que o embrião desse Estado tenha eclodido no vale do rio Kwanza
durante o século XIV. A partir dessa core area 8, o Ndongo paulatinamente desenvolveu uma rede de povoados,
próspera economia agrícola, atividades de fundição e forja do ferro e um fluxo de trocas com base em feiras
contatos, mestiçagens e empréstimos facilitados pela proximidade geográfica. Ao que tudo indica, cerca de dois mil anos atrás a expansão Bantu iniciouse com centro na Nigéria, seguindo posteriormente para o Sul e Sudeste da África, deslocamento facilitado pelo domínio da fundição do ferro, vital para
abrir caminho através da floresta equatorial (apud MUNANGA, 1995/1996: 57-58)
5
Nas paragens que lustram desde as franjas saarianas ao extremo meridional do continente africano, pari passu à diversidade cultural, existem nexos
compartilhados por centenas de grupos. Tal fisionomia cultural comum, rubricada como Civilização no singular ou de acordo com formulação mais
contemporânea, como Africanidade, acopla-se a todo o espaço sul-saariano qual seja, à África Negra (MUNANGA, 2007: 9; 1984: 30).
6
Conferir repercussão em reportagem publicada pelo jornal angolano O País, edição de 08-05-2013: Nzinga Mbandi encanta estudantes brasileiros,
disponibilizada on line em: < http://www.opais.net/pt/opais/?det=325788 >
7
Estatisticamente, uma quarta parte dos angolanos de hoje pertence ao grupo Mbundu. Apesar de muitos textos referenciarem os Mbundu como
Kimbundo, tal definição é um equívoco. Isso porque kimbundo refere-se à língua falada pelo grupo, e não à coletividade étnica.
3
regulares integradas a rotas comerciais de curta e longa distância, as kitandas 9. Agremiando força crescente, o
Ndongo corta os laços políticos com o Reino do Congo - ao qual estivera subordinado por uma suserania mais
nominal do que efetiva - expulsando do seu território em 1556 na batalha de Ndande as tropas do Manicongo
(Senhor do Congo ao pé da letra).
Figuras 1: Formações sócio-espaciais tradicionais de Angola e dos espaços circunvizinhos no século XVI
(Referências plotagem das core area em Angola: DUBY, 2011; VANSINA, 2010; KINDER et HILGEMANN, 1975; CEA, 1965)
Com a emancipação política, o Ndongo formou uma administração estatal complexa e hierarquizada, capacitada a
convocar rapidamente numeroso exército. O reino era encabeçado pelo Ngola, título privativo dos soberanos do
Ndongo, mais tarde desdobrando-se no topônimo Angola 10. É importante sublinhar que na língua kimbundo Ngola
evoca significados de força e poderio, sensos que na cosmovisão Bantu, não se restringiam à esfera política.
8
Terminologia usual em geopolítica e geografia política, por core area (pivot area e também área núcleo) se entende um espaço dinâmico que polariza
determinado entorno ou periferia territorial imediata.
9
Palavra aportuguesada para quitanda: local de negócios, mercado, pequeno estabelecimento comercial (A respeito do inter-relacionamento BrasilAngola com foco nas quitandeiras, vide PANTOJA, 2002).
10
Originariamente restrito às terras do Ndongo, com o tempo a abrangência da terminologia abarcou a totalidade dos territórios sob batuta portuguesa.
4
Como geralmente acontecia nas monarquias tradicionais africanas, o rei estava investido da intermediação entre
os mundos visível e invisível, intercomunicando os ancestrais e os viventes, os humanos e as forças da natureza,
sendo sua responsabilidade resguardar o bem-estar coletivo (FONSECA, 2012: 22-23; COELHO: 1995a e 1995b).
Quanto à Matamba, trata-se de uma vasta seção coberta por savanas secas 11 situada no noroeste da atual
Angola, hoje distrito da província de Malanje. Também conhecida como Ndongo Oriental ou Baixa de Kassanje, a
Matamba era geograficamente a porta de entrada para o sertão angolano. Quando da invasão portuguesa do
Ndongo, Nzinga se refugia nessas plagas, lá sendo empossada como soberana em 1630. Conferida assim de
dupla titularidade monárquica, tal episódio - inédito na história africana - configura uma monarquia dual MatambaNdongo que perdurou até 1756, quase sempre exercida por rainhas. No lapso dos 104 anos seguintes à morte de
Nzinga, soberanas exerceram a realeza da Matamba-Ndongo por pelo menos oito décadas (Cf. FONSECA, 2012:
161).
No governo de Nzinga, a Matamba se consolida como autêntico bastião anticolonialista, funcionando durante todo
seu reinado como trava para o avanço português em Angola e, além disso, desbaratando os intentos portugueses
de avançar fundo no hinterland africano. Para Portugal a conquista da Matamba era essencial para alcançar as
terras do Zambeze e do Índico, possibilitando obter mais escravos e mercadorias com alta cotação nos mercados
da época (ouro, prata, marfim, peles e pedras preciosas). Outro ganho seria assegurar acesso direto por terra, a
partir de bases de apoio nos reinos Lozi e Lunda, com as cidades comerciais da contracosta do Índico e as regiões
auríferas do Império Mutapa 12, uma meta secular do imperialismo luso.
Nesta contextualização, caberia o meritório apontamento de que os tremendos sucessos de Nzinga na luta
anticolonial ocorreram em circunstâncias dificílimas. Note-se que no transcurso da entrada em cena dos
portugueses, a tecedura sócio-espacial tradicional da região, modelada no fruir de intercâmbios sedimentados
durante muitas gerações, fora duramente comprometida. Desde o início, encetando guerra sem quartel contra os
poderes africanos locais, as razzias portuguesas buscavam alimentar o comércio do “ouro negro de Angola”, isto é,
de escravos. Assim, a predação dos autóctones, no geral prisioneiros de guerra, abalou o quadro demográfico
original, acarretando intenso despovoamento e fugas maciças para todas as direções (M’BOKOLO, 2012: 416).
Registros do período confirmam essa avaliação. Com a fundação de Luanda (1576), seu ancoradouro se tornou o
mais importante porto negreiro da costa atlântica africana. As exportações oscilavam anualmente entre 12.000 e
13.000 “peças”, ou seja, escravos. Certo é que a devastação demográfica induzida pelo tráfico impedia a
ampliação desses números. É o que atestam diversas fontes: em 1625, os montantes haviam recuado para 11.000
escravos anuais. Entrementes, mesmo existindo tendência a decréscimo, o comércio escravista nunca retraiu para
aquém de 10.000 cativos por ano. Essa “vocação” econômica permanece gritante nas estatísticas do século XVIII,
que contabilizam o comércio de escravos respondendo por 88% do valor das exportações de Angola (M’BOKOLO,
2012: 427; FONSECA, 2012: 76; VANSINA, 2010: 665; FAGE, 2010: 332).
Devemos igualmente nos ater à evidência de que os impactos no tecido étnico angolano foram desiguais, variando
de acordo com as oscilações do equilíbrio de forças e das reações dos atores em conflito, fatoração que pesou
sobremaneira na composição da massa de escravos. Destarte, nas décadas que antecederam a aparição da
Rainha Nzinga no palco político, fração substancial dos escravizados era Mbundu. Isso em razão da proximidade
geográfica desse grupo étnico com a “cabeça de ponte” lusitana instalada em Luanda (por sinal plotada no curso
11
Biogeograficamente, a Savana é uma paisagem tropical formada por um tapete de gramíneas pespontado por arbustos e/ou árvores esparsas, que
eventualmente se adensam formando pequenos bosques. Fato óbvio - embora raramente lembrado - o Cerrado brasileiro é uma modalidade sulamericana dessa formação vegetal, homólogo à Savana no seu modus operandi ecológico, perfil pedológico, injunções climáticas e antropogênicas
(HARRIS, 1982).
12
O império Mutapa - também grafado como Monomotapa ou Mwene Mutapa - afamado pelas construções ciclópicas do Grande Zimbabwé, foi fundado
pelo povo Shona, abarcando amplos trechos das atuais repúblicas do Zimbabwé e Moçambique.
5
inferior do rio Kwanza, eixo espacial do espaço Mbundu) e cujas conexões com o Brasil - principal mercado
importador - eram favorecidas pela frontalidade das docas com a fachada marítima sul-americana 13.
Ademais, o colonialismo semeou uma coleção de distúrbios sem precedentes na história dos povos da região.
Juntamente com a escravização e morte de milhões de pessoas, outras sequelas foram a desorganização da
economia e alterações drásticas no status quo geopolítico, acompanhadas de perturbações no jogo de poder
regional, marcado pela desestruturação dos Estados tradicionais e secessão das chefarias da periferia dos reinos,
comumente sob instigação do aparato colonial sediado na região costeira.
Assim, a volatilidade da parceria dos sobas com os Estados nativos se acentua. Em Angola, tal como em muitas
outras partes da África, o soba é o chefe da comunidade aldeã. Enquanto tal, o soba é por excelência o fiador da
coesão social: exerce a função de juiz, arrecada tributos e representa o grupo junto à autoridade real. Integrado a
uma estrutura de mando tradicional, cabe-lhe fazer a ponte entre a comunidade e a realeza. Porém, essa regalia
foi subvertida pela intrusão colonialista, que cooptava os sobas ao seu esquema de poder político-econômico e por
extensão, transformava-os em fantoches da dominação estrangeira.
Enfim, não seria demasiado frisar que esse panorama é indissociável de condutas cuja intenção era o saque
premeditado dos territórios anexados. Exaurindo sem piedade todos os recursos encontrados, Portugal implanta
uma economia baseada na violência e na espoliação: uma verdadeira Raubwirtschaft 14.
É a partir deste pano-de-fundo que Nzinga irrompe no cenário de Angola de antanho. Em conformidade com o que
foi colocado, estamos diante de uma soberana guerreira ciente das mazelas do colonialismo. Portanto, convencida
de que a resistência era uma prioridade para os naturais do país. Com esse objetivo em vista, Nzinga aliou-se com
os guerreiros Jaga (Yaka, Bayaca ou ainda Giaka), fato determinante na sua estratégia para deter o avanço
português e obter vitória no campo militar. Nessa perspectiva, a educação política e religiosa recebida por Nzinga
do seu pai, o rei Mbandi Ngola Kiluanji, foi-lhe útil para uma bem sucedida interação com diversificada e complexa
trama de culturas, régulos e povos que mais tarde estariam sob sua direção, dentre os quais, os Jaga (WEBER,
2012: 8).
Os Jaga constituíam uma milícia de base Bantu que penetrou no território da atual Angola cerca de 60 anos antes,
procedente do sudoeste da bacia do rio Zaire. Assentados no curso superior do rio Kwango, tinham por nota
característica a centralização do comando político e a estruturação de uma máquina de guerra cujo epítome foi
uma modalidade de acampamento armado conhecida como kilombo (aportuguesado em quilombo). Saliente-se
que embora o vocábulo kilombo - encontrado em muitas línguas faladas em Angola e na República Democrática
do Congo (RDC) - seja quase certamente de origem Umbundu 15, seu conteúdo enquanto instituição sociopolítica e
militar resultou de longo histórico envolvendo uma profusão de contatos interétnicos, interpolações políticas e
soldaduras sociais, decantação à qual os Jaga imprimiram uma belicosidade plena e inflexível 16.
13
Vis-à-vis, ateste-se que o tráfico na África não afetou exclusivamente os espaços imediatos aos empórios escravistas. Espacialmente, funcionando
como terminais de fluxos que perpassavam por toda a África, os portos europeus magnetizavam, tal como atratores, áreas de âmbito continental,
engolindo populações inteiras como que sugadas por rodamoinho. Em suma: aparte certa seletividade geográfica no apresamento de cativos, na prática
não existiu região africana poupada dos vórtices do tráfico. É o que informa o memorialista brasileiro Alberto da Costa e Silva, para quem o comércio de
braços humanos, além de aproximar praias situadas frente a frente, se estendeu terra adentro, atingindo os bordos do Saara. Prova disso são os versos
de Castro Alves, poeta antiescravista brasileiro. Em O Navio Negreiro, Castro Alves descreve os escravizados como “os filhos do deserto / onde a terra
esposa a luz” ou conforme A Canção ao Africano, situa sua origem em terras onde “o sol faz lá tudo em fogo / faz em brasa toda a areia”. Esses aportes
confirmam parecer de Maaza Bekele, especialista etíope em demografia, pela qual em 1650 os africanos equivaliam a 20% da população mundial. Hoje,
mesmo com a recuperação ocorrida a partir do fim do tráfico, a África perfaz 14% da demografia global. Claro indicativo de uma tragédia que mais
incisiva nas porções próximas à costa, na realidade acometeu o continente como um todo (Cf. ANJOS, 2009: 26-40; WALDMAN et SERRANO, 2007;
COSTA E SILVA, 1994).
14
Raubwirtschaft é terminologia universalizada pelo geógrafo alemão Friedrich Ratzel (1844-1904), conotando uma economia de roubo, de pilhagem, de
butim, de rapina, ou ainda destrutiva. O jargão é mormente utilizado quando o foco da análise são as práticas da economia colonial.
15
Língua falada pelos Ovimbundo, povo da região planáltica do Huambo e porção central do litoral angolano, ao Sul do antigo Ndongo. Essa etnia,
levemente ultrapassando a terça parte dos angolanos, é a mais numerosa do país.
16
Um eco linguístico dessa aura guerreira é a presença da palavra jagunço, derivada de Jaga, na fala cotidiana do Português do Brasil. Mas, no que
seria altamente revelador de afetações ideológicas imiscuídas ao significado de muitos termos coloquiais brasileiros, o sentido dicionarizado refere-se a
6
Apoiados em campos fortificados, os Jaga mantinham-se em contínuo pé de guerra. Disciplinados ao extremo, a
tradição oral registra que os guerreiros matavam os recém-nascidos para não serem perturbados nas lides
militares e nos deslocamentos. Em contrapartida, adotavam jovens de ambos os sexos das populações vencidas,
incorporados indistintamente ao kilombo. Os ingressantes deviam prestar obediência incondicional ao chefe,
cortando vínculos com as linhagens e os anciões que as tutelavam.
Essa conduta nos mostra uma sociedade guerreira habilitada a absorver alógenos com múltiplas origens étnicas,
aberta a todos sem restrição a qualquer genealogia. Tratava-se do que no âmbito das ciências sociais, é definido
como cross-cutting institutions, entidades que recortam transversalmente sistemas clânicos, culturais e de
linhagem, estabelecendo uma nova centralidade do poder. Pois então, o que se tem no kilombo amadurecido é
uma instituição transcultural, amálgama político de processos societais reunindo apensos de diversos povos e
culturas do tronco Bantu da África Central (apud MUNANGA, 1995/1996; MILLER, 1975).
A esse background militar, a condução estratégica da guerra, reveladora do talento político de Nzinga, está atada
às muitas particularidades da conjuntura vivida pela resistência autóctone. Claro está o objetivo central das lutas:
derrotar os portugueses e estancar o comércio escravista, metas que Nzinga procurou atingir explorando ao
máximo as oportunidades que tinha às mãos, tanto no sentido político, quanto no diplomático e militar. Tal postura
se explica pela desigualdade dos meios a disposição da resistência angolana no enfrentamento com Portugal, uma
das potências europeias do período.
Implicando em adotar opções passíveis de anular e/ou arrefecer a vantagem potencial dos colonialistas, nas
refregas com os portugueses Nzinga apelou, por exemplo, para a tática das guerrilhas. Intercalando ataques de
surpresa com recuos estratégicos, fustigava e cansava as forças coloniais para num momento propício, infringirlhes a derrota. Não foi diferente sua performance diplomática, patente nos pactos concluídos com mandatários
locais, na aliança com a Holanda e nos acordos de trégua celebrados com Portugal, estes últimos astuciosamente
instrumentalizados pela rainha para recompor suas forças e retemperar as alianças políticas. Isso com o fito de
mais adiante retomar o combate contra os invasores.
Nesse estilo de procedimento também se insere o ingresso de Nzinga na Igreja Católica. Batizada como Ana de
Souza, a conversão da “Rainha Dona Ana” ocorre na esteira de concertação política com os portugueses,
sugerindo motivações não propriamente espirituais na adoção do catolicismo. Isso é atestado por documentos da
época, sinalizando que mais de uma vez Nzinga fez uso da condição de católica para confundir e semear confusão
no campo adversário, combatendo Portugal e ao mesmo tempo escrevendo ao Papa como “fiel obedientíssima”.
Cabalmente, a rainha acata a fé cristã visando obter maior poderio bélico e comercial, não interferindo na práticas
ritualísticas das terras onde reinava, que continuaram as mesmas. Nzinga seguramente intuía a importância da
moldura cultural e religiosa dos súditos, essencial num governo que mantém relação siamesa com a
heterogeneidade dos povos regionais (apud WEBER, 2012: 13).
Esse incessante vai e vem, modelado ao sabor da fortuna e embalado por seduções e traições, é nítido no
desempenho da rainha. Não por acaso transita no Português do Brasil a expressão ginga - corruptela de Nzinga se vinculando ao exercício da superação dos obstáculos, onde a esperteza de quem é deficitário em força e
recursos inverte posições momentaneamente desfavoráveis, imbroglio no qual a criatividade, mobilidade e o
aproveitamento das fraquezas do adversário jogam papel fundamental. Na fala brasileira do dia-a-dia, ginga é uma
forma de enganar a adversidade: está presente no passe do futebolista no gramado, é a gira do capoeirista no
corpo-a-corpo, é o rebolado cativante da mulher, é o meneio de corpo do sambista. Situações que
metaforicamente recordam os circunlóquios táticos da Rainha Nzinga.
De outra parte, retenha-se que ginga é bem mais que um aposto semântico, de modo algum se circunscrevendo a
uma nota literária. Na substantividade do Brasil Colônia, a ginga está firmemente acoplada ao kilombo, ou como
pessoas fora da lei, bandidos errantes, criminosos truculentos, julgamento de valor certamente oriundo da visão do poder estabelecido sobre os Jaga.
7
aqui é reconhecido, quilombo. Essa instituição guerreira é mais um elo que atravessando o Atlântico, une povos,
histórias e geografias. O espaço brasileiro, destino de centenas de milhares de angolanos escravizados, tornou-se
palco de formas de luta inspiradas na experiência das guerras travadas por Nzinga na África. Agora, esse
conhecimento reaparece impetuosamente do outro lado do oceano, aqui chegando nos porões dos navios para
medrar em solo brasileiro energizado pela insurgência negra.
Outrossim, assinale-se que paralelamente a uma bantuidade imiscuída ao caldo cultural que se reconstrói em terra
brasileira - contribuição essa muitas vezes ignorada pela pesquisa especializada (MOURÃO, 1974) - por outro lado
temos que o quilombo não se atém a fronteiras étnicas e culturais. Sendo em África uma instituição centralizada
liderada por um guerreiro dentre guerreiros, referenciado por uma matriz transcultural e aberta a toda sorte de
influências, o quilombo brasileiro é pelo seu conteúdo manifesto, uma cópia deste modelo Bantu, em especial de
Angola, onde o kilombo foi desenvolvido. Exatamente por essa razão, o quilombo construiu-se enquanto vetor de
uma estrutura política diferenciada, abrigando oprimidos de todas as origens étnicas, prefigurando um modelo de
democracia plurirracial que o Brasil ainda busca instituir (apud MUNANGA, 1995/1996: 63).
Nessa ótica, nada há de surpreendente em Nzinga ter sido contemporânea do herói afro-brasileiro Zumbi dos
Palmares (1655-1695), com ele compartilhando tempo e espaço comuns de resistência. A saber, o quilombo. E eis
que no Quilombo dos Palmares, a mais famosa experiência de luta contra a sociedade escravocrata no Brasil,
novamente temos a marca de Angola. Para os primeiros habitantes de Palmares, esse espaço era conhecido
como Angola Janga. Em outras palavras: Angola Pequena. No que igualmente não é nada fortuito, a força da
memória coletiva se revela na difusão do termo quilombo. Com efeito, na diáspora negra a nomenclatura africana
sobrevive apenas no Brasil, substituída que foi por cumbes e palenque na América espanhola, e por hide-out nos
Estados Unidos (ANJOS, 2009: 50-52).
Lado a lado com a persistência semântica do termo quilombo está sua onipresença espacial. No Brasil - com
exceção do Acre e de Roraima - as concentrações quilombolas são encontradas em todas as unidades da
federação. Estimativas do movimento social apontam a existência de três mil núcleos, cifra essa corroborada por
órgãos oficiais, que atualmente identificam 3.524 comunidades de quilombos. En passant, cabe o reparo de que
esse número pode ser ainda maior. Tratando-se de uma cartografia étnica em processo de lapidação, inúmeras
ocorrências de comunidades quilombolas aguardam regularização cadastral 17. De qualquer modo, a despeito
inclusive da incompletude dos dados amealhados, é inquestionável o quanto a territorialidade brasileira é tributária
da rainha guerreira (BARBOSA, 2012: 108-109; ANJOS, 2009: 128 e 136).
Em África, como seria de se esperar, a reverberação do labor político da rainha é ainda mais pungente. Em
particular, assevere-se que a tradição de resistência cujo centro foi a Matamba, fez com que a região fosse
considerada oficialmente “pacificada” pelos portugueses apenas em 1836. Mesmo assim o veredicto não permitiria
ignorar o fragor de uma resistência que se atualiza adotando novas roupagens. Para os descendentes dos
soldados de Nzinga, a contestação ao controle colonial continuou a se manifestar em toda sorte de subterfúgios:
erros voluntários no exercício das tarefas, pagamento errático dos impostos, absenteísmo, desprezo, indiferença e
dissimulação. Levantes espontâneos complementam esse pano-de-fundo, resposta popular à opressão
escamoteada nos ofícios da polícia colonial como crime comum e atos de banditismo (LOPES DE SÁ, 2010: 69).
Tamanho corolário de inconformidade, denunciando uma personalidade insurgente da qual a Matamba jamais
abriu mão, foi colocada às mais duras provas nos anos 1960. No limiar das lutas de libertação nacional de Angola,
em Janeiro de 1961 esse espaço ressurge como pivot da resistência, sacudido por uma sublevação avassaladora
dos trabalhadores da cultura do algodão. Era a Matamba retomando a ofensiva. Propagando-se como fogo em
palha seca por toda a Baixa de Kassanje, o levante foi duramente reprimido pelo staff militar português, que não
hesitou em fazer uso de bombardeamentos aéreos da população civil.
17
Seria inescapável consignar que o reconhecimento dos espaços quilombolas está em descompasso com os processos de titulação, que infelizmente
engatinham. Embora a Constituição de 1988 assegure os direitos das coletividades dos quilombos, transcorridos 23 anos apenas 192 comunidades - 6%
do total - obtiveram título pleno das suas terras (BARBOSA, 2012: 109).
8
Contudo, a escalada da repressão demonstrou-se inútil. Como ficaria claro nos meses seguintes, nada poderia
conter o clamor das lutas pela independência nacional de Angola. A disposição nacionalista em encetar uma
guerra de expulsão final dos invasores colonialistas estrangeiros não tinha como ser detida. Prova disso é que aos
4 de Fevereiro de 1961 as redes clandestinas do movimento nacionalista deflagram audacioso ataque às
instalações colonialistas em Luanda, em plena sede do poder colonial. Atacando quartéis, os correios, estação de
rádio e outros alvos do inimigo, a revolta pesponta sequencia insurgente, catalisando processo emancipacionista
concretizado em 11 de Novembro de 1975 com a independência de Angola (Vide SOUINDOULA, 2013; LÚCIO,
2013).
Em todos esses episódios que marcam a afirmação nacional de Angola, Nzinga transparece imbuída de poderosa
carga simbólica, que se perpetua por estar conectada a anseios e prefigurações da nacionalidade, perenidade que
advém da sua conexão com o imaginário político e consciência social angolana.
Devemos ao pensador francês Maurice Halbwachs a reflexão de que a memória coletiva é algo vivenciado,
contínuo, experimentado na prática social. Nesse sentido, a memória empresta valor à agregações de fundo
histórico, cuja sintaxe social dispensa, no plano do imaginário, visões externas às pessoas para ser delimitada,
mantida e recordada. A imperiosidade de uma narrativa escrita aparece apenas quando as recordações deixam
de dispor do suporte de um grupo, se dispersando por entre consciências individuais isoladas. Portanto, se
palavras e pensamentos persistem, então estamos diante de uma construção que dispõe de meios poderosos para
ser salvaguardada por si mesma (Cf. HALBWACHS, 1990: 81-82).
Por isso mesmo Nzinga desfruta de centralidade na autoimagem dos modernos angolanos. Depositária de uma
memória viva, Nzinga ressurge junto à materialidade social compactuando parcerias com o aqui e agora,
protagonizando seu imaginário, edificando novos caminhos e expondo novas expectativas.
Hoje nação livre e soberana, Angola esculturou sua individualidade a partir de lutas de longa data, em cujo cerne
localizamos a inquebrantável disposição da rainha quilombola em enfrentar o poder colonial.
Combatendo forças muito superiores em número, disparidade que dissipou com argúcia e combatividade, Nzinga
compõe com um ideário que a adota como esteio da identidade nacional.
Memória de lutas, memória de uma Rainha que permanece viva!
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MAURÍCIO WALDMAN - DADOS DO AUTOR
Maurício Waldman é colaborador do Centro de Estudos Africanos da USP (CEA-USP), colunista
permanente da revista Brasil Angola Magazine e consultor internacional da Câmara de Comércio
Afro-Brasileira (AFRO-CHAMBER). É Doutor em Geografia (USP) e Pós-Doutor em Geociências
(UNICAMP). Atualmente desenvolve seu segundo Pós Doutorado em Relações Internacionais (USP),
trabalho centrado em Angola com interface no multilateralismo e na questão dos recursos hídricos. A
pesquisa tem supervisão do Professor Livre Docente Fernando Augusto Albuquerque Mourão e
financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Waldman é
autor e/ou coautor de muitos artigos e livros no campo da Africanidade, dentre os quais Memória
D'África - A temática africana em sala de aula (Cortez Editora, 2007), obra de referência na área.
MAURÍCIO WALDMAN - MAIS INFORMAÇÃO & CONTATOS
E-mail Pessoal: [email protected] Home-Page Pessoal: www.mw.pro.br
Biografia Wikipedia (BrE): http://en.wikipedia.org/wiki/Mauricio_Waldman
Currículo CNPq - Plataforma Lattes: http://lattes.cnpq.br/3749636915642474
Pos Doutorado Relações Internacionais USP em andamento: http://www.mw.pro.br/mw/pos_doc_usp.pdf
AO CITAR E/OU REPRODUZIR ESSE TEXTO ACATAR A REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA QUE SEGUE:
WALDMAN, Maurício. A Memória Viva da Rainha Nzinga: Imaginário, Identidade e Resistência. Texto de subsídio elaborado para
o XVIII Curso de Difusão Cultural do Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo (USP), Conferência Escravidão
e Resistência, proferida para o XVIII Curso de Difusão Cultural Introdução aos Estudos de África. Universidade de São Paulo
(SP): Centro de Estudos Africanos da USP (CEA-USP). Março de 2013.
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