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O sustento financeiro
da administração colonial
*
Vera Alice Cardoso Silva
Prqfessora Titular da UFLMG
Em duas partes se divide a boa Administração da
Fazenda, quanto à direção de um Govemador. A primeira
consiste no aumento dos rendimentos e a segunda na boa
anecadação deles. (Instruções que EI Rei Meu
Senhor manda dar pelo Real erário ao
Governador e Capitão General da Capitania de
São Paulo, a respeito da Administração e
Arrematação da Fazenda Real, 7.07.1774).
Resumo: As estratégias de fmanciamento do governo
do Brasil colonial constituem o foco deste ensaio. A fonte
histórica, sobre a qual foi construída a análise, são notas
escritas por Costa Matoso, nomeado pela Coroa portuguesa
para uma elevada posição na burocracia da capitania de Minas
Gerais, começando por sua posse em 1749.
Este ensaio introduz o tema das finanças públicas, com
algumas observações sobre o contexto mais amplo da
estrutura do Estado nas sociedades modernas. Trata,
especialmente, do método empírico adotado pela Coroa
portuguesa na administração da Colônia e de detalhes do
orçamento público da capitania de Minas Gerais.
Abstract: The essay focuses on the strategies used by
the government of the Colonial-Brazil towards loans' giving.
The historical source upon which the analysis was built are
notes written by Costa Matoso - referred by the Portuguese
king to a high position in the administration ofMinas Gerais'
Captaincy.
Therefore, this essay relates to the public financing
process, not letting aside' the broader issue of the State
building in modern societies. It deals specifically with the
guidelines of the Portuguese Crown towards the administration
of the Colony, as well as details ofthe public budget in the
Captaincy ofMinas Gerais.

Este estudo só tornou-se possível graças às informações bibliográficas e históricas que me
foram generosamente repassadas pela Profa. Beatriz Ricardina de Magalhães, do Departa mento de História da UFMG, a quem agradeço.
210
Introdução
O ponto de partida deste estudo são duas anotações constantes do Códice
Costa Matoso, intituladas Despesa que fiz esta Provedoria das Minas Gerais em todo o ano de
1749 e Relação dos contratos e rendas que Sua Majestade tem nesta capitania das Minas, sua
1
origem, criação, aplicação e consignação. na firma de sua real ordem.
Ambas oferecem interessantes tópicos para a análise do complexo processo de organização e manutenção da estrutura de administração pública no
Estado moderno, aí incluído o caso do Estado Colonial.
As anotações em tela reportam-se a condições da gestão portuguesa na
capitania de Minas em meados do século XVIII, ou seja, já contados mais de
dois séculos de institucionalização de práticas de administração ibérica no
Estado do Brasil, nome oficial da possessão no Novo Mundo.
Ao longo deste período, a Coroa experimentou fórmulas diversas de organização do governo, cada uma evidenciando um tipo de concepção sobre o
modo mais eficaz de se controlar as atividades que dessem lucro sob a forma
de tributação, bem como os agentes - particulares e funcionários reais encarregados de seu recolhimento e aplicação.
A importância da regulamentação dos mecanismos de apropriação de
recursos financeiros pode ser imediatamente verificada no próprios documentos
através dos quais o rei estabelecia os princípios de organização do governo
colonial e as atribuições e responsabilidades dos funcionários que nomeava.
Para a Coroa portuguesa, o princípio dominante das fórmulas de governo
colonial resumia-se na seguinte diretriz: a ocupação, exploração e defesa dos
territórios ultramarinos deveriam ser financiados por atividades aí empreendidas; estas, além do mais, deveriam ser organizadas de modo a garantir
que a Coroa lucrasse o mais possível com elas.
A preeminência inicialmente atribuída aos gastos com a defesa do território indica, no entanto, que os reis portugueses avaliavam as possessões coloniais como um bem de Estado que valia por si mesmo, independentemente da
riqueza material que pudesse dali ser carreada, de modo direto e imediato, para
o cofre real.
Dois elementos da administração colonial ainda nos séculos XVI e XVIII
podem ser citados para dar plausibilidade a esta tese. Primeiro, a justificativa
para a substituição do sistema das capitanias hereditárias pela fórmula do governo geral, ocorrida em 1548. Segundo, a criação de Superintendência e
Provedoria de Minas de Ouro, antecipando descobertas de grande e ricos veios, o que ainda era, à época, em boa medida, apenas sonho visionário.
1.
FUNDAÇÃO João Pinheiro. Códice Costa Matoso. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro,
CEHC, 1999. Doc. 48, p. 416-417 e Doc. 78, p. 617-621.
211
Objetivos de Estado e adaptabilidade das formas de
administração territorial
A carta régia que instituiu o Governo Geral do Estado do Brasil, em 17 de
dezembro de 1548, ressaltou muito mais a responsabilidade militar e política de
Tomé de Souza, primeiro governador geral, do que seu papel como autoridade
2
máxima a serviço da Fazenda Real. Pelas instruções que recebeu, cabia-lhe
cuidar da construção de uma "povoação grande e forte", em lugar
estrategicamente escolhido para garantir que pudesse prestar ajuda às demais
povoações já existentes e vulneráveis a ataques de índios e de estrangeiros.
Cabia-lhe buscar a paz com os índios e organizar os corpos militares necessários, provendo armas, munições,'fardamento, animais e "tudo o mais" necessá rio
à defesa da terra, aí incluído o estímulo à construção de navios para a proteção
da costa. Cabia-lhe combater corsários e agraciar os que se dispusessem a
guerrear, quando chamados, com comendas das ordens militares presididas
pelo rei.
A carta régia estabelecia que todas essas ações deveriam ser financiadas
com recursos provenientes de tributos pagos pelos colonos. (Aliás, raríssimas
vezes veio dinheiro de Portugal para pagar despesas da administração colonial.
Uma dessas ocasiões excepcionais foi a provisão de recursos da Coroa para
pagamento dos militares engajados nas lutas contra os holandeses. Mesmo
então, o rei insistia que os súditos a serem beneficiados pela expulsão dos
3
holandeses fossem compelidos a emprestar dinheiro para sustentar a guerra).
Assim sendo, como em todo Estado moderno, caracterizado pela autonomia financeira do soberano, a ser assegurada pela capacidade de impor tributos
e de cobrá-Ios efetivamente, tornou-se essencial para os administradores do
Estado do Brasil a organização de uma estrutura fazendária destinada a iden tificar atividades tributáveis, impor os tributos, pagar apenas as contas públicas
consideradas devidas e remeter para Lisboa o saldo que houvesse, sem que,
nesse processo ocorressem corrupção, desvios ou superfaturamento.
A opção pelo governo geral substituindo o governo dividido entre capitães
donatários, que atuavam como senhores feudais em seus domínios fecha dos,
impôs-se à Coroa antes pelas crescentes ameaças de invasão estrangeira ao
território e às dificuldades de articulação militar dos donatários, na falta de uma
4
direção política central, do que por razões financeiras.
2.
O texto integral encontra-se em Marcos Carneiro de Mendonça. Raízes da formação administrativa do
Brasil. 2 vols. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro/Conselho Federal de Cultura,
1972, 1" volume, 35-51.
3.
Regimento Geral dado a Baltasar Roiz Soza, provedor-mor da Fazenda do Brasil, em 12 de março
de 1588, citado em Graça Salgado, coordenadora. Fiscais e Meirinhos: a administração no Brasil colonial.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2" ed, 1990, p.216.
4.
Esta linha de argumentação encontra-se no livro Formação do Brasil Colonial, de WEHLING, Arno e
WEHLING, Maria José (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994).
212
Os reis portugueses passaram a seguir dois princípios para garantir o
máximo de confiabilidade na gestão colonial: 1°) não conservavam as autoridades máximas nos cargos por tempo muito longo; 2°) separaram rigorosamente a administração fazendária da administração política e militar, determinando que os governadores gerais e os governadores das capitanias não tivessem ingerência nos assuntos financeiros da colônia. Estes ficavam ao
cuidado do provedor geral e dos provedores das capitanias.
As modificações mais significativas na estrutura do governo colonial ocorrem justamente na administração fazendária, que vai ganhando cada vez mais
importância à medida que se amplia o significado econômico do Brasil para
Portugal. Novas estruturas de fiscalização e controle vão sendo criadas ao longo dos séculos XVII e XVIII, culminando com a instituição, a partir de 1760, do
princípio da administração colegiada, realizada através das Juntas de Fazenda.
Tais juntas, em geral, compostas pelo governador, pelo ouvidor e pelo provedor, organizadas no âmbito do governo geral e de cada capitania, refletiram a
conveniência política de unificar as diversas instâncias da administração, a
saber, a autoridade política, a autoridade judiciária e a autoridade fiscal, tendo
em vista realizar de modo mais eficiente o objetivo de acoplar integralmente
toda a estrutura societária do Brasil aos interesses econômicos e políticos do
governo português.
Esta mudança na administração fazendária inspirava-se na filosofia do
Marquês de Pombal, que passou todo o tempo em que dirigiu o governo português, na segunda metade do século XVIII, preocupado com a revitalização
financeira do país e com a racionalização da máquina do Estado.
Sob sua gestão completou-se o processo de centralização do governo do
Brasil, com a extinção, por compra, das últimas capitanias donatárias.
Ficavam, assim, para trás as experiências de divisão do território em governos separados: a Repartição do Sul, que englobou as capitanias de São
Vicente, Rio de Janeiro e Espírito Santo, entre 1608 a 1613; o Estado do
Maranhão, que reuniu as capitanias do Pará, Ceará e Maranhão, de duração
mais longa, de 1621 a 1774.
A colônia unificada, com sede do governo agora na cidade do Rio de
Janeiro, era cada vez mais vista como um território economicamente diversificado, promissor, muito mais do que apenas o eldorado dos metais nobres e
das pedras preciosas, que tanto fascinara a Coroa na primeira metade do
século XVIII.
Nas duas últimas décadas do século XVII e nas quatro primeiras do século XVIII, o setor das minas na administração fazendária foi consideravelmente
ampliado, praticamente duplicando o número de funcionários a serem
5
nomeados e pagos pela Coroa.
5.
Para as modificações na administração fazendária ocorridas entre 1548 e 1808, consultar os
anexos ao livro Fiscais e Jl.;feirinllOs, já citado.
213
A propósito do crescimento da máquina do Estado na colônia, vale lembrar
o paralelo aumento da oferta de cargos a serem providos mediante compra por
particulares, procedimento comum nos Estados europeus. A venda de cargos
garantia renda segura à Fazenda Real, dado o interesse pessoal do comprador
em torná-Io efetivamente lucrativo.
Paralelamente, cresceu também a preocupação da Coroa em restringir a
nomeação de novos funcionários e o provimento de cargos vagos, com o objetivo
explícito de diminuir os encargos com as folhas de pagamento.
A preocupação com a defesa do território e com a manutenção da ordem
persistia. Porém, ao longo do tempo, a Coroa foi capaz de impor aos governos
das vilas, cidades e de cada capitania, a responsabilidade de arcar totalmente
com as despesas de organização, treinamento e manutenção das tropas regulares e das tropas auxiliares formadas para atender a emergências de guerra.
O outro agente clássico de construção da ordem - a Igreja - também era
sustentado por tributos pagos pelos colonos, segundo o princípio do padroado
real, que transformava os clérigos seculares em funcionários da Coroa. Por este
mesmo princípio, o próprio rei beneficiava-se da contribuição obrigatória dos
dízimos eclesiásticos, devidos pelos colonos que, por definição consuetudinária,
eram também membros da Igreja Católica, já que era ele o grão mestre da
Ordem de Cristo, instituição da qual derivou, por bula papal, o princípio do
6
padroado real.
Desta maneira, já no início do século XVIII, a Coroa criara no Brasil uma
estrutura administrativa que gerava, por via tributária, recursos suficientes para
auto-sustentar-se e para garantir superávits transferidos periodicamente para a
7
Casa dos Contos em Lisboa.
A neutralização do poder político dos capitães donatários, já bastante
evidente na segunda metade do século XVII, garantiu que os funcionários da
Coroa controlassem praticamente todas as formas de transações monetárias,
desde o comércio à transmissão de herança. O rei não perdia de vista a menor
oportunidade de obter renda. Vale lembrar, a título de exemplo exacerbado desta
orientação fiscalista dominante na administração portuguesa, a taxação do mel
vendido em mercados locais, paga pelo comprador ao invés de pelo produtor, já
que se tratava de mel silvestre, que só dava o trabalho da coleta ... Ou, então, a
remessa para Lisboa do dinheiro do cofre de órfàos, defuntos e ausentes, não
entregue, por alguma razão, ao legítimo proprietário - definido este por
sentença judicial - remessa esta que era obrigatória, paralela à expressa
6.
Informações valiosas sobre o padroado real e os tributos devidos à Igyeja encontram-se no livro de
Dom Oscar ele Oliveira, Os dízimos eclesiásticos do Brasil, nos períodos da colônia e do império. Belo
Horizonte: Universidade de Minas Gerais, 1964.
7.
Os regimentos passados pela Coroa para instruir a ação do provedor geral, dos provedores elas
capitanias e de proveelores elas minas determinavam o assentamento anual dos recolhimentos e
pagamentos. A prestação de contas podia ser anual ou trianual.
214
proibição de ser o dinheiro apropriado pelo governador geral ou pelo governador da capitania para outros fins.
Ao longo deste período de adaptações, a população da colônia crescia e
a complexidade da organização social também, o que induzia o refinamento
das estruturas de controle administrativo, principalmente no aspecto fazendário.
A visão antecipatória de fontes de receita
Pode falar-se de certo tipo de orientação estratégica, de uma "visão
antecipatória" na concepção dos princípios políticos da administração colonial
portuguesa. Tal atributo ganha sentid? se vinculado à opção forçada pela colonização, que a Coroa não pôde evitar ao se defrontar com o desafio de conservar o território descoberto mas não explorável pela via costumeira do estabelecimento de feitorias comerciais.
A colonização do Brasil impôs aos portugueses a tarefa de construir uma
sociedade e uma economia numa terra onde não havia nada visível e imediatamente lucrativo que justificasse o enorme investimento em recursos humanos e
materiais exigidos por esta tarefa.
Aceito o desafio, decisão explicável por razões estratégicas decorrentes
da dinâmica da política européia, a Coroa passou a demandar, primeiro dos
capitães donatários, depois dos governadores gerais e dos governadores de
capitanias, que identificassem possibilidades de exploração econômica
lucrativa e as estimulassem.
Tal preocupação acentua-se ao longo do tempo, à medida que se consolida a colonização. No regimento passado ao governador geral em 16l2,já sob a
influência espanhola, ficava o governador Francisco Giraldes obrigado a "promover a cultura e povoamento das terras, bem como a edificação de engenhos
de açúcar, mantendo os privilégios concedidos aos donos destes; tirar as terras
de quem não as [cultivasse] para entregá-Ias a quem o [fizesse]; conservar as
matas a fim de que não [faltasse] madeiras de construção e lenha para os
engenhos; [...] promover a pesca da baleia e a plantação de palmeiras, ambas
8
destinadas à fabricação de azeite.”
Em 1677, no regimento com instruções para o governador geral Roque da
Costa Barreto, ordenava o rei que aquela autoridade "[cuidasse] do povoamento da terra com o maior zelo, dando atenção às cultiváveis e à edificação
e reconstrução de engenhos de açúcar; [zelasse] que [fossem cultivadas] as
terras dadas em sesmarias, retirando as' dos que não o [fizessem]; [desse] a
informação pedida ao governadores anteriores e não atendida, sobre a contrabando e o corte indiscriminado do pau-brasil; [mandasse] fazer experiências
8.
Fiscais e Meirinhos, op.cit., pp.173-4.
215
com o salitre descoberto, comunicando ao rei os resultados; [cuidasse] que
9
[fossem aumentadas] as rendas' obtidas pelo contrato da pesca das baleias."
Já havia passado o auge do açúcar e ainda não era visível a riqueza do
ouro e dos diamantes. Portanto, o governo português preocupava-se em identificar toda e qualquer atividade que gerasse receita, no intuito de resguardar o
domínio da colônia, sem onerar a metrópole, na expectativa do surgimento de um
10
novo "produto motor".
É justamente esta atitude antecipatória que parece justificar a iniciativa da
criação de ramo administrativo especializado na supervisão e taxação da
atividade mineradora em 1603, época em que o volume de ouro explorável na
região coberta pelas capitanias de São Vicente, São Paulo e Rio deJaneiro era
11
irrisório.
Tal medida foi acompanhada de outro tipo de iniciativa, também
antecipatória de obtenção de riqueza, que foi o estímulo real às expedições
destinadas a descobrir minas.
A regulamentação passada em 1603 já detalhava rigorosamente as condições de exploração das minas e a forma de tributação devida à Coroa.
Verifica-se, então, que o governo metropolitano atuava consistentemente
no sentido de construir no Brasil uma estrutura de administração que fosse, ao
mesmo tempo, auto-sustentável em termos financeiros e indutora de saldos
positivos nas contas públicas, a serem apropriados pela Fazenda Real.
A partir deste quadro de referência, voltemos às anotações do Códice Costa
Matoso que motivaram as reflexões até aqui desenvolvidas, buscando nelas encontrar evidenciado o sentido e as prioridades da ação governativa dos portugueses no Brasil, tal como acima delineados.
Complexidade da colonização: o problema da administração da
ordem e do controle das atividades geradoras de receita
Retomemos ponto já mencionado neste estudo, a saber, a idéia de que o
processo de colonizar o território descoberto implicou uma série de ações visando a tornar segura, previsível e lucrativa sua exploração econômica.
Tais ações, regulamentadas pela Coroa, induziram a rápida construção
de estruturas burocráticas bastante especializadas. Sem entrar no mérito de
9.
10.
Fiscais e meireinlws, op.cit., p. 234.
Esta expressão foi usada por Pierre Chaunu para designar o elemento indutor de ciclos
econômicos.
11. Do regimento passado ao provedor das minas, em 15 de agosto de 1603, consta como atribuição
prioritária o controle da descoberta de minas de ouro, prata e cobre. Este funci onário deveria ser
auxiliado por escrivão que assentasse em livro a descoberta e passasse certidão pa ra sua
exploração. Fiscais e Meirinhos, pp. 219-221.
216
sua eficiência e racionalidade (lembre-se, a título de exemplo do tipo de
problema frequente, afetando a eficácia da administração colonial, a constante
reiteração, em cartas régias, de proibições de ingerência de uma autoridade no
campo de atribuições de outra, formuladas no seguinte tom: " [não deve o
governador geral] se intrometer na jurisdição eclesiástica nem permitir que o
12
bispo se intrometa na sua ... " ), o certo é que, em menos de meio século de
ocupação efetiva do território, já existia um governo do Estado no Brasil, com
pessoal nomeado, na folha de pagamento da Coroa e pessoal exercendo
funções de arrecadação em cargos arrematados em leilões, gerindo órgãos e
ocupando cargos que prestavam periodicamente contas à Coroa.
Em 1749, dois séculos, portanto, após a instituição do governo geral, eis a lista
de pessoal incubido de serviços públicos, pago pela Provedoria das Minas Gerais,
órgão do governo da capitania encarregado dos negócios da Fazenda Real: a)
governador (também investido da função militar de capitão-geral, que o tornava
diretamente responsável por toda a organização e fiscalização da defesa do
território e da manutenção da ordem interna);
b) o secretário do governador;
c) o comandante das forças militares da capitania (função exercida por
um tenente de mestre-de-campo general);
d) o ajudante do comandante;
e) o ouvidor-geral;
f) os juizes de fora (autoridades nomeadas pelo rei para o controle dos
negócios municipais);
g) os intendentes da Fazenda Real, em geral nomeados para exercer sua
função no âmbito das comarcas e nas cidades maiores;
h) os escrivães da Fazenda Real;
i) os porteiros, guarda-livros e seladores da Fazenda Real;
j) os meirinhos da Fazenda Real;
k) os ajudantes do "governo do expediente", setor encarregado do registro
das capitações devidas pelos proprietários de escravos;
I) os fiscais das Intendências do Ouro, com sede nas comarcas e nas cidades maiores;
m) os escrivães lotados em cada Intendência do Ouro;
n) os tesoureiros das Intendências do Ouro;
o) os ajudantes dos Intendentes da Fazenda Real;
p) os meirinhos das Intendências do Ouro;
q) o tesoureiro da Intendência dos Diamantes;
r) os oficiais e soldados do Corpo de Dragões Reais que recebiam soldos.
12.
Regimento passado ao governador geral em 23 de janeiro de 1677. Fiscais e Meirinhos, p.237.
217
Estes funcionários eram remunerados com ordenados pelo trabalho
rotineiro, acrescidos de ajudas de custo para pagamento de despesas decorrentes de traslados e das viagens de fiscalização a que estavam obrigados por
dever de ofício. Alguns recebiam ainda um sobre-salário, provavelmente
gratificação pela produtividade no exercício da função de arrecadação de
tributos, como no caso do tesoureiro da Intendência dos Diamantes da
Comarca do Serro Frio.
Além dos salários, a Provedoria pagava rotineiramente os gastos com
material de consumo e serviços necessários tanto à administração civil, quanto
à militar. Da lista de 1749, consta o dispêndio com os seguintes itens:
a) aluguel de casas, papel, tinta e lacre para o expediente da Secretaria
de
Governo;
b) capim para os cavalos do comandante militar e de seu ajudante;
c) soldos pagos como ajudas adicionais para ajuste de fardamentos;
d) pão de munição para os soldados e milho para os cavalos;
e) hospital de soldados;
f) ferragens e curas de cavalos;
g) consertos de selas;
h) compra de borrachas e caixões para as remessas de ouro, com
couros, pregas e tachas necessários;
i) pagamento a carpinteiros e pedreiros contratados para várias obras e
consertos;
j) consertos de armas para as tropas;
k) despesas com a condução do ouro para o Rio de Janeiro e de bilhetes
para as intendências;
1) compra de cavalos para o serviço das tropas;
m) pagamento a um ferreiro que fez cinco grades de ferro e as assentou
no "novo palácio"(de governo?);
n) despesas miúdas de todas as intendências e da Fazenda Real;
o) despesa com o destacamento no Paracatu (sem detalhamento do
dispêndio). As côngruas devidas às autoridades do clero secular
constituíam outro
significativo item do orçamento administrado pela Provedoria. Em 1749, estavam na lista de pagamento o bispo da cidade de Mariana, as "dignidades,
cônegos e mais ministros" da Catedral de Mariana, os vigários colados das
matrizes de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto, de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias, de Nossa Senhora do Bom Sucesso do Caeté, da matriz de Santo Antônio em Santa Bárbara, de Nossa Senhora da Conceição do
Rio das Pedras, de Santo Antônio do Ouro Branco e da freguesia da Cidade
Mariana.
A contabilidade colonial caracterizava-se por operar com longos períodos
de carência, variando o prazo de seis meses a três anos, tanto para os
pagamentos devidos pela Provedoria Geral e de cada capitania, quanto
218
para o recolhimento dos tributos diversos devidos à Coroa. Na lista de pagamentos feitos em 1749, encontram-se registros de períodos de créditos
devidos aos funcionários variando de sete meses a três anos.
O último tipo de despesa constante desta lista remete a atenção para o
modo de efetuar a cobrança dos tributos devidos à Coroa, a saber, a
concessão deste serviço a particulares, mediante ieilões públicos, através dos
quais o direito de cobrar era transferido a quem oferecesse garantias de maior
retorno ao cofre real. (Diga-se de passagem que o sistema de arrematações de
serviços públicos e de vendas de cargos na administração colonial no Brasil
está a merecer estudo mais sistemático e acurado).
As despesas vinculadas ao sistema de contratos arrematados estão
assim detalhadas na lista de pagamentos da Provedoria das Minas Gerais em
1749:
a) capitações que se restituíram aos eclesiásticos oficiais e ministros;
b) restituições de novos direitos e terças partes a pessoas que os
pagaram primeiro e não serviram todo o tempo das provisões;
c) pelo que se deu ao contratador dos diamantes, o capitão Felisberto
Caldeira Brant, na forma das condições do contrato.
Não há como determinar se o orçamento do ano de 1749 foi equilibrado,
já que Costa Matoso nada nos informa sobre o montante de receita arrecadada
naquele ano ou sobre as reservas de caixa da Fazenda Real.
NIas, sabemos bem como se compunha a receita do governo.
A fonte de recursos financeiros para sua sustentação provinha, como já
dito, das rendas tributárias. Estas dividiam-se nos seguintes grupos de contribuições compulsórias: impostos e dízimos incidentes sobre todas as atividades econômicas, aí incluídos os devidos à Igreja (os já citados dízimos eclesiásticos
cobrados pela própria Coroa em virtude das prerrogativas do padroado real); os
estancas, que eram rendas de atividades econômicas organizadas como contratos cedidos a terceiros ou que constituíam monopólios reais; os direitos alfandegários, isto é, taxas cobradas no trânsito de mercadorias e pessoas.
Para se ter a visão completa da dinâmica financeira no Brasil colonial,
vale a pena levar em conta a distinção proposta pela historiadora paulista Heloísa Liberalli Belloto entre rendas econômicas e rendas tributárias. Segundo a pesquisadora, "[...] embora intimamente ligadas, elas são diferentes na sua origem
e têm, pelo Estado, diferentes manejos. Enquanto que, no primeiro caso,
prestam-se ao giro, aos negócios e aos entendimentos internacionais da metrópole (veja-se, para ser breve, só o caso dos diamantes sendo usados até como
suborno diplomático), no segundo, elas estão destinadas aos gastos internos
da Coroa, [de grupos privilegiados, como a nobreza, a classe militar, o
13
funcionalismo], e, sobretudo, destinadas às despesas obrigatórias."
13.
BELLOTTO, Heloisa Liberalli, "Administração fazendária no Brasil colonial: ajunta da Fazenda da
Capitania de São Paulo (1762-1808)". Anais da III Reunião da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica. São
Paulo, 1984, pp. 121-124.
219
Heloisa Bellotto ressalta que a moeda para curso era escassa e que não
interessava à Coroa diminuir mais ainda o estoque de dinheiro através da co .
brança de impostos, o que prejudicaria os negócios em geral. Desta situação
decorria a opção pelo pagamento em produtos, que o próprio governo podia
encarregar-se de vender. "A verdade é que", nos diz a historiadora, "qualquer
que viesse a ser a forma do pagamento, o produto colonial brasileiro era duramente taxado pelo governo português. Veja-se o exemplo dado por João Lúcio
de Azevedo (Épocas de Portugal econômico) com relação ao açúcar: no seu
preço, 30% correspondem aos vários tributos: a dízima, as propinas, o redízima
(ao donatário), o cruzado, a vintena, o Dote à Rainha da Inglaterra e Paz da
14
Holanda, entre outros; e em Lisboa, o consulado, a sisa, o quinto..."
A segunda anotação constante do Códice Costa A1atoso, citada no início deste
estudo, oferece evidência desta orientação excessivamente fiscalista, mas
mostra igualmente, a sensibilidade da Coroa face ao problema específic o da
organização da economia, que é o de estimular condições favorecedoras do
investimento e do comércio.
Vejamos o que esclarece Costa Matoso com relação ao regulamento do Contrato
dos caminhos reais das entradas: "teve princípio este contrato (que se divide em
dois ramos, a saber: do Caminho Novo e Velho, do Rio de Janeiro e São Paulo,
e outro Caminho do Sertão, da Bahia e Pernambuco) em virtude de uma junta
que, em 17 de julho de 1710, fizeram os povos de São Paulo e Minas, por ordem
do governador e capitão-general Antônio de Albuquerque de Carvalho sobre o
meio com que se devia estabelecer e aumentar a Real Fazenda para assistência
dos ordenados, soldos e mais despesas do governo, ministros e cabos-de-guerra
que se erigiam, em virtude de uma carta de Sua Majestade com que se
concordou por-se em cada carga de fazendas secas que entrasse para estas
minas quatro oitavas, nas de molhados duas, os escravos quatro, os mulatos
seis, em cada cabeça de gado vacum uma, de que se dando conta a Sua
Majestade, foi servido, por carta de 24 de julho de 1711, admitir somente
imposição moderada nos gados, e tornando o mesmo senhor, em abril de 1713,
a mandar ouvir os mesmos povos, se veio depois a diminuir a dita contribuição
ao estado em que ainda hoje se acha de pagarem os escravos duas oitavas, os
cavalos e mulas sem sela duas oitavas, o gado vacum uma oitava, as cargas de
fazenda seca, cada duas arrobas, uma oitava e meia e de molhado, cada carga,
15
meia oitava."
Conta-nos Costa Matoso que os moradores das Minas usavam parte do
dinheiro assim arrecadado para completar o valor equivalente às trinta arrobas
de ouro devidas à Coroa anualmente como pagamento do quinto real, prática
14.
BELLOTTO, op.cit., p.122.
15.
FUNDAÇÃO João Pinheiro, op. cit., doc. 78, p. 618.
220
que evidencia a flexibilidade do governo metropolitano ao tratar de adaptar a
política fiscal às condições concretas de sua implementação na colônia.
Na mesma anotação, Costa Matoso dá a lista dos caminhos (ou passagens) controlados no território das Minas Gerais, a saber, do Rio das Mortes,
do Rio Grande, do Rio Paraopeba, do Rio das Velhas, do Rio Jequitinhonha, do
Rio São Francisco e do Rio Verde.
A localização dos postos de cobrança em pontos estratégicos de cruzamento dos rios dá a medida da importância dessas vias de circulação de
pessoas e de riquezas na vida da capitania.
Tais postos de cobrança eram estabelecidos por ordem do governador da
capitania e entregues à exploração de particulares através do sistema de
arrematação, visando a "render alguma coisa para a Real Fazenda", segundo
Costa 1vIatoso, que registrou também pelo menos um caso de fracasso da
iniciativa, a saber, a passagem de Baependi. Diz-nos o cronista que "teve princípio este contrato em 1716 e não teve assistência alguma mais que o primeiro
16
ano, por não concorrer mais gente pela tal passagem."
Ou seja, nem sempre o cálculo antecipatório de receitas pelas autoridades identificava de modo acurado a atividade e o lugar que de fato
prosperariam ...
Costa Matoso refere-se por último aos contratos dos dízimos reais, cobrados por três contratadores diferentes nas comarcas de Vila Rica, Rio das Mortes, Sabará e Serro Frio (as duas últimas objeto de um só contrato). Reafirma a
aplicação geral dos recursos assim arrecadados: pagamentos de "soldos (ordenados) do governador e tropas de Dragões, ordenados e côngruas dos ministros de Justiça" provedor e oficiais da Fazenda, dos vigários e mais despesas
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que pela mesma Fazenda se mandam fazer."
Esta anotação de Costa Matoso indica sua preocupação com a recuperação dos registros oficiais dos contratos em vigor e das ordens régias que os
autorizavam. Pareceu-lhe um passo importante no aperfeiçoamento administrativo a unificação dos leilões de arrematação e a concessão dos direitos de
cobrança por prazos iguais para o conjunto dos arrematantes.
Muito provavelmente, Costa Matoso aplaudiria e apoiaria a ampla reforma
na estrutura fazendária da metrópole e das possessões ultramarinas promovida
pelo Marquês de Pombal a partir de 1760, que tocou diretamente, entre outras
medidas, nas práticas da arrematação de contratos da Fazenda Real. Na
segunda metade do século XVIII, a preocupação com a "boa administração"
pressupunha ações do governo visando a aumentar opções de rendimentos
para a população e a promover a eficaz arrecadação de tributos a
eles acoplados. Não era esta orientação, no entanto, diferente da que motivava
16.Idem, p. 620.
17.Idem,p.621.
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a Coroa no século XVI ao passar instruções para o povoamento e exploração
da colônia. A novidade de que distingue a orientação de governo no século
XVIII pode ser encontrada justamente na avaliação implícita no lacônico comentário de Costa Matoso sobre os procedimentos da arrematação de contratos da Fazenda Real, a saber, era melhor racionalizar a administração, do que
seguir distribuindo indiscriminadamente prebendas e favores pessoais. Normas
gerais, aplicadas mais impessoalmente, dariam ao governo mais renda e mais
autonomia no julgamento de demandas envolvendo interesses da Fazenda
Real.
Problemas de sustento financeiro do Estado que, guardadas as
diferenças de contextos históricos, continuaram persistentemente a perturbar
os governos, já agora brasileiros, do período monárquico e da República.
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O sustento financeiro da administração colonial *