XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE e PRÉ-ALAS BRASIL. 04 a 07 de setembro de 2012, UFPI, Teresina-PI GT28 – Ruralidades: ambiente, processos e atores sociais Espaço rural e mercados ilícitos: plantadores de cannabis na região do submédio São Francisco e gestão diferenciada de ilegalidades Autor: André L. C. Costanti ([email protected]) Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Espaço rural e mercados ilícitos: plantadores de cannabis na região do submédio São Francisco e gestão diferenciada de ilegalidades André L C Costanti1 (UFJF) - Autor A literatura sociológica clássica sempre demarcou grande oposição entre o espaço urbano e rural. Porém, com a crescente complexização e integração da sociedade, não se pode mais compreender esses dois mundos como opostos. Tendo por base o argumento foucaultiano de gestão diferenciada das ilegalidades, este trabalho visa investigar como o plantio de cannabis na região do submédio São Francisco (região atingida pelas construções de barragens) se insere nessa lógica – negociando as brechas entre legal e ilegal, lícito e ilícito – e mostrar como esse fenômeno característico das grandes cidades opera no campo, descortinando suas rupturas e continuidades. *** O presente trabalho visa demonstrar a operação dos mercados ilícitos em ambiente rural. O trabalho será guiado pela perspectiva de modificação do espaço rural e sua semelhança, cada vez maior, com o espaço urbano 2. Para tanto, foi realizado um estudo comparativo com os resultados obtidos em estudos sobre redes criminais no Rio de Janeiro e São Paulo. Quanto ao plantio ilícito, contei com os trabalhos já realizados na região, como os estudos pioneiros de Bicalho e Hoefle e, notadamente, os trabalhos de Fraga e Iulianelli. O trabalho conta também com parte original, onde foram analisadas entrevistas realizadas com agricultores da região de Belém do São Francisco, que, em alguma época, estiveram envolvidos com o plantio ilícito de cannabis. Essas entrevistas são parte integrante de um projeto que visou investigar o papel dos plantios ilícitos na formação da renda do trabalhador, e contou com verba de pesquisa do CNPQ (recursos) e FAPEMIG (bolsa de iniciação científica). Para garantir a segurança dos informantes foram omitidas suas identidades. *** 1 Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Mestrando do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora 2 Para uma discussão sobre a construção sociológica do espaço rural ver o artigo de Carmo (2009). O autor propõe uma visão integradora de espaço urbano e rural, para além da sua tradicional oposição/relação. Os centros urbanos – Rio de Janeiro e São Paulo Michel Misse, ao partir da lógica foucaultiana para analisar a criminalidade no Rio de Janeiro, define como são formados os mercados ilícitos, mostrando o poder institucional que, atendendo à demanda social por controle das paixões, passa a regular socialmente o mercado: As tensões que o mercado coloca para toda e qualquer sociabilidade demandaram sempre uma definição dos limites legítimos da realização dos interesses. Um desses limites é o que determina quais os bens e serviços que podem, legítima e legalmente, constituir-se em mercadorias: a institucionalização do mercado avançará a partir desse tipo de regulação. Retirados, no entanto, da esfera institucional, muitos desses bens e serviços transformam-se em mercadorias ilícitas, principalmente aqueles afins às paixões controladas (prazer físico, perversões, vinganças, jogos, proteção, drogas, escravos, objetos de saque, morte do adversário ou do concorrente, etc.) cuja comercialização, tornada clandestina, passa a constituir mercados ilícitos (prostituição; tráfico de drogas, de mulheres, de crianças; saques e receptação de bens saqueados; sicariato e pistolagem; contrabando, etc). (MISSE, 1999) É nesse ponto que é realizada a passagem da lei à norma: “A ‘normalização’ é, assim, a dinâmica de produção da sociabilidade entre sujeitos sociais considerados como potencialmente desafiliáveis, egoístas e, portanto, perigosos” (MISSE 1999, P 52). A separação entre self e subjetividade é um importante mecanismo dessa dinâmica de produção da sociabilidade, pois representam não apenas polos opostos, mas pontos de constante tensão, entre independência e autonomia, valorização social do individuo e valor de si (MISSE, 1999). “Chamo, aqui, de ‘normalização’, ao complexo processo histórico-social que mobilizou os ‘indivíduos’ [...] a auto-regularem sua premência e sua ganância (de necessidades, interesses e desejos), através da socialização do ‘valor de si’ como o valor próprio que deriva do desempenho do ‘auto-controle’” (MISSE, 1999, p 53). De maneira diferente de Foucault, Misse define o processo de normalização como uma espécie de racionalização a fins, na abstinência da força para fins individuais, na emulação de um status individual. De acordo com Foucault a punição ou simplesmente sanção de um crime pode ser focada no transgressor ou na transgressão, variando de acordo com a situação sócio-histórica. O estado moderno é individualizado e dessa maneira o foco centra-se no sujeito da agressão. Nas palavras de Misse: “Quando essa separação se extingue, quando transgressão e transgressor se tornam uma só coisa, e a separação entre o fato e a lei torna-se maior, o que passa a ocorrer na modernidade, busca-se através da razão identificar no transgressor motivos e razões que o levaram à transgressão” (MISSE, 1999, p 57). Nesse ponto está concluída a “passagem da lei à ordem” (FOUCAULT, 1987). Tal abordagem implica na consciência da relativização do crime, posto que determinadas práticas de um sujeito podem ser consideradas crime ou não, dependendo do lugar e do tempo histórico que este ocupa. Assim, a definição de um crime enquanto tal dependerá do contexto. Porém, a acusação passa a ser simultaneamente descontextualizada e individualizada, passando por controles locais de acusação3 (MISSE, 1999). Tal perspectiva permite que o autor trate, de maneira diferente da concepção usual da relação entre drogas e violência, ou simplesmente tráfico de drogas e violência, o fenômeno da violência urbana no rio de janeiro. Assim, a violência decorre de dois aspectos principais da acumulação social da violência: o primeiro é a sobreposição e acumulação histórica de diversos mercados ilícitos desde a contravenção do jogo do bicho e lenocínio até o moderno varejo de drogas (MISSE 1999; MISSE 2008); o segundo aspecto fundamental é a sobreposição de mercadorias políticas a mercados ilícitos, sobretudo o varejo de cocaína (MISSE, 1999; MISSE 1997; MISSE 2002). As mercadorias políticas somadas aos mercados ilícitos e informais formam o que o autor chama de ligações perigosas. Parte do aparato estatal e paraestatal armado, a exemplo da polícia e das milícias, negociam essas mercadorias políticas4, vendendo proteção, cobrando comissão, taxas e 3 O autor demonstra através de uma crônica publicada em um jornal no inicio do ano de 1970, que relata o estrangulamento de uma patroa pela sua empregada. A transcrição, que devido aos limites físicos desse trabalho não pode ser aqui incluída, está presente na página 59 de sua tese de doutorado referenciada ao final. 4 Michel Misse parte da idéia weberiana de capitalismo político e busca fundir esse conceito às noções de clientelismo, corrupção e extorsão. “existe um outro mercado informal cujas trocas combinam especificamente dimensões políticas e dimensões econômicas, de tal modo impostos dos comerciantes do ilícito, utilizando a violência para manter o controle de territórios e sujeitar os transgressores (MISSE, 1999; MISSE 1997; MISSE 2002). O autor, bem como Vera Telles, como será demonstrado adiante, parte da provocativa imagem da cidade ocidental como um bazar, mostrando uma marca de orientalidade, onde tudo é negociado (RUGIERRO & SOUTH, 1997). “Para esses autores, é próprio à cidade moderna-tardia, que as fronteiras morais entre legalidade e ilegalidade se atenuem ou sejam constantemente negociadas. Como suas referências são as grandes cidades européias e norte-americanas, a diferença com a cidade moderna clássica, fabril, fordista e organizada, fica ressaltada. No caso do Rio de Janeiro (como de outras grandes cidades brasileiras e do chamado ‘terceiro mundo’), no entanto, que em certo sentido sempre hospedou (ainda que diferencialmente) um « bazar » de mercados desse tipo, a análise deve privilegiar menos a oposição ao tipo ideal de cidade moderna, que por aqui não se realizou completamente, que as diferenças de conjuntura e territorialidade de sua história.” (MISSE, 1999, p 291) Vera Telles parte do mesmo ponto de Misse e, através de uma etnografia experimental da cidade, procura analisar como são negociadas pelos atores as brechas entre lícito e o ilícito em São Paulo, a maior metrópole brasileira. Telles (2009; 2009b) e Telles e Hirata (2007; 2010), não abordam a criminalidade, como é comum na visão corrente, como constituinte de um mundo diferente do da ordem. As fronteiras entre lícito, ilícito e ilegal são porosas e difíceis de serem determinadas. Práticas ilícitas convivem diariamente com práticas lícitas e além da justaposição muitas vezes estas se sobrepõem. Os autores se preocupam, assim, com “um cenário urbano no qual se expande uma ampla zona cinzenta que torna incertas e indeterminadas as diferenças entre o trabalho precário, o emprego temporário, expedientes de que um recurso (ou um custo) político seja metamorfoseado em valor econômico e cálculo monetário. O preço das mercadorias (bens ou serviços) desse mercado, ganha a autonomia de uma negociação política, algo como um mercado de regateio que passa a depender não apenas das leis de todo mercado, mas de avaliações estratégicas de poder, de recurso potencial à violência e de equilíbrio de forças, isto é, de avaliações estritamente políticas. Para distinguir a oferta e demanda desses bens e serviços daqueles cujo preço depende fundamentalmente do princípio de mercado, proponho chamá-los de “mercadorias políticas”” (MISSE, 20XX) sobrevivência e as atividades ilegais, clandestinas ou delituosas.” (TELLES & HIARATA, 2007) Os trabalhadores precários do urbano negociam a cada contexto e a cada situação os imperativos morais que envolvem suas atividades, sem, todavia, constituírem necessariamente carreiras criminais5.(TELLES & HIARATA, 2007) A opção dos autores pela perspectiva descritiva analítica, através da etnografia experimental, partindo de cenas cotidianas e sem importância (FOUCAULT, 2003) se justifica metodológica e teoricamente no seguinte trecho: “Se é verdade que o mundo urbano – o “bazar metropolitano” em suas modulações locais – é atravessado pelas forças estruturantes que redefinem as relações do trabalho e não-trabalho, entre o formal e o informal, o legal e o ilegal, esses processos operam em situações de tempo e espaço. Processos situados, portanto. E agenciados por meio de mediações e conexões de natureza e extensão variada. Por isso mesmo, só podem ser compreendidos nessas constelações situadas.” (TELLES & HIARATA, 2007 p 177) Assim, os autores fogem das dicotomias que analisam os aspectos da ilicitude sob a ótica do mercado internacional de drogas ou das populações em risco social. O enfoque é nos atores que, diariamente, constroem as relações entre licitudes e ilicitudes. (TELLES & HIARATA, 2007): “São campos de força que se deslocam, se redefinem e se refazem conforme a vigência de formas variadas de controle e também, ou sobretudo, os critérios, procedimentos e dispositivos de incriminação dessas práticas e atividades, oscilando entre a tolerância, a transgressão consentida e a repressão conforme contextos, microconjunturas políticas e relações de poder que se configuram em cada qual.” (TELLES, 2009, p 102) As cenas cotidianas de um jovem gerente de biqueira que não mede esforços para construir boas relações com os moradores da ‘comunidade’, financiando festa junina, providenciando o ‘gato’ que garante luz – negociado com o funcionário terceirizado da concessionária de energia elétrica - e por vezes livrando a precária região de especuladores imobiliários do ilícito (TELLES & HIARATA, 2007), e a de Doralice, uma diarista que tem contatos no mercado 5 FRAGA. Vida Bandida: Socialização e Produção de Subjetividades na formação de carreiras criminais de venda de receitas, possui uma banquinha de CDs piratas em seu bairro e, eventualmente, para se safar de grandes embaraços financeiros leva um pacote, sem fazer muitas perguntas, para algum endereço no caminho do seu trabalho (TELLES, 2009). Assim, podemos perceber que ambos autores, Misse e Telles, utilizam a lógica foucaultiana de gestão diferenciada de ilegalidades6 para explicar a criminalidade, a ilicitude e a violência no centros urbanos. O plantio ilícito de cannabis no Brasil O plantio de cannabis no Brasil concentra-se na região do médio e submédio São Francisco. A região, devido à grande produção da planta, recebeu da mídia a alcunha de Polígono da Maconha. Sua produção destina-se prioritariamente ao mercado nacional, abastecendo cerca de 40% deste, predominantemente as regiões norte e nordeste (FRAGA & IULIANELLI, 2011). A concentração da produção nos mercados do norte e nordeste do Brasil devese especialmente ao abastecimento do sul e sudeste já ser dominado pela produção paraguaia7. Isso porque, além da maconha paraguaia ser considerada de melhor qualidade, por possuir maior concentração de THC 8, entre o Paraguai e o sudeste brasileiro há maior número de rotas seguras para o escoamento da produção (FRAGA. 2010). Os estudos brasileiros baseiam-se nas experiências internacionais, notadamente as plantações de cannabis em Rif no Marrocos e na África subsaariana, de cannabis no México, além das plantações de coca na Colômbia. 6 “riscar os limites de tolerância, dar terreno para alguns, fazer pressão sobre outros, excluir uma parte, tornar útil outra, neutralizar estes, tirar proveito daqueles” (FOUCAULT, 1997, p. 227) 7 O Paraguai consolidou-se como o maior produtor de cannabis da América Latina. Como possui um mercado interno pequeno, expandiu o comercio para outros países da América Latíca (FRAGA, 2012) 8 FRAGA, 2006. Não tive acesso à estudos sobre concentração de THC nas diferentes produções. No entanto, este não é o objetivo do presente trabalho. Basta que saibamos que o mercado consumidor considera a maconha paraguaia “mais forte” do que a nordestina, não interessando se essa idéia corresponde realmente às concentrações de THC de cada planta. Os três casos, tipificados em recente estudo (FRAGA, 2012), apresentam peculiaridades, advindas não só das especificidades culturais regionais como também das características de sua produção, atores envolvidos, papel econômico, fatores políticos, nível de violência e etc. Há importantes estudos sobre o plantio de cannabis no México. Porém, é preciso ter em mente que há algumas ressalvas a serem feitas antes de utilizálos para pensar a realidade brasileira. A produção mexicana é voltada ao mercado americano, conhecidamente um grande mercado consumidor de substâncias ilícitas. Possui também uma vasta fronteira, que propicia o escoamento em larga escala. Seu plantio e comercialização são controlados por cartéis, que costumam fazer uso de grande violência para intimidar e controlar a população (FRAGA, 2012). O plantio de coca na Colômbia apresenta uma grande especificidade que é o uso tradicional de suas folhas. Além disso, há a coexistência de grupos guerrilheiros, das FARC e de grupos paramilitares, o que, certamente, é de grande importância para a compreensão da dinâmica da violência na região. Estudos demonstram como a guerra às drogas, o combate ao plantio através de fulminação de plantações ilegais, empurrou os plantadores para regiões sob o controle paraestatal, onde é mais difícil a repressão, e aumentou o número de desplasados (deslocamento forçado da população) (FRAGA, 2011; TOKATLIAN). O exemplo do Marrocos é o que mais se assemelha à realidade brasileira. O plantio é destinado a suprir o mercado europeu, notadamente Espanha e França, sob a forma de haxixe (produto derivado da planta). Segundo estudos realizados em Rif, a produção de cannabis tem um importante papel no acréscimo do IDH da região. Os autores espanhóis observaram uma crescente qualidade de vida na região, com a construção de moradias melhores (paredes de alvenaria e telhado de amianto), implemento de veículos automotivos, principalmente motos. Apresentando-se assim, como a fonte principal de recursos na região (FRAGA & IULIANELLI, 2010). Para além, das peculiaridades de cada região, já apresentadas acima, os plantios ilícitos têm em comum o fato de estarem presentes em locais de precarização da mão de obra, ora como cultura principal, ora como cultura de substituição (FRAGA & IULIANELLI, 2010), o mesmo fenômeno observado nos mercados ilícitos dos grandes centros urbanos (TELLES 2009; TELLES & HIRATA 2010; MISSE 1999). A cannabis possui grandes vantagens em relação a grande parte do plantio lícito, pois necessita de poucos cuidados e adapta-se bem a solos secos, como é o caso do semi-árido brasileiro9. Apresenta também grande vantagem econômica quando comparada às culturas tradicionais da região do submédio São Francisco, como a cebola e o pimentão. Além de possuir uma maior lucratividade, com preços mais elevados, a estocagem é fácil e barata10, e a cannabis pode ser guardada para ser vendida em épocas de elevação do preço, como períodos de festa. Quanto à cebola, cultura comum na região, uma agricultora nos fala sobre a instabilidade nos preços: Eu reclamei muito de meu pai que só plantava cebola e hoje eu continuo só na cebola. Quando pega um precinho bom dá uma levantada depois cai de novo....[...] Com a cebola você consegue uma renda maior né, mas não é sempre. Mas o pessoal que planta milho a renda é sempre mais baixa. A gente planta também o pimentão e o coentro, mas é para consumo. A gente leva pra uma Ceasa da cidade, lá tem os compradores da cidade e os de fora. Dependendo do valor a gente prefere vender para o da cidade, pra fortalecer a economia local. O valor da saca está hoje de 12 a 14, mas mês passado ela chegou até 30. Ela sobe, cai.... Tem gente que fala que é a maconha, mas eu acho que o produto principal da região ainda é a cebola (Dalva, agricultora) O plantio de cannabis no Brasil apresenta a característica de cultura de substituição ilícita, sendo realizado em épocas de dificuldades financeiras ou até mesmo para prover implementos na qualidade de vida, como comprar uma moto, vestimentas ou bancar os estudos de um filho. Depois de um tempo plantando cannabis, os agricultores retornam para as culturas convencionais. 9 No Lesoto, onde não só o uso para fins recreativos é bastante difundido como também para fins medicinais, há registros do uso do plantio de cannabis como alternativa a solos desgastados. FRAGA (2010). 10 Costuma-se enterrar o produto do plantio, colocando-se açúcar para garantir a qualidade (FRAGA, 2010) Assim, podemos perceber a característica de “ilegalidade transitória”, presente na região. (FRAGA & IULIANELLI, 2011). Nota-se também o importante aspecto da coexistência e sobreposição de mercados lícitos e ilícitos (FRAGA & IULIANELLI, 2010). Os plantadores costumam cultivar simultaneamente culturas lícitas e ilícitas. As culturas lícitas são realizadas em suas próprias terras, ao passo que as ilícitas costumam ser realizadas em terras pertencentes ao poder público (como as beiras de estradas e as margens e ilhas do Rio São Francisco) para que, caso descobertas, os proprietários não tenham suas terras desapropriadas para fins de reforma agrária (FRAGA, 2006). O recrudescimento da violência na região, observado com o aumento do plantio (BICALHO, 1995; BICALHO & HOEFLE, 1999), relaciona-se a uma questão já bastante conhecida e que rendeu (PINTO, 1949) e rende (BARREIRA, 2006; BARREIRA, 2002) grandes estudos: as brigas de família e a concentração de poder destas. As famílias que controlam o agronegócio assumiram o controle do plantio ilícito de cannabis: “A CPI do Narcotráfico, implementada pela Câmara Federal, em 1999, identificou, como veremos mais a frente, que em municípios do Submédio São Francisco, como Floresta e Salgueiro, as rixas entre famílias, o envolvimento das mesmas com atividades ilícitas e de grilagem de terra e os conflitos históricos, migraram para o plantio de maconha, quando esta atividade econômica tornou-se possível, rentável e alternativa”. (FRAGA, 2006) Podemos perceber esse aspecto na fala de uma agricultora da região de Belém do São Francisco, que, ao falar sobre o deslocamento dos agricultores para terras não férteis, nor informa que este: “.... é associado também com as brigas de família, tá? Que está associado, estritamente aqui, pelo menos aqui, em Belém, ao tráfico de drogas (...) que foi aos Aracuãs. O que vai fazer com que essas pessoas elas só plantem cebola. Só cebola. Um ou outro planta um abacaxizinho, um ou outro, mas é impressionante [...] E também não tem estímulo nenhum do Estado para plantar. Então vai plantar maconha mesmo. E aí, quem tá nas ilhas vem porque os Gonçalves estavam nas ilhas. Eles mandavam nas terras deles. Eles mandavam lá. Ainda mandam, mas não do tamanho que era antes. Aqui dá pra andar sem levar um tiro agora. Antes não, antes era ‘festa’. E aí como essas famílias mandavam antes, era o tráfico que mandava antes, e aí você plantava cebola e no meio da cebola ‘punha’ maconha. Até hoje, viu? Até hoje.” (Moradora) “Tem umas áreas que a própria população sabe que não pode ir. Se você for você não volta. Se você entrar você não pode sair, porque você pode procurar a polícia, né. Se você chegar numa área dessas você não volta não. A não ser que você seja muito íntimo de quem esteja lá.” (Agricultora) A região que, como vimos, é marcada historicamente pela violência, também sofre com o acumulo de anos de descaso por parte do poder público e ineficácia de investimentos. A euforia gerada pelo incremento da irrigação capitalizada não propiciou distribuição de renda (em muitos casos tendo o efeito contrário, o de ampliar a concentração de renda) nem incremento significativo da qualidade de vida (BICALHO, 1995; BICALHO & HOEFLE, 1999). A violência, entretanto, é gerada, assim como observado por Michel Misse no Rio de Janeiro, mais pela repressão policial, pela maneira como o poder público e, em certa medida, a sociedade, gesta essas ilegalidades. Afinal, existem registros históricos do uso e cultivo da planta na região, para fins não comerciais (FRAGA, 2006). O cultivo passa a ser um problema a partir do início de sua comercialização e o consequente combate a ela: “Os dados sobre homicídios em cidades da região como Belém de São Francisco e Floresta apontam para a coincidência do aumento das taxas deste evento com o incremento da produção e da conseqüente repressão de forças policiais. De 1997 a 2000, as taxas de homicídios de Floresta credenciaram-lhe a condição de município com a mais elevada taxa deste tipo no país. Nesse período, das 10 cidades mais violentas do país, considerando esse indicador, duas estavam situadas na área do Polígono (Floresta, Belém do São Francisco). A maior coerção ao plantio, a partir dos anos de 1990, acarretou a presença mais freqüente de armamento com poderio maior, como fuzis e submetralhadoras. Quando havia uma repressão mais incisiva da polícia, parte do armamento se deslocava para outras atividades criminosas, como assalto a ônibus e caminhões de cargas”. (FRAGA, 2006, p 107) As ações governamentais, salvo em curto período da administração de Fernando Henrique Cardoso, não possuíam políticas de substituição do plantio ilícito, de acordo com Fraga (2006): “Todavia, as ações desencadeadas pelo Governo Federal na Região restringiram-se à repressão da atividade, não se verificando articulações do mero combate ao plantio com medidas que proporcionem aos agricultores e atores envolvidos com o negócio, alternativas econômicas e sociais de sobrevivência.” (FRAGA, 2006) A situação piorou com a construção da barragem de Itaparica, como mostra relatório da CHESF (Companhia Hidro Elétrica do São Francisco) encomendado à FUNDAJ (Fundação Joaquim Nabuco) para avaliar o impacto social do reassentamento das famílias que habitavam as áreas a serem inundadas. Na fala de um dos entrevistados dessa pesquisa, podemos perceber os mesmos elementos. Uma ex-plantadora da região queixa-se do fato das terras férteis terem sido inundadas, o que propiciou, juntamente com outros fatores, a formação de uma monocultura da cebola: Belém era uma região produtora de arroz, todas essas ilhas aqui eram antes da barragem em 70, 80. Tinha tudo aqui em Belém. Hoje, na feira, nem o coentro é de Belém. Tinha tudo. Nenhum dos feirantes é de Belém. (Agricultora) Desde 1987, quando os relatórios começaram a ser produzidos, até 1996, ano do ultimo relatório, foram registrados diversos problemas, como a não garantia do acesso à água encanada, interrupções no fornecimento de luz, condições precárias de acesso à educação (quando essa era disponibilizada) e saúde e, principalmente, desemprego (LIMA et al. 1996). À época do inicio do reassentamento, 1988, a maior parte das famílias reassentadas, vítimas de um processo de urbanização forçada11, sem condições de plantar, pois os lotes coletivos ainda não haviam sido divididos e a irrigação ainda não havia sido iniciada, era dependente da “bolsa” paga pela 11 As famílias atingidas pelas inundações necessárias à construção da barragem foram reassentadas nas agrovilas. Estas consistiam em casas de alvenaria, formando uma vila, onde seria disponibilizado um lote coletivo para usufruto de todos e outro individual, para que cada família pudesse plantar o que quisesse. CHESF, no valor equivalente a 2,5 salários mínimos da época. Afinal, não existiam (e até o ano do último relatório ainda não existiam) alternativas de trabalho fora da agricultura (LIMA et al. 1996). Quando se iniciou a irrigação, foi possível observar a presença de pequenas ilicitudes, através da realização de “sangrias12” por parte dos moradores de fora da vila – portanto sem direito à irrigação – nos dutos que levavam a água para as plantações de dentro da agrovila (LIMA et al. 1996). Observa-se também um grande laço com a terra, o que oferece uma resistência ao assentamento em região semi-urbana e um descontentamento quando este é inevitável: Eu também sou agricultora de origem ribeirinha. Meus pais teriam que ser reassentados, mas meu pai não quis sair da área onde viviam, que seria alagada, mas graças a deus não foi alagada, meu pai não quis deixar as origens dele. Pegava uma parte nas ilhas, e uma parte no lado de cá, eram duas propriedades. A propriedade era dos meus avós, dos pais da minha mãe. Tínhamos titulo da terra e tudo, mas meus pais não quiseram sair, porque ia ficar longe os projetos né. (Agricultora, ex-plantadora) O plantio de cannabis na região não se apresenta como cultura emancipadora. Nela reproduzem-se as desigualdades e processos de dominação, como a meação, que pode ser observado na feira (FRAGA, 2006): “Em geral é feita a “feira”, ou seja, a compra de alimentos para a manutenção do grupo nos dois ou três meses em que permanecem acampados. [...] “Fazer a feira” requer recursos mais elevados, pois são muitas pessoas que precisam de alimentos e outros gêneros para sobrevivência por um período que pode ultrapassar três meses. Custeiam a feira aqueles que têm mais recursos, chamados por muitos entrevistados de “grandes”, “maiores” ou “patrões”” (FRAGA, 2011, p 28) Na região também nota-se a peculiaridade, da presença da figura do “boiadeiro”, mais um elo de dependência do plantador. Este é a pessoa que faz a ligação entre o plantador e o comprador. 12 As sangrias consistem na utilização de mangueiras de borracha para direcionar parte do fluxo de água dos dutos de irrigação para plantações particulares fora das agrovilas. Tal método é utilizado tanto em culturas lícitas como no plantio de cannabis. São também realizadas por moradores das agrovilas que desejam plantar fora dos limites dos lotes coletivos e individualizados, para fins lícitos e ilícitos. Geralmente eles chamam um boiadeiro, ele sempre acha um comprador. Geralmente é uma pessoa que tem acesso a outras cidades, outros municípios e depois ele dá um jeito de encaminhar a mercadoria. (Plantadora) *** No presente trabalho procurei demonstrar como os plantadores de cannabis da região do médio e submédio São Francisco sofrem o que Michel Foucault chamou de gestão diferenciada de ilegalidades. Partindo da premissa que rural e urbano não podem ser considerados (ou ao menos não mais) como mundos distintos e separados iniciei com a exposição dos argumentos de Michel Misse e Vera Telles, sobre estudos relacionados a mercados ilícitos em dois centros urbanos brasileiros, Rio de Janeiro e São Paulo. Esses estudos mostram como a questão da violência urbana associa-se mais à sobreposição do comercio das mercadorias políticas aos mercados ilícitos, e do combate policial ao trafico de drogas. Foi elucidado, também, a grande rede de ilegalidade e ilicitudes presente no cotidiano das grandes cidades, onde os atores envolvidos não constituem necessariamente uma carreira de delinquência. Na segunda parte busquei analisar as rupturas e continuidades desse fenômeno – gestão diferenciada de ilegalidades -, característico dos grandes centros urbanos, no sertão do são Francisco, região predominantemente rural. Onde foi possível observar também uma acumulação social de desigualdades e violências (embora distintas das identificadas por Michel Misse em suas investigações), e identificar pequenas ilegalidades cotidianas, como a realização de sangrias nos dutos de irrigação até o plantio ilícito de cannabis. A violência, histórica na região, sofre um incremento quando aumenta-se o plantio e consequentemente seu combate a ele, gerando outros tipos de criminalidade. A região, que apresenta indícios de uso tradicional da substancia ilícita, como para ocasiões festivas, passa a tê-la como problema a partir do momento em que o comercio desta gera o combate policial. Referencias Bibliográficas BARREIRA, C. Pistoleiro ou vingador: construção de trajetórias. Sociologias (UFRGS), Porto Alegre, v. 1, n. 1, p. 52-82, 2002. BARREIRA, C. Matadores de Aluguel: códigos e mediações. Na Rota de uma Pesquisa. Revista de Ciências Sociais (Fortaleza), v. 37, p. 41-52, 2006. BICALHO, Ana Maria M. 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