Autorretrato e ficção: autoficção Gabriel Pereira “Perharps we find photographs equivocal because the reality they refer to is even more so.” (Joan Fontcuberta) Embora a fotografia tenha se originado de uma herança tecnocientífica do positivismo, carregando assim o fardo da documentação e da visualidade por toda a sua história (sendo até mesmo chamada de espelho com memória), se olharmos e analisarmos sua história mais de perto veremos que todo o tempo houve uma interação com a ficção, a abstração e com formas não necessariamente figurativas. O primeiro autorretrato conhecido, por exemplo, é uma prova clara disto. Conta Joan Fontcuberta que ele foi realizado por Hippolyte Bayard, que criou seu método de fotografia ao mesmo tempo que Daguerre e Talbot, ainda no século XIX. Seu método consistia na fixação de imagens positivas diretamente sobre o papel, não sendo necessário, assim, o negativo de Talbot ou a placa de metal de Daguerre. No entanto o que mais chama atenção é que Bayard, embora criador de um método fotográfico bastante avançado e relevante para a época, não conseguiu financiamentos para sua pesquisa. Por razões políticas o governo francês preferiu financiar as investidas fotográficas de Daguerre (FONTCUBERTA, 2010a). E então Bayard produziu aquele que deve ser um dos primeiros autorretratos da história da fotografia: um Bayard morto, afogado. E o caráter questionador desta obra, Autorretrato como afogado, “exemplifica como a imagem se fez relato, isto é, como se liberando das amarras da descrição alcança outro estágio: o da narratividade” (FONTCUBERTA, 2010a). Mais que isto, demonstrou como desde seu começo, a fotografia já trabalha com um discurso ficcional, para além da tentativa histórica de trabalhá-la somente como um “documento”. Esta possibilidade de utilização do autorretrato de um modo expressivo é especialmente recorrente no período de hoje, na fotografia contemporânea. Diversos trabalhos se situam dentro 1 desta tendência de representação do eu de modo questionador, desde Andy Warhol a fotógrafos menos conhecidos, a exemplo de Leandro Berra e seus “Auto-portraits Robots”. Cindy Sherman é provavelmente a mais reconhecida por seus autorretratos. O trabalho dela está ligado ao pensamento de que “a realidade é apenas um efeito de construção cultural e ideológica que não preexiste à nossa experiência” (FABRIS, 2004): somos linguagem, somos produtos culturais, somos aquilo que a mídia nos determina ser. E é através de seus autorretratos, como na série Stills Cinematográficos Sem Título, que ela vai se propôr como apenas uma base neutra onde se inscreverão diversas personagens: as diversas faces do arquétipo da “Garota” (FABRIS, 2004). Esses autorretratos revelam um mundo construído de imagens, um mundo despersonalizado onde a identidade é encenação. Joan Fontcuberta (2010b) vai determinar tais trabalhos como “Vampirísticos”, em referência ao ente mítico-foclórico que não pode ver a si mesmo no espelho. Mas o trabalho do fotógrafo e teórico da fotografia catalão Joan Fontcuberta também vai fundir a ficção e a fotografia para tentar devolver o ilusório e o prodigioso às tramas do simbólico, de maneira a criar realidades. Em seu trabalho Miracles & Co ele apresenta a narrativa de um monastério entre a Finlândia e a Rússia, descoberto por ele, onde “cursos de milagres” são ministrados. Ele, o jornalista Joan Fontcuberta, decide tomar o curso e, através das suas fotos de si mesmo realizando milagres, espera conseguir mostrar para a humanidade esta “invenção tão incrível”. E, depois de lermos esta narrativa, vemos as fotos de Fontcuberta realizando milagres que vão desde surfar em golfinhos até levitar (atenção para a etimologia da palavra milagre, que vem do latim “mirare”, que pode ser traduzido como olhar com espanto, ver algo maravilhoso). O artista, portanto, vai se apropriar da linguagem e do código documental da reportagem, da documentalização, subvertendo-o e fazendo desses seus autorretratos, além de uma dura crítica ao papel somente documental da fotografia, uma revisão dos conceitos de fé, religião e realidade, tudo isto com seu senso de humor habitual (como na foto onde se vê Joan, aprendiz de milagres, segurando uma fatia de presunto que um milagre tornou no rosto de Che Guevara). Dentro deste mesmo ensejo, também sob forma de “autorretratos”, ele vai realizar a série “Deconstruir Ossama”, onde vai construir a narrativa de dois jornalistas que seguem um líder militar da Al-Qaeda e começam a fazer descobertas sobre Osama Bin-Laden, alegando que este é 2 somente uma criação do serviço secreto americano para dar uma cara à Al-Qaeda, após o sumiço do seu líder anterior, Dr. Fasqiyta Ul-Junat, também um ator contratado. A trama se forma de maneira complexa, com sua ficção se perpretando de maneira dinâmica pela história, onde nada é realmente o que parece ser. O Dr. Fasqiyta Ul-Junat, além de ter a aparência do artista Joan Fontcuberta, o seu próprio nome é a tradução para o árabe do nome do artista. As imagens, portanto, formam uma teoria de conspiração que questiona o papel documentário da fotografia, gerando também uma intensa reflexão sobre como nós, ocidentais, olhamos para o Oriente Médio e sobre como a comunicação funciona: produzindo realidades. Dentro deste pensamento, estas e outras séries (como “Sputnik” e “Fauna”, dele mesmo), deixam evidentes a realização de uma falsificação como estratégia de dissertar sobre o papel que a fotografia pode, e deve, assumir nos dias de hoje, quando vivemos numa cultura midiática onde os conceitos de verdadeiro e falso perderam completamente sua validade, pois tudo é verdadeiro e falso ao mesmo tempo. Daí surge a necessidade (“vampirística”, diga-se de passagem) de desconfiar, sempre (FONTCUBERTA, 2012). É neste contexto de desconfiança que se situam as obras de Joan Fontcuberta, cuja filosofia ele define como contravisão, questionando a intenção visual, quebrando a “caixa preta” da fotografia e pensando em como ela funciona. Ele define contravisão como uma tripla subversão: “a do ‘inconsciente tecnológico’, do sistema fotográfico; a do estatuto ontológico da imagem fotográfica e de suas plataformas de distribuição; e a do significado usual de um conceito de liberdade mascarado pelas miragens da sociedade tecnocrática” (FONTCUBERTA, 2010a). Nota-se portanto que a produção artística de autorretratos é capaz de, através de uma construção expressiva, utilizar-se de diversas ferramentas como a fraude, a narratividade e a abstração para fazer asserções sobre o mundo pós-moderno. Presentes em todos os trabalhos aqui citados está uma reflexão sobre o mundo: um mundo onde a metafísica é a fotografia, onde os clichês imperam e onde um capitalismo de produção e consumo cede espaço a um capitalismo informacional, onde o que se vende e se produz são realidades. E neste mundo onde realidade e ficção se imbricam, onde as imagens substituem o mundo, Joan pergunta: “se vamos morar nas imagens, como sobreviver?” (FONTCUBERTA, 2012). Manejar imagens é manejar o mundo e consciências e seus trabalhos, assim como de tantos outros fotógrafos contemporâneos, seguem a 3 idéia de que está fortemente nas mãos dos fotógrafos e produtores de imagens a responsabilidade de instigar a discussão e reflexão sobre isto, sendo a autoficção um caminho mais do que interessante. Anexos Hyppolyte Bayard Cindy Sherman. Untitled Film Still # 58 4 Miracle of the ham (Série “Miracles & Co” de Joan Fontcuberta) Série “Desconstruindo Osama” de Joan Fontcuberta Referências 5 FABRIS, Annateresa. Identidades Virtuais: Uma Leitura do Retrato Fotográfico. Belo Horizonte: UFMG, 2004. FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Editora HUCITEC, 1985. FONTCUBERTA, Joan . Autorretrato: Fontcuberta. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=pnuRo3ceCVk>. Acesso em: 05 de jan. 2013. FONTCUBERTA, Joan . Fórum Latino-Americano de Fotografia. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=LCByiio0adQ>. Acesso em: 15 de dez. 2012. FONTCUBERTA, Joan. La Cámara de Pandora: La fotografía después de la fotografía.. Barcelona: Gustavo Gili , 2010a. FONTCUBERTA, Joan. O Beijo de Judas: Fotografia e Verdade. Barcelona: GG, 2010b. 6