DISCURSO PROFERIDO PELO DR. DIRSON DE CASTRO ABREU AO RECEBER O TÍTULO DE
HONORÁRIO NA ACADEMIA DE MEDICINA DO RIO DE JANEIRO.
O dom generoso que hoje me outorga meus colegas ao conceder-me o grau acadêmico
honorário constitui para mim uma apreciada distinção, pois me incorpora aos mestres desta casa.
Recebo-o com mistura de humildade e orgulho. Próprio de quem sabe seus méritos que
por obra da generosidade de amigos, tornaram-se grandemente superestimados. Mesmo assim,
recebo-o com sensação de prazer, por ser a Academia uma das mais jovens e pujantes do país e
que seguramente haverá de ser uma força motora da medicina no Estado.
A opção para escolha da medicina como profissão, amadureceu desde a infância na minha
bucólica e pacata cidadezinha de Mar de Espanha em Minas Ferais. Tinha eu cinco ou seis anos
quando, após um intenso temporal, estava na calçada da minha rua deserta vendo escorrer a
enxurrada e o voo das andorinhas acompanhando a evolução das águas. Do outro lado da calçada
surgiu aquele homem simples, de terno surrado, chapéu e camisa branca abotoada até o pescoço
e, pensei: como ele é importante na cidade. Relembrei as outras celebridades local. O padre alegre
e bonachão e o delegado forte e truculento com seu revolver assustador. Ocorreu-me que o padre
não poderia se casar e o delegado era muito violento. Decidi por ser médico.
Minha mãe, mulher muito culta e além de seu tempo morreu aos trinta e cinco anos e a
família despedaçou-se.
Vencendo as vicissitudes, formei-me em 1951 na antiga Faculdade Nacional de Medicina da
Universidade do Brasil.
Trabalhava a noite como professor primário e de manhã ia para Santa Casa para 20ª
Enfermaria, que na ocasião sediava o serviço de Antônio Austragésilo que como Magalhães
Gomes era também um dos grandes chefes de Escola Médica no Brasil, que reunia inúmeros
estudiosos brilhantes dentre os quais: Cruz Lima, Colares Moreira, René Laclete, Peregrino Júnior,
Ibiapina e Borges Fortes. Era, porém, Magalhães Gomes que lá permanecia todas as manhãs,
inclusive muitas vezes aos domingos.
A minha vida profissional iniciou-se praticamente quando fui indicado para fazer pósgraduação em cardiologia no Instituto Nacional de Cardiologia do México, no período de 19531955, e esta instituição achava-se no auge do seu prestígio.
Com a vinda do Prof. Ignácio Chaves ao Brasil, abriu-se uma vaga para o estágio em seu
famoso Instituto de Cardiologia, na época o maior Centro Cardiológico Universal. Com insistência
do Prof. Magalhães Gomes, meu nome foi incluído na lista de inscritos para esta vaga, pois achava
que eu não teria chances de ser escolhido. Três eram os candidatos e, para minha surpresa, coube
a mim a designação de ser o primeiro médico do Rio de Janeiro, para uma das doze vagas que
eram oferecidas universalmente no Instituto de Cardiologia do México.
Foi um período de trabalho e estudo de quase 12 horas diárias. Ao contrário da maioria dos
estagiários de outros países que vão só para aprender, comecei, após meses de estudos, a
escrever o meu primeiro trabalho no American Heart Journal sobre Cardiopatia e Gravidez,
adicionando a Fístula Arteriovenosa Útero Placentária às sobrecargas de volume e pressão que o
coração sofre na gestação. Esse trabalho analisa, pela primeira vez, 53 casos de cardiopatias
congênitas que chegaram à gestação, mostrando como se fazia a dinâmica circulatória e a
sobrecarga das cavidades nesta cardiopatia e o que acontecia na evolução com o acréscimo da
fístula arteriovenosa útero-placentária.
Escrevi diversos trabalhos sobre Tetralogia de Fallot, que foram motivo de interesse da
Dra. Helen Taussig, e diversas Cardiopatias Congênitas.
Quando houve o Congresso de Cardiologia Internacional, em Acapulco, em que a Dra.
Taussig faria conferência magna, ela solicitou que em sua mesa ficasse o chefe do Departamento
de Cardiopediatria e o assistente Dr. Castro Abreu.
No México aprendi a preservar a natureza quando fui almoçar com o meu chefe, Dr. Espino
Vela, em sua residência que, ao término do almoço, convidou-me a podar a árvore em frente a sua
residência.
No México, embora houvesse já vários brasileiros aprimorando seus conhecimentos, fui eu
que fiquei como médico do nosso embaixador, Thompson Flores, a quem levei ao consultório do
maestro Ignácio Chaves para examiná-lo. Daí em diante fizemos amizade e, as quintas-feiras, o
secretário da Embaixada telefonava para o Instituto pedindo minha presença na Embaixada, já
que o embaixador não estava bem. Na verdade era para completar a mesa de pôquer.
Outro aspecto interessante é que o Presidente da República, Don Miguel Aleman,
internou-se no pavilhão dos pensionistas e era eu quem estava lá pelo rodízio. Disse-me que tinha
muitos parentes no Rio de Janeiro e pediu-me, que no meu regresso, cuidasse deles.
Dias antes do Congresso, em Acapulco, chegaram cedo no Instituto Nacional de
Cardiologia, duas motocicletas barulhentas, que postaram a porta dos fundos do edifício principal,
onde nós pela manhã entrávamos. Apresentaram-se como militares e procuravam pelo Dr. Castro
Abreu. Logo o boato correu no hospital sobre minhas saídas à noite, às quintas-feiras, eram para
encontros furtivos com alguma aluna do curso de Enfermagem, que havia no Instituto, e que agora
pedia reparação. Quando fui localizado, desci tranquilo, e eles, em posição de sentido e fazendo
continência, entregaram-me um envelope que, para minha surpresa, era do Presidente da
República, colocando à minha disposição sua residência em Acapulco e seu avião particular para
minha viagem. Levei ao conhecimento do Dr. Chaves o oferecimento, mas também a
impossibilidade de aceita-lo. Perguntou-me o que eu queria e respondi que queria duas passagens
aéreas e duas hospedagens no hotel onde haveria o Congresso, e tudo foi ajeitado.
O maestro Ignácio Chaves era tão importante no México que, mesmo antes de chegar à
direção do Instituto Nacional de Cardiologia, ganhou tal notoriedade que chegou a destituir o
Presidente da República, Pascual Ortiz Rúbio, por demitir o diretor do Hospital General e, não
havendo adjunto que se dignara aceitar substitui-lo, coube a Chaves tomar para si a
responsabilidade de contestá-lo.
Após completar a residência de dois anos (1953-1955), fui agraciado com mais nove meses
como pesquisador do Departamento de Cardiopatias Congênitas, tendo realizado diversos
trabalhos no Instituto.
Antes de regressar ao Brasil, casei com a senhorita Amália Diaz, chefe do serviço
administrativo de Eletrocardiografia do departamento do Dr. Sodi Pallares e tive como padrinhos
o Dr. Espino Vela e a Dra. Maria Victoria de La Cruz, segunda maior embriologista do mundo.
Vivemos felizes por 60 anos. E ela depois de radicar-se muito bem no Rio de Janeiro, dar-me
quatro filhos e nove netos, partiu para a eternidade no início do ano de 2014.
No dia do nosso casamento chegou ao Instituto Nacional de Cardiologia, o meu substituto,
o colega Paulo Ginefra, que também viria a se casar após o término do seu curso.
Quando regressei, tinha direito a trazer um carro e não o fiz. Mesmo assim, tive grandes
dificuldades na alfândega. Só porque trouxe uma baixela de prata que ganhei de presente de
casamento.
Regressando ao Brasil, em dezembro de 1955, recebi do professor Magalhães Gomes a 21ª
Enfermaria da Santa Casa de Misericórdia, para que pudesse receber crianças portadoras de
cardiopatia que necessitavam de tratamento, formando assim o primeiro serviço de
Cardiopediatria da Santa Casa. Nessa época, incorporou-se à sua equipe, o professor Jessé
Teixeira, eminente cirurgião torácico que passou a operar na enfermaria do Dr. Paulo
Albuquerque. As indicações cirúrgicas eram realizadas no auditório da 22ª Enfermaria, sempre
lotada, tendo a mim como relator e a mesa constituída pelos Profs. Magalhães Gomes, Jessé
Teixeira e Nelson Botelho Reis. Foram sessões memoráveis de grande divulgação do aprendizado
de cirurgia, cardiopatia congênita e valvulopatia. O Dr. Jessé operou diversos pacientes, de forma
continuada, durante largo período de tempo. Foi sem dúvida um dos pioneiros da cirurgia,
principalmente antes do advento da cirurgia extracorpórea.
Em seguida, fui chefiar a Cínica Médica da 2ª Cadeira de Clínica Médica do professor
Magalhães Gomes na UERJ, onde permaneci algum tempo, até radicar-me definitivamente no
Instituto Estadual de Cardiologia Aloysio de Castro onde fundei, com Eugênio do Carmo, o
primeiro serviço de Cardiologia Pediátrica do Estado, do qual fui chefe por mais de 20 anos. Por lá
passaram grandes cardiologistas pediátricos que foram brilhar em outros serviços e Estados: Rosa
Célia no Hospital Pró-Cardíaco e Rachel Snitcowisk em São Paulo.
Com a transferência da 5ª Cadeira de Clínica Médica para o Fundão, resolvi estabelecer-me
na Maternidade Escola da UFRJ, onde recebia doentes do Hospital Universitário, do Instituto de
Cardiologia Laranjeiras e do Instituto Estadual de Cardiologia Aloysio de Castro. Na época era o
serviço mais adequado para receber as gestantes cardiopatas.
Na Maternidade Escola, escrevi nove edições do capítulo “Cardiopatia e Gestação” do livro
oficial da UFRJ do prof. Jorge de Rezende e uma edição do livro do Dr. Hermogenes Chaves Neto
de “Obstetrícia Básica”.
Fui homenageado como médico cardiologista em 2007 pelo Hospital Pró-Cardíaco, com
direito a colocação do retrato na parede do Auditório. E como médico cardiologista do ano de
2008 no IECAC.
Fui integrante da Banca Examinadora de Cardiologia no Concurso Público para Provimento
das Categorias Funcionais da Área de Saúde para o Quadro Permanente do Estado e do Município
do Rio de Janeiro, juntamente com Prof. Stans Murad e o Dr. Ricardo Vivacqua. (publicado no D.
O. em 17/06/1986, portaria GP/1354-86)
Senhores Acadêmicos!
Precisamos de homens cultos como em nossa Academia nos diversos ramos em suas
profissões e cidadãos corretos que sejam criadores de felicidade coletiva, em ambiente onde
floresçam a harmonia e o entendimento entre os homens.
Espero poder, nos dias vindouros e derradeiros de uma vida devotada à medicina, se nada
acrescentar as glórias tradicionais desta renascente Academia, nada, em compensação, dela tirarei
que possa diminuí-la ou depreciá-la.
Ser médico não é só especular com a ciência. É também distinguir-se na prática do bem e
aprimorar-se na piedade do sacerdócio à medicina de nossos dias, a ponto de esquecer o doente
pela doença. Renovar-se, estar em dia, sempre deve ser a preocupação do médico inteligente. É
como “uma confiança frente a uma consciência”.
Assistimos a um momento mágico da medicina que será o mais importante de todos: a
prevenção das cardiopatias e, em muitas delas, a sua extinção. Ao fim do século, vários desses
objetivos estarão alcançados.
Agradeço ao Professor Clóvis Monteiro, in memoriam, ex-diretor do Colégio Pedro II,
Internato em São Cristóvão, que me acolheu e me permitiu residir no próprio colégio.
Agradeço ao Instituto Nacional de Cardiologia do México, em especial ao Prof. Ignácio
Chávez, Espino Vela e Maria Victória de La Cruz, que permitiram que eu elaborasse os trabalhos
citados neste currículo e que me deram uma modesta notoriedade no cenário internacional.
Agradeço ao meu pai que, mesmo em situações adversas, fez com que todos os seus filhos
chegassem ao topo da carreira.
Agradeço à minha mãe, prematuramente falecida aos 35 anos de idade, pela beleza de vida
apresentada em tão pouco tempo. Foi recentemente homenageada quase um século depois de
sua morte em sua cidade onde foi diretora do Grupo Escolar de Mar de Espanha.
Agradeço à minha inesquecível esposa Amália que vive eternamente em meu coração, que
deixou a chefia de administração do Departamento de Eletrocardiografia do Dr. Demétrio Sodi
Pallares, do Instituto Nacional de Cardiologia do México, para viver comigo no Brasil. Minha eterna
gratidão.
Agradeço aos meus quatro filhos e consortes, aos meus nove netos com comportamentos
exemplares e sem vícios. Todos formados com família bem constituída.
Agradeço às minhas secretárias, incansáveis na procura nos longícuo anos de trabalhos que
elaborei em minhas atividades universitárias, Marília Rosa, Nanete Flores e a bibliotecária Maria
das Graças Brandão.
Finalmente devo dizer que acredito que o culto aos mestres deve ser religião dos que
querem aprender. Especialmente ao Prof. Magalhães Gomes, que me adotou como filho. A ele
devo tudo. Foi ele que me incentivou a me inscrever num concurso de jovens médicos para se
aperfeiçoar em eletrocardiografia no Instituto Nacional de Cardiologia do México, sendo eu o
primeiro cardiologista do Rio de Janeiro indicado para pós-graduação no México. Ele que foi o
mais brilhante médico de sua geração com uma plêiade de assistentes que compuseram sua
equipe: Hugo Alquéres, Weber Pimenta Bueno, Jair do Carmo, Enéas Sandoval Peixoto, Edwaldo
Mourão, Francisco Laranja, Arthur de Carvalho Azevedo, Ney Toledo, Nelson Passareli e muitos
outros que minha memória já cansada comete a imprudência imperdoável de esquecer. Ao citálos, ao relembrá-los, ao revivê-los, a saudade faz verter lágrimas no meu coração que
desaparecem na bruma do tempo.
Ao término de minha modesta explanação, uma referência ao venerando e secular Hospital
Geral da Santa Casa de Misericórdia, berço do saber, da cultura, dos sonhos e quimeras do meu
tempo, a qual pertenci, por concurso de provas, durante o ano de 1951.
“Diz a lenda que quando a noite chega em seu silencio, nos corredores, labirintos e
anfiteatros do vasto casarão da Santa Casa, as estrelas descem da imensidão do céu, em
borbotões de luz, alegres, iluminadas, reverentes, cintilantes e, de súbito os gonzos das pesadas
portas rangem, ecoa surdamente leve rumor de vozes abafadas. São as estrelas iluminando as
conversas de Magalhães Gomes, Francisco de Castro, Antônio Austragésilo, Cruz Lima, Renée
Laclete, Pedro da Cunha, Oswaldo de Oliveira, Carlos Chagas, entre tantos outros.” Há quem
acredite tê-los vistos ... . Eu acredito!!!
Ilustres colegas, “Estudem quanto possam, ensinem quanto saibam e não esqueçam que
quem guarda avaramente sua ciência, corre o risco que se lhe apodreçam juntamente a ciência e a
alma”.
Muito obrigado e sejam felizes.
Rio de Janeiro, 21 de outubro de 2015.
DR. DIRSON DE CASTRO ABREU
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