Relações entre o islamismo, à estrutura do estado e a hegemonia do Mali na África Negra durante o século XIV 1 . Gustavo da Silva Kern 2 Resumo: O propósito deste trabalho é discutir o processo de islãmização no império do Mali, durante o século XIV, período no qual conheceu seu tempo de apogeu no transcorrer dos grandes séculos da África Negra. Caracterizar as formas as quais o islã toma quando inserido neste contexto – que trataremos por islã negro (islã noir). Analisando, de forma particular, a dinâmica da função social do islã no império do Mali – no período de soberania de Mansa Musa(1312-1332) e de Mansa Sulaimã(1341-1360) – nas suas relações com a constituição da hegemonia do estado mandinga enquanto estrutura político-territorial no sudão ocidental durante o século XIV. Palavras-Chave: Império do Mali, Islamismo/Islã Negro e África Negra. Introdução: Este trabalho, que ainda se encontra num estágio inicial, possui caráter limitado e condicional – característica que de resto é inerente a produção do conhecimento histórico. Porém, em nosso caso devemos sublinhar este traço, pois trabalhamos com uma temática pouco explorada até o presente momento pelos historiadores brasileiros e como decorrência deste fator não temos acesso imediato aos frutos mais recentes produzidos em nossa área de especulação pela historiografia mundial. Nosso objetivo é discutir as relações observadas entre a função social do islã no império do Mali durante o século XIV e a hegemonia do estado mandinga 3 no sudão ocidental durante o período. Tratando de analisar as transformações culturais em curso na sociedade mandinga desde o século XI – através do aprofundamento do processo, mais geral, de infiltração do islamismo na África Negra – nas suas relações com a trajetória histórica das estruturas políticas de estado no Mali. O texto que segue não é mais que uma sistematização de alguns trabalhos de fundamental importância para a compreensão da história do Mali durante os grandes séculos da África Negra, os quais, tivemos acesso e contato até então (de modo que esclareceremos em forma de referências bibliográficas incluídas no corpo do texto a origem e a autoria das idéias e noções aqui re- 1 Trabalho desenvolvido na disciplina de Prática de Pesquisa em História – ministrada pelo Prof. Dr. Edison Cruxen. Graduando do Curso de História do Centro Universitário Metodista IPA. 3 “Trata-se do nome étnico que inclui um extenso grupo de povos da África ocidental, falantes de línguas aparentadas, pertencentes ao grupo lingüístico Mande(...)(em várias línguas do grupo, a palavra diula significa “mercador itinerante”)(...). Segundo sua tradição, os povos mandingas, construtores do grande império do antigo Mali, são originários da região do Manden, próxima a fronteira ocidental do Mali, no curso superior do rio Níger. A denominação “mandinga” provém da forma mandingo com que os ingleses, certamente a partir dos contatos com os Mandinka, nomearam todos os povos do grupo lingüístico mandê, que compreende cerca de 10 milhões de pessoas distribuídas por área de aproximadamente 2 mil quilômetros”. Ver Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, por Nei Lopes, 2004, p. 414. 2 utilizadas de alguma forma 4 ). Para o estudo do período dispomos de fontes documentais de grande relevância que se somam aos trabalhos historiográficos de que nos valemos: A través del Islam 5 , compilação dos relatos do grande viajante Ibn Batuta 6 , que dizem respeito a sua passagem pelo sudão ocidental e pelo Mali no século XIV; e o Tarikh es Soudan(Crônica do país dos Negros) 7 de Es-Sadi 8 . I – A origem do islã entre os mandingas e a expansão do Mali. O recorte espaço-temporal proposto como objeto de estudo, o período de soberania dos mansas 9 Musa(1312-1332) e Sulaimã(1341-1360) (KI-ZERBO, 1972, p. 171 e 173) e o século XIV como um todo, esta inserido no processo de desenvolvimento, mais geral, o qual a África Negra conheceu entre os séculos XII e XVI. Joseph Ki-Zerbo definiu este período como seus grandes séculos. Onde, (...) os países negros africanos atingiram, após uma fase de movimentos migratórios, de contatos e trocas mais ou menos benéficos com o exterior por intermédio dos árabes, fase de progresso demográfico mais ou menos maciço, um certo equilíbrio, que se traduziu por realizações sociopolíticas elevadas, que colocavam realmente estes países ao ritmo do mundo (KI-ZERBO, 1972, p.163). Portanto, é necessário expor inicialmente alguns aspectos referentes a evolução das relações entre o islã e as estruturas do estado mandinga em expansão no séculos XII e XIII. Encontramos nos relatos dos viajantes Al-Barki, do século XI, e Al-Idrisi, do século XII, as referências mais antigas a cerca da existência do Mali enquanto entidade política, ambos registraram-no com o nome de Malel. AlBarki afirma que o soberano do Malel já havia se convertido ao islã quando de sua passagem pelo sudão ocidental. A prosperidade comercial da região favoreceu o surgimento de diferentes estruturas políticas na região. As formações políticas localizadas na região do alto 4 Manteremos, nas citações, a grafia utilizada pelo autor (mesmo que esta seja diferente da qual convencionamos utilizar em nosso texto). Por isso é comum a utilização de palavras semelhantes, em momentos diversos, referindo-se a um mesmo local, povo, grupo lingüístico, etc. 5 Utilizamos aqui a tradução espanhola destes relatos. Ver IBN BATTUTA. À través del Islam. Introducción, trad. y notas de Serafín Fanjul y Federico Arbós. Madrid: Ed. Alianza, 1987. 6 Nascido em Tanger; viveu entre 1304 e 1377. 7 Utilizamos a tradução francesa da crônica. Ver ES-SADI. Ta’rikh es-Soudan. Traduction de l’arabe par Octave Houdas. Paris: Maisonneuve, 1981. 8 De origem moura; viveu no século XVII. 9 “Título do soberano do Mali”. Ver Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, por Nei Lopes, 2004, p. 417. Níger 10 , que poderíamos entender como pequenos reinos, passaram por um processo de unificação durante os séculos XI e XII sob a ação de um dos clãs da nobreza mandinga: os Queitas(NIANE, 1978, p.147). Estes, originários da região da confluência do rio Sancarani com o rio Níger, provavelmente no início do século XII já comandavam um grande país que se estendia do Sancarani até o Buré (COSTA E SILVA, 2006, p. 324). Seriam eles grandes caçadores, líderes de sociedades secretas, portadores da sabedoria dos bosques e das florestas. Alegavam descender de “Bilali Bunama, o companheiro negro de Maomé e o primeiro almuadem do islã, que teria vindo de Meca e se estabelecido no país mandinga”(COSTA E SILVA, 2006, p. 324). Segundo a tradição, seu neto Latal Calabi, possuidor do título de mestre-caçador, ou simbon, estabeleceu a dinastia Queita. O filho deste, Lailatul Calabi, teria feito à peregrinação a Meca 11 . Após a queda de Koumbi Saleh – maior centro urbano do Gana 12 – sob a ação dos almorávidas 13 , na segunda metade do século XI, vários pequenos estados da região expandiram-se. Os Sossos estabeleceram uma hegemonia efêmera na região ao final do século XII. Sob a liderança de seu soberano Sumanguru Cante(1200-1235), atacaram e pilharam Koumbi Saleh, dando um fim definitivo a importância da cidade. Sumanguru havia obtido sucesso em diversas investidas sobre os mandingas, os chefes destes acorreram ao Mansa Dancarã-Tuma, pedindo-lhe que desse combate e liderasse a resistência aos abusos sossos. Dizem as tradições orais que o mansa tinha como irmão Sundiata, que na infância havia sofrido uma deficiência física que o impedia de andar, mas na juventude curou-se deste mal se tornando um grande mestre-caçador, atraindo sobre si a inveja do irmão que o via como uma ameaça a sua soberania. Das razias entre os dois resultou o exílio de Sundiata em 10 “A necessidade de proteger os roteiros do ouro, o aumento do comércio e o contato com o maometanismo contribuíram provavelmente para desenvolver os mecanismos de mando. Grupos de vilarejos achegados passaram a se vincular ao que hoje se chama kafu e a reconhecer a autoridade política e religiosa de um chefe, o mansa, senhor da terra e da chuva, liame entre sua gente e o divino”. Ver A enxada e a lança, por Alberto da Costa e Silva, 2006, 3 ed., p. 324. 11 A incorporação de ancestrais muçulmanos vindos do oriente é lugar comum na tradição oral das cortes do sudão ocidental. 12 “Estado constituído na África ocidental, entre os anos de 700 e 1240, aproximadamente ode hoje se situam a porção oeste do território da República do Mali e sudeste da Mauritânia. (...) No século IX controlava toda região do Wangara, entre o alto Níger e o rio Senegal, produtora de grandes quantidades de ouro que eram comercializadas através do Saara.” Ver Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, por Nei Lopes, 2004, p.292. 13 “Dinastia berbere do Marrocos, condutora do processo de islamização da África ocidental durante o século XI. A partir de 1042, liderados inicialmente por Ibn Yasin e depois por Abu Bacar, seus membros empreenderam uma bem sucedida jihad, que redundou na tomada do Audaghost e Kumbi Saleh (...). O poder dos Almorávidas começou a declinar com a morte de Yusuf, em 1106.” Ver Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, por Nei Lopes, 2004, p. 51. Mema, pequeno estado da região, onde se destacou como soldado. Após a derrota de Dancarã-Tumã, frente às tropas sossas, os chefes mandingas pedem a Sundiata que volte ao Sancarani como mansa para liderá-los. Com tropas formadas por contingentes locais, cedidas pelo rei de Mema, Sundiata retorna ao Manden reforçando suas fileiras com soldados mandingas. O local da grande batalha entre os exércitos de Sumanguru e Sundiata foi Quirina, provavelmente em 1530, na qual os mandingas levaram de vencida os sossos. Esta batalha é conhecida nas tradições orais como uma luta mágica entre dois poderosos feiticeiros 14 , pois na “África Antiga, a magia era inseparável de toda e qualquer ação” (NIANE, 1978, p. 63), simbolizando a formação de um grande estado mandinga, o império do Mali 15 . Sundiata expandiu suas fronteiras 16 e durante seu mando forjaram-se as relações entre o poder central e as regiões vassalas que serão observadas no período subseqüente, o “império assemelhava-se a uma manga. No centro um núcleo duro, submetido à administração direta do rei(...)”, sendo que o “reino estava dividido em províncias, administradas no local(...). As províncias se subdividiam, por sua vez, em conselhos e em aldeias”(KI-ZERBO, 1972, p. 178). A linhagem da qual Sundiata fazia parte já se islamizara nas gerações precedentes a sua, e aventou-se que nasceu maometano. Porém as tradições descrevem-no como um soberano “estritamente ligado a religião de seu povo”(COSTA E SILVA, 2006, p. 327), ao animismo tradicional voltado aos poderes mágicos, a valorização dos antepassados e as forças da natureza. Contudo, são grandes as contradições em torno das relações do mansa com o islã, exemplificando a complexidade de tratarmos da função do islã nas estruturas políticas do Mali – principalmente levando-se em conta as particularidades que toma quando inserido no contexto da África Negra tradicional: 14 Informações mais detalhadas dos acontecimentos relacionados à batalha de Quirina, ver: A áfrica dos séculos XII ao XVI (História Geral da África), vol. 4, p. 149 e 150, por D. T. Niane; História da África Negra, vol. 1, p. 167 e 168, por Joseph Ki-Zerbu; A enxada e a lança: a África antes dos portugueses, p. 325, por Alberto da Costa e Silva. 15 Enquanto dava combate aos sossos, Sundiata ia reunindo sob o mesmo mando os vários clãs malinquês. A unidade de chefia e a concentração de forças devem ter sido, aliás, as razões de êxito dos mandingas – e isto reconheceram seus chefes, os quais, após a vitória de Quirina, se reuniram em Curaçã Fuga, para selar fidelidade ao Sundiata, como rei dos reis, e traçar as normas que regeriam a nova organização política. Ver A enxada e a lança, por Alberto da Costa e Silva, 2006, 3 ed., p. 325 e 326. 16 “Nas mãos do Mali fica todo o antigo império do Gana(exceto o extremo setentrional, controlado pelos berberes), e o país sosso, e as águas do alto Níger, do Gâmbia, do Senegal e dos rios que lhe são tributários, e também a Casamansa, e ainda Bambuk e Buré. Pela primeira vez, um mesmo poder domina os mananciais do ouro, os portos caravaneiros do Sael e os caminhos que levam de uns aos outros”. Ver A enxada e a lança, por Alberto da Costa e Silva, 2006, 3 ed., p. 326. Já se propôs que Sundiata tivesse nascido islamita e se reconvertido às crenças tradicionais durante o exílio em Mema. Com essas crenças, teria guerreado os sossos. Obtida a vitória, ele aparece, porém, conforme as tradições orais, vestido de muçulmano, na conferência de Curucã-Fuga, pois teria retornado ao islamismo, pelo nas formas exteriores de comportamento, para não ser mais ser visto como chefe e sacerdote de um grupo, mas como soberano de uma confederação de estados. O islão não estava, como nas religiões tradicionais, ligado a uma nação, a um clã, a uma nação: era universal (COSTA E SILVA, 2006, p. 327). II - Traços do Islã Noir (Islã Negro) no Mali. Faz-se necessário, também, caracterizar as formas que o islã toma quando inserido no contexto dos grandes séculos. Valeremos-nos do conceito de islã noir(islã negro) para definir genericamente a síntese produzida através do processo de islamização da África Negra, ou ainda, através do processo de l’africanisation de l’islam (africanização do islã) (MONTEIL, 1964, p. 40). Formulador do conceito, Vincent Monteil, aponta algumas causas do sucesso do islã na África Negra: a) a simplicidade do credo muçulmano; b) as novas perspectivas abertas àqueles que o adotam, como ao tratar-se de um estado, a possibilidade de restauração e ruptura com o passado; c) as vantagens culturais trazidas por uma religião oriental de caráter universal; d) o fato de sua propagação ser realizada, em geral, por africanos; e) o fato de a conversão não acarretar necessariamente uma ruptura com os costumes tradicionais; f) e principalmente, “no domínio da economia, o comerciante muçulmano introduz a economia de mercado, novas culturas, e promove trocas em vários domínios”. A confluência destes fatores que engendra o movimento irresistível da africanização do islã (MONTEIL, 1967, p. 10). Quanto ao Mali, particularmente, devemos afirmar que o maometanismo era fé geralmente urbana. Predominante entre as elites cortesãs ligadas ao estado, por isso foi chamado “islã de corte”, e entre os comerciantes soninquês e mandingas 17 que percorriam seu interior. A população que vivia no campo permanecia ligada às crenças tradicionais 18 . Monteil entende que existiria “un vernis d’islamisation, les croyances traditonneles semblent bien avoir généralement persisté.” Pois era, 17 Também chamados de uângaras ou diulas. Trata-se dos comerciantes originários do povo soninquê do antigo império de Gana, já os comerciantes mandingas são originários do núcleo central do império do Mali. Faz-se uma observação quanto à utilização do verbete mandingas/mandingas neste texto. Em sua primeira forma refere-se unicamente a esses comerciantes que percorriam o interior do Mali, já a segunda, fará sempre referência ao povo (ou a nação) mandinga. 18 “A própria capital só diferiria das aldeias por sua extensão, pelo palácio do rei, também de argila socada, pelas mesquitas e pelo mercado. Ali o islame era religião predominante e a gente andava vestida. No resto do império, o maometanismo era em geral credo de poucos – da nobreza, dos comerciantes, de algumas comunidades que haviam abandonado de vez as Um islã que aceitava, de resto, práticas animistas e receitas mágicas trazidas dos países árabes pelo imperador e pela sua corte. Além disso, a massa dos camponeses permanecia animista, o que o mansa tolerava sob reserva de obediência e de tributo (KIZERBO,1972, p.172). Ibn Batuta, que visitou a corte do Mansa Sulaimã em 1352 e 1353, descreveu em seus relatos as festividades religiosas do Ramadã 19 , por ele presenciadas. Sua descrição é um rico exemplo do processo de africanização do islã. Na qual o sincretismo produzido a partir da fusão entre a religião islamita e a cultura tradicional toma forma: Estos últimos, em dia de la fiesta, marchaban diante del rey diciendo: <<No hay mas dios que Dios>> y << Dios es el todo poderoso>>.(...) Frente al oratorio se había colocado una carta en la que entro el soberano y alli se dispusó para la cerimonia. Después salió hacia el oratorio y se cumplieron rezo y sermón. El predicador bajó, tomo aciento frente a el sultán y habló largamente. Había allí um hombre con uma lanza em la mano que aclabara en su lengua a la gente lo que el predicador decia, que eran advertencias, admoniciones y alanbanzas para el sultan, asi como exhortaba a obedecerle e respetarle como era obligado(BATUTA, p. 779). O mansa era “muçulmano, mas não pode deixar de ser um rei tradicional, e em torno dele cercava-se a atmosfera que cercava a monarquia divina, da mesma forma que nas orações coletivas muçulmanas se imiscuíam ritos animistas”(COSTA E SILVA, 2006, p. 337). Ainda, segundo Batuta, El dia de la fiesta, traz haber Duga concluído sus juegos, comparecem los poetas(...). Cada uno de ellos se presenta dentro de uma figura hecha con plumas semejantes a las del gorrión y con una cabeza de madera provista de um pico rojo a manera de esse mismo pájaro. Se palntan ante el soberano de esta guisa tan risible y recitam sus composiciones. Me contaron que los poemas son una especie de exhorto em cual dicen al sultán:<<esse penpi en que te sientas antes tuvo encima a tal rey cuyas hazanas fueron las siguientes y a tal otro cuyos hechos fueron así e así, por lo tanto haz el bien para que se recuerde por tu posteridad>>( p. 780). crenças tradicionais e deixado de fazer sacrifícios aos deuses da natureza e aos antepassados.” Ver A enxada e a lança, por Alberto da Costa e Silva, 2006, 3 ed., p. 330. 19 “Nono mês do calendário muçulmano. Mês sagrado, durante o qual o fiel, segundo a lei corânica, deve observar o jejum diário, entre o alvorecer e o pôr-do-sol”.Ver Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, por Nei Lopes, 2004, p.558. O medievalista Ricardo da Costa aponta que “a religião em Mali era um misto de várias influências, especialmente as pagãs. Por exemplo, Musa desconhecia a interdição do Corão de ter mais de quatro mulheres, e os malinqués comiam carnes proibidas pelo islã”(2004 , p. 34). Batuta faz uma relação dos aspectos positivos e negativos do comportamento social e religioso da população da capital do Mansa Sulaimã: Entre sus buenas cualidades se cuentam: (...) Su exactitud en los rezos, junto a la asiduidad com que practican lãs reuniones de la comunidad, así como el hecho de que pegan a sus hijos si faltan. Los viernes las personas que no madruga para acudir a la mesquita no encuentra por el mucho gentio presente.(...) Entre las malas acciones de estos negros hay que citar: El que las siervas, las esclavas y las ninãs aparezcan en público desnudas, mostrando las vergüenzas. En Ramadán he visto a muchas de tal guisa, porque los jefes acostumbran a romper el ayuno em la residencia real, acudiendo cada uno com su comida que es transportada por veinte, o más, esclavas desnudas(BATUTA, p. 784). Apesar de a infiltração do islamismo no Mali estar marcada por seu limitado alcance. Atingindo apenas alguns setores de sua heterogênea sociedade: principalmente as classes ligadas a corte do mansa, os comerciantes soninquês e mandingas que exploravam o interior do império a comerciar e as populações habitantes dos espaços citadinos. Entendemos que a dinâmica da função social do islã, nas suas relações com a estrutura do estado mandinga, teve importantes conseqüências para a trajetória do Mali no século XIV. III – A “política modernizadora” no século XIV. O século XIV é considerado o período de apogeu do Mali enquanto estrutura política no sudão ocidental. Durante seu processo de expansão territorial no século XIII, através da epopéia de Sundiata (NIANE, 1978, p. 179), formularam-se as bases administrativas 20 nas quais se afirmaria a “política modernizara de islamização” 21 observada na época áurea do estado mandinga: o século XIV(KIZERBO, 1972, p. 179). 20 Pois “a constituição e as estruturas administrativas que se consolidaram no Império do Mali foram implantadas por ele (Sundiata) (...).” Ver A áfrica dos séculos XII ao XVI (História Geral da África), vol. 4, p. 151, por D. T. Niane. 21 Expressão utilizada neste texto, com o objetivo de definir, a forma como aqui se compreende o sentido da política de estado dos soberanos Mansa Musa e Mansa Sulaimã. Formulada a partir de algumas linhas, encontradas em meio a um texto bastante elucidativo para este artigo, cunhada pelo importante historiador africanista brasileiro Alberto da Costa e Considerado um dos mais importantes governantes da história do Mali, durante os grandes séculos, Mansa Musa é lembrado, sobretudo, por sua lendária e ostentosa peregrinação as cidades sagradas do islã em 1325 22 . Conhecido como o “senhor do ouro. (...) esbanjou mais de uma tonelada desse metal no Cairo, na cidade santa e ao longo da rota entre o Mali e Meca”(COSTA E SILVA, 2006, p. 329). Tal foi o derrame do metal amarelo que este sofreu uma desvalorização nos anos imediatamente posteriores (KI-ZERBO, 1972, p. 172). A grandeza da peregrinação é descrita, não sem certo exagero, no Tarikh es Soudan, Le prince avait avec lui um immense cortège et dês forces consíderables, car lê nombre de ses hommes s’élevait à soixante mille. Toutes les fois qu’il montait à cheval, il etait précédé de cinq cents esclaves, chacun d’eux tenant à la main une baguette d’or(...) (ESSADI, p. 13). A peregrinação de Musa é ilustrativa do processo, no qual, o Mali passou a inserir-se efetivamente, embora de maneira periférica, no mundo muçulmano reconhecido a época. O contato com o tradicionalismo religioso nos locais santos exerceu enorme influência sobre a política interna e externa adotada pelos governantes mandingas do século XIV. O estreitamento das relações políticas travadas junto aos estados islamitas de Fez, Tlemcen, Túnis, e principalmente Egito, também são característicos deste processo. Da mesma forma, o intercâmbio, incentivado e financiado por Musa que “mandou úlemas sudaneses estudarem em Fez. E dali e de outros pontos do mundo árabe convocou xerifes, letrados, jurisconsultos e artistas para viverem e trabalhar no Mali”(COSTA E SILVA, 2006, p. 332). A “política modernizadora” iniciada com Musa tinha por base as relações do estado com os centros urbanos islamizados – onde se concentravam os principais mercados responsáveis por escoar tanto os produtos vindos do exterior via comércio transaariano quanto os produtos vindos do interior através da ação dos comerciantes soninquês e mandingas. Nas cidades islamitas concentraram-se boa Silva: “Sulaimã continuou a política modernizadora de Musa, ao se esforçar em expandir o islamismo pelas terras do Mali”. Ver A enxada e a lança, por Alberto da Costa e Silva, 2006, 3 ed., p. 336. 22 “Mansa Musa preparara meticulosamente a sua peregrinação. Deve ter levantado tributos especiais do império, em mantimentos, cavalos, dromedários e ouro.” Ver A enxada e a lança, por Alberto da Costa e Silva, 2006, 3 ed., p. 329. Para maiores detalhes da lendária viagem de Mansa Musa ver A áfrica dos séculos XII ao XVI (História Geral da África), vol. 4, p. 167, por D. T. Niane; História da África Negra, vol. 1, p. 171 a 173, por Joseph Ki-Zerbu. Ver também a fonte primária Ta’rikh es-Soudan, por ES-SADI. Traduction de l’arabe par Octave Houdas. Paris: Maisonneuve, 1981. parte das atenções do governo do mansa. O financiamento da construção de mesquitas e prédios públicos nas cidades cosmopolitas do império como Tombuctu 23 , Jenné 24 e Gao 25 , é exemplo sintomático do aprofundamento da relação estado-islã. Pois (...) Mansa Musa abriu escolas corânicas; comprara grande número de livros nos lugares santos e no Cairo. Foi provavelmente em seu reinado que Walata ganhou importância e que se iniciou em Djenné e Tombuctu o processo de desenvolvimento que as transformaria, um século mais tarde, em centros de renome mundial.(...) Enquanto mecenas e protetor das belas-letras, Mansa Musa contribuiu para uma literatura negra de expressão árabe, que dará seus mais belos frutos no séculos XIV e XVI, nas cidades de Djenné e Tombuctu(NIANE, 1978, p. 169). Também no século XIV, as rotas comerciais (transaarianas) mais freqüentadas do Magrebe passaram a ter como destino Tombuctu, que possuía cais sobre o Níger. Este deslocamento constituiu-se como um impulso para as atividades comerciais do império. O sal, extraído em grandes blocos no deserto, chegava a Tombuctu com as caravanas transaarianas e ali era negociado pelo ouro trazido das minas da savana sudanesa e da floresta guineense. O comércio deste último sofria uma forte e efetiva taxação pelo estado, da qual, originava-se a maior parte de seus proventos. Na medida em que o sal afastava-se de Tombuctu, rumo ao interior do Mali em posse dos comerciantes soninquês e mandingas, passava por um processo de divisão em pedaços cada vez menores. Que eram trocados nas savanas e matas adentro por pequenas quantidades de ouro, pelo cobre, pela noz-de-cola 26 e por outros produtos do interesse destes comerciantes que refaziam seu itinerário trazendo-os até as bordas do deserto, aonde chegavam as caravanas, para dessa forma abastecer o fluxo incessante do comércio. 23 “Cidade da República do Mali, na África ocidental. Fundada no século XI, foi uma das maiores cidades do império Sonrai. Cruzamento das rotas comerciais saarianas, foi também importante centro irradiador da cultura afro-islâmica. Conta-se que lá, no apogeu do Mali, o comércio de textos descritos(os livros da época) superava outras modalidades comerciais”. No entanto, durante o apogeu do Mali, Tombuctu era cidade englobada por este império. Com o início de seu gradual desmembramento a partir do final do século XIV, passou a esfera de influência do império Songai, que passou a disputar com o Mali a hegemonia no sudão ocidental. Quanto à definição transcrita ver Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, por Nei Lopes, 2004, p. 652. 24 Cidade tributária – localizada na África ocidental – do império do Mali que desde o século XIII já era considerada pelo estado como cidade islamita. Ver A enxada e a lança, por Alberto da Costa e Silva, 2006, 3 ed., p. 333 e 334. 25 “Cidade-Estado da Idade Média africana, centro do poder Sonrai.” Ver Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, por Nei Lopes, 2004, p. 293. Porém, no século XIV, Gao estava sob a órbita de vassalagem do império do Mali. 26 A “noz-de-cola, que, mastigada, refresca aboca, além de ter um efeito estimulante. O gosto por essa noz, cuja árvore cresce nas florestas da África Ocidental, rapidamente se difundiu entre as populações das savanas e do Sael e se estendeu pela África do Norte. Era um artigo de luxo, cujas propriedades medicinais o mundo do islão apreciava. Sendo um estimulante não condenado pelo moaometanismo, sua demanda tendia a aumentar com a expansão da fé”. Ver A enxada e a lança, por Alberto da Costa e Silva, 2006, 3 ed., p. 334. Dessa forma o pequeno comércio praticado internamente pelos mercadores soninquês e mandingas, instalados tanto nas cidades quanto no interior das savanas e matas, atendia boa parte da demanda dos produtos exportados para fora do império – principalmente o ouro. A infiltração destes mercadores cumpria não só função econômica, mas também religiosa, inerente ao modo de vida destes homens. Pois (...) foram estabelecendo, ao longo dos caminhos mais freqüentados, estações de repouso e de armazenagem dos artigos que compravam e vendiam, ou se radicando em vilarejos distantes. Onde aportavam, punham pequena mesquita e davam a conhecer, pela pregação e o exemplo um rudimentar islamismo (COSTA E SILVA, 2006, 334). Após o curta soberania de Maga(1337-1342), sucessor e filho de Musa, ascendeu ao poder Mansa Sulaimã. Ibn Batuta, que visitou sua corte e andou por todo império, relatou a grandeza do Mali em seu tempo. No seu trajeto em direção a capital do império registrou que “estas poblaciones hay sendos régulos a la obediencia del rey de Malli”(BATUTA, p. 773). Também apontou que “no hay necessidad de marchar em grupo por lo seguro del camino”(p. 772) e que o “viajante, tal como o homem sedentário, não tem a temer os ladrões, nem os malfeitores, nem os que vivem da pilhagem”(cit. por Ki-Zerbo, 1972, p. 180). A segurança no interior do império, além de fundamental para o desenvolvimento do comércio, é sintomática de que o Mali “atingira um estado de civilização em que a grandeza é bastante forte para dominar a violência e a injustiça”(KI-ZERBO, 1972, p. 180). Devido a heterogeneidade sócio-política, observada em seu seio, a política do estado mandinga no século XIV prescindiu de dois fatores ligados diretamente a relação entre o poder central e os povos vassalos. Seu êxito esteve baseado, em grande parte, no aperfeiçoamento de um sistema político absolutamente maleável e na tolerância religiosa. Pois, (...) Durante mais de um século, no decorrer de sua época áurea, o Mali realizou um modelo de integração política em que povos tão variados como os Tauregues, os Volofos, os Malinqués e Bambaras, os Songaís, os Peules e Toucolores, os Dialonkés, etc., reconheciam um único soberano. Neste espaço, os homens, os bens e as idéias circulavam livremente(KI-ZERBO, 1972, p. 179). Por fim, entendemos que o islã (o islã negro), cumpriu a função social de elemento aglutinador deste vasto império. Sua preponderância é percebida claramente através da “política modernizadora de islamização”. Que tinha como principais objetivos: a) estabelecer contatos político-econômicos de forma regular com os grandes estados do mundo muçulmano; b) fortalecer os vínculos do mansa, e portanto do poder do estado, com os principais centros comerciais do sudão ocidental; c) manter o controle das principais cidades comerciais dos territórios vassalos;d) e das rotas comerciais – transaarianas – de longa distância que cortavam seu território, ou seja, o estado visava aperfeiçoar as formas de controle do fluxo comercial que se desenvolvia a nível interno e externo. Conclusão: A dinâmica do processo histórico abordado nas páginas anteriores, qual seja, a do desenvolvimento do Mali durante os grandes séculos foi determinada, em certa medida, por suas relações com o islamismo. Que gradualmente vinha se infiltrando na África Negra. Da existência destas relações foram testemunhas os viajantes árabes e berberes, que as registraram nos relatos de suas passagens pela região, nos quais reconhecem o Mali como entidade política desde o século XI ao menos. A epopéia de Sunidiata como mansa na primeira metade do século XIII se caracterizou como um período de expansão, sem igual, das fronteiras do estado mandinga. Afirmando sua preponderância na África Negra no decorrer do século XIII ao ocupar o vácuo deixado na região após a dissolução final do Gana. A prosperidade alcançada pelo império do Mali no século XIV através da “política modernizadora” de Musa e Suleimã teve por traço fundamental o estreitamento do estado ao islã. Que exerceu a função social de elemento aglutinador deste vasto império, através da inter-relação e influência estabelecida junto: ao controle das rotas caravaneiras; na segurança garantida aos viajantes que circulavam a comerciar por seu interior (mercadores uângaras e diulas); no incentivo a vinda de sábios e letrados árabes e berberes ao Mali para pregar e ensinar o islã nos centros urbanos islamizados (principais centros comerciais); no estabelecimento de relações políticas com o mundo muçulmano reconhecido a época. De modo que este conjunto de fatores permitiu ao estado produzir uma exemplar estabilidade social. Baseada num sistema político maleável, imprescindível diante das dimensões territoriais que tinha alcançado e da diversidade de povos que englobava em sua área de vassalagem, e na tolerância religiosa, na medida em que o islamismo da corte e das elites sociais ligadas ao estado e ao comércio convivia pacificamente com as religiões tradicionais, predominantes como crença da população em geral. Fontes Documentais: ES-SADI. Ta'rikh es-Soudan. Traduction de l’arabe par Octave Houdas. Paris: Maisonneuve, 1981. IBN BATTUTA. A través del Islam. Madrid: Alianza, 1987. Referências Bibliográficas: COSTA, Ricardo da. A expansão árabe na África e os impérios negros de Gana, Mali e Songai (séculos VII-XVI). (disponível em www. casadasafricas.com.br) OLIVA, Anderson Ribeiro. A história da África em perspectiva, Caminhos e descaminhos da história africana e africanista. Brasília, 2004. DAVISON, Basil. A descoberta do passado de África. Lisboa: Sé da Costa, s. d. MONTEIL, Vincent. L’islam Noir. Paris: Éditions du Seuil, 1964. NIANE, D. T. (dir.). A áfrica dos séculos XII ao XVI (História Geral da África). São Paulo: Editora Ática, 1978, vol. 4. KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra. Mem-Martins: Publicações Europa-América, 1999. LOPES, Nei. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. São Paulo: Selo Negro, 2004. SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 2006.