COMBINAÇÕES POÉTICAS EM OS PESCADORES DE RAUL BRANDÃO Mágna Tânia Secchi Pierini1 Resumo: Publicado na segunda década do século XX, em pleno movimento modernista português, Os Pescadores (1923) opõe-se aos ideais estéticos do período vigente. Raul Brandão inovou o estilo literário da ficção portuguesa ao escolher e combinar recursos da poesia, pintura e estruturação narrativa, configurando, assim, aspectos da condição humana. Este artigo propõe uma leitura da constituição dos elementos predominantemente poéticos nessa obra. Palavras-chave: Literatura Portuguesa; Raul Brandão; Os Pescadores; Poesia; Narrativa. POETIC COMBINATIONS IN OS PESCADORES, DE RAUL BRANDÃO Abstract: Published in the second decade of the 20th century, during the Portuguese modernist movement, Os Pescadores (The Fishermen, 1923) is a work opposite to the esthetic ideals of the epoch. Raul Brandão innovated the literary style of Portuguese fiction by choosing and combining resources from poetry, painting and storytelling, configuring this way some aspects of human condition. This article proposes a lecture of the main poetic elements’ constitution in this work. Keywords: Portuguese Literature, Raul Brandão, Os Pescadores, Poetry, Storytelling “Raul Brandão é um poeta em prosa” (SENA, 1988, p. 53) O caráter poético da ficção brandoniana foi reconhecido antes mesmo do teor ontológico de suas narrativas. Mas, durante as primeiras décadas do século XX, esse reconhecimento foi visto como algo pejorativo. Críticos alegavam que a utilização de 1 Bolsista FAPESP e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários – UNESP/ Araraquara – SP, CEP: 14800-901, [email protected] elementos poéticos reduzia a intensidade dos componentes narrativos em suas obras, desvalorizando-o enquanto romancista. Pretendemos, neste artigo, apresentar esses elementos como predominantes em Os Pescadores, e discutir sua constituição, a partir da estruturação textual narrativa, mostrando que a utilização de componentes peculiares da poesia nesta obra não reduz seu teor literário em relação às outras produções do autor. Escritor do período de transição entre os séculos XIX e XX, Raul Brandão (1867 – 1930) teve uma vasta produção entre romances, contos, ensaios, narrativas memorialísticas, publicações em jornais, folhetos, peças de teatro e obras marcadas pela “hibridação de géneros discursivos na ficção narrativa” (VIÇOSO, 1999, p. 109). Também publicou reportagens no Correio da Manhã e ensaios de crítica literária na Revista de Hoje e na Seara Nova, entre outras. Assistiu ao esgotamento das estéticas finisseculares, aos tumultuados movimentos políticos em Portugal nessa época, ao início dos Modernismos da geração de Orpheu e do grupo da Presença, passando por contextos históricos, ideológicos e variadas tendências. Seu estilo de escrita solidificou-se na transitoriedade vivenciada que corresponde, segundo Álvaro Manuel Machado (1984), tanto às influências estrangeiras e portuguesas, como a uma originalidade que se fundamenta nessa miscelânea de influências, transformando-o num autor de grande importância para a literatura portuguesa. Dessa forma, o tradicional e o moderno permearam as obras de Raul Brandão, manifestando-se, principalmente, pela ruptura com a linguagem romanesca tradicional, sobretudo nas obras ficcionais. Os Pescadores (1923) obteve êxito de publicação em seu lançamento com a aceitação do público leitor da época. Mas, foi com Húmus (1917) e o conjunto de peças reunidas em Teatro (1923) que o autor se consagrou como importante escritor português do início do século XX, refletindo principalmente sobre a temática da existência humana diante do sentido da vida e da morte. Assim, sua obra caracteriza-se pelo hibridismo dos gêneros literários com momentos de grande valor poético, intensidade dramática e reflexão da condição humana. Em um ensaio de 1931, acerca da natureza estética da literatura, João Gaspar Simões discorreu sobre a produção brandoniana. Nele, o crítico destacou que o escritor transita entre as fronteiras da prosa e da poesia, e que “Raul Brandão era psicologicamente um poeta. As suas obras pertencem ao domínio da criação poética, embora o seu aspecto formal indique o contrário” (SIMÕES, 1931, p. 96). Posteriormente, outros importantes ensaístas portugueses enfatizaram a permeabilidade discursiva em Brandão. Dentre eles, Jorge de Sena (1988) afirmou a presença da poesia na prosa do escritor portuense, conforme consta na epígrafe deste artigo; e Fernando Guimarães (2000) salientou a influência das estéticas vigentes no século XIX e início do século XX, nas obras brandonianas, ressaltando que a manifestação de componentes rítmicos “acabam por confluir num tipo de discurso que já não se submetia a uma diferença rigorosa e bem compartimentada dos gêneros, e isso torna cada vez mais permeável a prosa em relação à poesia” (GUIMARÃES, 2000, p. 27 – 28), como ocorre em Os Pescadores, por exemplo, que é composta por meio de elementos próprios da poesia numa estruturação textual narrativa. Dessa forma, faz-se necessário refletir sobre os aspectos da composição dessa obra, partindo do próprio uso da linguagem. Conforme afirma Maurice-Jean Lefebvre (1980), há duas concepções gerais acerca da arte e da literatura: a da estética clássica, que considerou a arte como representação do mundo exterior através da obra. Esta, por meio da transmissão e comunicação de fatos exteriores, deveria conduzir as pessoas ao discernimento e deixar a linguagem em segundo plano; e a da estética romântica, que valorizava a profundidade da visão do gênio, ou seja, o significado da obra era dado, principalmente, por meio da originalidade de seu conteúdo. Com o passar do tempo, os artistas e escritores foram percebendo que a forma de transmissão da obra também poderia comunicar significados. Assim, por volta da segunda metade do século XIX, a importância da arte focada no conteúdo, gradativamente, deu espaço para uma nova concepção de arte, cujo pressuposto básico foi a valorização do uso da linguagem nos aspectos de sua composição formal, das palavras e dos sons como meios de transmissão de significados, e o significado da obra passou a ser considerado também pela forma. Essas concepções permitiram distinguir, de certo modo, a noção de estilo e de escritura, totalmente ligada ao ato de composição da obra literária. Há vários conceitos acerca do estilo, como, por exemplo, o estilo de uma época, de uma obra ou de um autor. Mas, segundo Kayser (1963), pensando na noção de estilo voltada para a obra literária, tem-se o estilo como algo individual e peculiar do escritor que expressa traços de suas vivências em várias obras, ou, o contrário, várias obras do mesmo escritor com estilos variados. Porém, a obra também apresenta estilo em si, por meio da integração entre elementos da forma e do conteúdo, da utilização e do emprego de determinados adjetivos ou verbos, por exemplo, combinados com uma sonoridade específica que auxiliarão na compreensão do tema. Já a escritura, no entanto, refere-se à escrita pela qual o escritor se individualiza em sua liberdade de escolha com relação à filiação social, ideológica ou estética e sua própria escolha pessoal de forma e conteúdo a ser transmitido enquanto sujeito inserido numa sociedade. Raul Brandão, sendo um escritor de transição, vivenciou várias mudanças históricas e tendências literárias, e apresentou um estilo marcado predominantemente pela angústia e pelo sofrimento humano, frequentemente expresso por temas como a dor, a morte e a solidão. Sua escritura expressa as angústias proporcionadas pelo turbilhão de transformações ocasionadas nos vários setores da vida humana. O livro Os Pescadores retrata as paisagens e belezas naturais da costa portuguesa de Caminha a Sagres, assim como a vida humilde dos pescadores dessa região, por meio de construções predominantemente poéticas, não deixando de discutir temas tradicionais e frequentes em outras de suas obras. Esse arranjo caracteriza o estilo de escrita do autor apresentado pelo narrador. Trata-se de uma narrativa composta por uma linguagem com características memorialísticas, narrativas e predominantemente poéticas. Palavras, sons e figuras de linguagem apresentam-se em todos os aspectos nesse texto poético. Sendo assim, para mostrar como ocorre a manifestação desses elementos na obra mencionada, serão utilizados os critérios de seleção e combinação, objetos empíricos da função poética, apresentados por Roman Jakobson (1971). Segundo esse teórico, “a seleção é feita em base de equivalência, semelhança e dessemelhança, sinonímia e antonímia, ao passo que a combinação, a constituição, a construção da sequência, se baseia na contiguidade”. (JAKOBSON, 1971, p. 30). Ele salientou que, utilizando os critérios de seleção e combinação, é possível estabelecer relações entre vocábulos e frases em dois eixos, o paradigmático e o sintagmático. Enquanto no eixo paradigmático as palavras aparecem quanto à sua seleção ou escolha e por relações de equivalência com relação às classes gramaticais, no eixo sintagmático elas aparecem quanto à sua combinação pela contiguidade com relação às funções gramaticais. O repertório linguístico utilizado em Os Pescadores compõe dois universos distintos: um universo coloquial, representado pela linguagem cotidiana peculiar da pesca e expressa pelos discursos diretos, e um universo poético, representado pelo vocabulário simbólico empregado na composição da obra e por introspecções memorialísticas. Ao fazer um levantamento da escolha das palavras do universo poético, ou seja, trabalhando no eixo paradigmático, nota-se a predominância dos substantivos num jogo frequente entre concreto e abstrato, de pronomes indefinidos, de verbos de ligação e verbos nas formas nominais, de numerais (dois, três e quatro) e do uso excessivo de adjetivos. Essa constatação denomina esse texto como estático pela escolha dos verbos e substantivos, também de expressão impressionista e pelo excesso de adjetivos. Várias dessas palavras se repetem ao longo da obra ao se referir a substantivos de diferentes naturezas, como o adjetivo “transparente” para os substantivos “água” e “terra” em momentos distintos, por exemplo. As principais palavras encontradas foram agrupadas, conforme a grafia do texto, em quatro grupos compostos pelos quatro elementos primordiais, a terra, o fogo, a água e o ar, segundo afirma Gaston Bachelard (1969), que abrangem os substantivos, adjetivos e verbos mais notáveis. A finalidade consiste em mostrar a frequência da repetição entre os quatro polos e a semelhança semântica entre muitos deles. Dessa forma, esses vocábulos são mostrados a seguir, conforme suas correspondências aos quatro elementos mencionados: Terra (montes/ morros/ montanhas/ estradas/ paisagens/ terra/ pó/ areia/aldeias): “pálido”, “compacto”, “cismática”, “transparente”, “sensibiliza-se”, “desmaia”, “imensa”, “pensativa”, “renasce” – cor predominante: “verde”; Fogo (sol/ luz/ lua/ estrela/ luz/ pôr do sol e aurora): “tremeluz”, “resplendor”, “translúcida”, “escorre”, “reflete”, “desmaia”, “imensa”, “ressurge”, “esplêndido” – cores predominantes: “doirado”, “vermelho”; Água (mar/ rio/ chuva/ algas/ barcos e sal): “umidade”, “exala”, “ondula”, “reflexo”, “translúcida”, “cismática”, “trespassada”, “desmaia”, “infinito”, “amplidão”, “renasce”, “transparência” – cor predominante: “azul”; Ar (céu/ nuvem/ vento/ névoa e gaivotas): “salgado”, “salitre”, “exala”, “umidade”, “dilata-se”, “transparência”, “desmaia”, “amplidão”, “renova”, “esplêndido” – cores predominantes: “azul”, “branco”. Gaston Bachelard escreveu uma obra filosófica que passou por duas fases. Na primeira, trabalhou com a valorização do racionalismo científico baseado na psicanálise jungiana; e, na segunda, num estudo acerca da imaginação humana pautando-se nos sonhos, devaneios e em valores subjetivos. Entre essas direções opostas de pensamento houve duas obras classificadas geralmente como sendo de transição, La Psychanalyse du feu (1937) e Lautréamont 19[--]. Foi nessa primeira que Bachelard expôs inicialmente sua teoria sobre os quatro elementos da filosofia grega utilizados como polos na tabela e considerados por ele como a base de devaneio poético. Assim, a partir de 1942, Bachelard retomou sua teoria sobre a imaginação e a desenvolveu com base nesses elementos. Voltando ao agrupamento das palavras selecionadas conforme suas referências na obra, é possível notar algumas denominações de elementos que também podem corresponder a outros, como é o caso de “transparente” para Terra, em vez de Água ou Ar, por exemplo. Algumas das justaposições causam estranhamento como: elementos de terra/ fogo/ água e ar empalidecem e desmaiam, já que esses verbos são comumente usados na designação de pessoas. Porém, pode-se dizer que inclusive o “desmaiar” sugere o préanúncio da cosmogonia, pois “desmaiar”, segundo o Dicionário Houaiss, é perder os sentidos e as forças, é “desfalecer” por um momento para “renascer” novamente. Observa-se que vários vocábulos se repetem, reforçando a ideia de “imensidão” do espaço apresentado, da costa portuguesa, aproximando-a da “imensidão” do universo e sugerindo a união entre Terra, Fogo, Água e Ar pela repetição semântica em “renasce, ressurge, renasce e renova”, referente respectivamente a esses quatro elementos. A frequente presença das cores é notável. Nessa obra, elas não são meros vocábulos relacionados às tonalidades encontradas na natureza ou a tonalidades pictóricas. Adquirem vida própria e tornam-se ativas por meio da personificação que lhe é atribuída pelo narrador. Num jogo entre cor e transparência, contando com os efeitos da luz, a obra remete ao Impressionismo na busca da inspiração fora dos ateliês, na observação da natureza e suas oscilações, na captação de cada momento único, manifestando a impressão pessoal do artista diante do observado, conforme afirma Machado Pires (1998). A “aurora” e o “pôr do sol” fazem alusão à criação e ao fim do mundo, assim como a água do mar, suas cores e efeitos também aludem a esses momentos por meio dos reflexos produzidos. Todas essas expressões utilizadas para descrevê-los remetem à contemplação e ao êxtase do narrador, ou seja, ao seu “espanto” diante do observado. O tema do espanto, que aparece com frequência nas obras de Raul Brandão, geralmente associado ao espanto diante do sofrimento e às angústias proporcionadas pela vida, pode ser identificado em Os Pescadores, vinculado ao encantamento diante da vida, acentuando a ideia de que tudo é composto por ambivalências. O vermelho, o doirado e o violeta são as cores predominantes nessas descrições remetendo ao elemento “fogo”, ao calor e às suas propriedades opostas relacionadas à origem e fim da vida. Passando para o eixo sintagmático e as combinações encontradas, nota-se a frequência de frases curtas e de difícil compreensão num primeiro momento, fazendo menção à ideia de construção do verso poético, que detém a capacidade de síntese. Também se encontram várias das figuras de construção e de pensamento, como no exemplo: Estonteado, encharcado de azul, cheio de sol e de luz, esqueci o passado e esqueci o presente. A vida é navegar na ria, comer da caldeirada de enguia e tainha, que os homens cozinham à proa, aproveitando-lhes entre as tripas a marsola para lhes dar mais gosto. É dormir num barco, abicar os areais e vogar sempre, sentindo a pancada das águas que fogem em tinta cobalto de um lado, em tinta cinzento de outro. É sair desta amplidão para a descoberta do charco, do canal, da gota de água, dos sítios escondidos e ignorados. É assistir à transformação das águas e navegar à vela ao pé das casas e no interior das casas (BRANDÃO, 1985, p.38, grifos nossos). Nesse momento, o narrador mistifica a ria como lugar perfeito, idealizado, ao “esquecer o passado e o presente”. Encontra-se no instante eterno, e ao falar sobre a vida valoriza situações simples como “dormir num barco” sentindo as águas por perto, por exemplo. Podem ser identificados como figuras de construção nessa citação a elipse e o anacoluto. A elipse, na omissão do sujeito “A vida”, e o anacoluto, na repetição por três vezes da estrutura: verbo de ligação conjugado e verbo de ação no infinitivo, como se pode observar nos sublinhados do trecho citado, que lembram a própria estrutura do poema e da música. Também há a personificação e a metaforização em “pancadas de águas que fogem” , e a sinédoque em “encharcado de azul, cheio de sol e de luz”, ao referir-se ao fato de o poeta estar envolvido por aquele ambiente do azul do céu refletido nas águas do mar e do dourado dos raios do sol. É possível perceber o paralelismo na disposição dos capítulos que se assemelham ao diário, como se fossem registros. Por exemplo, as marcas do discurso memorialístico aparecem com mais frequência nos dois capítulos iniciais e nos dois capítulos finais, abrindo e fechando a obra; há dois capítulos intitulados “Pequenas Notas”, o capítulo III e o VIII, em que o narrador preocupa-se em descrever seres naturais ou sensações observadas na paisagem, “interrompendo” por momentos seu itinerário para “realizar essas notas”. Faz menção à Foz do Douro, às vezes como título ou subtítulo nos capítulos I, IV, VII, IX e X, e comentários sobre as características peculiares das mulheres dos pescadores de determinada região nos capítulos VII e XII. É interessante notar que o paralelismo e a repetição entre os capítulos fixam a presença dos três discursos mencionados anteriormente, os capítulos “Pequenas Notas” fixando o discurso poético, as menções à Foz do Douro, o discurso memorialístico e os comentários sobre as mulheres dos pescadores, ao discurso narrativo. Tanto o paralelismo das partes do dia como a repetição de determinados vocábulos remetem à renovação contínua do tempo nessa estrutura cíclica do dia que, ao se iniciar, traz consigo o princípio da vida. Segundo Chevalier & Gheerbrant (2005), a luz que renasce todos os dias com o sol é a imagem exemplar do nascimento entre os humanos, e, ao se findar, traz o princípio da morte, representado pela noite, escuridão e demais vocábulos na obra. Ainda falando das relações sintagmáticas estabelecidas entre as construções, observaram-se duas frases compostas por combinações. São elas: “__ A chuva sangra o vento _ diz o sota baixinho” (BRANDÃO, 1985, p. 15) e “A água tinge-se de sangue, a água pegajosa encharca os barcos” (BRANDÃO, 1985, p. 111). Há um estranhamento, que ocorre principalmente na primeira citação, em razão de o verbo “sangrar” ser colocado como ativo, e de o mesmo verbo apresentar ações opostas como em a chuva “sangrar” o vento. Porém, têm-se nessas citações metáforas do nascimento por dessemelhança. Ambas são apresentadas em contextos semelhantes, a primeira, dita por um pescador ao sair para o mar, e, a segunda, dita pelo narrador ao observar alguns pescadores matando peixes, sendo considerada comum dentro desse contexto. Além de contextos semelhantes, o que une essas duas frases é a presença da palavra sangue/ sangrar ligada à chuva/ água indicando que apresentam o mesmo sentido semântico e o fato de aparecerem respectivamente no primeiro e no penúltimo capítulo, abrindo e fechando a obra e um ciclo. Refletindo sobre os sentidos metafóricos, pode-se dizer que se trata de uma figurativização do nascimento, nesse caso, da espécie humana, já que, dentre outros significados, a água remete à fonte de vida, e o sangue, ao vínculo que une o corpo da mãe ao ser, o vínculo entre o ser, e os seus familiares, e a sua nação. Portanto, pode-se dizer com relação aos critérios de seleção e combinação nas relações paradigmáticas e sintagmáticas das palavras, em Os Pescadores, que as palavras ocupam lugar de destaque e exercem seu poder, pois é por meio delas que o leitor é conduzido a figurativizações da condição humana. A musicalização e o ritmo também são dois aspectos muito enfatizados nas obras brandonianas e são indicados, geralmente, como um dos responsáveis pela poetização da prosa desse autor, como se pode observar: A noção de musicalidade aproxima-nos de uma outra que lhe é de certo modo equivalente: a de ritmo. A noção de ritmo é fundamental quando se aborda a questão das relações entre poesia e prosa. Assim, ela não pode ser esquecida ou minimizada quando falamos de autores, como é o caso de Raul Brandão, que, não raro, são apresentados como “poetas em prosa”. (GUIMARÃES, 2000, p. 29) A variação de intensidade do ar e do vento na natureza em mais brando e mais intenso faz alusão à variação do ritmo da vida humana, que ora vivencia momentos calmos, ora acontecimentos turbulentos. Dentre os quatro elementos já mencionados, é o ar que, mesmo sendo também ambivalente, tem a propriedade de unificá-los já que se encontra presente em todos os demais espaços integrando-os e conduzindo-os ao eterno retorno, segundo Mircea Eliade (1992). Em Os Pescadores, essa unificação ocorre principalmente por meio do ritmo e da repetição. A repetição é uma figura de construção muito presente em toda a obra e está relacionada a vários pontos: a repetição paralelística dos capítulos, a repetição dos assuntos e situações tratados nos discursos, como a vida e costumes dos pescadores da costa portuguesa no discurso narrativo, as lembranças relacionadas à Foz do Douro e à infância no discurso memorialístico e a repetição de palavras ou combinações no discurso poético, além da repetição das referências às partes do dia. O ritmo, no entanto, conduz à unificação dos polos ambivalentes por meio de sua musicalidade e também pela repetição de sons. Assim, ritmo e repetição proporcionam um efeito semelhante ao da função da poesia, o efeito de síntese unindo polos opostos, numa integração que leva a uma configuração circular do eterno retorno observada em todos os aspectos da obra: na relação respectivamente vertical e horizontal entre escolha e combinação de palavras que são unidas pelo som rítmico, nos eixos e oposições espaciais, unidos pelo tempo mítico, nos elementos água, terra e fogo, figurativizados pela luz do sol e da lua, que estabelecem relações de correspondência entre si e se integram pelos componentes relacionados ao elemento ar. As descrições das paisagens e espetáculos naturais, como os pores do sol, por exemplo, são destacadas muitas vezes, como se estivessem pintadas em quadros. Partindo dos quatro elementos fundamentais da constituição do universo, segundo as concepções de Gaston Bachelard (1969), das marcas temporais, como “o amanhecer” e “o anoitecer”, utilizadas como configuradoras do tempo cíclico e da construção espacial da obra, na utilização de vários ângulos, eixos e formas, e tendo como base para as relações de ambivalência e correspondência que o autor enfatizou as contradições e junções que se interagem e se completam na vida e na natureza humana. Pode-se afirmar que Raul Brandão, autor de tão variadas produções, compôs discursos essencialmente poéticos em suas obras narrativas ficcionais, em especial, em Os Pescadores (1923). A marca desse discurso poético não a diminui diante das outras produções do escritor de Húmus. Porém, por muito tempo, a crítica classificou a obra brandoniana em dois grupos caracterizados por temas em comum, a “face sombria” e a “face luminosa”. Na face sombria, geralmente foram elencadas as produções cujos enfoques remetem às principais temáticas do autor, relacionadas às reflexões em torno da dor, da angústia existencial diante da vida e da morte, do sofrimento humano em suas buscas eternas, tanto no aspecto social como no aspecto metafísico. Essa temática é notada, segundo os críticos, em A farsa (1903), Os pobres (1906), Húmus (1917) e Teatro (1923). Já na face considerada luminosa, as obras foram elencadas pela presença frequente da personificação e interiorização das paisagens, pelas viagens ao longo do litoral português e pelas impressões sinestésicas transmitidas por meio de arranjos poéticos, em que marcas da estética impressionista podem ser identificadas com recorrência. São consideradas como exemplos dessa temática Os pescadores (1923), As ilhas desconhecidas (1926) e Portugal pequenino (1930–livro de contos), por exemplo. Frequentemente afirmou-se, como em João Pedro de Andrade (1963) e Álvaro Manuel Machado (1984), por exemplo, que essas três últimas obras afastam-se do núcleo temático central de questionamentos das produções de Raul Brandão. No entanto, conforme se pôde observar, são os mecanismos específicos de composição escolhidos pelo escritor e também relacionados ao seu estilo que contribuirão para o reconhecimento e valorização literária dessas mesmas obras porque, mesmo criando uma ambientação predominantemente paisagística, apresentam reflexões em torno da existência humana expressas, principalmente, por meio de elementos da poesia. Referências Bibliográficas: ANDRADE, J. P. Raul Brandão. Lisboa: Arcádia, 1963. BACHELARD, G. La psychanalyse du feu. Paris: Gallimard, 1969. __________________. A poética do espaço. Tradução de Antônio da Costa Leal e Lídia do Valle Santos Leal. São Paulo: Editora Abril, 1974. (Os Pensadores, XXXVIII) BRANDÃO, R. Os Pobres. 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