Giordano Bruno: O Filósofo maldito (retirado do blog De Rerum Natura, 2008/03/27) A inauguração no passado dia 3 de Março em Berlim de uma estátua a Giordano Bruno (1548-1600), antecedeu um colóquio no Instituto Max Planck para a História da Ciência sobre aquele filósofo do tempo da Revolução Científica, de cujo nascimento se celebram 460 anos. A estátua mostra Bruno de pernas para o ar, sugerindo que há maneiras diferentes de ver o mundo. Que ele, de facto, viu o mundo de modo bem diferente do dos seus contemporâneos prova-o o facto de ter terminado na fogueira da Inquisição. O título do colóquio era sugestivo: “Virando as tradições ao contrário: Repensar o iluminismo de Giordano Bruno”. Assim como eram sugestivos os temas tratados como “Desafio a normas e instituições”, “Reinvenção das bases da religião: Bruno como teólogo”, “A experiência e visão de uma nova ordem cósmica: a filosofia natural de Bruno”, “Práticas epistémicas de um revolucionário: pensamento e método científicos de Bruno” e “Formas de não conformidade: os trabalhos de Bruno como textos literários.” De Giordano Bruno existiam publicadas em Portugal, tanto quanto sei, duas obras: “Acerca do Infinito, do Universo e dos Mundos” (Fundação Gulbenkian, 1998, tradução e notas de Aura Montenegro) e “Tratado da Magia” (Tinta da China, 2007, com tradução e um interessante prefácio de Rui Tavares). Acaba de sair na editora Planeta uma biografia popular do sábio nolano (nasceu em Nola, perto de Nápoles): “Giordano Bruno. O Filósofo Maldito”. Já tinha saído em 2003 na editora Record do Brasil a mesma obra com o título, mais próximo do original inglês: “O Papa e o Herege”. O autor é um jornalista científico inglês, conhecido por escrever muito: dele saiu em 2007 na Casa das Letras o romance “Equinócio” baseado na vida de Newton, mas já havia, na Europa-América, “Maquiavel: O Incompreendido” (2005), “Superciência” (2005), “Leonardo: o Primeiro Cientista” (2003), “Tolkien: uma biografia” (2003), “À Procura de Vida no Universo” (2000) e “Ficheiros Secretos. A Verdade” (1997), além de várias obras biográficas escritas em colaboração com outro prolixo autor inglês John Gribbin, como as biografias de Stephen Hawking (2006), Albert Einstein (2004) e Charles Darwin (2004). Confesso que, embora me espante com tantos livros (há bastante mais em inglês!), não aprecio muito a prosa de White assim como não aprecio a de Gribbin. Os dois escrevem a metro, pesquisando por vezes pouco. A biografia de Bruno, que se lê depressa, não vai muito fundo. Quem quiser saber mais terá de ler,e entre outros, “Giordano Bruno and the Renaissance Science” de Hilary Gatti (Cornell University Press, 2002) e “The Art of Memory” de Frances Yates (University of Chicago Press, 2001), os dois aliás referidos no prefácio. Também não seria de esperar uma obra muito científica de uma editora que parece ter-se especializado em temas esotéricos e que, nas páginas finais da obra de White, publicita títulos patetas como “Reencarnação. Manifestações do Carma” e “Ciências Ocultas”, além da badana prometer para breve “Afinal Deus Existe: O que nos diz a Física Quântica sobre as nossas origens e como devemos viver”, por Amir Goswani (descanse o leitor que a mecânica quântica nada nos diz como devemos viver!). No entanto, o livro de White sobre Bruno não é tão mau como esses. A obra narra a vida de Bruno de uma forma que prende a atenção do leitor, embora não adiante nada ao que é conhecido. Começa pelo fim, isto é, pela sua condenação pelo Tribunal do Santo Oficio de Roma, no papado de Clemente VIII. A acusação não era de defesa da doutrina heliocêntrica de Copérnico, como aconteceria com Galileu 33 anos depois, mas de oito pontos de heresia, entre os quais a negação da transubstanciação do pão e do vinho em carne e sangue de Cristo, a negação do nascimento virginal de Cristo e a negação da teoria aristotélica do Universo finito no qual apenas a Terra, no centro, era habitada. Para Bruno, como mostra o título do livro da Gulbenkian, o Universo era infinito e existiam infinitos mundos onde, noutras terras, outros seres adorariam outros deuses. Mas White não esquece os tempos do jovem Bruno como frade em Nápoles, no Mosteiro de S. Domenico, de onde fugiu sendo excomungado “in absentia”, e a sua prolongada peregrinação pela Europa que incluiu passagens pela Inglaterra (onde esteve na corte de Isabel I, eventualmente como espião), França (na corte de Henrique III), Alemanha e Suíça. Bruno foi um filósofo visionário, místico até, mais do que um cientista, uma vez que na sua obra não se encontram as duas grandes marcas da ciência - a experimentação e a matemática – que tão nítidas são em Galileu. Mas o seu pensamento influenciou diversos cientistas, como o alemão seu contemporâneo Johannes Kepler e, mais tarde, o alemão contemporâneo e rival de Newton Gottfried Leibniz. Acabou por cair nas mãos da Inquisição em Veneza, oito anos antes de ser executado (sofreu, portanto, longos anos nos cárceres, não existindo documentação sobre boa parte do processo), através da traição de um seu “amigo” italiano, o comerciante Giovanni Mocenigo, que queria aprender a famosa “arte da memorização”. White inclui citações interessantes na entrada dos capítulos (ver "post" seguinte). Não se esquece também de transcrever, no primeiro capítulo, a resposta dramática de Bruno aos cardeais inquisidores que leram a sentença: “Decerto será bem maior o vosso receio em decretar-me essa sentença do que o meu em aceitá-la”. E volta, no penúltimo capítulo, à morte do sábio no Campo das Flores em Roma, onde hoje há uma estátua em sua honra erguida em 1889 por círculos maçónicos (bem mais clássica do que a moderna estátua berlinense: em Roma Bruno está de pé). White conta que as cinzas de Bruno se espalharam pelo ar, tendo alguns dos seus átomos entrado porventura na água do Papa, com quem o acusado nunca conseguiu falar. Escreve: “Talvez desse modo, pelo menos a um nível atómico, o próprio Papa se tivesse afinal associado ao herege. Como Bruno afirmava: o Universo é infinito e uno. Todos somos cada um. Cada coisa é tudo o resto.” A tradução deixa algo a desejar, como por exemplo quando deixa em inglês o nome do cardeal italiano Roberto Bellarmino, que esteve nos processos de Bruno e de Galileu e que foi canonizado pelo Papa Pio XI em 1930 e, a seguir, declarado “Doutor da Igreja”. Outro cardeal do Vaticano, Angelo Mercati, reuniu e publicou em 1940 algumas peças do processo de Bruno, como que justificando a condenação. A Igreja já reviu o processo de Galileu, mas não fez o mesmo para o processo de Bruno. Talvez um dia o reveja, porque o Universo parece ser infinito e provavelmente há mais mundos... -Michael White, “Giordano Bruno: o Filósofo Maldito”, Planeta, 2008.