VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP Reflexão tanatológica: dos helenistas a Montaigne Alan Barbosa Buchard1 Resumo: Este artigo tem como objetivo esboçar as teorias tanatológicas dos filósofos Epicuro, Sêneca e Montaigne. Constatando a presença da angústia e do medo da morte na maioria das pessoas, esses filósofos perceberam que tais sentimentos constituem um entrave à aquisição da felicidade. Partindo do pressuposto de que a filosofia é o instrumento utilizado nessa busca pela eudaimonia, a função do exercício filosófico, para tais pensadores, será livrar o ser humano de tais medos. Concomitantemente mostrarei as influências recebidas já no período renascentista dos filósofos da antiguidade tardia. A filosofia é retratada aqui como arte de viver e terapêutica dos medos. Palavras-chave: Helenismo. Tanatologia. Montaigne. Ética. Abstract: This article aims to outline the thanatologcy theories of philosophers Epicurus, Seneca and Montaigne. Noting the presence of anxiety and fear of death in most people, these philosophers realized that such feelings constitute an obstacle to the acquisition of happiness. Assuming that philosophy is the instrument used in this search by eudaimonia, the function of philosophical exercise, for these thinkers, the human being will be rid of such fears. Concomitantly show the influences already received in the period of Renaissance philosophers of late antiquity. The philosophy here is portrayed as art of living therapy and treatment of fears. Palavras-chaves: helenismo, tanatologia, Montaigne, ética. Keywords: Hellenism. Thanatology. Montaigne. Ethics. * * * Antecessores na reflexão tanatológica2 Desde os primeiros passos da filosofia, a Morte apresenta-se como um dos principais problemas para a razão humana, e um de seus assuntos mais controvertidos. Desafiando o intelecto, escondendo-se atrás de um véu de mistérios, ela foi ao longo de muitos séculos alvo de diversas reflexões. Podendo já ser notada na filosofia dos présocráticos3 a reflexão tanatológica perpassa a história da filosofia, ora ocupando lugar privilegiado, ora em segundo plano. 1 Graduando em filosofia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Bolsista FAPERJ. Orientador: Prof. Dr. Marcus Reis Pinheiro. Email: [email protected] 2 Etimologicamente “tanatologia” deriva do termo grego Thánatos que refere-se a divindade que representa a morte. Faço, portanto, o uso da palavra tanatologia como o estudo da morte, ou mais precisamente, o estudo das reflexões filosóficas a cerca da morte. 3 Lúcio Vaz afirma: “A filosofia desde seu início se debateu ainda que camufladamente com a morte: então, não foram os pré-socráticos que, constatando a alternância incessante entre geração e corrupção, vida e morte, procuraram a permanência de um princípio?” (A simulação da morte – Versão e aversão em Montaigne. p. 63) Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 120 VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP Apesar de esse trabalho ser focado nas reflexões tanatológica dos helenistas e de Montaigne, mostrarei, mesmo que brevemente, o contorno assumido por essa reflexão na filosofia socrática. Sócrates e a morte do sábio No diálogo platônico Fédon, Sócrates, reiteradas vezes vão afirmar não ser a filosofia outra coisa se não a reflexão tanatológica.4 Estar pronto para a morte, segundo o filósofo, é estar pronto para aquele derradeiro momento em que a alma humana, libertando-se de sua prisão, que é o corpo, poderá reencontrar-se com as almas Perfeitas, com quem esteve junta outrora. O exercício tanatológico, encarnado como das principais ocupações da filosofia socrática permitirá, portanto, ao indivíduo a obtenção do estado de inabalável convicção que é indispensável no momento da morte em que ocorre a libertação e purificação da alma. Nas palavras de Sócrates: “O homem que realmente consagrou sua vida à filosofia é senhor de legítima convicção no momento da morte.”5. A vida de Sócrates, e, principalmente, sua morte tornaram-se paradigmas para as filosofias posteriores. Segundo Lúcio Vaz, “o principal motor de muitas reflexões éticas sobre o morrer e a morte entre os antigos foram os próprios eventos da vida de Sócrates”. A altivez, tranquilidade e até mesmo a alegria demonstrada pelo filósofo ateniense na hora de sua morte inspirará a postura que os filósofos helenistas almejam conquistar no último momento de suas vidas. Assim como Sócrates, os helenistas também desenvolveram uma ética que torna possível a tranquilidade diante da morte, e assim, diante da vida. Para Pierre Hadot, as filosofias do período helenístico definem quase nos mesmos termos suas concepções de sabedoria, à saber, um estado de perfeita tranquilidade da alma.6 A morte como ausência 4 Fédon 67e: “Assim, pois, Símias, em verdade estão se exercitando para morrer todos aqueles que, no bom sentido da palavra, se dedicam à filosofia...” e 64a: “Receio, porém, que, quando uma pessoa se dedica à filosofia no sentido correto do termo, os demais ignoram que sua única ocupação consiste em preparar-se para morrer e em estar morto.” 5 PLATÃO. Fédon: Coleção Os Pensadores. Trad. José Cavalcante de Souza. São Paulo: Nova Cultural, 1987. 63e 6 “A bem dizer, à primeira vista poder-se-ia perguntar se as concepções de sabedoria eram tão diferentes assim de uma escola para outra. Todas as escolas helenísticas parecem, com efeito, definí-la quase nos mesmos termos e, antes de tudo, como um estado de perfeita tranqüilidade da alma. Nessa perspectiva, a Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 121 VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP completa da vida no indivíduo e a morte como “processo de morrer”7 constituirá um dos principais entraves para aquisição dessa tranquilidade almejada pelos filósofos. Portanto, não é de se espantar que no período helenístico, onde o éthos é a busca pelo viver bem, haja uma intensa produção literária e filosófica sobre a relação entre a vida e morte. O espírito socrático foi retomado na filosofia helenista na medida em que os filósofos deste período subordinaram a física e a lógica à ética, não considerando as duas primeiras como um fim em si mesmas. Para Sócrates, o verdadeiro filósofo é aquele que sabe viver sua vida de forma coerente, ou seja, uma completa harmonia entre doutrina e vida. Nas palavras de Reale: “Filósofo não é quem sabe apenas pensar e construir sistemas, mas é, sobretudo, quem sabe viver e morrer em acordo com o seu sistema.”8 Sócrates, portanto, é elevado ao status de sábio, pois foi o primeiro que soube realizar, de maneira paradigmática, essa interseção.9 Cada escola filosófica helenista desenvolveu sua terapêutica10 para a problemática da morte. Esboçarei, especificamente, a tanatologia de Epicuro, em sua Carta a Meneceu, refletindo a filosofia helenista; de Sêneca em sua De Brevitate Vitae e Epistulae, como representante do período imperial; por fim, apresentarei a tanatologia em Montaigne, filósofo que retoma todos esses antecessores no período do Renascimento. Epicuro e o Nada da morte A morte, para Epicuro, é um mal apenas para aquele que nutre falsas opiniões sobre ela. Partindo do pressuposto que as almas e os corpos são compostos de átomos, a filosofia aparece como uma terapêutica dos cuidados, das angústias e da miséria humana.” Cf. Hadot, P. O que é filosofia antiga? p.154 7 Lúcio Vaz em seu livro A Simulação da morte, ao falar de Montaigne, estabelece quatro sentidos que o filósofo renascentista dá a morte, e que creio que possa ser utilizado também para as filosofias helenísticas. Eis os quatros sentidos: “(...) o primeiro sentido é o estado de ausência vital tal como a conhecemos; o segundo, o ponto infinitamente pequeno de cessação da vida, ou seja, de passagem da vida para a morte no primeiro sentido; o terceiro engloba o momento ou momentos finais da vida, designando o processo de morrer (...). O quarto sentido de morte, (...), é o da perda da força vital; se quisermos, a partir dessa compreensão, incluí-lo no recorte temporal, podemos dizer que se trata da morte que, desde o nascimento, está distribuída ao longo da vida...” p. XXIV 8 Reale, Giovanni. Filosofias helenísticas e epicurismo. p. 13 9 Os diálogos Apologia à Sócrates e Fédon comprovam essa postura socrática ao mostrar a tranquilidade do filósofo ateniense diante da morte. 10 Vide nota 5. Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 122 VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP morte não é nada mais que a dissolução desses compostos. Uma vez dissipados os átomos a consciência e a sensibilidade são perdidas.11 A filosofia tanatológica de Epicuro, portanto, é fundamentada em dois aspectos de seu pensamento: em primeiro lugar, em sua ética hedonista do prazer e da felicidade, ela própria fundamentada na teoria do conhecimento sensível – experencialismo12; e em segundo, em sua visão atomista e materialista do mundo. Se o que existe são os átomos e seus compostos, a alma, que também é um composto de átomos, na hora da morte dissipa-se. Disso segue que, uma vez “morta”, a alma está impossibilitada de ter sensações. Não havendo sensações, não há dor ou prazer, portanto, não há sofrimento ou felicidade. Dessa forma, Epicuro oferece um remédio (pharmacon) ao temor da morte – um dos principais medos do ser humano. 13 A sabedoria epicurista para o problema da morte resume-se, finalmente, na seguinte máxima: “O mais terrível dos males, portanto, a morte, não é nada para nós, uma vez que, quando somos, a morte não é, e quando ela chega nós não somos mais.”14 Sêneca e a brevidade da Vida No período imperial, Sêneca se depara com a brevidade da vida nos seres humanos. Não raro deve ter ouvido queixas de que a vida deveria ser mais longa, ou escutado pessoas lamentando a morte inesperada de alguém próximo. Se o filósofo realmente ouviu essas queixas não é possível afirmar categoricamente, contudo, através de suas palavras em suas obras De brevitate vitae e Epistulaes, é possível conjecturarmos assim. Ele, como os demais pensadores, experimentou a morte: seja indução – constatação empírica da mortalidade –, seja por dedução – se todo homem é mortal, logo o próprio filósofo é mortal. Em resposta a angústia humana frente a finitude do indivíduo, Sêneca aconselha a moderação. Segundo o filósofo, considera breve a vida e não aceita morrer o homem 11 Epicuro. Carta a Meneceu. 124:“Habitua-se a pensar que a morte não é nada para nós, porque todo bem e todo mal residem na faculdade de sentir, da qual a morte é, justamente, privação. [...] Ela não tem nenhum significado nem para os vivos nem para os mortos, porque para uns não é nada, e, quanto aos outros, eles não são mais.” 12 Schumacher. Confrontos com a morte. p. 193 13 Epicuro postula quatro remédios (tetra pharmacon) para os quatro maiores medos do ser humano: 1) temor dos Deuses e do além; 2) medo da morte; 3) medo da dor; 4) medo da permanência dor mal (da dor) – Diógenes Laércio X, 139-140. 14 Epicuro. Carta a Meneceu. 124ss Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 123 VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP que não aproveitou devidamente a existência e, por isso, deseja estendê-la.15 A entrega desenfreada aos desejos e exigências alheias16 são causas do apego a vida; apego que considera como mal a morte. Somado a isso está a excessiva expectativa dos bens futuros, que faz com que se perca o presente ao entregar o psicológico humano ao medo de não alcança-los.17 Sêneca, então, prescreve o comedimento para a eliminação do apego a vida, causa do medo da morte.18 Portanto, através do exercício da moderação aplicado aos bens materiais, as situações presentes, e aos projetos futuros, é possível obter melhor aproveitamento do tempo e a supressão do desejo exacerbado das coisas materiais que prendem os indivíduos a vida.19 Sêneca chega a afirmar que se podemos morrer a qualquer momento não é sábio nos apegarmos desesperadamente aos bens fortuitos20, nem, tampouco, criar projetos com objetivos a longa distância21, para que, dessa maneira não estejamos desperdiçando nossa vida na expectativa de alcançarmos bens que, à rigor, não nos são garantidos. Ora, se aprendermos com a morte essa lição de desprendimento, nos desapegaremos da vida, tornando-a mais tranquila. Montaigne, em seu ensaio Que filosofar é aprender a morrer22 retomará essa concepção de desapego.23 Além do exercício da moderação, Sêneca aconselha o constante meditar sobre os males futuros.24 Refletir ao decorrer da vida sobre a própria finitude pode adequar os sentimentos de uma pessoa a essa realidade, ao passo que evitar pensar na morte pode trazer desespero quando realmente aquela se deparar com esta. Através da aceitação da condição de finitude humana e do constante refletir sobre o fim que aguarda a todos, 15 Sêneca, De brevitate vitae, X, 5. ibdem. III, 4. 17 ibdem. V, 7. 18 Epicuro já havia chamado atenção para isso em sua Carta a Meneceu, 130: “É preciso julgar a cada vez, com base no cálculo e na consideração das vantagens e desvantagens; pois às vezes um bem vem a ser para nós um mal e um mal, ao contrário, um bem.” Em Sentenças Vaticanas, 68, Epicuro também afirma: “Nada basta àquele para quem o suficiente não basta.” 19 Sêneca, De brevitate vitae, VII, 8. 20 Sêneca, Epistulae, VIII, 3. 21 De brevitate vitae, IX, 1. 22 Nas edições dos Ensaios de 1580, 1588 e no Exemplar de Bourdeaux. 23 No ensaio I, 20, Montaigne afirma: “Quem aprendeu a morrer desaprendeu de servir. Saber morrer liberta-nos de toda sujeição e imposição.” A sujeição e imposição que ele se refere aqui é a próprio apego desenfreado a vida que prejudica nossa existência. 24 Prática também aconselhada por Montaigne: Os ensaios, I,20. Vale ressaltar a diferença entre Sêneca e Montaigne que Lúcio Vaz enfatiza em seu livro: “Em Sêneca, a meditação da morte é exclusivamente uma reflexão argumentativa e retórica sobre a morte em geral; ao posso que Montaigne, além de obviamente incorporar essas táticas teóricas, acentua o peso da imaginação da própria morte, como uma ficção ou sequência de ficções macabras que se colocam diante de um personagem singular – ele mesmo.” Cf. Lúcio Vaz, A simulação da morte. p. 18 16 Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 124 VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP cada indivíduo pode alcançar o desprendimento necessários para uma morte tranquila e impassível. Para Sêneca, “o sábio sente os incômodos da dor, da velhice e da pobreza, mas os vence.”25 Sócrates e Catão – sábio estoico – são retomados nesse contexto como exemplos de sábios que morreram de forma louvável. Assim como ocorre em Montaigne, o pensar na morte não tem por objetivo trazer ao homem uma ansiedade pelos fatos futuros, nem tem a imaginação do momento de nossa morte a função de nos engessar e nos estarrecer, impedindo-nos a ação. Pelo contrário, a reflexão tanatológica tem por objetivo a aceitação de que a vida, por ser finita e efêmera, deve ser vivida cuidadosamente, de maneira a alcançarmos a tranquilidade e serenidade de espírito. Que filosofar é aprender a morrer26 No ensaio de nome homônimo ao título acima, Montaigne apresenta sua filosofia tanatológica em constante diálogo com os filósofos e demais pensadores helenistas. Fazendo citações diretas a filósofos estóicos como Sêneca, Cícero, ao filósofo Epicuro – apesar de não citá-lo diretamente – e o epicurista Lucrécio, além de poetas como Horácio, Ovídio e Virgílio, o filósofo renascentista almeja eliminar sua angústia existencial diante da morte. Crendo no caráter inevitável e imprevisível da morte, Montaigne pergunta: “se ela nos assusta, como é possível dar um passo à frente sem temor?”27 Tentar superar essa ansiedade é o objetivo do ensaio que iremos analisar. O filósofo, portanto, recorre às filosofias helenísticas na busca da felicidade de que os pensadores helenistas tanto falaram. Como dito anteriormente, no período helenístico e imperial a filosofia é vista como um instrumento através da qual se alcançará a felicidade, não possuindo um fim em si mesma. Independente das diferenças de percurso rumo à felicidade entre as escolas helenísticas, todas elas, entretanto, consideram ser o exercício filosófico algo prático, do cotidiano, direcionado ao próprio indivíduo. Montaigne, compactuando dessa postura, afirma em seu ensaio: “Na verdade, ou a razão se abstém ou ela deve visar apenas nosso contentamento, e todo o seu trabalho 25 Sêneca, Epistulae, IX, 2. Os Ensaios, I, 20 27 Os ensaios, I, 20, p.123 26 Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 125 VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP deve ter como objetivo, em suma, fazer-nos viver bem e a nosso gosto...”28 Viver bem, portanto, é agir bem. E agir bem é agir com a consciência de que todos os dias nos encaminham para a morte.29 Para Montaigne, se aprendermos a lição do morrer bem, aprenderemos a do viver bem.30 Na teoria filosófica montaigniana a aceitação da morte e a busca pela felicidade possuem estreita relação. Para Montaigne, devido ao caráter inevitável da morte faz-se necessário a reflexão que alivie o indivíduo da angústia que acompanha a compreensão deste fato.31 Para conseguir frescor a seus tormentos, Montaigne retomará a teoria filosófica de Epicuro, segundo a qual, a morte não é nada para nós. A tanatologia epicurista é a maior fonte de inspiração para Montaigne em seu ensaio Que filosofar é aprender a morrer. Lucrécio, um dos sucessores de Epicuro é constantemente citado com intuito de fundamentação teórica pelo filósofo renascentista. Chegando a conclusão epicurista segundo a qual a morte não é nada para nós32, Montaigne conclui que não há motivo para nos preocuparmos com ela. Além disso, o filósofo renascentista remete-nos a máxima epicurista da relação entre o bem viver e o bem morrer ao dizer: “Quem ensinasse os homens a morrer estaria ensinando-os a viver.”33 Mais do que puramente provar o erro epistemológico de temer a morte, Montaigne preocupa-se com a torrente de sentimentos que perpassam o psicológico humano. Não apenas preocupado com a realidade objetiva da Morte, o filósofo está preocupado com o eu que contempla essa objetividade. Isso fica evidente quando ele usa como exemplo o indivíduo que, sob pena de morte, é incapaz de apreciar até mesmo as iguarias da Sicília.34 Há no Ensaios de Montaigne uma característica que remete ao que falamos anteriormente sobre Sêneca. Assim como o filósofo imperial, Montaigne concebe que a constante representação mental da morte, do momento infinitesimal que antecede este 28 Ibidem, p. 120 Ibidem, p. 141: “Todos os dias caminham para a morte; o último chega a ela.” 30 Ibidem, p. 133: “Quem ensinasse os homens a morrer os ensinaria a viver.” 31 Ibidem, p.122: “Mas, quanto à morte, ela é inevitável. (...) E consequentemente, se nos causa medo, ela é contínuo motivo de tormento e que não pode absolutamente ser aliviado.” 32 Epicuro. Carta a Meneceu, 124. 33 Os ensaios, I, 20. p.133 34 Horácio, Odes, III, i, 18: “Nem as iguarias da Sicília terão para ele [condenado] seu doce sabor, nem os cantos dos pássaros e os acordes da lira irão devolver-lhe o sono.” apud Os Ensaios I, 20, p.123 29 Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 126 VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP momento, do “processo de morrer” e da morte já presente no momento do nascimento35, faz com que nos acostumemos com essa realidade, livrando-nos do medo pela familiaridade com este momento. A constância demonstrada no ato da morte, para Montaigne, só é possível se ao longo de toda sua vida a pessoa refletiu sobre essa questão. Montaigne pretende alcançar pela reflexão tanatológica a altivez dos sábios louvados por ele em seu Ensaios. O ideal helênico da “bela morte”36 impregna suas obras. Conquanto, devo sinalizar que essa concepção montaigniana de bela morte é característica do Ensaios das edições de 1572. A morte que prova a constância do filósofo e julga os frutos de sua vida é louvada nessa primeira edição do Ensaios. Com os acréscimos da edição de 1588, percebemos que Montaigne parece mudar sua concepção de “bela morte” para uma morte “sem alarido, que não seja sentida por ele mesmo nem pelos outros.”37 Portanto, essa preparação para morte e firmeza ao enfrentála que nas edições de 1572 são a pedra de toque da sabedoria, já não serão mais nas edições de 1588. Nas últimas edições a despreocupação com a morte parecerá a verdadeira sabedoria. Nas palavras do filósofo: “No julgamento da vida de outrem, sempre observo como se desenrolou o fim; e uma das principais preocupações da minha é que ele se desenrole bem, isto é, quietamente e surdamente.”38 A última característica de Montaigne que representa uma inovação para com os antigos é a presença em seus textos da rejeição dos rituais que antecedem os momentos finais de uma pessoa.39 Para o filósofo, os semblantes e as cerimônias “assustadoras” de que se cercam as pessoas no momento da morte amedronta mais do que a própria morte.40 Portanto, se quisermos superar esse medo da morte, devemos retirar a máscara tanto das pessoas quanto as coisas. Das pessoas através da reflexão tanatológica, das 35 Lúcio Vaz. Vide nota 6. Pierre Villey na introdução ao capítulo 19 do livro I. Cf. Montaigne, Os ensaios, I, 20. p. 114 37 ibdem. 38 Montaigne, I, 20. p.118. Essa citação corresponde a um acréscimo feito pelo filósofo nas edições de 1582. Nas edições anteriores lê-se “com segurança” ao invés de “surdamente”. Tal mudança reflete a concepção, já em idade mais madura, do filósofo de morte serena. 39 Lúcio Vaz chama-os de “instrumentos de apoio social no momento de morrer”. A simulação da morte. p.13 40 Montaigne, I, 20, p. 142: “Na verdade creio que são essas atitudes e preparativos assustadores de que nos cercamos que nos causam mais medo do que ela [morte]: uma forma totalmente nova de viver, os gritos das mães, das mulheres e dos filhos, a visita de pessoas estupefatas e transidas, a assistência de um grande número de criados pálidos e lacrimosos, um quarto sem luz, círios acesos, nossa cabeceira invadida por médicos e pregadores; em sua, todo o horror e todo o pavor ao nosso redor.” 36 Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 127 VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP coisas através do retorno às advertências da mãe Natureza que não vê na morte se não uma passagem de uma coisa a outra, sem juízos morais. Considerações Finais Montaigne foi um filósofo renascentista de tendência eclética. Em sua filosofia transparecem contornos das inúmeras escolas clássicas. Como todo grande pensador, muitas vezes sua obra não é de todo coesa: é possível observar digressões e até mesmo contradições em seus ensaios. Em sua tanatologia não seria diferente. Epicurismo, ceticismo, estoicismo estão presentes. Todos eles procuraram remediar de alguma forma a angústia humana pela finitude, livrando-nos do medo da morte. A filosofia entendida como o somatório de teoria e prática é adotada pelos filósofos helenistas e observada também em Montaigne. Fazer filosofia, portanto, é fazer de tudo para viver bem. E nessa busca pela felicidade, muitos pensadores se chocaram contra esse grande problema existencial que é a morte. Seja buscando o prazer pela eliminação do sofrimento, seja aceitando resignado os movimentos da Fortuna e praticando a moderação, o epicurismo e o estoicismo conseguiram, cada um a sua maneira, eliminar a ansiedade que também perseguiu o filósofo renascentista durante sua vida. Assim como os antigos, Montaigne queria viver bem, e para ele, isso dependeria de sua reação diante da morte. Daí a urgente necessidade nele, assim como nos filósofos da Antiguidade tardia, do pensar a morte. Referências EPICURO. Carta a Meneceu. Trad. Álvaro Lorencini, Enzo Del Carratore. São Paulo: UNESP, 1997. HADOT, P. O que é a filosofia antiga? Trad. Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 1999. MONTAIGNE, M. Os ensaios: livro I. Trad. Rosemary Costhek Abílio. d’Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2002. PLATÃO. Fédon: Coleção Os Pensadores. Trad. José Cavalcante de Souza. São Paulo: Nova Cultural, 1987 REALE, G.. Filosofias helenísticas e epicurismo. Trad. Marcelo Perine. Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 2011. p. 13 SCHUMACHER, B. N. Confrontos com a morte: a filosofia contemporânea e a questão da morte. Trad. Lúcia Pereira de Sousa. São Paulo: Edições Loyola, 2009. SENECA, L. A. Moral Epistles. Trans. by Richard M. Gummere. The Loeb Classical Library. Cambridge, Mass.: Harvard UP, 1917-25. 3 vols. Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 128 VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP SÊNECA. De la brièveté de la vie. (Tome II). In: Dialogues. Trad. par A. Bourgery. Paris: Les Belles Lettres, 1955. VAZ, L.. A simulação da morte: versão e aversão em Montaigne. São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: UFMG, 2011. (Estudos; 293) Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 129