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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia – PPGe
VALDEMIRO SEVERIANO FILHO
O CARNAVAL DE NATAL/RN: ESPAÇO DOS “ÍNDIOS” NO TEMPO DA FOLIA
Natal/RN
2013
VALDEMIRO SEVERIANO FILHO
O CARNAVAL DE NATAL/RN: ESPAÇO DOS “ÍNDIOS” NO TEMPO DA FOLIA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação e
Pesquisa em Geografia do Departamento de Geografia do
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte para
obtenção do título de Mestre em Geografia.
Orientador: Prof. Dr. Alessandro Dozena.
Natal/RN
2013
VALDEMIRO SEVERIANO FILHO
O CARNAVAL DE NATAL/RN: ESPAÇO DOS “ÍNDIOS” NO TEMPO DA FOLIA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação e
Pesquisa em Geografia do Departamento de Geografia do
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte para
obtenção do título de Mestre em Geografia.
COMISSÃO EXAMINADORA:
_______________________________________________
Prof. Dr. Alessandro Dozena - Orientador
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
_______________________________________________
Prof. Dr. Carlos Eduardo Santos Maia – Examinador Externo
Universidade Federal de Juiz de Fora
_______________________________________________
Prof. Dr. Anelino Francisco da Silva – Examinador Interno
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Data de Aprovação: 08 de março de 2013.
Dedico esta obra à minha filha Sophia, por
quem tenho muito amor e carinho.
AGRADECIMENTOS
Meus sinceros agradecimentos aos meus pais, Valdemiro Severiano e Maria Tavares
de Araújo Severiano, à minha esposa, Karla Lydiana Santos da Silva e, ainda, à minha irmã
Mariêta Miranda Severiano Neta, pelo auxílio no presente trabalho e pelo que representam em
minha vida.
Agradeço o meu orientador Prof. Dr. Alessandro Dozena, por ter acreditado em minha
competência e por haver me assistido nesta pesquisa, de modo a contribuir em grande parte
para o sucesso deste trabalho.
Sou grato aos amigos e colegas do curso de Geografia da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, sobretudo aos discentes do Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em
Geografia – PPGE e alunos do Programa de Educação Tutorial de Geografia – PETGEO.
Demonstro minha gratidão aos geógrafos: Janny Suênia, Pablo Raniere, Gervásio Hermínio,
Daniel Nunes, Jeyson Ferreira, Eduardo Nascimento, Gomes Neto e Fábio Nunes, que me
acompanharam nesta caminhada.
Presto meu reconhecimento aos professores da Pós-Graduação que facilitaram o
entendimento do conhecimento geográfico, bem como aos mestres das outras áreas das
Ciências Humanas e Sociais, em especial, aos membros da Banca de Qualificação e Defesa:
Prof. Dr. Carlos Maia, Prof. Dr. Anelino F. da Silva e Profa. Dra. Rita de Cássia Gomes.
Impossível não incluir nesses agradecimentos a Profa. Dra. Flávia de Sá Pedreira –
que participou da Banca de Qualificação – e Profa. Dra. Julie Antoinette Cavignac,
pesquisadoras do Grupo de Pesquisa “Festas, Identidades e Territorialidades”, o qual sou
membro.
Enfim, digo o meu muito obrigado a todos que, de forma direta ou indireta, apoiaram
para a realização deste trabalho, em peculiar, ao Grande Geômetra.
RESUMO
A cidade de Natal/RN apresenta-se como palco para múltiplas manifestações culturais, entre
as quais se encontram as tribos de índios carnavalescas. O presente estudo procurará
compreender a produção do carnaval destas agremiações enquanto uma manifestação de lazer
e trabalho. Pautado numa visão pluralista, percebemos que os vários usos do espaço implicam
em territorialidades que envolvem as dimensões política, econômica e simbólica,
intermediadas pela cultura. Sob a análise proposta, pretendemos desvendar as dinâmicas
espaciais e os vários agentes sociais que engendram relações de poder, trabalho e
sociabilidades, mostrando neste “mundo” carnavalesco seus aspectos culturais e suas práticas
sociais, guardando, em seu cerne, o caráter popular e ordinário do cotidiano. A pesquisa
mostra que, para além da racionalidade hegemônica, existem outras racionalidades,
manifestadas em microterritorialidades, que acionam mecanismos e táticas cotidianas,
valorizando-se o fenômeno do estar-junto, existentes no interior dos centros urbanos, nos
bairros e nas ruas.
Palavras-chaves: territorialidade, cultura, cotidiano.
RÉSUMÉ
La ville de Natal/RN se présente comme scène pour plusieurs manifestations culturelles, qui
sont les tribus d'indiens du carnaval. Cette étude cherchera comprendre la production du
Carnaval de ces groupements comme une manifestation de loisir et travail. Réglé en vue
pluraliste, nous percevons que les différentes usages de l'espace impliquent territorialités que
enveloppent les dimensions politique, économique et symbolique, par intermède de la culture.
Sous l'analyse proposée, nous voulons à dévoiler les dynamiques spatiales et les divers agents
sociaux, qui engendrent des relations de pouvoir, de travail et de sociabilité, montrant ce
"monde" carnavalesque et leurs aspects culturelles et pratiques sociales, gardant, en son cerne,
la caractère populaire et ordinaire du quotidienne. La recherche montre que, au-delà de la
rationalité hégémonique, il y a des autres rationalités, manifestée dans microterritorialités, que
actionnent mécanismes et tactiques quotidiennes, valorisant le phénomène de l'être-ensemble,
existants dans les centres urbains, dans les quartiers et les rues.
Mots-clés: territorialité, culture, quotidienne.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Mapas
Mapa 1 – Localização espacial das tribos de índios do carnaval de Natal/RN ........................ 14
Mapa 2 – Barracões e os agenciamentos socioespaciais .......................................................... 92
Mapa 3 – Configuração espacial do desfile e a des(ordem) do carnaval natalense................ 100
Mapa 4 – Representação espacial dos ensaios da Tribo de Índios Gaviões-Amarelo ............ 120
Mapa 5 – Representação espacial do “assalto” carnavalesco dos Apaches ........................... 121
Mapa 6 – Trajetória ritualizada da Tupi-Guarani ................................................................... 122
Mapa 7 – Redes socioespaciais da tribo de índios Tabajara .................................................. 137
Figuras
Figura 1 – “Ritual” de entrega da subvenção estadual para o carnaval de 2012 ...................... 90
Figura 2 – Territorialidades da economia informal no desfile carnavalesco .......................... 101
Figura 3 – O espaço normatizado para o consumo................................................................. 103
Figura 4 – Montagem da alegoria da tribo Tabajara na manhã do desfile ............................. 106
Figura 5 – Discurso do presidente da tribo de índios Guaracis .............................................. 108
Figura 6 – Ensaio da tribo de índios Tapuias e o “desrespeito” do veículo ........................... 117
Figura 7 – Limites da Tribo de índios Gaviões-Amarelo ....................................................... 119
Figura 8 – Quarto: de dormitório a depósito de fantasias....................................................... 140
Figura 9 – Co-presença: Gaviões-Amarelo e o entorno ......................................................... 145
Figura 10 – Homens construindo as alegorias da agremiação................................................ 149
Figura 11 – Mulheres confeccionando as fantasias da agremiação ........................................ 149
Tabelas
Tabela 1 – Investimento Público para o Carnaval de 2012 ...................................................... 79
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AESTIN
Associação das Escolas de Samba e Tribos de Índios de Natal
FUNCARTE
Fundação Capitania das Artes
GPS
Global Position System (Sistema de Posicionamento Global)
ONG
Organização Não-Governamental
RMN
Região Metropolitana de Natal
SEMOB
Secretaria Municipal de Mobilidade Urbana
SEMTAS
Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social
SEMURB
Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 10
1.1. PROCEDIMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS.................................................... 14
1.2. UMA ETNOGRAFIA DOS TERRITÓRIOS E LUGARES DAS TRIBOS .................... 22
1.3. DE QUAL CULTURA ESTAMOS FALANDO? ............................................................ 29
1.4. A FIGURA DO ÍNDIO NO CARNAVAL: COMO SURGIU? ....................................... 35
1.5. APRESENTANDO OS CAPÍTULOS .............................................................................. 41
2. A ORIGEM E O ATUAL DO CARNAVAL NATALENSE .......................................... 43
2.1. REVISITANDO O CARNAVAL NA CIDADE DE NATAL ......................................... 46
2.1.1. Nos entrudos do carnaval natalense: tudo junto e misturado ......................................... 47
2.1.2. A institucionalização e a suposta decadência do carnaval natalense.............................. 60
2.2. A ATUAL CONFIGURAÇÃO DA FESTA MOMESCA EM NATAL .......................... 71
3. O CARNAVAL DAS TRIBOS: ARRANJOS E PRÁTICAS ESPACIAIS .................. 77
3.1. OS ASPECTOS ECONÔMICOS DO CARNAVAL DAS TRIBOS ............................... 78
3.2. OS USOS POLÍTICOS DO TERRITÓRIO NO CARNAVAL DAS TRIBOS................ 87
4. AS TRIBOS DE ÍNDIOS E SUAS PROJEÇÕES NO ESPAÇO CITADINO.............. 95
4.1. A CONFIGURAÇÃO ESPACIAL E A (DES)ORDEM DA “AVENIDA” ..................... 98
4.1.1. O espaço do carnaval e seus agentes .............................................................................. 99
4.1.2. O acontecer da tribo na avenida: atos preparatórios e o desfile carnavalesco .............. 105
4.2. A RUA DAS TRIBOS E A REFUNCIONALIZAÇÃO DO LUGAR ........................... 111
4.3. AGENCIAMENTOS ESPACIAIS: O COTIDIANO DO BAIRRO .............................. 125
4.3.1. A tribo de índios Tabajara e o bairro Felipe Camarão ................................................. 130
4.3.2. O lugar da tribo de índios Gaviões-Amarelo: as táticas socioespaciais ....................... 139
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 151
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................... 156
[10]
1. INTRODUÇÃO
A contemporaneidade vislumbra-se como um espaço-tempo de transformações diante
do estabelecimento de novas relações sociais, potencializadas pelas redes de sociabilidade1 e
pela dinâmica das transformações culturais, de onde emergem discursos e práticas que
valorizam a diversidade cultural e se contrapõem à ideia de homogeneização da sociedade.
Neste cenário, encontram-se as tribos de índios do carnaval de Natal.
O estudo procurará compreender o processo de produção do carnaval das tribos de
índios2 enquanto manifestação de lazer e trabalho, desde a preparação – os ensaios e a
confecção das fantasias e alegorias – até o desfile na “passarela do samba”, acionando as
dimensões política, econômica e simbólica e discutindo o cotidiano3 como uma prática
geradora de sociabilidade.
Seguimos de perto o entendimento de Cavalcanti (1984), para quem o carnaval “não
designa, portanto, a festa simplesmente mas todo o processo que nela desemboca. E, do ponto
de vista de uma escola, a totalidade do carnaval pode ser dividida em duas realidades
distintas: ‘uma coisa é o contexto do carnaval’, tudo o que é exterior à escola e decorre da
existência do desfile; ‘outra coisa é o samba’ que remete à interioridade da escola”
(CAVALCANTI, 1984: 176-177).
O interesse surgiu da ausência de estudos geográficos acerca da temática na
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Ademais, os trabalhos acadêmicos sobre o
carnaval pesquisados não tinham como objeto de estudo as tribos de índios carnavalescas.
Partindo-se do questionamento sobre como as tribos carnavalescas apropriam-se do
espaço, entendemos que os usos territoriais das tribos constituem relações políticoeconômicas e momentos de realização do lazer – subjetiva e objetivamente. Neste sentido, o
1
Partilhamos da ideia de sociabilidade enquanto associação que expressa vontades humanas e mantém múltiplas
relações compostas de “exigências, ajuda, assistência e de suas forças. O grupo formado por esse tipo positivo de
relação, concebido enquanto objeto ou ser que age de forma unitária interna e externamente, é denominado
associação” (TÖNNIES, 1995: 231). A sociabilidade é, pois, os laços pessoais estabelecidos pelas pessoas se
relacionando.
2
Este folguedo, marcado pelo som ritmado, lento, expressivo e pela representação teatral, cujas raízes,
acreditamos estar nos negros africanos, representa uma manifestação que resgata e ressignifica a presença
indígena. As tribos de índios carnavalescas encontram-se presentes no espaço como uma manifestação cultural
subdominante e emergente, codificados na paisagem e aguardando estudos geográficos (COSGROVE, 1998).
3
É pela análise do cotidiano e sua dimensão espacial que poderemos compreender a coexistência dos tempos, ao
que Santos (1996a) considerou de quinta dimensão do espaço banal. No cotidiano – enquanto “categoria de
análise” (SANTOS, 1997: 184) – verificamos as cooperações e conflitos dos agentes sociais.
[11]
leitmotiv do estudo encontra-se na visão pluralista em se perceber os vários usos do espaço,
tendo como pressuposto a noção de que os encontros sociais verificados nas agremiações são
mediados por relações culturais, que englobam lazer, sociabilidade, reprodução do capital e
consumo:
Todavia – e é isso que, especificamente, nos interessa –, o efeito-emprego do
lazer não é exclusivo das formas organizadas e burocratizadas de uso do
tempo livre, praticadas nas sociedades industriais e pelas camadas superiores
e médias dos países menos desenvolvidos. Nestes, há também um lazer
popular, rebelde às estatísticas, produzindo, de baixo para cima, formas
ingênuas de distração coletiva, provindas do exercício banal da existência,
criadas na emoção e geradoras de solidariedade e de trabalho. Sua
espontaneidade é, na base da sociedade, a garantia de sua permanência,
criatividade e renovação (SANTOS, 2000: 34).
Atribuímos ao espaço das tribos de índios uma construção social que engendra e
correlaciona elementos (i)materiais, com vistas a não negligenciar nem valorizar as lógicas
político-econômicas
e
a dimensão
simbólica, pois
na
interpretação do
espaço,
compreendemos que os homens não vivem “sem dar um sentido àquilo que os cerca[m]”
(CLAVAL, 2001a: 293).
Ao contrário do pensamento popular que imagina as tribos carnavalescas enquanto
uma aglomeração de pessoas vestidas de índios e fazendo batuques, o presente trabalho vem
demonstrar que estes grupos se organizam e instituem relações sob complexos laços de
solidariedade e vizinhança, numa malha de deveres e funções.
Essa visão heterotópica, caracterizada por um estudo que aborda uma visão não
dicotômica e não polarizadora nos desautoriza submetermos a um colonialismo intelectual4, já
tradicional na academia, especificamente no caso brasileiro em que certos objetos são
considerados como propriedades de algumas disciplinas (RATTS, 2003). É neste sentido que
Duncan (2000) assinala que a Geografia Cultural hodierna se transformou em heterotopia:
Estou sugerindo que concebamos a geografia cultural como um único espaço
disputado de poder/conhecimento, mas como uma espécie de heterotopia
epistemológica, que, segundo Foucault (1986, 25), “é capaz de justapor
4
Duncan (2000) traz uma importante crítica ao que convencionamos chamar de “colonialismo intelectual”: “O
que quero dizer é que a concepção de geografia cultural enquanto heterotopia epistemológica é a melhor e que
devemos aceitar as implicações desta condição cada vez mais comum na academia. Uma parte importante desta
aceitação é se dar conta de que um discurso ‘dominante’, capaz de estabelecer uma unidade intelectual, é ilusão.
Não podemos propor um método ou uma estrutura taxonômica como parâmetros para toda a geografia cultural; o
que temos, na realidade, são ‘lugares de diferença’, cada um dos quais com seu próprio discurso, ligados a outros
lugares semelhantes dentro das ciências sociais e humanidades” (DUNCAN, 2000: 82).
[12]
vários espaços num só lugar real, vários espaços que são em si mesmos
incompatíveis” (DUNCAN, 2000: 64-65).
É necessário ultrapassarmos algumas dimensões totalitárias dos paradigmas científicos
e disciplinares, que, por vezes, adotam uma postura despótica, constituindo-se em verdadeiras
tiranias paradigmáticas (AMORIM FILHO, 2007). Utilizar uma corrente epistemológica de
forma dogmática traz danos para a evolução do pensamento geográfico e limita a pesquisa à
reprodução dos conhecimentos existentes, não deixando os pesquisadores tomarem
“consciência das possibilidades que teriam de produzir, por si mesmos, elementos de um
saber novo” (LACOSTE, 2006: 86).
Acreditamos que a presente discussão não deve ser “encaixada” em determinado
segmento da ciência geográfica que separa e, por vezes, dicotomiza. Pretendemos analisar as
tribos de índios de carnaval, enquanto manifestação cultural presente na realidade urbana e,
portanto, realizada no espaço. A dissertação se filiará a uma abordagem teórico-metodológica
que reconhece a dimensão concreta do espaço inseparável da subjetividade, enquanto duas
faces de um mesmo fato, realizados no espaço e intermediados pela cultura.
Para a problemática proposta, partiremos do pressuposto do espaço enquanto instância
social (SANTOS, 1985; 2005), indissociável do sistema que compõe a sociedade, imbricandose com eles. Assim, não devemos compreender o sistema social disposto em camadas
estruturais, onde, conforme Althusser (1979), ao discutir as instâncias através da metáfora
arquitetônica do edifício, considera a sociedade composta por três níveis, onde a instância
econômica – infraestrutura – se encontra na base da estrutura social, tendo uma importância
maior que os níveis jurídico-político e ideológico, que consistem a superestrutura. Santos
(1986) critica a exclusão do espaço ao enfatizar:
Os que consideram a sociedade como um sistema ou uma estrutura (ou
mesmo como uma totalidade) quando tratam de definir-lhes as instâncias
excluem o espaço. Nesse particular e por mais incrível que pareça, teóricos
marxistas fazem boa companhia aos pensadores “burgueses” (SANTOS,
1986: 141).
.
Procedendo desta forma, não isolaremos qualquer dimensão, de modo a prejudicar o
trabalho empreendido, visto que a “consistência, a lei e a ordem que se revelam em cada
aspecto
contribui,
simultaneamente,
(MALINOWSKI, 1997: 25).
para
a
construção
de
um
todo
coerente”
[13]
Essa orientação abrangente que a abordagem cultural nos proporciona – relacionando
as variáveis concretas e simbólicas na “leitura” do espaço – encaminha a “um outro” olhar da
dimensão espacial dos fenômenos. Gomes (2001) sinaliza que procedendo dessa forma,
poderemos “compreender este jogo complexo entre as dimensões física e simbólica, entre
signo e sentido e, desta forma, pode vir a se constituir como a oportunidade ideal para
aprofundar esta discussão epistemológica que comumente nos tem escapado” (GOMES, 2001:
95).
As tribos de índios encontram-se compreendidas em cinco municípios da Região
Metropolitana de Natal, pertencentes à mesorregião do leste potiguar. Nesta área distribuemse onze tribos carnavalescas na zona urbana da Região Metropolitana de Natal, englobando os
municípios de Natal, Ceará-Mirim, Macaíba, São José de Mipibu e São Gonçalo do
Amarante.
Fazendo um recorte na capital potiguar, verificamos um espraiamento destas
agremiações pela cidade. Não há uma concentração nos bairros conhecidos pela sua
efervescência carnavalesca, sobretudo o bairro Rocas, que já congregou inúmeros grupos
carnavalescos, entre tribos de índios e escolas de samba, e Alecrim. Não obstante as primeiras
tribos – Guaranys e Potiguares – tenham surgido nestas duas localidades, estes grupos,
atualmente, encontram-se distribuídos em seis bairros da capital, com presença na Zona Norte
– Tapuias da Redinha e Gaviões-Amarelo de Igapó, Zona Leste – Potiguares das Rocas,
Tupinambás de Santos Reis e Guaracis de Mãe Luiza, e Zona Oeste – Tabajara de Felipe
Camarão.
É interessante observar que não existe tribo de índios na Zona Sul de Natal, tampouco
há registros de que já houve qualquer manifestação carnavalesca indígena nesta Região
Administrativa. Não obstante, é no Bairro Ponta Negra que existe, há oito anos, o bloco
“Poetas, carecas, bruxas e lobisomens”, organizado pelo atual vereador natalense Hugo
Manso, e, no ano de 2012, recebeu a presença do Prefeito em exercício Edivan Martins, do
Vice-Governador Robinson Faria, da Deputada Federal Fátima Bezerra e do Secretário de
Políticas Culturais do Governo Federal Sérgio Mamberti. O bloco é aberto ao público e
bastante frequentado, principalmente pela classe média e a elite natalense que residem na
localidade, mas também tem participantes provenientes da Vila de Ponta Negra, onde se
encontra as camadas mais populares, e de outros bairros da cidade.
[14]
Mapa 1 – Localização espacial das tribos de índios do carnaval de Natal/RN
Fazendo uma Cartografia Cultural, a disposição espacial das tribos de índios sugere
uma leitura do cotidiano a partir dos “de baixo”, pois estas agremiações se localizam nos
bairros menos abastados dos municípios onde se encontram compreendidas, os quais alguns
registram um alto índice de violência e pobreza, contudo dispostas a organizarem-se por meio
de redes de sociabilidade e consciência do seu espaço vital que os conduzem a “fruir, gozar,
ampliar a cultura territorializada, onde se dá a fusão entre tempo e lugar, como expressão da
vida em comunhão, na solidariedade e na emoção” (SANTOS, 2000: 35-36).
1.1. PROCEDIMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS
A delimitação espaço-temporal da pesquisa, as categorias analíticas e os instrumentos
metodológicos são imprescindíveis para a construção do objeto, pois, não agindo desta forma,
[15]
entregamos o trabalho “a um exercício cego sem uma explicitação dos procedimentos
adotados, sem regras de consistência, adequação e pertinência” (SANTOS, 1996a: 18).
Na presente pesquisa buscaremos identificar o carnaval das tribos de índios enquanto
um processo iniciado antes mesmo da festividade, desde os preparativos – ensaios e produção
das fantasias e alegorias – até a passagem do bloco na “avenida”5, com o intuito de verificar a
dinâmica espacial existente nesta manifestação cultural. Para esta empreitada, faremos um
recorte empírico no carnaval de 2012.
Nosso recorte atinge uma fração do acontecer humano, mas que, igualmente ao todo
concreto, é dotado de várias temporalidades, pois o tempo é heterogêneo em qualquer divisão
do espaço (SANTOS, 1997: 165). Esta escolha se deu pela necessidade de compreender não
somente os dias festivos do carnaval, mas, sobretudo, o conjunto de arranjos e ações que
antecedem o desfile carnavalesco. Poderíamos de forma satisfatória propor apenas um dos
enfoques, entretanto, para uma melhor compreensão é imprescindível analisar as várias
dimensões do processo de produção do carnaval.
No que concerne aos procedimentos metodológicos, fez-se necessário o trabalho de
campo, porém, sem dogmatizar teorias (SERPA, 2006). De forma qualitativa, pudemos
compreender como os participantes das tribos de índios carnavalescas experienciam o
processo desde a confecção das fantasias ao desfile.
A escolha das técnicas relaciona-se à natureza e adequação dessas com o objeto de
pesquisa, portanto, a pesquisa de campo e, como consequência, as entrevistas, foram
preponderantes em nosso trabalho, pela necessidade de uma perfeita compreensão dos
diversos usos territoriais. Teve importância, também, a pesquisa de gabinete – como o
levantamento prévio das tribos de índios –, o que nos permitiu planejar as ações com base
num conhecimento precedente do estudo proposto e contribuiu sobremaneira para o trabalho
de campo. Ademais, a busca por informações nos possibilitou adentrar no empírico de modo a
sistematizar as entrevistas com questionamentos pertinentes.
É oportuno enfatizar que a pesquisa de gabinete não é somente antecedente ao trabalho
empírico; ao contrário, serve-lhe de subsídio, mas também é subsidiada por ele. Neste sentido,
alerta Venturi (2006):
5
As aspas identificam o duplo sentido da palavra, pelo fato de que no carnaval de Natal/RN não existe
Sambódromo e, por isso, as apresentações ocorrem na Avenida Duque de Caxias, no bairro Ribeira.
[16]
[...] ele [o pesquisador] deve ter consciência do risco que existe em
transformar seu trabalho no chamado ‘trabalho de gabinete’ e, sobretudo, ter
consciência de que o campo e as informações que ali podem ser obtidas são
insubstituíveis (VENTURI, 2006: 76).
É o diálogo entre o empírico e o gabinete que nos permite escolher o recorte espacial,
posto que “recortar espaços de conceituação na realidade, em coerência com os fenômenos
que se deseja estudar e analisar é questão central para operacionalização do trabalho de campo
em Geografia” (SERPA, 2006: 12), livrando-nos de cair em armadilhas teóricometodológicas, ideias e questionamentos pautados no senso comum.
Buscando a heterogeneidade das tribos de índios do carnaval, focamos a abordagem
numa escala local. Buscar a coerência “entre o sistema de arranjo dos objetos e a organização
dos comportamentos sociais relacionados aparece com muito maior expressão quando
estamos neste patamar de observação” (GOMES, 2001: 102), enxergando as relações sociais
que se estabelecem por laços de solidariedade e vizinhança, bem como os mecanismos de
ajuda-mútua e capital-trabalho, estabelecidos pelas redes criadas no cotidiano, sobretudo no
interior dos bairros populares que fortalecem as redes relacionais destas agremiações
carnavalescas6. Nosso enfoque aproxima-se daquele de Magnani (1998):
O enfoque que propomos, entretanto, supõe outro ponto de partida. Frente ao
universo do trabalho, já subjugado pela lógica do capital que tenta programálo inteiramente, existe um espaço regido em parte por outra lógica, e aberto
ao exercício de uma certa criatividade: a vida familiar, o bairro, as diferentes
formas de entretenimento e cultura popular que preenchem o tempo do lazer
(MAGNANI, 1998: 29).
Não proporemos, portanto, a desarticulação entre o local e o global, pois o mundo –
enquanto totalidade – particulariza-se no lugar – que, por sua vez, é uma totalidade – e pensálo “não é colocar somente os problemas no quadro local; é também articulá-los eficazmente
aos fenômenos que se desenvolvem sobre extensões muito mais amplas” (LACOSTE, 2006:
91).
Aqui pensamos também no movimento contraditório da globalização: a dialética entre
o local e o global. Na medida em que os lugares se mundializam, estes microespaços reagem
6
“[...] o que fundamenta o conjunto é a sua inscrição local, a espacialização e os mecanismos de solidariedade
que são seu corolário, [...] é o que chamei acima de sacralização das relações sociais: o mecanismo complexo das
dádivas e contra-dádivas que se estabelece entre as diversas pessoas, por um lado, e entre o conjunto assim
constituído e um meio dado, por outro. Se as trocas são ‘reais’ ou são trocas simbólicas isso tem pouca
importância, na verdade, a comunicação, no seu sentido mais amplo, utiliza caminhos os mais diversos
(MAFFESOLI, 2000: 33).
[17]
às verticalidades do global, tencionando-se com elas, através de suas territorialidades
geradoras de identidades territoriais que revelam e expressam suas horizontalidades e
singularidades.
Cada totalidade – mundo, nação, cidade, bairro – encontra-se em sucessivas
totalizações, sempre dinâmica, e o tempo-espaço deve ser entendido numa complexa
diacronia; pensar estes espaços é compreender os processos que se formam em seu interior em
articulação com o que ocorre, também, fora dele. Há, no lugar, conforme Santos (1996a), uma
razão global e outra local que convivem dialeticamente.
Muito embora se trate de uma mesma manifestação carnavalesca, cada tribo de índios
é dotada de procedimentos e táticas que a individualiza e, por isso, não podemos, de modo
abstrato, homogeneizá-las, mas buscar semelhanças e diferenças nas ações. Compreendemos,
pois, que as tribos carnavalescas devem ser estudadas de modo a ultrapassar a dimensão
concreta das estruturas econômicas e políticas, sob pena de transformar nosso trabalho num
modelo economicista de estudo social.
De igual modo, também não é interessante para a pesquisa adotar procedimentos
metodológicos que nos permitam somente uma leitura funcional do espaço (CLAVAL, 2004).
Adotamos a descrição densa (GEERTZ, 2008) e analisamos os processos, recusando o
simples inventário dos artefatos e rechaçando a compreensão das estruturas de forma
cartesiana. Gomes (1997) ilumina essa discussão ao afirmar:
Parece que a descrição simples da forma não pode dar conta de todos os
significados e todas as práticas sociais que têm sede aí. Parece que tampouco
nos interessa sua geometria se não a relacionarmos às relações sociais,
conflitos, usos e contextos sob os quais esta forma existe e resiste em tempos
diversos. O ‘visível’ depende assim dos nossos óculos conceptuais
(GOMES, 1997: 25).
A leitura do espaço aproxima-se da iconologia do historiador da arte Panofsky, que
propôs a análise interpretativa dos valores simbólicos e as significações das imagens. Tal
perspectiva foi amplamente utilizada por geógrafos, tais como, Cosgrove, Duncan e Daniels.
Acompanhando este modelo de análise, tributamos da ideia de que os usos territoriais advêm
de ações humanas e revelam valores que devem ser interpretados hermeneuticamente:
Como sistemas entrelaçados de signos interpretáveis (o que eu chamaria
símbolos, ignorando as utilizações provinciais), a cultura não é um poder,
algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os
comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto, algo
[18]
dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível – isto é,
descritos com densidade (GEERTZ, 2008: 10)7.
Neste ínterim, o pesquisador deve perceber o arbitrário da vida social ao analisar a
sociedade – seja ela longínqua ou a do próprio investigador. A sociedade moderna permite ser
colocada diante do processo de estranhamento ainda que em seu próprio cotidiano, pois “a
vida social e a cultura se dão em múltiplos planos, em várias realidades que estão referidas a
níveis institucionais distintos” (VELHO, 1980: 18).
Esta análise será alcançada se estudarmos a sociedade de maneira interpretativa, nos
moldes geertzianos, cujo objetivo de reflexão é a forma como a sociedade e os grupos
inseridos nela – e suas variadas culturas – representam, classificam e organizam as
experiências sociais (VELHO, 1980). Maffesoli (2000), fazendo coro com a perspectiva do
antropólogo Gilberto Velho, argumenta acerca da existência de uma cultura vivida no dia-adia, feita a partir do conjunto de pequenos “nadas”, que é essencial à vida societal. Para o
cientista social:
[...] são coisas que dão conta de uma sensibilidade coletiva, sem muito que
ver com a dominância econômico-política que caracterizou a Modernidade.
Essa sensibilidade [...] é vivida no presente, e se inscreve num espaço dado
[...]. E assim sendo, faz cultura no cotidiano (MAFFESOLI, 2000: 34).
Não se trata de sugerir um empirismo puro e simples, banalizando o trabalho de
campo e transformando-o no próprio método, “fruto do predomínio de uma concepção
empirista que despreza a teoria e atribui à descrição da realidade a condição de critério de
verdade” (ALENTEJANO; ROCHA-LEÃO, 2006: 53). Propomos, por outro lado, que os
procedimentos metodológicos e a prática empírica, aliados aos conceitos e teorias, sejam
articulados, consistindo numa unidade orgânica:
Fazer trabalho de campo representa, portanto, um momento do processo de
produção do conhecimento que não pode prescindir da teoria, sob pena de
tornar-se vazio de conteúdo, incapaz de contribuir para revelar a essência
dos fenômenos geográficos (ALENTEJANO; ROCHA-LEÃO, 2006: 57).
O olhar do pesquisador, já sensibilizado pela teoria, deve ser, nas palavras de Oliveira
(2000), teoricamente “domesticado”, não permitindo uma visão “ingênua”. Se o olhar
7
DaMatta (1986) coloca que a grande verdade sociológica é a de que “o homem é um ser do contexto, do
significado, da relação. Num tempo, sou religioso; na Câmara viro político; no baile de carnaval transformo-me
em carnavalesco. A prática social é uma linguagem e uma expressão de perspectivas sociais que, num jogo
complexo, permite descobrir essa coisa formidável e poderosa que se chama sociedade” (DAMATTA, 1986: 82).
[19]
permanecer ingênuo – “o olhar por si só” (OLIVEIRA, 2000: 21) – não será suficiente para
apreender a realidade observada. Esta é, portanto, a atividade de percepção da pesquisa,
completada com o “ouvir”, para se chegar à estrutura das relações sociais e à significação das
coisas: “se o olhar possui uma significação específica para um cientista social, o ouvir
também goza dessa propriedade” (Ibidem).
É essa mediação do trabalho empírico com os conceitos e teorias geográficas que nos
autoriza a compreender a dinâmica da produção do carnaval das tribos de índios. Neste
ínterim, analisamos a dimensão espacial dessas tribos carnavalescas em suas distintas
variáveis de compreensão. Buscando pensar as especificidades dessas agremiações,
escolhemos “compreender o território a partir de seu uso, entendendo essa operação como
uma discussão contextualizada principalmente no momento presente e baseada no exercício
do recorte metodológico da cultura” (DOZENA, 2009: 34).
Concordamos com DaMatta (1986) ao estabelecer que o caminho não é feito de
dicotomias mas de conjunções e elos, posto que as teias de significações vivenciadas pelos
homens, permitem, ao pesquisador, promover interpretações de outras interpretações e estas
relações podem ser descobertas a partir de uma análise sociocultural, bem como “discernir as
intenções de quem está interpretando o drama” (DAMATTA, 1986: 14). Estas interpretações
são “construtivas no sentido de que elas não querem perder de vista nem o processo nem o
instante” (Ibidem: 15).
Como anteriormente apontado, optamos pelo procedimento das entrevistas, utilizando
a técnica da gravação, que nos permitiu capturar as informações dos entrevistados, tendo em
vista que, procedendo de forma diferente, deixaríamos de observar detalhes interessantes ao
trabalho. Conforme lembra Venturi (2006): “ao se estudar um tema em que a relação sujeitoobjeto exija intersubjetividade, há que se lançar mão das técnicas de aplicação de
questionários ou entrevistas” (VENTURI, 2006: 72). A operacionalização desse procedimento
realizou-se por meio de entrevistas com os presidentes e integrantes das tribos de índios, em
que exploramos questões de forma mais ampla.
Tal recurso metodológico acompanhou-se da observação participante, para que as
informações interessantes à pesquisa, opiniões e o próprio cotidiano se revelassem
espontaneamente e a convivência retirasse o caráter perturbador do pesquisador. Segundo
Malinowski (1997), há comportamentos e relações sociais que não devem ser registrados pelo
pesquisador somente por meio de questionários ou dados estatísticos, mas na sua plena
[20]
realidade, compreendida a partir das observações detalhadas e minuciosas, para que
possamos, no interior do enquadramento social, perceber “as realidades da vida humana”
(MALINOWSKI, 1997: 30). Esta importância se dá em virtude de adentrarmos na
cotidianidade dos indivíduos e grupos estudados, preocupando-se, também, com as ações
banais do dia-a-dia que, por vezes, os estudos deixam escapar por as considerarem
desinteressantes:
[...] existem vários fenômenos de grande importância que não podem ser
recolhidos através de questionários ou da análise de documentos, mas que
têm de ser observados em pleno funcionamento. Chamemos-lhes os
imponderabilia da vida real. [...]
Na verdade, se nos lembrarmos que estes fatos imponderáveis mas muito
importantes da vida real fazem parte da verdadeira substância do tecido
social, que são eles que tecem os inúmeros fios que mantêm a coesão
familiar, clânica, comunitária e tribal, o seu significado torna-se claro
(MALINOWSKI, 1997: 31-32).
Sob a análise dos usos do território e das territorialidades8, isto é, o conjunto de
relações dinâmicas que se originam num sistema tridimensional sociedade-espaço-tempo
(RAFFESTIN, 1993), podemos desvendar as dinâmicas que perpassam esses agentes nãohegemônicos, considerando a indissociabilidade dos objetos e ações singularizados em seu
contexto sócio-histórico e espaço-temporal.
Milton Santos (1996a) esclarece sobre a possibilidade dos agentes – homúnculos ou
marionetes – surpreenderem o pesquisador – ventríloquo – e “alcançarem alguma vida,
produzindo uma história inesperada” (SANTOS, 1996a: 19), recebendo vida e importância na
pesquisa pelo próprio pesquisador, desde que o olhar geográfico perceba o “pulsar” do
espaço, revelando suas dinâmicas socioespaciais, por vezes imprevistas. É neste sentido que
Marcos (2006) reflete:
[...] o trabalho de campo enquanto um instrumento de pesquisa dos mais
importantes para a produção do conhecimento geográfico, momento em que
o tema de estudo se desvenda diante dos olhos e obriga a estarmos atentos,
de modo a que nada fuja à investigação. É preciso olhar com profundidade e
8
Entendemos por territorialidade a forma como os indivíduos ou grupos usam o território, a sua organização e a
atribuição de valores e sentidos ao lugar apropriado (GOMES, 2010). Tal apropriação se expressa
(i)materialmente, garantindo a permanência do agente em determinado território. A territorialidade supõe,
portanto, uma qualificação objetiva, seja pela manifestação do poder sobre o território e seus mecanismos –
conjunto de estratégias e ações – estabelecedores, mantenedores e reforçadores deste domínio, seja pelas
relações estabelecidas no cotidiano – econômica, política, social – que supõem vínculos vicinais, de amizade,
ajuda-mútua e reciprocidade, e, ao mesmo tempo, uma apropriação simbólica, qualificando subjetivamente o
espaço.
[21]
observar, sobretudo aquilo que não havíamos considerado antes de sair para
campo (MARCOS, 2006: 106).
Novamente recorremos a Malinowski (1997), ao instruir que o pesquisador não pode
cair na armadilha das ideias preconcebidas, devendo alterar ou até abandonar suas
perspectivas se assim for necessário diante das novas evidências que o trabalho de campo
revele:
Estar treinado e atualizado teoricamente não significa estar carregado de
“ideias preconcebidas”. Se alguém empreende uma missão, determinado a
comprovar certas hipóteses, e se é incapaz de a qualquer momento alterar as
suas perspectivas e de as abandonar de livre vontade perante as evidências,
escusado é dizer que o seu trabalho será inútil (MALINOWSKI, 1997: 23).
Ressaltamos, alicerçados em Gomes (2001), a existência, na Geografia, de uma
dificuldade epistemológica em criar um quadro de análise para a relação entre espaço e
cultura “que ultrapasse o aspecto morfológico, ou melhor, que o associe à dinâmica
socioespacial, sem que precise renunciar ao domínio de legitimidade próprio pertencente à
Geografia” (GOMES, 2001: 101). O desafio metodológico de erigir caminhos, deliberando
aquilo que é relevante na construção do objeto de pesquisa é instigante, mas também árduo,
pois a sua aplicabilidade à pesquisa geográfica necessita da abertura dos horizontes
metodológicos, inclusive disciplinares, pois cremos “que outras solidariedades disciplinares
podem ser estabelecidas por uma microgeografia. [...] Assim, uma abordagem nova indica
também a necessidade de estabelecer novas solidariedades disciplinares” (Ibidem: 112), para
que nos permita ler as ações e seus significados no lugar em que elas foram praticadas, seja na
cidade, no bairro ou na rua.
Hodiernamente, estas pesquisas culturais presentes nos mais variados campos das
Ciências Sociais – Geografia, História, Antropologia e Sociologia –, fazem ressurgir os temas
das festas e folguedos populares9, como podemos ver em recentes trabalhos que abordam a
temática do carnaval. Com relação às tribos de índios de carnaval, alguns importantes
trabalhos já levantaram a temática, como os escritos de Góes (2008) e Mitchell (2002) que
estudaram o Mardi Gras de Nova Orleans. No carnaval brasileiro são escassas as referências a
9
Dentre os vários trabalhos, podemos citar os das historiadoras Flávia de Sá Pedreira, Maria Clementina Pereira
Cunha e Rachel Soihet, dos antropólogos Roberto DaMatta e Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, bem
como dos geógrafos Alessandro Dozena e Carlos Maia.
[22]
estas agremiações10 e em trabalhos acadêmicos na UFRN, encontramos um único trabalho
antropológico, que se restringiu a estudar o “ritual do fogo” da tribo de índios Tapuias. É
interessante observar que o principal incentivador destas agremiações indígenas em Natal,
conforme foi informado pelos entrevistados, o historiador e folclorista Luís da Câmara
Cascudo, foi silente em sua vasta obra quanto aos grupos de índios que desfilam no carnaval.
1.2. UMA ETNOGRAFIA DOS TERRITÓRIOS E LUGARES DAS TRIBOS
Após abordar os objetivos a que se destinou o presente trabalho e os procedimentos
teórico-metodológicos, faz-se importante percorrer os caminhos da pesquisa. Foi
imprescindível recorrer a um importante recurso, utilizado, sobretudo, nas pesquisas
antropológicas: a etnografia. Aqui ela é vista como um instrumento que possibilita o diálogo
entre o agente e o pesquisador, atuando nesta comunicação dialógica que minimiza a
hierarquia e possibilita uma “comunicação não violenta” (BOURDIEU, 2003b).
O que está em jogo é o social e, deste modo, o estudo deve estar pautado em como os
indivíduos são agentes sociais. Dito de outra forma, o importante é a dimensão social das
relações existentes e não o caráter individual das pessoas, construindo-se “a tessitura da vida
social em que todo valor, emoção ou atitude está inscrita” (FONSECA, 1999: 64).
Fazê-la, contudo, foi difícil e requereu muitos cuidados. Em trabalhos etnográficos, o
momento da chegada do pesquisador é fundamental, pois, a primeira entrevista pode “abrir
várias janelas” exploratórias, apontando para uma riqueza de material, mas, por outro lado,
pode recair em profundos obstáculos. Isto depende do “como iniciar” e, neste momento,
vários fatores podem contribuir ou não para uma boa pesquisa etnográfica.
Um primeiro ponto consiste na corporalidade, isto é, como o pesquisador irá “mostrarse” ao outro – interlocutor. Quando me reporto a corporalidade – ou corporeidade – não me
refiro apenas ao aspecto físico do pesquisador (o que pode se tornar um obstáculo
10
As referências aos “índios de carnaval” em sua grande maioria volta-se para os negros vestidos de índios
presentes nos cucumbis, como podemos ver nos trabalhos de Ferreira (2004) e Cunha (2001). Às tribos de
índios, encontramos somente o importante escrito de Katarina Real (1967), que estudou as manifestações
carnavalescas de Recife/PE entre os anos de 1961 a 1965.
[23]
intransponível), mas, sobretudo, ao comportamento, à linguagem e à vestimenta, que
carregam marcas simbólicas:
Do mesmo modo que quando vamos a um dado lugar, em exploração, o
nosso modo de andar naquele local, e de desvendá-lo enquanto coisa real
(feia ou bonita, suja ou limpa, preciosa ou vulgar), depende de nossa relação
com um mapa que é preciso traduzir, entender, interpretar. Sem o mapa não
acharíamos o tal lugar com seus tesouros, mas ele não é de modo algum um
texto fixo ou um código que representa a realidade de forma determinativa
(DAMATTA, 1986: 12).
Encontramos, na pesquisa, um interacionismo simbólico que permeia o campo social
formado entre o pesquisador e seus interlocutores, onde aquele adentra no mundo social
destes. Neste sentido, é importante saber qual a melhor forma de se inserir no universo do
outro, sem, contudo, criar obstáculos que impeçam uma maior aproximação com a pesquisa.
A entrevista produz certa “violência simbólica” – mesmo sem a intenção do
pesquisador – pelo simples fato da posição de superioridade frente ao pesquisado, em virtude
da apropriação do capital cultural. É imprescindível, assim, que o entrevistador reduza ao
máximo essa violência que pode ser exercida, colocando-se disponível ao entrevistado e
ciente de que as pesquisas constituem trocas materiais e simbólicas.
Após a entrada no campo empírico, surge outro percalço que se coloca à investigação
científica: a imparcialidade. O dogma acadêmico do distanciamento do pesquisador ainda é
premissa nas ciências sociais, cujo requisito primordial é a distância entre o investigador e o
objeto de pesquisa, garantindo-se as “condições de objetividade em seu trabalho” (VELHO,
1978: 01), de forma a impedir o envolvimento na pesquisa. Mas a distância, a proximidade e a
familiaridade, como descreve Velho (1980), “são noções que devem ser relativizadas e
colocadas no contexto adequado de discussão” (VELHO, 1980: 15).
Tal dogma, contudo, não merece prosperar na pesquisa, pois entendemos que o
contato é imprescindível, de modo a captar as vivências cotidianas. Ainda nesta perspectiva,
anotamos que tal imprescindibilidade se deve ao fato do investigador adotar uma
subjetividade própria que se expressa através da interpretação por ele dada à realidade
estudada:
A “realidade” (familiar ou exótica) sempre é filtrada por um determinado
ponto de vista do observador, ela é percebida de maneira diferenciada. Mais
uma vez não estou proclamando a falência do rigor científico no estudo da
sociedade, mas a necessidade de percebê-lo enquanto objetividade relativa,
mais ou menos ideológica e sempre interpretativa (VELHO, 1978: 09).
[24]
Neste trabalho, as contribuições dos agentes foram valiosas, pois representou suas
opiniões e experiências, ou seja, interpretações da realidade que, por sua vez, passaram por
outras interpretações pessoais do pesquisador. Esta é a natureza da descrição densa:
interpretações de interpretações que produzem uma versão do real 11. Assim, trajetórias,
experiências e vivências específicas permitem que os grupos e indivíduos de uma sociedade
sejam diferentes, provindas de tradições culturais diversas.
Preferindo um olhar de perto e de dentro, a cidade pôde ser pensada como um lugar de
ações e encontros realizados pelos moradores da urbe, que “em suas múltiplas redes, formas
de sociabilidade, estilos de vida, deslocamentos, conflitos, etc., constituem o elemento que em
definitivo dá vida à metrópole” (MAGNANI, 2002: 15):
Para tanto, é preciso fazer como o antropólogo diante de costumes ou ritos
“exóticos”: deixar de lado uma postura etnocêntrica e observá-los de perto e
em seu próprio contexto, pois se existem é porque possuem um significado
para aqueles que os praticam (MAGNANI, 1998: 19).
Ocorre, todavia, que o caminho, muito embora prazeroso, trilhou-se com alguns
percalços. Um destes “momentos estorvantes” foi a experiência de proceder a etnografia na
tribo de índios Guaracis, no bairro Mãe Luiza. A realidade local me era conhecida somente
através do noticiário e da referência que a população tinha do bairro, porém, eu não havia
adentrado à localidade.
Ao receber o convite pelo presidente da tribo Guaracis, Joselito Xavier, hesitei
alegando que tinha outras atividades. Preferi realizar a entrevista no local de trabalho do
entrevistado.
Ao
entrevistá-lo,
recebi
um
novo
chamado
para
comparecer
ao ensaio da tribo e, antes que eu falasse, o interlocutor tentou mostrar que o bairro Mãe Luíza
não é o que “as pessoas pintam”. O termo utilizado refere-se à estigmatização do bairro
relacionado à contra-imagem de uma cidade, ainda, relativamente ordenada e segura,
contrastada com um local onde impera o tráfico de drogas e a “bandidagem”. Afirmou que
existem problemas, assim como em outros locais da cidade, mas que era tranquilo e, estando
com ele, eu não tinha com o que me amedrontar. Diante disto, resolvi ir ao bairro.
11
A metáfora do concerto de DaMatta (1986) clareia alguns problemas pois indica que “na interpretação e na
exploração não se deseja dissolver os fenômenos, mas tentar apanhá-los no seu curso, no seu episódico
desenvolvimento” (DAMATTA, 1986: 14). E continua: “Músicos repetem uma mesma música, mas sempre de
modo diverso; do mesmo modo que artistas fazem e refazem os dramas que representam no teatro” (Ibidem: 16).
[25]
“Subir o morro de Mãe Luíza”12 foi complicado, por se tratar de uma realidade até
então por mim desconhecida. Utilizando um aparelho de posicionamento – GPS, onde havia
traçado o caminho para a rua onde ocorriam os ensaios, adentrei ao bairro. Primeiramente,
encontrei uma Igreja Evangélica no momento em que se realizava o culto; percebi vários
carros, inclusive alguns importados de marcas japonesas e francesas. Dirigi-me a alguns
metros e pude ouvir o som do surdo e do agogô, característicos do batuque das tribos de
índios. Antes de me direcionar ao local seguindo a sonoridade já conhecida, resolvi estacionar
o meu veículo próximo aos outros carros em frente à Igreja.
Ao encontrar com o presidente, que já estava ensaiando, percebi a felicidade ao verme assistindo. Após conversarmos alguns minutos, ele retornou ao comando da tribo. A
curiosidade de pesquisador não me restringiu a capturar os momentos do ensaio, mas também
de verificar o que ocorria no entorno. Assim, observei uma movimentação intensa de jovens e
adultos numa determinada rua, nas proximidades de onde eu me encontrava.
Neste momento, tive receio em registrar o ensaio com fotos ou vídeos por dois
motivos: ser roubado ou coagido a apagar os dados obtidos. Imaginei que estas pessoas
poderiam pensar que eu seria um policial – o que de fato é verdade – ou um jornalista, e fiquei
bastante apreensivo com a situação.
Quando já se passava uma hora de ensaio, vislumbrei uma situação inusitada: um
jovem estava numa rua paralela dançando e totalmente “fora de si”, talvez pelo efeito
psicotrópico de alguma droga ou bebida. Foi tenso, pois me senti “encurralado”, pelo fato de
não querer atrapalhar o ensaio se resolvesse ir ao outro lado da rua. O jovem aproximava-se e
distanciava-se, enquanto as pessoas não se preocupavam com este “bailado” em plena rua.
Senti-me, diante deste fato, como alguém que se encontrava fora do “pedaço”, por não
reconhecer aquela situação, provavelmente corriqueira no interior do bairro:
Entre uma [o público] e outra [o privado] situa-se um espaço de mediação,
cujos símbolos, normas e vivências permitem reconhecer as pessoas
diferenciando-as, o que termina por atribuir-lhes uma identidade que pouco
tem a ver com a produzida pela interpelação da sociedade mais ampla e suas
instituições (MAGNANI, 1998: 117).
Ao final do ensaio, fui, mais uma vez, recepcionado pelo “anfitrião”. Conversamos por
algum tempo e por já ser bastante tarde, resolvi retornar à minha casa. Quando já estava de
saída, o interlocutor achou melhor me conduzir até onde eu havia estacionado o carro,
12
Frase presente no imaginário popular da cidade, num discurso preconceituoso e pejorativo.
[26]
alegando que não seria interessante sair sozinho pelas ruas do bairro naquele horário, pois eu
poderia ser abordado. Mais uma vez recorro à ideia de “pedaço”, por ser um ponto de
referência sobre o qual as relações se definem e se circunscrevem: “não menos perceptível
que a valorização dos vínculos de coleguismo e vizinhança é a prevenção contra ‘os de fora’,
vistos sempre como os responsáveis por qualquer violação das regras” (MAGNANI 1998:
129). Por não ser do bairro, não ser conhecido e reconhecido pelos “de dentro” através dos
laços de parentesco ou de vizinhança, isto é, por não ter uma base identitária com o lugar, eu
me encontrava como um possível violador das regras intrínsecas àquele “pedaço”, assim, foi
preciso estar acompanhado para legitimar minha estadia.
Se, por um lado, houve percalços que me foram intransponíveis – não que seja a todos,
mas, para mim, no momento da pesquisa, foi preferível não trilhar – por outro, vários
caminhos que se mostraram interessantes e trilháveis. Exemplo disto foi a tribo de índios
Gaviões-Amarelo, onde edifiquei várias amizades.
A primeira entrevista com a presidente da tribo, Zeneide Diniz, ocorreu na residência
dela, que também é a sede da agremiação. Anteriormente, havia realizado um contato e falado
com a interlocutora, alegando que consegui o telefone dela com Valdir, presidente da tribo de
índios Tapuias. Ao adentrar a residência, fui recebido com bastante alegria e o primeiro
questionamento partiu da própria entrevistada: “Você é repórter?”. Esta primeira interação –
chamada por Goffman (2010) de “interação desfocada” – permitiu recolher uma informação
sobre mim, que, embora errônea, reveste-se de uma falsa verdade, pois eu me encontrava
enquanto entrevistador13. É neste sentido que, ao escrever acerca da linguagem corporal das
pessoas que os obrigam a transmitir informações, o sociólogo coloca que o “indivíduo não
pode não dizer nada” (GOFFMAN, 2010: 45). O próximo passo seria passar a uma “interação
focada”, onde se permite um melhor conhecimento de ambos.
No momento seguinte à pergunta parei para pensar qual seria a melhor resposta: eu iria
ocultar minha condição de pesquisador ou deveria expor quais os reais motivos. É
imprescindível, na pesquisa de campo, que o pesquisador atribua princípios éticos ao seu
estudo e, na situação, verifiquei que seria melhor relatar que estava em pesquisa. Foi um
13
“[...] quando indivíduos entram na presença imediata uns dos outros onde não é preciso nenhuma comunicação
falada, eles ainda assim inevitavelmente iniciam uma espécie de comunicação, pois em todas as situações
atribui-se importância a certos assuntos que não estão necessariamente ligados a comunicações verbais
particulares” (GOFFMAN, 2010: 43).
[27]
tempo considerável dispendido às explicações sobre a pesquisa e os objetivos que buscaria
alcançar. Colocar o entrevistado a par dos propósitos da pesquisa é indispensável.
Posteriormente, iniciamos uma conversa acerca do carnaval, da tribo de índios e outros
temas atinentes à pesquisa. Numa breve pausa, foi-me oferecido café com bolo
aprazivelmente com o intuito de estreitar os laços. A interlocutora se mostrou bastante
satisfeita com a “visita” e a conversa caminhou cordialmente. Na verdade, ultrapassamos uma
simples conversa: ela me mostrou fotografias e documentos da tribo. Nesta interação entre o
“eu” pesquisador e o “outro” interlocutor, fomos construindo significados. Cabe lembrar que
interagir é algo dramatúrgico onde as pessoas performatizam as relações, cujas
intencionalidades exigem certa teatralidade (GOFFMAN, 2011).
O ato de oferecer um “café” envolve um caráter moral e exige, por sua vez, uma
resposta também moral, qual seja, a de aceitar o que me foi oferecido. Torno-me obrigado a
preservar a fachada14 (GOFFMAN, 2011), num complexo jogo realizado com o interlocutor
(BOURDIEU, 2003b). Apesar das reclamações pela falta de “dinheiro” para a compra de
materiais, tais como uma simples cola, não impediram que fosse comprado o bolo e outros
alimentos gentilmente ofertados como acompanhamento. Este momento foi importante para a
pesquisa, pois, a avaliação é recíproca e mútua – pesquisador e interlocutor formulam a ideia
do outro –, e formará a base onde se desenvolverá a relação entre pesquisador e pesquisado.
Aqui nos referimos à “ocasião social” de Goffman (2010): pesquisador e pesquisado adentram
em presença imediata, limitado no tempo-espaço, propondo um padrão de comportamento de
ambos.
É nesta ocasião social que o pesquisador deve preservar sua fachada e garantir que a
fachada do interlocutor, e também a sua própria, não seja perdida (to lose face) ou
envergonhada (shamefaced), pois, ocorrendo qualquer destas hipóteses, o encontro tornar-se-á
prejudicado, o que desemboca no prejuízo para a pesquisa15. É o que pensa Goffman (2011)
ao escrever que o “efeito combinado da regra do respeito próprio e da regra da consideração é
14
“O termo fachada pode ser definido como o valor social positivo que uma pessoa efetivamente reivindica para
si mesma através da linha que os outros pressupõem que ela assumiu durante um contato particular. A fachada é
uma imagem do eu delineada em termos de atributos sociais aprovados – mesmo que essa imagem possa ser
compartilhada, como ocorre quando uma pessoa faz uma boa demonstração de sua profissão ou religião ao fazer
uma boa demonstração de si mesma” (GOFFMAN, 2011: 13-14).
15
“Quando uma pessoa realiza a preservação da fachada, junto com seu acordo tácito de ajudar as outras a
realizar a delas, isto representa sua disposição em obedecer às regras básicas da interação social. Eis o símbolo
de sua socialização enquanto um participante da interação” (GOFFMAN, 2011: 37).
[28]
que a pessoa [pesquisador] tende a se conduzir durante um encontro de forma a manter tanto a
sua própria fachada quanto as fachadas dos outros participantes” (GOFFMAN, 2011: 19).
No decorrer das andanças pela agremiação, surgiu-me uma indagação: “A simpatia
entre pesquisador e pesquisado é um problema de pesquisa?”. Este fator subjetivo, passível de
perder o controle, em alguns momentos se mostrou um problema, noutros potencializou o
trabalho realizado. Exemplo disto foi o “ar de reprovação” da tesoureira quando deixei de
filmar o pajé da tribo fazendo a reverência aos jurados, pois o meu interesse foi, justamente,
perceber a recepção pelo júri deste ato reverenciador. A reprovação foi digna do comentário:
“você deixou de filmar a melhor parte do desfile”. E o aprendizado foi este: o que tem
importância para alguém, não necessariamente vai ter o mesmo valor para o outro. Porém, o
próprio fato de me achar dentro do desfile já demonstra que a simpatia entre a minha pessoa e
a presidente – assim como os outros membros – foi boa e oportuna para a pesquisa.
Minha participação no desfile como pesquisador e, sobretudo, “membro” da tribo de
índios Gaviões-Amarelo, inclusive vestindo a camisa da agremiação, pôs à prova a
“neutralidade” imprescindível à pesquisa. Fui questionado quanto a isto, por estar “tomando
partido” pela tribo, sendo partícipe e não mais pesquisador. O intenso processo de
socialização possibilitou a interação ao ponto de se tornar uma “neutralidade relativizada” ou,
como prefiro chamar, uma “neutralidade apaixonante”, perpassando a tênue linha entre razão
e emoção.
A empatia é, pois, imprescindível para uma boa pesquisa! O fato de sermos distintos,
de gerações diferentes e portadores de linguagem, cultura e saberes diversos, pode ocasionar
uma difícil barreira entre o entrevistador e o entrevistado, o que reflete diretamente na
qualidade da entrevista e dos dados coletados. Quanto mais adentrava ao mundo da
agremiação, mais eu passava da situação de “plateia” para a de “bastidores”, conhecendo os
meandros e as peculiaridades da tribo de índios.
Respeitar o modelo cultural e suas nuances – como o simples fato de se “aceitar um
café” – possibilita um melhor diálogo, pois demonstra o respeito pelos significados daquele
dado agente ou grupo, refletindo na importância cultural. Estamos falando de uma relação
horizontal entre pesquisador e interlocutor, geradora de cumplicidade, o que permite
entrevistas fidedignas e com qualidade para a pesquisa.
[29]
1.3. DE QUAL CULTURA ESTAMOS FALANDO?
Hodiernamente, a cultura é bastante debatida na seara acadêmica, não se atendo
apenas à ciência antropológica. A Geografia, ainda no século XIX, já compreendia a
importância cultural para a análise da sociedade. Todavia, congelava-se na materialidade para
o estudo dicotômico do homem-meio. O próprio Sauer (1998), quando trata da paisagem
cultural, compreende-a como formas a partir de obras humanas, e completa afirmando que,
baseado neste entendimento, “em Geografia não nos preocupamos com a energia, costumes
ou crenças do homem, mas com as marcas do homem na paisagem” (SAUER, 1998: 57).
Para os geógrafos alemães, franceses e americanos das primeiras décadas do século
XX, a cultura era compreendida em seu aspecto material, como “um conjunto de artefatos
utilizados pelos homens em sua relação com o espaço” (CLAVAL, 2001b: 22). Esta noção
reificada internalizava uma forma homogênea nos grupos, numa visão global e estática da
sociedade16.
Uma abordagem supra-orgânica17 da cultura não interessa atualmente, dada a
heterogeneidade da sociedade, a coexistência de línguas, etnias, gêneros, posições políticas,
econômicas e sociais diversificadas em seu interior. Além disso, o indivíduo não é um
recipiente passivo determinado por certa cultura – a “força ativa” que fala Duncan (2003) –
absorvida em sua totalidade e somente reproduzida, mas ele é passível de mudá-la. Assim, a
“passagem da descrição de lugares e momentos para uma interpretação de espacialidades e
temporalidades exige a observação sensível e crítica do sítio onde o grupo humano constrói
sua existência” (RATTS, 2003: 41).
16
A presente passagem de um importante texto de Sauer (1998), precursor da geografia cultural norte-americana,
demonstra essa visão materialista e estática da cultura: “a paisagem cultural é modelada a partir de uma
paisagem natural por um grupo cultural. A cultura é o agente, a área natural é o meio, a paisagem cultural o
resultado. Sob a influência de uma determinada cultura, ela própria mudando através do tempo, a paisagem
apresenta um desenvolvimento, passando por fases e provavelmente atingindo no final o término do seu ciclo de
desenvolvimento. Com a introdução de uma cultura diferente, isto é, estranha, estabelece-se um
rejuvenescimento da paisagem cultural ou uma nova paisagem se sobrepõe sobre o que sobrou da antiga”
(SAUER, 1998: 59).
17
“O supra-orgânico implica uma visão de homem como relativamente passivo e impotente. Se o indivíduo é
considerado atomístico e isolado, então as forças aglutinadoras entre os homens devem ser externas a eles. Os
supra-organicistas não entendem que ‘a cultura é o trabalho da humanidade’; temos a impressão de que ela é
autônoma só porque é anônima’” (DUNCAN, 2003: 77).
[30]
Devemos, no entanto, reconhecer a importante contribuição daqueles teóricos dos
séculos XIX e XX, mas transpor a visão de gênero de vida para a análise dos papéis da
sociedade, pois, no “mundo urbano e industrial, faz-se necessário executar estudos mais
refinados: a descrição dos papéis permite isto” (CLAVAL, 2001a: 51). Tal descrição, seja das
pessoas, empresas, instituições ou grupos, nos auxilia a compreender e analisar o conjunto de
teias de significados existentes no meio social. Cosgrove (2000) salienta que o geógrafo
cultural busca compreender a relação entre os homens e o mundo a partir da cultura, lidando
com a interrelação e ações dos grupos humanos, reconhecendo o pluralismo cultural e
interessado em submeter as culturas modernas “à análise crítica e o reconhecimento de que
elas são compostas de uma pluralidade de vozes que constroem, de formas diferentes, o
significado para o mundo” (COSGROVE, 2000: 53).
A cultura é uma realidade mutável, “concebida como o conjunto daquilo que os
homens recebem de herança ou que inventam [...]; ela é feita de tudo aquilo que é
transmissível” (CLAVAL, 2002: 141). Seguindo o mesmo raciocínio, Santos (1987) entendea como uma “forma de comunicação do indivíduo e do grupo com o universo, é uma herança,
mas também um reaprendizado das relações profundas entre o homem e o seu meio, um
resultado obtido através do próprio processo de viver” (SANTOS, 1987: 61). A postura
teórica destes geógrafos é aquela já trazida por Raymond Williams (1992), para quem a
cultura consiste num sistema de signos que transmite, reproduz, experimenta e explora uma
ordem social, encontrando-se presente nos sistemas sociais, nos campos discursivos dos
grupos que compõem a sociedade. Esclarecedora é a compreensão de Cunha (2001) ao filiar
tradição, tradução e cultura:
As tradições, afinal, como todos os elementos da cultura, são parte dos
repertórios gestuais e simbólicos disponibilizados para diferentes sujeitos
pelo hábito e pelas linguagens conhecidas. Elas se traduzem a cada
momento, adquirindo significados novos em diferentes temporalidades,
situações, lugares e dependendo de quem as mobilize para expressar seus
próprios valores (CUNHA, 2001: 293).
Esses traços culturais podem ser aceitos, rejeitados ou modificados. Portanto, a cultura
“não é vivenciada passivamente por aqueles que a recebem como herança” (CLAVAL, 2001a:
13), podendo assumir novas significações, comportando, assim, a atividade inventiva do
homem com a inserção de elementos novos. Daí porque concordar com Williams (1992) ao
perceber que a cultura é ordinária – da ordem de todos, é o modo de vida cujas práticas são
[31]
dotadas de sentidos18 – e constitui um conjunto de significações, que devemos apreender na
análise geográfica dos fenômenos.
Por essa capacidade de mutação e diante da diversidade cultural encontrada na
sociedade devemos ter em mente que a “cultura” tem limites indefinidos, sendo construída
“socialmente e, portanto, requer explicação e interpretação social e histórica” (BURKE, 1989:
21). O historiador a define, resguardando-se dos limites ao abordar a conceituação, como “um
sistema de significados, atitudes e valores partilhados e as formas simbólicas (apresentações e
objetos artesanais) em que eles são expressos ou encarnados” (BURKE, 1989: 25).
Tal acepção de Burke (1989) leva em conta o cotidiano a partir das construções
culturais (artefatos) e as formas de comportamentos (apresentações) e sugere que este
cotidiano é consumido através de produção e criação, imprimindo uma significação aos
objetos, ao que ele chamou de bricolage, isto é, “a prática de fazer as coisas por si próprio”
(CLAVAL, 2001a: 303)19.
Verificamos que é possível um estudo da cidade e do urbano a partir da perspectiva
cultural em Geografia, pois as várias culturas existentes na sociedade espacializam suas
dinâmicas na urbe. Neste sentido, “[...] a cultura – entendida como o conjunto de saberes,
técnicas, crenças e valores – é vista como associada à vida cotidiana e re-elaborada
constantemente no seio das relações sociais. A cultura é ao mesmo tempo um reflexo, uma
mediação e uma condição social” (CORRÊA, 2003a: 181).
O espaço carrega a marca da cultura e serve de matriz cultural, contribuindo “para a
transferência, de uma geração para outra, dos saberes, crenças, sonhos e atitudes sociais”
(CLAVAL, 2002: 146), funcionais e/ou simbólicas provindas do passado e impregnadas de
valores a serem transmitidos:
[...] paisagem é uma marca, pois expressa uma civilização, mas é também
uma matriz porque participa dos esquemas de percepção, de concepção e de
18
Segundo Claval (2001), a reconstrução da geografia cultural esboçada no início dos anos 1970 manifesta uma
outra forma de “fazer geografia” ao constatar que “os lugares não têm somente uma forma e uma cor, uma
racionalidade funcional e econômica. Eles estão carregados de sentido para aqueles que os habitam ou que os
frequentam” (CLAVAL, 2001a: 55).
19
O termo bricolage foi, primeiramente, cunhado por Lévi-Strauss (1989), n’O Pensamento Selvagem: “O
bricoleur está apto a executar um grande número de tarefas diversificadas porém, ao contrário do engenheiro,
não subordina nenhuma delas à obtenção de matérias-primas e de utensílios concebidos e procurados na medida
de seu projeto: seu universo instrumental é fechado, e a regra de seu jogo é sempre arranjar-se com ‘meioslimites’, isto é, um conjunto sempre finito de utensílios e materiais bastante heteróclitos, porque a composição do
conjunto não está em relação com o projeto do momento nem com nenhum projeto particular mas é o resultado
contingente de todas as oportunidades que se apresentaram para renovar e enriquecer o estoque ou para mantê-lo
com os resíduos de construções e destruições anteriores” (LÉVI-STRAUSS, 1989: 32-33).
[32]
ação – ou seja, da cultura – que canalizam, em um certo sentido, a relação de
uma sociedade com o espaço e com a natureza” (BERQUE, 1998: 85).
É, portanto, nesta relação da sociedade no/com o espaço que compreendemos a
dinâmica das tribos de índios do carnaval natalense, considerando indissociável do espaço a
inscrição de uma identidade territorial20 formada por processos inconscientes e em
permanente
construção
(HALL,
2003),
cujas
transformações
espaciais
provocam
questionamentos identitários, com a necessidade de reformulá-los ou reconstruí-los sobre
novas bases. É possível, neste prisma, perceber como os sujeitos constroem e reivindicam
identidades. E, nesta discussão, os geógrafos “se interessam particularmente pela identidade
dos lugares e pelos papéis que eles desempenham na formação de consciências individuais e
coletivas” (BOSSÉ, 2004: 158).
Cabe-nos responder a pergunta que iniciou o tópico, “de qual cultura estamos
falando?”. Como vimos, a cultura é ordinária e presente na sociedade. Se, por um lado, existe
uma cultura de massas, cujo movimento vertical tende à homogeneização social, não se
preocupando com as diferentes realidades dos lugares, por outro, existe uma cultura resistente
a esta tentativa de imposição hegemônica que Santos (2008) denominou de cultura popular:
[...] exerce sua qualidade de discurso dos ‘de baixo’, pondo em relevo o
cotidiano dos pobres, das minorias, dos excluídos, por meio da exaltação da
vida de todos os dias. Se aqui os instrumentos da cultura de massa são
reutilizados, o conteúdo não é, todavia, ‘global’, nem a incitação primeira é
o chamado mercado global, já que sua base se encontra no território e na
cultura local e herdada (SANTOS, 2008: 144).
Santos (2008) acrescenta que a cultura popular é gerada a partir das relações de
vizinhança, valorizando-se a experiência da escassez, da convivência e da solidariedade que
integra o território dos pobres com seu conteúdo humano21. Nestas relações vicinais,
conforme Santos (1996a), não devemos apreender tão somente as relações econômicas, mas a
20
Importante anotar a exímia observação de Gomes (2010), ao colocar que o que importa ao estudo geográfico
não é perguntar “o que é identidade territorial?”, mas o que significa, em um dado momento ou numa
determinada situação, manifestar uma solidariedade construída em torno de uma vizinhança ou de um espaço
que qualifica as pessoas como semelhantes, ou seja, a significação que essa contiguidade espacial ganha dentro
de um contexto específico, e é isso o que estamos querendo aqui.
21
Cunha (2001) alerta ao perigo em adotar a designação de “cultura popular” para um conjunto heterogêneo e
tão diversificado. A historiadora afirma que se “há algo que nos autorize a designá-los assim será apenas a
necessidade transitória de delimitar um certo universo social como foco de interesse, descartando tudo aquilo
que não caiba nessa imagem” (CUNHA, 2001: 298). Tal aviso se dá pela utilização do termo como uma
qualificação, instrumento de análise ou caracterização dos pobres. Ao utilizar neste sentido de caracterizar os
“menos favorecidos” estaremos “reiterando o mesmo tipo de discurso excludente que tratou de homogeneizar
sob esse rótulo tudo aquilo que era visto como inferior, atrasado ou – na versão mais positiva – ingênuo ou
infantil, ignorando suas diferenças internas e suas intenções” (CUNHA, 2001: 298).
[33]
totalidade das relações que este vínculo engendra. As pessoas reunidas, no sentido do religare maffesoliano, criam cultura e, de forma paralela, criam, também, “uma economia
territorializada, [...] um discurso territorializado, uma política territorializada” (SANTOS,
2008: 144). E, para não cairmos no discurso qualificador de uma cultura popular enquanto
instrumento que caracteriza os de baixo (CUNHA, 2001), apontaremos no trabalho as
diferenças, conflitos e intenções que, internamente, permeiam o carnaval das tribos de índios.
Não é outro o entendimento de Cavalcanti (2006) sobre o carnaval:
[...] a natureza ambivalente e tensa de toda troca social, sempre a um só
tempo, embora em graus muito diversos, permeada de acordo e conflito.
Com isso, o carnaval revela também, com especial clareza, a importância das
passagens e mediações na vida social, iluminando o papel dos mediadores na
tessitura de redes de relações extremamente complexas. São esses atores
sociais que, com abertura e criatividade, agenciam múltiplos códigos e
articulam o conjunto vivo que desemboca anualmente num desfile
(CAVALCANTI, 2006: 18).
Os símbolos produzidos por essa cultura popular portam a verdade da existência e
revelam a sociedade em seu movimento, contrariamente àqueles da cultura de massas,
voltados para o mercado e ideologicamente implantados na sociedade22, cuja linguagem deste
espetáculo carnavalesco é constituída por “signos da produção reinante que são ao mesmo
tempo o princípio e a finalidade última da produção” (DEBORD, 2003: 10). Os signos da
produção relatados por Debord (2003) são globalizados pelo moderno sistema de produção
cultural, deveras global e dinâmico, desenvolvido pela indústria cultural, e têm como
finalidade manter predominante a função de produção/distribuição de massas e suplantar as
práticas de criação ligadas aos bens e manifestações locais (como, por exemplo, as tribos de
índios do carnaval natalense).
Se, por um lado, a moderna cultura urbana, que valoriza o mercado e o consumo
globalizado, tendendo a uma homogeneização da sociedade – pelo menos para aqueles que
podem adquirir os produtos globais de consumo – e ao fechamento (ou até exclusão) dos usos
deste mercado por alguns grupos e agentes (as camadas pobres), por outro, encontramos neste
mesmo meio social outras expressões culturais que, paradoxalmente, conduzem-nos a um
produto cultural nascido nos de baixo, que nos permite considerar a cultura urbana e a cidade
22
Se pensarmos em cultura de massa no carnaval, rapidamente somos reportados ao carnaval elétricos baianos
ou das luxuosas escolas de samba cariocas. Não que a espontaneidade e a convivência solidária estejam ausentes
dessas manifestações momescas, mas que o capitalismo já se encontra impregnado e ditando as regras do jogo,
conforme podemos ver em inúmeros trabalhos acadêmicos que discorrem sobre a temática.
[34]
como realidades permeadas por inúmeras culturas; os quais são, verdadeiramente, cidades
dentro de uma cidade.
Sabemos do perigo em se cair na armadilha de uma visão dicotômica e maniqueísta do
carnaval “tradicional” das tribos de índios de um lado e do carnaval “moderno” de outro,
posto que os indivíduos que participam da cultura popular podem ser os mesmos que aderem
à cultura de massas. Não pretendemos fazer um discurso “essencializante” da cultura popular,
mas demonstrar que o devir da História criou um mercado carnavalesco de bens simbólicos,
normatizado e politizado, mas que guarda em seu cerne o aspecto popular do carnaval.
Também não devemos dicotomizar cultura popular e cultura de elite – próximo do modelo de
Redfield: “pequena tradição” e “grande tradição” – pois aquela, dada a informalidade, é aberta
a quem quiser participar, sejam aqueles das classes populares quanto os mais abastados
(BURKE, 1989).
No processo de produção do carnaval, os agentes que participam das tribos de índios
experienciam vivências coletivas, produzindo um conhecimento e uma cultura territorializada.
É neste sentido que Santos (1996a) afirma a existência de um novo debate promovido pelos
pobres, seja silencioso ou ruidoso:
É assim que eles reavaliam a tecnoesfera e a psicoesfera, encontrando novos
usos e finalidades para objetos e técnicas e também novas articulações
práticas e novas normas, na vida social e afetiva. [...]
Diante das redes técnicas e informacionais, pobres e migrantes são passivos,
como todas as demais pessoas. É na esfera comunicacional que eles,
diferentemente das classes ditas superiores, são fortemente ativos (SANTOS,
1996a: 326).
É, portanto, no estudo do cotidiano, que atentamos para uma compreensão do conceito
de cultura enquanto uma categoria que nos permite entender o que ocorre na sociedade, de
modo a interpretar a vida social. A concepção de “cultura” tem em seu sentido “um mapa, um
receituário, um código através do qual as pessoas de um dado grupo pensam, classificam,
estudam e modificam o mundo e a si mesmas” (DAMATTA, 1986: 123). Tal código reside
dentro e fora do agente, pois não se trata de uma simples escolha do indivíduo, tampouco é
algo dado pela sociedade.
A dinâmica da cultura comporta a capacidade inventiva do homem, a forma como as
relações sociais são construídas, por ser portadora de códigos que permitem aos indivíduos se
relacionarem.
[35]
1.4. A FIGURA DO ÍNDIO NO CARNAVAL: COMO SURGIU?
É, no mínimo, curioso discutir a presença do índio no carnaval. Sabemos que o Brasil
é um país de proporções continentais e que abrange mais de 230 povos indígenas, sendo,
conforme o censo do IBGE, no ano de 2010, aproximadamente 817 mil pessoas e mais de 180
dialetos.
Diante dessas informações, poderíamos imaginar que os índios carnavalescos surgiram
no Brasil, tratando-se de uma representação genuinamente brasileira e indígena. Inclinamos,
todavia, a pensar de modo diverso. Tentaremos, no presente tópico, imiscuir acerca da
presença dos índios no carnaval, ressaltando, porém, que não é nossa pretensão dizer e crer a
“verdade” destes índios carnavalescos, podendo existir outras orientações com fontes,
também, seguras.
Vários estudiosos do carnaval retratam o “homem selvagem” presente nas fantasias
carnavalescas da Idade Média. Conforme Ferreira (2004), a fantasia deste homem selvagem
“se referia a um personagem bastante conhecido na literatura medieval que, dizia-se, vivia no
fundo das florestas, cercado de animais selvagens, com os cabelos desgrenhados e o corpo
coberto de pelos” (FERREIRA, 2004: 31).
O próprio Boeuf Gras parisiense, antigo evento popular apropriado pela elite francesa
que assumiu o papel da grande tradição carnavalesca de Paris, tem a figura do sauvage, que
vai à frente do boi, com um cocar na cabeça, saia de penas e tacape na mão. Segundo Ferreira
(2004), o selvagem do carnaval francês “possui forte semelhança com o ‘índio de cordão’
brasileiro” (FERREIRA, 2004: 293). Góes (2008) destaca a presença mesma do índio no Boi
Gordo: “Na iconografia do desfile existente (a maioria em gravuras), é recorrente o boi ter
como acompanhantes dois indivíduos vestidos de índio (selvagens) com saiote e coroa de
plumas” (GÓES, 2008: 52).
O carnaval de Nova Orleans guarda algumas semelhanças com a festa brasileira, entre
as quais, a presença do índio. Para Mitchell (2002), existem vários grupos conhecidos por
“Índios do Mardi Gras” ou “índios negros”, desde o final do século XIX. As tradições do
surgimento destas tribos carnavalescas remetem a negros que se vestiam de índios.
Referenciando-se em Michael Smith – também estudioso do carnaval orleanês –, Mitchell
[36]
(2002) argumenta que há uma ligação aceitável dos índios do carnaval de Nova Orleans com
Búfalo Bill23, que passou uma temporada naquela cidade em meados da década de 1880.
De igual forma, Góes (2008), partindo da hipótese de outro estudioso do Mardi Gras,
David Elliot Draper, coloca que os índios do carnaval orleanês tiveram como inspiração os
shows do Oeste Selvagem de Búfalo Bill. Todavia, é esclarecedora e importante a afirmação
de Mitchell (2002): “Até essa afirmação pode ser exagerada, pois negros se fantasiam de
índios em muitos lugares, no Caribe. Existem esses ‘índios’ em Trinidad, na Bahia e em
Cuba” (MITCHELL, 2002: 51).
Assim como Michael Smith considera que “a tradição dos índios do Mardi Gras de
New Orleans é provavelmente irmã, e não filha, da tradição pancaribenha” (SMITH apud
MITCHELL, 2002: 51), também declinamos para a concepção de que a presença indígena no
carnaval brasileiro teve um surgimento próprio e independente, mas que, tampouco, pode ser
vista como única representação do índio nas festas carnavalescas. Da mesma forma, expõe
Cunha (2002a):
[...] as tribos do Mardi Gras, com seus grupos organizados de negros
vestidos de índios, rituais de violência e outras práticas centradas no
princípio do desafio, teias de identidade e solidariedade, são
irremediavelmente semelhantes a outras daqui, blocos e cordões que
pensávamos estar na base de uma originalidade sambista e mestiça que só a
nós pertencia (CUNHA, 2002a: 16).
Mitchell (2002) coloca que os negros de Nova Orleans, mantidos à margem da
sociedade, mostram “seu orgulho ao assumir o disfarce de outro grupo marginalizado, que
era, apesar disso, celebrado como bravos guerreiros que resistiam à invasão dos brancos”
(MITCHELL, 2002: 64). Próximo desta leitura da sociedade orleanesa, Ferreira (2004)
escreve que os cortejos, enquanto uma das várias expressões características dos negros,
presentes desde o século XIX, “se destacariam desde cedo como uma das mais fortes
manifestações permitidas aos escravos” (FERREIRA, 2004: 284), servindo “para articular
seus contatos com as culturas dos brancos e abrir espaço para suas folias carnavalescas”
(ibidem: 284). Tributamos da consideração de Góes (2008) de que:
É fundamental partirmos da premissa de que, quando falamos dos índios do
carnaval, estamos nos referindo a uma representação, a uma idealização,
23
Búfalo Bill foi um caçador de búfalos norte-americano que ficou conhecido por estrelar o show sobre o Oeste
Selvagem na segunda metade do século XIX. Ele chamava-se William Frederick Cody e nasceu no estado de
Iowa.
[37]
isto é, a uma reinvenção do sujeito americano nas celebrações
carnavalescas; um índio que porta uma coroa de penas. O curioso é que
tanto nos Estados Unidos da América quanto no Brasil a presença do índio
carnavalesco se destaca de forma vigorosa no seio das comunidades negras
(GÓES, 2008: 125).
Ao pensarmos nas tribos de índios do carnaval natalense, não podemos afirmar que
elas são provenientes de negros referenciando o índio genérico dos pintores europeus na
época da colonização americana, entretanto, não devemos desconsiderar certa relação
afrodescendente com a representação do índio no carnaval, sem, contudo, essencializar o
fenômeno. Para Ferreira (2004), as fantasias de índios representados pelos negros nas
congadas e cucumbis eram aquelas presentes nas pinturas europeias, de um “índio idealizado,
misturando elementos das diferentes culturas indígenas presentes nas Américas”
(FERREIRA, 2004: 291), simbolizando uma figura genérica. Este fato se dá, conforme
Ferreira (2004), pela ausência do contato entre os negros e os silvícolas. Similarmente, em
relação ao carnaval carioca, Cunha (2001) argumenta:
Índios, batuques e ‘retrocesso’ evidenciam um olhar negativo e temeroso
sobre o mundo das tradições. Nas diferentes festas, no entanto, variando de
tempo e lugar, índios de velhas folganças podiam ser brancos pintados a
urucum para representar a conquista portuguesa em cima de elaboradas
alegorias montadas em carroças, mas também participantes de reinados de
congos patrocinados por seus próprios senhores, devotos de Nossa Senhora
do Rosário – que não lhes pareciam, afinal, tão ferozes. Podiam ser também,
claro, membros da Tenentes do Diabo de 1881, pensando que traziam
Veneza para a Corte tropical. Aquilo que foi tomado como sinal inequívoco
de má origem, assim, não fazia parte apenas de uma ‘herança’ africana – e
por essa mesma razão é preciso cuidado para não reduzi-la a uma genérica
prática de resistência dos dominados ou expressão de uma cultura unívoca e
fundamentalista (CUNHA, 2001: 296).
No Rio de Janeiro, por exemplo, Meyer (2001) fala de um carnaval de rua paralelo,
cujos negros “botavam cortejos na rua, trazidos nas lembranças, os cucumbis, com negros
vestidos de índios, e os ranchos, reminiscências de pastoris, ternos de reis, coroações de reis
congos” (MEYER, 2001: 179). Segundo Cunha (2001), nas apresentações, “os cucumbis
desenrolavam um enredo que os folcloristas consideraram em tudo semelhante a outras
formas consagradas em diversas partes do país – como as congadas, caboclinhos, caxambu,
caiapós, maracatu ou quilombo” (CUNHA, 2001: 41).
Lara (2002) nos fornece importantes pistas de que danças e apresentações semelhantes
às das tribos carnavalescas de Natal já existiam em vários festejos no século XVIII, como, por
[38]
exemplo, os caboclinhos pernambucanos, formado por grupos indígenas que “ocupavam
lugares similares àqueles dos africanos” (LARA, 2002: 77), que homenagearam o mártir São
Gonçalo Garcia, em 1745. A historiadora verifica a presença de pequenos caboclos no arraial
da Conceição, em Minas Gerais, no início do século XIX, desfilando com animais entre os
participantes.
Ferreira (2004) remete a representação indígena presente no carnaval aos cordões
carnavalescos e cucumbis, denominado pelo estudioso do carnaval de “cordões tranquilos”,
presentes na folia carioca desde finais do século XIX, que foram desenhados por Angelo
Agostini em seu quadro Carnaval de 188124. Tanto Ferreira (2004) quanto Cunha (2001)
trazem importantes definições destes grupos no que concerne às vestimentas e adornos:
As vestimentas dos “índios” que desfilavam nos grupos carnavalescos
populares do Rio de Janeiro tinham pouca semelhança com a indumentária
usada pelos silvícolas brasileiros. Escudos africanos e representação de
animais empalhados eram comuns nas fantasias (FERREIRA, 2004: 292).
As fantasias envergadas pelos participantes do cucumbi eram também
bastante características: para os índios, círculos de penas nos joelhos,
cinturas, braços e pulsos; cocares e plumas com palas vermelhas, colares de
miçangas, corais e dentes. [...] Cobras, jabutis ou lagartos, às vezes vivos,
outras empalhados, adornavam o feiticeiro e evidenciavam seu poder de
controlar a natureza25 (CUNHA, 2001: 42).
O que importa é compreender que estes cordões tinham três importantes referências:
presença de negros vestidos de índios, batuques com instrumentos percussivos e o estandarte
com o nome do grupo carnavalesco. Moraes Filho (2002), em importante obra, nos traz a
seguinte definição: “[...] grupo de negros, vestidos de penas, tangendo instrumentos rudes,
dançando e cantando, que, nos dias de festas populares, percorre as ruas das grandes cidades e
pequenos povoados, associando-se destarte aos nossos folguedos nacionais” (MORAES
FILHO, 2002: 141)26. Inicialmente, conforme o autor, os cordões eram constituídos de negros
africanos, cuja denominação de cucumbis reservava-se aqueles “de face lenhada e nariz
deformado por uma crista de tubérculos” (ibidem: 141), enquanto que os provenientes das
24
O quadro foi publicado na Revista Ilustrada, ano 6, n. 241, 1881.
Cunha (2001) traz, também, a descrição dos índios dos cordões pelo folclorista Luiz Edmundo: “com vastos
cocares de penas longas e coloridas, emoldurando rostos cor de canela, pintados a urucum, brincos de metal e
colares de vidrilho; na boca sempre traziam um apito de barro, por onde silvam, aos pulos; traziam atravessando
nas costas um lagarto seco, uma serpente ou uma pele dura de jacaré” (CUNHA, 2001: 177).
26
“O vestuário geral consiste em círculos de vistosas e compridas penas aos joelhos, à cintura, aos braços e aos
punhos, rico cocar de testeira vermelha, botinas de cordovão enfeitadas de fitas e galões, calça e camisa de meia
cor de carne, e ao pescoço das mulheres e homens, miçangas, corais e colares de dentes, dando uma ou mais
voltas” (MORAES FILHO, 2002: 144).
25
[39]
demais províncias os chamava de congos. Quanto às tribos de índios carnavalescas, não
encontramos registro nas páginas da importante obra de Moraes Filho (2002), talvez porque,
na época, estes grupos ainda não fossem autônomos em relação aos cucumbis.
Tais referências são encontradas nas tribos de índios do carnaval de Natal atualmente,
sobretudo o estandarte. Havia a presença de animais “vivos” nas agremiações indígenas da
cidade, porém, foi proibido após a regulamentação do carnaval local em 2008. Do ponto de
vista folclórico, Real (1967) define interessantemente as tribos de índios:
As tribos de índio saem com uma lancinha na mão direita e um escudo na
mão esquerda. Não conduzem arco e flecha (preaca) como os Caboclinhos
recifenses. Vestem camisas de cetim, […] com um “papo” (um pequeno
escudo) no meio, das cores da Tribo. Algumas usam vistosos cocares de
pena de garça branca, em vez de penas de ema, como é o caso nos
Caboclinhos. Todas as Tribos de índio se pintam de tinta vermelha (porque
são “peles vermelhas”) e apresentam uma série de danças complexas e
interessantíssimas, dentre as quais sempre aparece o tema de “morte e
ressurreição” (REAL, 1967: 113).
Real (1967) informa que estas agremiações indígenas são “a presença da Paraíba no
carnaval do Recife” (REAL, 1967: 113). Mário de Andrade, em brilhantes trabalhos sobre as
manifestações culturais brasileiras27, frutos das pesquisas etnográficas realizadas entre os anos
de 1927 e 1929, surpreendentemente, deixou de registrar as tribos de índios. É curioso o fato
de haver sido acompanhado por Câmara Cascudo em suas andanças por terras potiguares, na
segunda viagem etnográfica – que durou entre novembro de 1928 e fevereiro de 1929. Assim,
se, de fato, as tribos de índios de carnaval tiveram seu “início” nos anos 1920, em conversas
realizadas entre o folclorista e Augusto Brasil, por qual motivo o intelectual potiguar deixaria
de mencionar esta manifestação carnavalesca ao amigo Mário de Andrade?
Identificamos nos índios do carnaval de Natal um híbrido de vários folclores, como a
presença do caçador, muito parecido com aquele dos ursos recifenses: “um tipo de folião ou
palhação, que conduz uma velha espingarda e dá tiros cada vez que parece que o 'urso' vai
escapar” (REAL, 1967: 122). A tribo de índios Guaranis, de Macaíba, parece ter
“incorporado” a figura do folclore la ursa, ao introduzir em sua apresentação a figura do urso
de carnaval, fato que me pareceu bastante inusitado.
A dramatização da morte e ressureição, representada pela luta do caçador com os
índios, também nos remete às congadas africanas e aos cucumbis. De acordo com Lara
27
Dentre as várias obras, destacam-se: O turista aprendiz, Na pancada do Ganzá (não finalizada) e Macunaíma.
[40]
(2002), “os cucumbis dançavam, no entanto, um balé que encenava a morte e a ressurreição,
pelo feiticeiro, do príncipe do Congo – trama que incluía ainda uma luta entre tribos rivais,
com guerreiros armados com arcos e flechas” (LARA, 2002: 92)28. A história contada por
estes grupos carnavalescos “representa um cortejo de príncipes, princesas, feiticeiros,
embaixadores de outras nações africanas e o povo, levando para o rei do Congo seu filho
recém-circuncidado” (CUNHA, 2001: 41-42).
Muito embora não tenhamos verificado a loas – versos recitados pelo cacique – na
maioria das tribos de índios carnavalescas, uma das agremiações mais tradicionais, os “índios
Potiguares”, ainda recita esta espécie de poesia popular, ao que Real (1967) chamou de
folclorização de literatura.
Outro caso recorrente no carnaval potiguar é a referência à originalidade dos grupos
indígenas carnavalescos, como podemos observar na nota d’A República, ainda em 1938:
“É talvez, o mais original dentre os blocos que se apresentarão no carnaval
deste anno.
Os índios [Guaranys] a exemplo das outras vezes, merecem realmente a
nossa admiração e os nossos aplausos. Com as suas indumentárias de penas,
seus cocares, arcos e flechas, eles dão realmente a impressão de legítimos
habitantes do Brasil primitivo [...]”29
Importante colocação de Cunha (2001) expressa o nosso entendimento com relação às
tribos de índios de carnaval. A historiadora, ao afirmar que os cucumbis desapareceram na
última década do século XIX, pergunta sobre o que explicaria a sobrevida dos índios de
carnaval. Em seguida, ela nos dá a resposta:
Se não queremos enveredar pela resposta fácil que associa essas tradições à
‘resistência’, podemos tomá-la como mote para um outro tipo de
aproximação com o modo como tradições (nada imutáveis) operam no
interior do tenso movimento da história. [...]
É possível que a manutenção dessa figura destacada de seu conjunto
original, tenha significado uma espécie de estratégia dos adeptos da
brincadeira para mantê-la ‘viva’ em alguns de seus aspectos, quando a dança
completa era crescentemente malvista e perdia os apoios no mundo dos
senhores (CUNHA, 2001: 297).
28
“A morte do príncipe, atacado por tribo inimiga que se veste de penas, como os índios do Brasil, dá origem a
uma série de peripécias, encerradas pela ressurreição do jovem por intermédio da mágica do feiticeiro”
(CUNHA, 2001: 42).
29
A República de 27.02.1938.
[41]
As tribos de índio do carnaval podem ser vistas, portanto, como estratégias de
sobrevivência de uma cultura popular, deixando visíveis pequenos grupos marginalizados pela
globalização. É ação política a partir de uma manifestação cultural que ressignifica um
passado indígena.
1.5. APRESENTANDO OS CAPÍTULOS
A presente dissertação, em seu primeiro capítulo, analisará o desenvolvimento do
carnaval natalense, relacionando-o com o crescimento da cidade e com a participação dos
agentes públicos e privados. Iniciaremos com uma discussão historiográfica sobre o carnaval
em Natal. Posteriormente, percorreremos os caminhos das tribos de índios, aliados aos blocos
carnavalescos que animaram as festividades momescas dos papa-jerimuns30, bem como a
mudança dos itinerários festivos para o interior do estado do Rio Grande do Norte.
Finalmente, concluiremos o capítulo com a institucionalização do carnaval na cidade e o
“polo carnavalesco”31 do bairro Ribeira, onde atualmente ocorre o desfile das tribos de índios,
traçando um paralelo com os outros carnavais do estado, refletindo sobre a cultura popular e a
cultura de massas.
No segundo capítulo, abordaremos a dimensão econômica e política do carnaval das
tribos de índios na capital potiguar, com o recorte estabelecido para o ano de 2012.
Primeiramente, analisaremos as relações econômicas do carnaval das tribos que, embora
residual e movimentando um capital mínimo – se considerarmos uma visão macro e
compararmos com outros carnavais brasileiros – é imprescindível para que as tribos desfilem.
Posteriormente, esquadrinharemos as tessituras políticas existentes na festa momesca, de
modo a compreender o campo político que envolve vários agentes, seus ajustes e conflitos.
No último capítulo analisaremos as territorialidades das tribos de índios projetadas no
espaço citadino. Primeiramente, faremos um estudo das apropriações e usos espaciais no
“espaço do carnaval”, durante os dias do desfile, verificando a nova ordem dada aos objetos
30
Gentílico daqueles que nascem em Natal/RN.
O sentido de “polo” não se relaciona à discussão teórica em Geografia, mas consiste nos polos multiculturais
do Carnaval de Natal – denominação dos locais onde ocorre o carnaval institucionalizado e subsidiado pela
Prefeitura de Natal.
31
[42]
geográficos e as territorializações dos vários agentes no lugar destinado ao carnaval
tradicional da Ribeira. Seguidamente, adentraremos na apropriação das ruas por estas tribos
carnavalescas, para compreender as microterritorialidades produzidas. E, finalizando o
capítulo, estudaremos as sociabilidades frutos das relações cotidianas destas agremiações com
o entorno do bairro, valorizadas pelos vínculos vicinais, de amizade e reciprocidade que
conduzem estas práticas citadinas.
[43]
2. A ORIGEM E O ATUAL DO CARNAVAL NATALENSE
O carnaval é uma importante festa, constituindo símbolos diversos e tornando-se, ao
longo do tempo, uma festividade em múltiplos planos, pois são vários carnavais que existem
no interior desta comemoração festiva. Os festejos carnavalescos agregam uma infinidade de
formas e intenções, desde uma simples brincadeira em família até a reprodução do capital em
grande escala. Assim como verificamos essas várias possibilidades, também encontramos
inúmeros estudos em torno do carnaval, seja abordando as brincadeiras de rua, seja
priorizando os aspectos macroeconômicos.
Discutir como se originou o carnaval é matéria difícil e contém inúmeros problemas.
Alguns estudiosos atribuem à Igreja Católica que, no século XI, instituiu o período da
Quaresma para os fiéis se dedicarem-se ao espírito em detrimento à própria vida em sociedade
e, diante desta privação, que perdura quarenta dias, as pessoas forjavam festas que antecediam
esta época quaresmal, consideradas festas pagãs no qual a sociedade se voltava para danças,
brincadeiras e bebedeiras (FERREIRA, 2004):
Esses últimos dias de fartura antes dos quarenta dias de penúria começaram
então a ser chamados de dias do ‘adeus à carne’, que, em italiano, fala-se
dias da ‘carne vale’ ou do ‘carnevale’. Surge assim a palavra para se definir
o período do ano onde a comilança e a esbórnia corriam soltas, e que
acabaria por se tornar uma espécie de antônimo da Quaresma: Carnaval. Ou
seja, se não fosse pela invenção da Quaresma, não haveria Carnaval
(FERREIRA, 2004: 26).
Por outro lado, existem escritos que nos remetem ao Egito antigo, Roma, Grécia,
porém, o importante não é determinar quando teve início este tempo especial (DAMATTA,
1997), mas como se procedeu a festividade no decorrer dos anos, coexistindo inúmeras
formas de se festejar.
Por se tratar de uma festividade que agrega várias “festas”, podemos pensar que, por
um lado, as “ruas enchem-se de gente fazendo tudo aquilo que não se deve, ou não se pode,
fazer no resto do ano” (FERREIRA, 2004: 28), indo de encontro aos regramentos sociais e até
morais, e, por outro, é um momento de lazer criativo, trabalho, sociabilidades e encontros, ou,
ainda, onde verificamos a reprodução da vida societária, expressando suas desigualdades
sociais. O carnaval, pois, não deve ser entendido unicamente como um espaço-tempo sem
[44]
normas e “reino dos excessos e das subversões”, representado na pintura do país da Cocanha
de Bruegel32.
É certo que muitos daqueles que participam das festividades carnavalescas,
aproveitam este momento “para revelar seus desejos ocultos, acertar contas com os vizinhos,
ridicularizar os inimigos, declarar seu amor secreto por alguém e todas essas coisas que
fazemos quando perdemos o controle e a censura da vida diária” (FERREIRA, 2004: 28).
Porém, a época momesca não é, somente, um momento idealizado onde se suspende o
trabalho e a sociedade se põe ao lazer e à subversão.
Sem partir para um determinismo temporal do carnaval, o que nos interessa é
compreender que existe há vários séculos e se trata de um período de brincadeiras e festas,
mas, também, de trabalho e organização.
Trazido ao Brasil pelos portugueses, provavelmente, já no século XVI, o carnaval foi
adotado em terras nacionais na forma do entrudo europeu, adaptando-se, todavia, às
regionalidades. É importante frisar que desde a sua chegada ao Brasil, ele esteve associado à
manutenção da sociedade, nos moldes escravocratas da época. Os negros, ainda que
festejassem, continuavam a ser os escravos dos “brancos” que, por sua vez, também não eram
todos ricos e possuidores de serviçais. Se as elites dispunham de carruagens – e
posteriormente, automóveis – e apetrechos importados dos grandiosos bailes europeus, os
negros e os menos abastados apropriavam-se das ruas para festejar às suas maneiras,
praticando o entrudo popular, muitas vezes violento.
Não que as elites reservavam-se aos bailes carnavalescos, pois, existia, à época, o
entrudo familiar, em que, semelhante ao entrudo popular, as pessoas festejavam por meio das
molhadelas. É importante salientar, porém, o caráter negocial deste festejo privado, promotor
de socialização da sociedade brasileira que “além de servir como fator de agregação social,
possibilitando contatos e bons negócios entre os membros das elites, a aparentemente inocente
brincadeira do Entrudo Familiar também facilitava o encontro dos jovens das ‘boas famílias’”
(FERREIRA, 2004: 86).
Se havia um comportamento desigual para a festa, os pobres e negros tentavam
mascarar esta desigualdade travestindo-se de ricos, satirizando a própria existência e
pervertendo a estrutura formal da sociedade, de onde podemos extrair um discurso paródico
que manifesta as diferenças sociais.
32
A gravura de Pieter Bruegel é datada de 1567.
[45]
Aliada às paródias carnavalescas, observamos no carnaval brasileiro inúmeras
manifestações culturais, algumas próprias da festa momesca e outras advindas de vários
festejos. Entre importantes figuras do festejo carnavalesco no Brasil podemos citar os
mascarados, os quais, no caso natalense, foram bastante hostilizados pelas elites locais que
buscavam introduzir o formato europeu de brincar o carnaval. Um exemplo destes malquistos
das camadas mais abastadas de Natal são os papangús33, encontrados também em outras
localidades34.
Não eram só fantasias, mas, também, várias manifestações do folclore e cultura
brasileira – em uma importante hibridização cultural, da qual participam a cultura ameríndia,
africana e europeia – que faziam parte do carnaval, dentre as quais, podemos citar algumas:
maracatus, cucumbis, caboclinhos, reisados, zé-pereiras e tribos de índios carnavalescas.
Não é o objetivo do presente trabalho a compreensão das figuras carnavalescas e
manifestações da cultura e do folclore brasileiro, todavia, no decorrer do estudo, faremos
referências e incursões nestes pontos para entender a formação e configuração do carnaval
natalense e das tribos de índios.
O carnaval brasileiro, a partir do século XIX, teve sua maior expressividade nos
festejos cariocas, tornando-se a festa carnavalesca do Rio de Janeiro como algo simbólico que
traduzia o paradigma cultural do Estado brasileiro, como um modelo de brasilidade. A partir
da década de 1930, o então Presidente Getúlio Vargas instituiu um “plano modernizador”,
tentando conduzir o país a uma homogeneização cultural e o carnaval, as escolas de samba e
seus enredos serviram ao projeto político do Governo Federal, porém, não se sobrepuseram às
culturas particulares que identificavam regiões e lugares, mas coexistiram.
Esta tentativa de criar uma identidade nacional35 ecoou pelo país, fazendo parte dos
debates de intelectuais, alguns compartilhando da postura governamental e outros, como o
33
São espécies de mascarados, cujo nome surgiu, provavelmente, de uma mistura folclórica afro-brasileira do
“papa-angu”, em referência aos negros cativos que se alimentavam de angu e feijão. De acordo com Pedreira
(2004), os papangús consistem em “mascarados com roupas coloridas e maltrapilhas, que saíam espalhando
grande algazarra pelas ruas, dando sustos nos transeuntes, principalmente no público infantil” (PEDREIRA,
2004: 68).
34
O objetivo não é tornar uma “exclusividade” do carnaval nordestino, pois tais figuras devem existir em outras
festas momescas brasileiras.
35
Conforme Hall (2003), a cultura nacional – discurso produtor de sentidos com os quais nos identificamos e
construímos nossa identidade – da sociedade moderna é uma das principais fontes da identidade cultural. Tais
identidades nacionais são formadas e transformadas no interior da representação, buscando unificar etnias e
classes; e a nação, neste contexto, é um sistema de representação cultural – comunidade simbólica, fonte e
geradora de um sentimento de identidade e lealdade.
[46]
folclorista e historiador Câmara Cascudo, reprimiam tal conduta. Ademais, conforme
apontado por Pedreira (2004), este “modelo” de carnaval carioca adotado nos estados da
Federação “recuperava uma imagem já bastante conhecida anteriormente, a do carioca
enquanto exemplo do ‘carnavalesco autêntico’, estabelecendo-se como o ideal da maior festa
popular brasileira o exemplo das escolas de samba da cidade do Rio de Janeiro” (PEDREIRA,
2004: 66-67).
Nas cidades brasileiras, o projeto “modernizante” e homogeneizador sofreu resistência
local diante da continuidade das manifestações regionais, como o frevo pernambucano, as
marchinhas e outras regionalidades36, todavia, nada impediu que as escolas de samba fossem
difundidas, conforme podemos vislumbrar na presença dessa manifestação carnavalesca em
muitas cidades brasileiras.
Feita esta análise do carnaval e de sua inserção no país, exporemos como ocorreu a
evolução das festas carnavalescas na cidade de Natal. O interesse não é o de realizar um
estudo histórico do carnaval, posto que a nossa intenção é promover uma análise geográfica
da festividade, a partir das tribos de índios carnavalescas.
Para tanto, exporemos a seguir a festa carnavalesca da capital potiguar, preocupados
com os arranjos e práticas deste tempo festivo durante o século XX, procurando identificar as
mudanças ocorridas no festejo. Posteriormente, abordaremos a configuração atual, a partir de
uma leitura que integra a cultura de massa e a cultura popular, de modo a não analisá-los de
forma maniqueísta, mas mostrando as duas faces de uma mesma moeda.
2.1. REVISITANDO O CARNAVAL NA CIDADE DE NATAL
Assim como se tenta descobrir as origens do carnaval, procura-se, também, impor um
marco ao surgimento do carnaval em Natal, que, para alguns pesquisadores, encontra-se nas
36
A historiadora Pedreira (2004) coloca que “em tempos de embates entre modernistas e regionalistastradicionalistas muitas foram as práticas festivas que buscaram demonstrar as especificidades dos carnavais
regionais”, e continua: “Em Natal, havia entre os diversos grupos organizadores dos festejos carnavalescos uma
crescente preocupação em manter as especificidades potiguares” (PEDREIRA, 2004: 67-68). Dentre os
exemplos citados pela historiadora que valorizavam as práticas festivas potiguares, estão os papangús, as
marchas regionais, os bailes populares, como a Casa do Caboclo, nos dias de momo do Teatro Carlos Gomes.
[47]
décadas finais do século XIX37. Novamente retomo a ideia de que não há como demarcar um
início, ainda mais quando se propõe que a festividade nos remonta à própria chegada
portuguesa no Brasil. Se na Europa já se festejava, nas mais diversas formas de “brincar”,
porque pensarmos que os primeiros europeus, ao chegarem ao continente americano, não
iriam continuar praticando suas festas e comemorando seus feriados? Não seria coerente
imaginar que o carnaval era celebrado em várias partes do país há séculos e em Natal ser
diferente.
Ferreira (2004), referenciando-se no livro Antologia do Carnaval do Recife, de autoria
de Leonardo Dantas Silva, localiza o “primeiro” registro da prática do entrudo no Brasil, na
Capitania de Pernambuco, em 1553, no Engenho Camaragibe, próximo à Olinda. Esta é mais
uma “pista” de que o carnaval, ou seu familiar mais velho – o entrudo – não pode ser
demarcado temporalmente no século XIX. Ademais, como dito anteriormente, também não é
pretensão do presente trabalho se limitar a datas e marcos.
Não há como demarcar seguramente o início das práticas entrudísticas, também
cremos que pôr um fim pela chegada do modelo “moderno” de carnaval é um equívoco. É
preferível pensar na coexistência das formas de “brincar”, ainda que a elite natalense, a
exemplo das classes dominantes de outras cidades brasileiras, tivesse o propósito de extinguir
o entrudo e não permitir, aos poucos que se aventuravam, manifestarem-se nos mesmos
espaços das brincadeiras elitizadas.
2.1.1. Nos entrudos do carnaval natalense: tudo junto e misturado
Não podemos mensurar datas que nos reportem ao início das festividades
carnavalescas na capital do Rio Grande do Norte, todavia, podemos afirmar que marco não é
o século XX. Sabe-se, porém, que as principais referências – sejam orais ou documentais –
nos remetem às últimas décadas do século XIX, porém, isto não nos permite afirmar que o
carnaval natalense foi “introduzido” no calendário local naquela época.
Certo é que o período momesco em terras potiguares era dotado de uma
heterogeneidade em relação às formas de diversão neste tempo de folia. Inúmeras maneiras de
37
De acordo com o pesquisador Gutemberg Costa, o primeiro carnaval em Natal é datado pela imprensa em
1877, quando o jornal A República noticiou o Entrudo na cidade.
[48]
“brincar” o carnaval coexistiram na cidade: clubes, corsos, ranchos e cordões. Grupos e
pessoas davam o “ar da graça” na festa, de forma coletiva ou individual, contudo, separados
pelo nível de abastança.
Rememorando os primeiros festejos momescos, Cascudo (2005) nomina os
entrudistas, entre os quais se encontravam os “terríveis” papangús. Quanto aos primeiros
clubes, relembra o Club do Silêncio e o Club Carnavalesco Nocturno. Este último foi
referenciado por Lulú Capeta no expediente do Jornal Oficial de 05 de fevereiro de 1902 pela
sua ausência até então no carnaval daquele ano38, sendo, também, o mais antigo do carnaval
natalense, datado de 189639. Tais participantes e clubes celebravam o período momesco
enquanto um momento de folia vicinal, reunindo-se a família e vizinhos, ornamentando
determinadas ruas da cidade para ocasiões de sociabilidade. O espaço da rua era primordial,
fazendo-se extensão da casa, numa íntima relação entre público e privado, tornando-se um
território festivo e privilegiado para que as pessoas se relacionassem e brincassem, como
“expressão teatralizada da solidariedade comunitária” (BURKE, 1989: 223).
Em 1901, a Rua Treze de Maio, no bairro Ribeira, foi palco de “fortíssimos tiroteios
de confetti e serpentinas de variegadas cores, devendo o torneio começar à tarde e estender-se
até à noite”. Para receber os brincantes, a rua foi ornamentada com “bandeiras e folhas de
palmeiras e com uma boa iluminação à noite”40. Nesta época, diferentemente da efervescência
do carnaval carioca e suas pomposas Sociedades, o reinado do Momo em Natal, embora
animado, ainda não havia absorvido os corsos41 venezianos, mas já se deleitava com os
moderníssimos confetes e serpentinas.
Em 1902, o Jornal A República noticiou a “decência” do carnaval natalense, com a
proibição do “brinquedo brutal da goma e da lima de borracha”42 pelos editais do chefe de
Polícia, que produziram bons resultados, salvo “uma ou outra pessoa mais aferrada ao velho
entrudo, que não pude prescindir do gosto de enfarinhar-se”43. Tal posição revela as múltiplas
faces dos festejos carnavalescos na cidade em que, por um lado, como sinônimo de
38
A República de 05.02.1902.
Em carta escrita ao Jornal A República, publicada no periódico de 16.02.1912, o clube carnavalesco participa
aos redatores a comemoração do “seu 16º anno de vida percorrendo as principaes ruas desta cidade no próximo
sabbado de carnaval”
40
A República de 16.02.1901.
41
Corso foi o nome dado ao desfile dos ricos em carros no período carnavalesco, reproduzindo a “batalha das
flores” francesa. O nome, porém, é derivado da Via del Corso, rua em Roma onde ocorreram os primeiros
desfiles em carros. Em terras brasileiras, os primeiros corsos ocorreram na cidade do Rio de Janeiro, no século
XIX.
42
A República de 12.02.1902.
43
A República de 12.02.1902.
39
[49]
brilhantismo e beleza, o “carnaval” do confete e serpentina, “que adquiriram foros de cidade e
entraram nos hábitos da nossa população”44, era aceito pela sociedade, por outro, o entrudo
popular não ganhava afeição da imprensa, mas pôde ser visto na cidade, pelos grupos e
indivíduos que persistiam nas molhaçadas.
Não obstante as tentativas de extermínio dos limões-de-cheiro, considerados indignos
do festejo momesco, encontra-se no mesmo jornal oficial uma opinião bem diversa no que se
refere à prática do entrudo, conforme podemos observar na nota de Lulú Capêta:
“A rapaziada da minha terra já não se diverte. No meu tempo, a história não
se contava assim. Eram clubs e mais clubs. Alguém me disse que tudo isso é
devido ao tal confetti... Eu sou do tempo de cuia d’água e das laranginhas de
cêra: e si brinco com taes papeis cortados, é porque quem não tem cachorro,
caça com o gato”45.
O saudosismo do redator nos remete aos festejos entrudísticos ocorridos no século
XIX na cidade. Apesar de rejeitado pelo “projeto modernizador”46, as enfarinhadas dos
antigos carnavais ainda estavam arraigadas na população e a mudança, como queria os
“modernos”, não se operava de forma rápida, mas lenta e gradual. O desejo de acabar com as
brincadeiras “atrasadas” pela simples imposição, gera resistência do “velho”, “antigo” e
indesejado, que persiste no mesmo espaço, garantindo, como ocorria, igualmente, no carnaval
carioca, “a persistência das manifestações culturais populares, como também sua difusão e
entrelaçamento com as manifestações dos dominantes, dando lugar a uma interpenetração
cultural” (SOIHET, 2007: 82).
Os festejos carnavalescos natalenses, já no início do século XX, preocupavam-se em
atender aos anseios da elite local, num ideal de “modernidade” e civilização, tendo como
parâmetro os modelos europeus. Ela tinha o interesse de que a população também
acompanhasse esta “evolução” para uma sociedade civilizada. Esta busca pela
“modernização” da cidade também se fazia presente nos préstitos carnavalescos, com as
várias tentativas de se acabar com os jogos de entrudo e a preferência pelos corsos e festas nos
clubes elitizados, copiando aqueles realizados pela classe dominante em seus momentos de
44
A República de 12.02.1902.
A República de 05.02.1902.
46
N o texto, sempre que nos referirmos a “moderno” e suas adjetivações e flexões, colocaremos entre aspas por
se tratar de uma discussão muito abrangente e até contraditória dentro da academia. O “moderno” dos
intelectuais natalenses da época pode estar ligada ao modernismo das artes. Preferimos pensar o
desenvolvimento de Natal como projeto arquitetônico e urbanístico, não necessariamente voltado para os planos
da “modernidade” consolidada pela Revolução Industrial e o capitalismo.
45
[50]
sociabilidade entre pares no Rio de Janeiro, Paris e Veneza. Alojou-se no imaginário uma
distância simbólica entre o “velho” e o “novo”, definindo-se parâmetros nas representações
carnavalescas.
Natal aspirava à “modernidade”, buscando o nascimento de outra cidade construída
pela juventude, suplantando a capital provinciana, nos moldes que palestraram Eloy de Souza
e Manoel Dantas, no ano de 1909. O entusiasmo dos intelectuais, cujas palestras devem ser
entendidas “como uma alegoria ou como uma metáfora de aspiração de modernização e de
modernidade que as elites preconizavam para o futuro de Natal” (LIMA, 2007: 72), refletia as
mudanças urbanísticas, demográficas e comportamentais dos natalenses. Faz coro as palavras
de José Braz, em 1903:
Somos um grupo de indivíduos cuja única preocupação cifra-se em espiar
uns aos outros. Povo sem comércio, sem arte, sem literatura, e, por
conseguinte, sem intuição clara da vida moderna, a nossa existência parece a
de um corpo sem cabeça, sem capacidades volitivas, sem órgãos de
sentimento, sem vontade (BRAZ, 2007: 63).
O crescimento econômico da cidade proporcionava a melhoria da infraestrutura,
sobretudo no calçamento das ruas, implantação do sistema de iluminação a gás, instalação dos
bondes e ampliação da rede telefônica. No plano cultural, foi inaugurado o primeiro cinema
da capital potiguar. Acompanhou, também, o aumento populacional, quase duplicando nas
duas primeiras décadas do século XX (LIMA, 2007).
Nestes planos e projetos para a reforma estrutural, cultural e comportamental da
cidade, estava incluído a folia de Momo, cujo principal exemplo foi a desafeição e repúdio de
um importante mascarado do folclore local. O veículo informativo oficial da capital potiguar,
assim como a classe dominante da época, não se mostrava afeto a uma das figuras
carnavalescas mais ilustres da festividade momesca potiguar, o “papangú”: “As mascaradas
poderiam ter sido melhores, se, de uma vez por todas, se expelisse das ruas o papangú mal
vestido e semsaborão [...]”47. O motivo, talvez, seja a relação do personagem com a
brincadeira do entrudo, realizada pelas classes populares e não aceito pela alta sociedade da
época. Este posicionamento do jornal oficial – e da elite natalense – tinha implicações
ideológicas deste constructo simbólico do personagem “semsaborão”, pois manifestava certa
ascendência e sobreposição dos setores dominantes da cidade frente às classes menos
abastadas.
47
A República de 12.02.1902.
[51]
Segundo Cunha (2001), as sociedades, intelectuais, imprensa e homens públicos
desejavam impor um “programa civilizador” para a massa das ruas, de modo a superar o
entrudo e “fazê-lo cair no esquecimento em nome do progresso e da elegância de uma cultura
europeizada e auto-representada como superior às tradições locais, mas dissolver o Carnaval
individual dos máscaras avulsos na manifestação coletiva das ‘idéias’” (CUNHA, 2001: 98).
Este fato observado pela historiadora no carnaval carioca, também tem aplicação nos festejos
natalenses. Em outro trabalho, a historiadora enfatiza: “Projetos pedagógicos e sentidos
homogeneizadores ganharam corpo dentro do carnaval, e o esforço de desqualificar qualquer
prática que fugisse ao padrão eleito como civilizado constituiu-se em um traço comum a
intelectuais, autoridades e carnavalescos de elite” (CUNHA, 2002b: 383).
Os blocos da época organizavam-se para as “batalhas”, que consistiam em lançamento
de confetes e serpentinas uns nos outros, “sempre com muita ordem e muito respeito”48. Se as
arruaças com os limões de água perfumada ficaram de lado, as guerrilhas foram apropriadas
pela elite com esses novos instrumentos de batalha importados dos carnavais europeus. Para
além das ruas, as festividades terminavam em saraus realizados nas residências de festejados
senhores da elite local, como a ocorrida no último dia do carnaval de 1902, na casa do
Inspetor da Alfândega Manuel Coelho49, demonstrando a solidariedade comunitária no
interior dos grupos dominantes. Durante as duas primeiras décadas do século XX, as
manifestações carnavalescas procederam nos moldes aqui detalhados.
Nesta busca incessante de suplantar o “velho” entrudo pelo “moderno” carnaval, o
Departamento de Segurança Pública fez publicar prescrições para impedir o jogo entrudístico
no carnaval de 1911, reforçando a fiel observância pelos delegados de polícia, “não
consentindo, sobretudo que transitem pelas ruas desta cidade mascaras com alusões
individuaes, quer sejam a particulares, autoridades ou corporações, e, no caso de
desobediência às vossas intimações regulares fareis lavrar o auto de flagrante para ulterior
processo”50.
Marinho (2008) esclarece que as restrições ao entrudo já eram impostas aos natalenses
desde 1896, mas tais proibições não impediam estas brincadeiras. Com o passar dos anos,
houve uma diminuição das hostilizadas pândegas, devendo-se, sobretudo, à organização do
espaço pelas ações estatais, através de normas e policiamento, e pelas ações dos cidadãos
48
A República de 12.02.1902.
A República de 12.02.1902.
50
A República de 25.02.1911.
49
[52]
natalenses, que adquiriram novos valores ditos “modernos”, materializados no espaço através
da ornamentação das ruas e da utilização das novidades trazidas da Europa.
Ao fim da primeira década do século passado, vários clubes apresentavam-se nas ruas,
com suas respectivas licenças concedidas pela Polícia, para alegria dos foliões e da grande
sociedade, conforme podemos ver no Jornal Diário de Natal em 1910: “[...] os papangus dos
anos passados já foram quase totalmente substituídos pelos Clubs e máscaras decentes, de
toiletes características e elegantes”51. Não foi outra a notícia d’A República, já nos festejos de
1912:
“Decorreram bastante animadas, nesta cidade, as festas carnavalescas. [...] O
povo, sem distincção de classes, numa alegria ruidosa, tomou parte em todos
os festejos, organizando aqui e alli renhidas batalhas de confetti e lança
perfumes. [...] Os mascarados avulsos foram egualmente reduzidos”52
Aliado às festas nas ruas, a partir dos últimos anos da primeira década do século
passado iniciaram-se os grandes festejos nos clubes. Enquanto a folia nas ruas estava aberta à
população – ainda que fragmentados espacialmente: elites e populares –, os clubes restringiam
o público, permitindo o acesso apenas das grandes famílias elitizadas, tornando-se
acontecimentos a cada ano mais importantes, conforme se pode denotar nos anúncios dos
jornais, que reservavam boa parte da matéria carnavalesca aos preparativos dos clubes para as
festividades.
Entre aqueles que abriam seus salões para o carnaval, temos o Natal-Club, localizado
na Avenida Rio Branco, como o precursor. Para as festividades, eram realizadas inúmeras
reuniões, iniciadas ainda no mês de janeiro, que definiam como se daria o reinado do Momo,
conforme podemos ver na reunião ocorrida em 29.01.1911, publicada n’A República, onde foi
resolvido que “o baile de carnaval seja na segunda feira, 27 de fevereiro”, salientando que os
convites foram restritos, “por se tratar de um baile onde todos comparecerão fantasiados”.
Percebe-se o receio da elite local naqueles que iriam participar da festa, ainda mais pelo
motivo de que as identidades seriam preservadas por detrás das máscaras. Um exemplo desta
apreensão está na determinação do Natal-Club aos convidados para retirarem as máscaras na
quinta parte da quadrilha de carnaval53. A restrição aos convidados reforçava a hierarquização
espacial consolidada na folia carnavalesca.
O redator, que assinava por nome Aurélio, publicou n’A República, em 23.02.1912,
51
Diário de Natal de 10.02.1910.
A República de 21.02.1912.
53
A República de 25.02.1911.
52
[53]
uma nota sob o título “Mascarados...”, demonstrando que os infelizes mascarados vibram
prazerosamente no carnaval fazendo um “esforço inútil de atrahirem sobre as suas
insignificâncias alguma attenção, que os seus próprios méritos não lograriam obter” 54. Este
esforço ingênuo e enganador merece, segundo o jornalista, a complacência da elite e dos
intelectuais. Percebe-se, pelo discurso, que os referidos mascarados consistem naqueles
pobres que procuram extravasar na folia momesca e falsear a sua realidade cotidiana. Assim
termina a nota55:
“Vós inspiraes compaixão, e é por isto que a humanidade vos deixa vegetar
no mundo arrastando a vossa vilania e a vossa miséria que são o premio de
vossa fraqueza e o castigo de vossa pobreza de espirito. [...] Passai, infelizes
mascarados de todo o anno, ingênuos ridículos; o mundo precisa da vossa
presença para escarneo de vossa baixeza e para diverti-lo nos momentos de
ócio”56.
Estas referências demonstra o intenso combate aos que realizavam um “carnaval”
diverso daquele “projeto modernizador” instituído pela classe dominante. Neste contexto, a
festa momesca assume uma espécie de “luta” entre as elites civilizadas e os pobres (CUNHA,
2001). Importante a assertiva de Cunha (2001) referindo-se aos festejos cariocas aplicáveis ao
presente estudo, ao colocar que a folia “transformou-se em uma verdadeira guerra porque
revelava e multiplicava a tensão de todos os dias: sendo ocasião de desnudar e brincar com o
cotidiano, expunha suas feridas abertas sem nenhum disfarce possível atrás das máscaras
costumeiras” (CUNHA, 2001: 83-84)57.
Por outro lado, aos mascarados presentes na soirée do sábado de carnaval do NatalClub, no ano de 1913, foi creditado o sucesso de suas presenças, demonstrando a clara divisão
entre a elite e os pobres revelada no período carnavalesco e sentidos diversos aos que usavam
máscaras em virtude de sua posição social: “Na noite de hontem, constituiu verdadeiro
54
A República de 23.02.1912.
Estudando a imprensa no carnaval porto-alegrense em fins do século XIX, Lazzari (2002) coloca que a
condenação aos mascarados era quase unanimidade entre os jornalistas, repetindo-se ano após ano. Para o
historiador, eles não eram aceitos pela elite, sendo vistos “como herdeiros espúrios das festas do passado, algo
desagradável de ser visto, uma vergonha para a cidade e uma afronta à moralidade pública” (LAZZARI, 2002:
218).
56
A República de 23.02.1912.
57
“Nesse contexto capaz de associar a festa e o combate, a luta em torno das formas do Carnaval assumiria os
contornos de um conflito permanente entre negros e brancos, meninos das ruas e meninos das janelas,
trabalhadores e patrões, famílias conceituadas e gente dos cortiços, exprimindo essas e outras tensões presentes
na sociedade carioca” (CUNHA, 2001: 187).
55
[54]
sucesso o aparecimento de dois máscaras, um ‘dominó’ e uma ‘viúva alegre’, que por muito
tempo ‘intrigaram’ a assistência com seus ditos espirituosos”58.
Uma importante brincadeira que se realizava na capital potiguar ainda na segunda
década do século XX eram os chamados “assaltos” pré-carnavalescos. Em 1911 encontramos
o registro da visita da agremiação Mão Negra59 ao Jornal A República60. Conforme nota
jornalística, “eram 7 senhoras e senhoritas, com toilettes uniformes e artisticamente
arranjadas, trazendo à cabeça gorros confeccionados”61. O fato curioso é a presença feminina
no carnaval, numa época em que a participação das mulheres na sociedade era um pouco
restrita.
Quanto à distribuição espacial da festividade nas primeiras décadas do século passado,
ela se dava nos dois principais bairros da cidade, Cidade Alta e Ribeira, conforme expresso no
expediente de 23 de fevereiro de 1911, d’A República. Os dois bairros recebiam iluminação e
banda de música para os três dias de festa, organizados através da comissão promotora do
carnaval existente em cada um deles, conforme anuncia o jornal: “Os trabalhos de
ornamentação das ruas ‘Vigário Bartholomeu’, na Cidade Alta, e ‘Senador José Bonifácio’, na
Ribeira, estão quase concluídos, graças aos esforços das respectivas comissões” 62. Era para
esses lugares que convergiam as renhidas batalhas, como a ocorrida entre a sociedade “Mão
Negra” da Cidade Alta e “Os Democráticos” da Ribeira, travada neste último bairro que,
segundo a imprensa, abrilhantaram os festejos do ano de 191263.
O Jornal Diário de Natal, de 10.02.1910, publicou em nota sobre o carnaval, que na
segunda e terça-feira daquele ano a agremiação “Divisão Branca” havia percorrido as ruas da
Cidade Alta e Ribeira, com oito carros alegóricos, com um público não inferior a duas mil
pessoas64. No ano de 1912 observa-se um corso feminino na cidade de Natal, quando no
terceiro e último dia de carnaval, um rancho de sócias do Clube “Mão Negra”, “fantasiadas
com muito gosto e elegância, sahiu a carro, fazendo um passeio por algumas ruas da cidade,
conduzindo o estandarte da sociedade”65. Percebemos que a iniciativa partiu, novamente, de
jovens moças. No ano seguinte, dois “carros de reclame” da cidade – Cerveja Brahma e Elixir
58
A República de 05.02.1913.
O grupo Mão Negra foi inspirado em grupo de igual nome da cidade de Fortaleza, pela iniciativa de Jurema
Ramos que frequentou a agremiação cearense em carnavais anteriores.
60
A República de 05.02.1911.
61
A República de 17.02.1911.
62
A República de 25.02.1911.
63
A República de 21.02.1912.
64
Diário de Natal de 10.02.1910.
65
A República de 21.02.1912.
59
[55]
de Maruré Caldas – foram arranjados carnavalescamente e, ao som de uma fanfarra, saíram às
ruas com pessoas fantasiadas que jogavam sobre as pessoas brindes e reclames 66, de onde
verificamos o comércio propagandístico no período carnavalesco, valendo-se de uma
modalidade de folia que estava inserindo-se na cidade: o corso. Esta manifestação
carnavalesca importada das principais cidades mundiais da época retrata a “passagem gradual
das formas mais espontâneas e participativas de entretenimento para espetáculos mais
formalmente organizados e comercializados para espectadores” (BURKE, 1989: 273).
É certo que as festividades também ocorriam em outros locais, como se denota nas
várias localidades dos grupos carnavalescos que tiveram a licença do Chefe de Polícia para
exibição, dentre os quais podemos citar os blocos “Chaleiras” e “Amantes da pinga”, ambos
com sede na Rua 21 de julho, Tirol, e o bloco “Caboclinhos”67, sediado à Rua Solidão, em
Cidade Nova, mas sempre convergindo para os bairros tradicionais.
Observa-se que Cidade Nova – que abrange, hoje, os bairros Tirol e Petrópolis –,
consistiu num bairro estritamente residencial, criado através da Resolução Municipal nº 15, de
30.12.1901, para receber a elite natalense, em busca de um ambiente mais propício à moradia
e sossego, “fugindo” do eixo Cidade Alta-Ribeira, que se firmou como o centro institucional e
comercial da capital potiguar. A Cidade Nova representava os “desejos das elites governantes
de negação da cidade existente e da expectativa de Natal como uma cidade de futuro”
(ARRAIS, et al, 2008: 113).
O carnaval também ecoava para o novo bairro que surgia no início da década de 1910,
denominado Alecrim, cujo núcleo habitacional era composto pelos menos abastados,
sobretudo por migrantes vindos do interior do Estado. Muito embora não tenha referências às
festividades naquela localidade, não faltaram cuidados do corpo policial, como podemos
verificar nas recomendações do Chefe de Polícia aos delegados e subdelegados dos bairros
Cidade Alta, Ribeira e Alecrim:
“Aos delegados de polícia do 1ª e 2ª districtos e aos subdelegados da Cidade
Alta, Ribeira e Alecrim: Tenho por muito conveniente recomendar-vos a fiel
observância das prescripções publicadas de minha ordem pelo Secretario
desta Repartição, em data de 9 do corrente, para os dias do próximo
carnaval, não consentindo sobretudo que transitem pelas ruas desta cidade
mascaras com alusões individuaes, quer sejam a particulares, autoridades ou
66
A República de 05.02.1913.
Esta foi a primeira referência aos indígenas no carnaval natalense. Dentre as seis agremiações que tiveram a
licença concedida pelo Chefe de Polícia para se exibir nos festejos carnavalescos do ano de 1911, encontramos
dois grupos de “caboclinhos”, um com sede à rua Mossoró e outro sediado na rua Solidão, em Cidade Nova.
67
[56]
corporações, e, no caso de desobediência às vossas intimações regulares
fareis lavrar o auto de flagrante para ulterior processo”68
A festividade, em franco crescimento com a cidade, foi ganhando outras proporções,
seja com o aumento dos locais festivos, seja com uma maior participação da população. Foi
nesta época que a capital passou a se direcionar progressivamente para o oeste, em direção
aos bairros Alecrim e Quintas, formados por migrantes do interior norte-rio-grandense. Neste
ínterim, é patente a urbanização de Natal voltada para a diferenciação de classes em termos
espaciais: a Cidade Nova – desmembrada posteriormente em Tirol e Petrópolis – composta
pelas elites locais e o Alecrim dos pobres, migrantes e operários69. Tal diferenciação
segregativa “parece constituir-se em uma projeção espacial do processo de estruturação de
classes, sua reprodução, e a produção de residências na sociedade capitalista” (CORRÊA,
1997: 132), pois os construtores do espaço “não se desembaraçam da ideologia dominante
quando concebem uma casa, uma estrada, um bairro, uma cidade. O ato de construir está
submetido a regras que procuram nos modelos de produção e nas relações de classe suas
possibilidades atuais” (SANTOS, 2007: 36-37). Ainda hoje persiste esta diferenciação, muito
embora o bairro operário tenha se tornado o centro comercial da cidade.
Como vimos, portanto, o carnaval em Natal não se limitou – em termos de “espaço da
folia” – à Rua da Palha70, no bairro Cidade Alta, onde, nas memórias de infância de Umberto
Peregrino na segunda década do século XX, as brincadeiras consistiam em circular pela
referenciada rua, de forma inocente, espargindo confetes e lança-perfume e, à meia noite do
sábado de carnaval, esperar o zé-pereira, que, segundo ele, era o que tinha de mais expressivo
no carnaval natalense, formado por um clube de rapazes da sociedade que partia do NatalClub (PEREGRINO, 1989). Podemos dizer que a Rua da Palha se tratava de um dos vários
locais da época momesca, pois, afinal, o que estariam fazendo estes “rapazes da sociedade” no
único clube da cidade que abria as portas nas noites de carnaval?
Provavelmente, estariam participando da soirée blanche, nos elegantes salões do
clube, com suas danças e jogo de confete e lança-perfume, ao som da orquestra, que tocava
valsa, polka, pas de Quatre, Schottisch e Cottilon. Para além da festividade no interior do
68
A República de 25.01.1911.
Corrêa (1997) identifica este processo espacial como segregação “que origina a tendência a uma organização
espacial em áreas de ‘forte homogeneidade social interna e de forte disparidade social entre elas’. Estas áreas
segregadas tendem a apresentar estruturas sociais que podem ser marcadas pela uniformidade da população em
ternos de renda, status ocupacional [...] instrução, etnia, fase do ciclo de vida” (CORRÊA, 1997: 131).
70
Atualmente denominada Avenida Vigário Bartolomeu, no bairro Cidade Alta.
69
[57]
salão, outros espaços tomados por aqueles que não podiam adentrar ao clube para festejar são
as ruas e avenidas que tangenciavam o Natal-Club, em uma espécie de baile ao ar livre, como
colocado pelo redator: “o baile popular ao lado do baile chic”71.
A proibição dos não-convidados era patente naquela época, sobretudo no período
carnavalesco. O Natal-Club, para o ano de 1918, colocou a figura de um leão na entrada para
o salão como forma de advertir os “indesejados” para não adentrarem. A representação
simbólica foi uma maneira encontrada para claramente excluir aqueles os quais era defeso a
entrada e permanência no recinto restrito às elites locais e seus convidados. Mas, como vimos,
tal impedimento não foi motivo para que os brincantes deixassem a festividade,
permanecendo fora do salão, mas realizando seu “baile”, mesmo que sem o aspecto pomposo
do Natal-Club.
Observe-se que, na época, o Brasil atravessava o primeiro período republicano (18891930) e o Rio Grande do Norte, assim como os outros estados nacionais, sofria uma
reestruturação política, constituindo-se uma composição do poder formado pelas oligarquias
republicanas, primeiramente com as do setor açucareiro, na figura da família Maranhão, e,
posteriormente, pelo sertão algodoeiro (LINDOZO, 1992). Dantas (2007) considerou este
período como um processo de “desconstrução da Natal colonial”, passando de uma cidade
oitocentista para outra moderna e capitalista. Desconstruir para construir uma nova imagem
citadina, sob o império dos três componentes imprescindíveis: identidade, estrutura e
significado (LYNCH, 1982).
Nos anos vinte do século passado, a capital, de fato, passou por um vasto processo de
estruturação, com a expansão e reforma da cidade, sob a administração municipal do
engenheiro Omar O’Grady (1924-1930). O projeto modernizador teve como pilar a
urbanização e a divisão da cidade em zonas, engendrando o crescimento de Natal.
A Avenida Tavares de Lira, na época da Belle Époque natalense, era o centro da
cidade, sediando os órgãos públicos e as instituições financeiras, concentrando as
manifestações e decisões políticas; era, também, o lugar de encontro de intelectuais, políticos,
militares, advogados, banqueiros, enfim, da elite natalense que se encontrava nos cafés e
botequins. Segundo Djalma Maranhão, a “esquina da Tavares de Lira, com a Dr. Barata, é
uma espécie de mar, aonde deságuam todos os rios. Verdadeiro museu ambulante, pitoresco,
71
A República de 13.02.1918.
[58]
trágico, divertido, palco dos mais variados espetáculos”72. O referido logradouro se colocava
“como dimensão concreta da espacialidade das relações sociais num determinado momento
histórico” (CARLOS, 1996: 86). Vamos além, dizendo que tal “espacialidade” ultrapassa a
dimensão material em direção a uma esfera simbólica.
Era neste lugar que, na forma dos carnavais europeus, as famílias ricas da cidade
desfilavam, no conhecido corso, em carros decorados e portando fantasias importadas e
comercializadas em lojas da capital potiguar. No carnaval de 1922, o préstito carnavalesco
realizado naquela localidade deixou satisfeito o redator d’A República, cuja opinião foi a
seguinte:
O carnaval deste ano teve entre nós desusada animação. [...] O centro das
diversões populares foi a avenida Tavares de Lyra, no bairro da Ribeira,
onde milhares de pessoas de todas as classes estiveram aglomeradas durante
as festas. [...] Esta grande e vasta artéria de nossa capital mostrava-se
modestamente ornamentada, achando-se, entretanto, profundamente
iluminada73.
Por outro lado, com fantasias inventadas a partir de lençóis e trapos, outros grupos
formados pelos menos favorecidos desfilavam num carnaval não menos alegre, a exemplo dos
mascarados avulsos que percorriam a cidade, sozinhos ou em grupos. Porém, tais fantasiados
eram considerados sem graça e sem chiste, não faltando-lhes adjetivos: grotesco, ridículo,
semsabor, triste.
Na época já existia a fragmentação da sociedade que “vinha às claras” no período
carnavalesco: os ricos com o corso e os pobres com suas troças e pequenos blocos. Não
obstante os desfiles dos ricos e pobres ocorressem no entorno da Avenida Tavares de Lira, de
acordo com Pedreira (2005), havia uma nítida prevalência dos luxuosos carros da elite
natalense, enquanto que os outros blocos percorriam nas ruas periféricas. Os clubes sociais,
por sua vez, como vimos anteriormente, ofereciam bailes carnavalescos que ficavam restritos
aos ricos:
Apesar da tão alardeada entrada na ‘modernidade’, as clivagens
socioeconômicas continuavam a ser determinantes para a distribuição
espacial da festa. E disso decorria que os lugares mais ‘adequados’ às
comemorações carnavalescas eram nitidamente diferenciados: as ruas
periféricas destinavam-se aos foliões de baixo poder aquisitivo, que se
divertiam nas ‘bagunças improvisadas’ das troças, cordões, zé pereiras e
72
73
Diário de Natal de 27.03.1949.
A República de 03.03.1920.
[59]
grupos de papangus, reservando-se às classes médias e setores elitizados o
desfile do corso nas principais avenidas da Ribeira e a utilização dos salões
de baile dos clubes particulares, cujo ingresso fazia-se mediante o
pagamento de caras mensalidades, como o Natal Clube, Clube Noturno e, a
partir de 1928, com a sua inauguração, o Aero Clube, que despontava como
um dos mais ‘bem frequentados’ da cidade (PEDREIRA, 2005: 67)
O Aero Clube foi instalado no bairro Tirol, na antiga localidade de Cidade Nova, onde
se encontrava residindo a elite natalense e, após sua inauguração, tornou-se um dos principais
clubes da cidade. Outro que também teve importância no carnaval de Natal foi o Theatro
Carlos Gomes74, no bairro Ribeira, cujas festas carnavalescas eram oferecidas pelo Centro
Pernambucano e, acompanhando os outros clubes, realizava festas nos dias de carnaval para
os abastados da cidade.
Ainda que o período carnavalesco fosse considerado como um momento onde a
sociedade “deixava de lado” as diferenças, percebe-se uma nítida repartição do carnaval
natalense durante as primeiras décadas do século passado, sendo “práticas que introduzem o
tema da diferença e da desigualdade sob a aparência de uma festa ampla e geral” (CUNHA,
2001: 58)75. Aos pobres e suas troças não faltava fiscalização e controle policial, como
medida de manutenção da ordem pública. Conforme Pedreira (2005):
A repressão ao que era considerado como ‘excesso’ nos festejos
carnavalescos fazia-se ‘necessária’ em relação às comemorações dos bairros
menos abastados da cidade, como Rocas, Alecrim e Lagoa Seca, onde se
davam as mais animadas batalhas de confete, que na visão das autoridades
poderiam transformar-se a qualquer momento em verdadeiros campos de
batalha, justificando a atuação policial (PEDREIRA, 2005: 68).
Percebemos que não havia dissolução das hierarquias sociais – ricos e pobres, negros e
brancos, mascarados das ruas e máscaras do bal masqué – pois:
[...] o teatro que se representava nas ruas mostrava a presença simultânea das
várias categorias sociais, separadas, entretanto, em suas formas e funções
sociais, profissionais e étnicas: cada qual em seu lugar, mesmo em atitude
carnavalizada e marcada pela música, pelo vinho, pelas máscaras e pelas
brincadeiras (CUNHA, 2001: 289).
74
O Teatro Carlos Gomes tem hoje a denominação de Teatro Alberto Maranhão.
De acordo com Cunha (2001), a folia do carnaval carioca de fins do século XIX e início do século XX
“transformou-se em uma verdadeira guerra porque revelava e multiplicava a tensão de todos os dias: sendo
ocasião de desnudar e brincar com o cotidiano, expunha suas feridas abertas sem nenhum disfarce possível atrás
das máscaras costumeiras” (CUNHA, 2001: 83-84).
75
[60]
O carnaval natalense era visto pela elite como uma festa de transgressão social pelos
menos abastados, devendo ser restrito e normatizado, sob a égide policial, e aos ricos
reservavam-se os grandes bailes e pomposos corsos, reproduzindo a realidade social da época.
2.2.2. A institucionalização e a suposta decadência do carnaval natalense
O carnaval natalense foi oficializado em 1933, pelo então interventor federal no
estado, conforme ocorrera no Rio de Janeiro no ano anterior, numa tentativa de direcioná-lo
ao projeto urbanístico que se iniciava na cidade (PEDREIRA, 2005), passando, assim, a haver
a restrição das comemorações e o estabelecimento de regras e normas de conduta.
Entre as normatizações do carnaval de 1934, houve a proibição da inalação de éter,
cuja reincidência causava a condução do indivíduo ao posto policial. Uma série de prescrições
foi publicada naquele ano76, dentre as quais a proibição do entrudo e as alusões ofensivas às
autoridades, aos particulares, aos bons costumes e à moral. Ademais, também se publicou
naquele mesmo expediente algumas determinações urbanísticas, voltadas ao fluxo de pessoas
e automóveis nos dias de momo, como a restrição ao estacionamento de veículos nas avenidas
Tavares de Lira e Nísia Floresta no período das 16 às 22 horas77.
Com uma maior participação da população e a proliferação de blocos pela cidade,
passamos a verificar um “diálogo” entre as classes e segmentos sociais nos “assaltos”78
carnavalescos, sendo constantes as visitas recíprocas de “blocos de elite” e aqueles
organizados por grupos menos abastados. Assim, se a primeira forma de “brincar” – conforme
visto no tópico anterior – demonstrava a fragmentação econômico-social da cidade, os
“assaltos”, por sua vez, mostravam uma dialogia.
Após a institucionalização do carnaval em Natal, juntamente aos vários blocos
carnavalescos das primeiras décadas do século XX, surgiram as tribos de índios na festa
76
A República de 07.02.1934.
Para uma melhor compreensão: Cf. Pedreira (2005).
78
“O ‘assalto’ consistia na entrada de determinados blocos nas casas para fazer uma grande farra, com banda de
música, danças e brincadeiras diversas, ao final do que os proprietários teriam que oferecer bebidas e comidas a
todos os presentes” (PEDREIRA, 2004: 53-54). Ainda conforme a historiadora, a denominação advém,
provavelmente, de literais assaltos ocorridos no interior do estado norte-rio-grandense por grupos de cangaceiros,
como os dos bandos de Lampião e Francisco Pereira.
77
[61]
momesca79. A primeira delas, de acordo com Raimundo Brasil, foi idealizada por seu pai,
Augusto Brasil, morador do tradicional bairro Ribeira, à frente da tribo de índios Potiguares.
A origem deu-se por meio de diálogos de seu pai com o historiador e folclorista Câmara
Cascudo, também morador do referido bairro80: “[...] naquele tempo que Câmara Cascudo
estava vivo, ele chamou a gente pra fazer as tribos indígenas [em] homenagem ao Rio Grande
do Norte” (Raimundo Brasil – Presidente da tribo de índios Potiguares). Observa-se, no
entanto, que a tribo “Potiguares” só aparece na imprensa – A República – em 1943.
Joselito Damasceno, presidente da tribo de índios Guaracis, relatando outra versão do
surgimento das tribos em Natal, informa que a tribo de “Seu Bumbum” foi a primeira em
Natal. E, somente depois, surgiu a tribo de índios Potiguares, de Augusto Brasil.
Aproximando-se da versão contada pelo presidente da tribo Guaracis, o veículo oficial da
época faz a primeira referência à tribo de índios no ano de 1934, quando o jornal A República
noticiou a tribo “Os Guaranys”, do bairro Alecrim:
“Os “Guaranys”, (que, por sinal de coerência de origem, tem sede na Rua
José de Alencar), preparam deliciosa surpresa para a cidade. O hino, para ser
lindo e sugestivo, basta ter sido escrito por Damasceno Bezerra, que iniciou
o Cascudo e o Mário de Andrade no catimbó do Alecrim”81.
Ainda naquele ano, o jornal publicou, na edição de 16.02.1934, que a tribo de índios
“Os Guaranys” foi a melhor apresentação no carnaval, sendo merecedora dos aplausos
recebidos. Foi neste contexto dos grupos e “assaltos” que surgiram as primeiras referências
jornalísticas às tribos de índios de carnaval. Dentre os vários blocos 82 que desfilaram no
carnaval de 1935, estavam os “Índios Guaranys”, devidamente licenciado para sair às ruas
naquele ano, cuja canção foi publicada n’A República:
“Oh! Tuim, oh! Tuim,
Oh! Tuim, oh! Poty,
Vem beber do teu cauim
O guerreiro Guarany.
Nossas igáras, ao pulso forte
79
Nas entrevistas não foi possível determinar a data exata do início das tribos de índios no carnaval de Natal,
pois houve divergência entre os relatos dos entrevistados e as pesquisas realizadas no Jornal A República.
80
O folclorista Câmara Cascudo foi tão importante para a cultura local, principalmente para as tribos de índios,
quanto Coelho Netto fora para os ranchos cariocas do início do século XX, cujos laços, para ambos, foram
reforçados pela identificação com os grupos e solidariedade pessoal a eles, sobretudo pelo prestígio social que
gozavam estes intelectuais.
81
A República, 07.02.1934.
82
Chamaremos de “blocos” num recurso genérico para nos referirmos aos “blocos”, “cordões” e “grupos”, que,
de forma indistinta, são nomeados pelos jornais da época.
[62]
De jovens índios, estão aqui.
Mas não viemos trazer a morte
À tribu heroica do Potengy.
Embora à lucta vivendo afeitos,
Tupan nos livre de guerrear
Os potyguares, de nobres feitos,
Irmãos nos campos, irmãos no mar.
Vibrem nos ares festivos hymnos,
Acompanhados pelos borés.
Unidos sejam nossos destinos,
Unidos vivam nossos pagés.
Jacy derrame todo o seu brilho
Nesta formosa noite de paz.
Glória ao tuxaua, valente filho
Da terra amiga dos coqueiraes”83.
A matéria no jornal local aponta que o bloco de índios teria “surgido” – pelo menos
para o conhecimento do veículo jornalístico e do público em geral – no ano de 1934, ao
colocar: “Este último, que o anno passado conseguiu grande popularidade, conta agora maior
numero de figuras, e seu hymno, publicado a seguir, é digno do talento do admirável poeta
que o compoz”84.
Para além do talento admirável do compositor relatado pelo jornalista, verificamos um
nacionalismo deste grupo que ressignifica o indígena, buscando uma identidade a partir da
afirmação enquanto símbolo de brasilidade. É patente esta identificação quando o jornal
publicou uma matéria, já no ano de 1937, referente aos Guaranys, que assim dispôs: “A
verdadeira raça brasileira vae dar sorte no carnaval deste anno, pela terceira vez”85.
Se o carnaval estava devidamente oficializado, tornou-se necessário um maior controle
do Poder Público, afinal, a festa momesca agora estava totalmente relacionada com ele. Um
exemplo deste controle no período carnavalesco ocorreu num importante momento histórico:
o levante comunista de 1935. Sob a alegação da centralidade da Avenida Rio Branco, onde os
grupos carnavalescos convergiriam facilmente, houve a transferência da festa oficial no ano
de 1936 para esta localidade, deixando de ser realizada na tradicional Avenida Tavares de
Lira86. Não se sabe, porém, qual o real motivo desta mudança: se foi a Intentona Comunista
ou o tiroteio entre praças do Exército e da Guarda Civil87.
83
A República de 07.03.1935 (Canção d’“Os Guaranys”, letra de Damasceno Bezerra e música de Sebastião de
Barros).
84
A República de 07.03.1935.
85
A República de 04.02.1937.
86
“Uma boa notícia temos a transmitir hoje aos foliões natalense. O corso carnavalesco e as batalhas de conffetti
se realizarão este anno na Avenida Rio Branco, em vez da Avenida Tavares de Lyra. [...] A mudança satisfaz
[63]
A festividade natalense já se encontrava relacionada à Avenida Tavares de Lira, que
constituía a sua base espacial, por onde desfilavam os corsos e as demais agremiações,
integrando a experiência carnavalesca material e simbólica. A mudança para outra localidade,
no entanto, não mitigou a tradição dos festejos, já identificados territorialmente com o lugar,
pois, nos anos que se seguiram, a chegada do “Rei Momo” ocorria com uma “entrada triunfal”
pelo Porto de Natal, atravessando em um luxuoso corso pela Rua Tavares de Lira. No
periódico de 25.02.1938, A República fez publicar a nota:
“[...] pretendendo dar o maior brilhantismo aos festejos carnavalescos deste
anno, em cooperação com todos os foliões e blocos da cidade, no próximo
sábado desembarcará no Caes Tavares de Lyra, o Marquez de ZÉ PEREIRA
e seu secretario BARÃO DE ARLEQUIM. [...] O cortejo subirá pela avenida
Junqueira Ayres, acompanhado de uma refinada orchestra de 50 professores
em procura da Avenida Rio Branco, onde encontrará o inicio da batalha”88.
O jornal A República coloca que a proliferação de blocos no carnaval natalense se deu
em virtude desta mudança, causando entusiasmo nos foliões: “Depois que se soube dessa
resolução estupenda de ser o carnaval na Rio Branco os ranchos se multiplicam todos os dias
e o enthusiasmo dos foliões sobe de temperatura”89.
Para além das mudanças e dos acontecimentos históricos, foi com a institucionalização
do carnaval que surgiram inúmeros outros blocos e o jornal oficial da época passou a relatar
os vários “assaltos” carnavalescos, que foram intensificados a partir de 1937, como os
realizados pelos blocos “Vira, vira, mulata!”, “Fuzileiros da folia” e “Ahi vem a Marinha!” e
os próprios “Guaranys”, como enfatizado alhures.
No carnaval de 1939, “Os Guaranys” realizaram um “assalto” à redação d’A
República90. O interessante neste fato foi a referência ao “prisioneiro” dos indígenas, “um
cavalheiro norte-americano por eles agarrado nas matas virgens do extremo norte, onde
passava as suas férias a caçar borboletas”91.
plenamente. Trata-se do ponto central da cidade, espaçoso, movimentado e para o qual convergirão com
facilidade maior a população da capital e os vários grupos carnavalescos” (A República de 19.02.1936).
87
O expediente de 07 de março de 1935 d’A República traz a seguinte notícia: “Ante hontem, pouco depois das
19 horas, estabeleceu-se sério conflito na avenida ‘Tavares de Lyra’, quando os festejos carnavalescos iam mais
animados e maior era a aglomeração popular, entre praças do Exército e elementos da Guarda Civil. [...] A
polícia civil já instaurou o inquérito competente, afim de apurar a responsabilidade da deploráveo occorrencia de
ante hontem”.
88
A República de 25.02.1938.
89
A República de 19.02.1936.
90
A República de 12.02.1939.
91
A República de 12.02.1939.
[64]
Observamos que estas agremiações carnavalescas traziam à população citadina um
importante momento de lazer e cultura, sobretudo no desfile dos grupos carnavalescos, que
rendeu aos “Guaranys”, nos festejos de 1937, a taça “Rodo Metálico” – da Companhia
Química Rodhia Brasileira – pela boa caracterização (instrumentos, dança e música)92 e, no
ano seguinte, a taça “Fisk” pela originalidade do bloco carnavalesco93. Em 1940, os
“Guaranys” sagraram-se vencedores no concurso de clubes de rua, dividindo o prêmio de
primeiro lugar com o grupo carnavalesco “Tubarões do Norte”94.
A participação de Natal na Segunda Grande Guerra, como vimos, não minguou o
carnaval natalense, pelo contrário, contribuiu para a continuidade dos festejos, trazendo outros
elementos para a cidade, como o samba e suas escolas, a partir da chegada dos militares
cariocas destacados para a terra dos papa-jerimuns95. Aliada à vinda do samba carioca e a
tentativa de homogeneizar o carnaval nos moldes da então Capital Federal, houve a
preocupação, pelos natalense, em manter as especificidades do carnaval local, com seus
frevos, marchinhas carnavalescas, grupos e fantasias. O desfile das tribos de índios foi um dos
mais prestigiados – a exemplo do troféu “Rodo Metálico” –, inclusive pelos militares norteamericanos no período da Segunda Guerra Mundial. Em importante trabalho que revela os
bastidores do carnaval natalense no período entre as duas grandes guerras, Pedreira (2005)
lembra:
As apresentações das tribos de índios no Carnaval natalense também atraíam
a atenção dos visitantes, tanto que faziam convites para que elas se
apresentassem até mesmo fora do período carnavalesco. Isso ocorreu, por
exemplo, quando os americanos de Parnamirim Field chamaram os índios
organizados por Augusto Brasil, um paraibano que teria sido o primeiro
incentivador das tribos aqui na cidade, segundo informa seu filho Raimundo
Nonato Brasil, para que fizessem uma espécie de filmagem com a
participação de seus componentes, devidamente caracterizados junto aos
soldados da base americana (PEDREIRA, 2005: 251-252).
92
A República de 11.02.1937.
A República de 03.03.1938.
94
A República de 08.02.1940.
95
Aliado à chegada dos militares em terras potiguares e junto à “modernização” da sociedade, a tecnologia
espraiou-se pelo país, sendo introduzidas em Natal as emissoras de rádio. Tais objetos tecnológicos contribuíram
para a disseminação de outros carnavais, intercambiando-os em meio aos festejos locais, principalmente os
outros carnavais provenientes do Rio de Janeiro e de Recife: “Os rádios repetirão as marchas lá de fora, de outras
terras, os sambas sacudidos de outros salões, e vamos escutar Bronzeada, Pierrot Apaixonado, Manhãs de Sol,
Quizera ‘a mala’, Palpite Infeliz, Chora Cavaquinho, e tantos outros. E enquanto pelo radio sentimos a alegria
de outras longes terras, pelo coração vamos alcançando as doidices da gente que é nossa” (A República de
23.02.1936).
93
[65]
Para o carnaval de 1944, o prefeito da capital, José Augusto Varella, bem como,
algumas empresas locais, prontificou-se em auxiliar os festejos, conforme A República de
17.02.1944. A Federação Carnavalesca, em nota oficial neste mesmo expediente, através do
Secretário Geral, Djalma Maranhão – mais conhecido como “Chico Folia” – , convidou os
blocos que se encontravam devidamente licenciados para o carnaval daquele ano à
comparecerem ao órgão para receberem o auxílio financeiro concedido anualmente pela
federação.
Nos anos 1950 iniciaram as “batalhas carnavalescas”, incentivadas e acompanhadas –
como membros da comissão julgadora – pelo diretor da Agência Natalense de Publicidade,
Djalma Maranhão, e o prefeito da capital, Sílvio Pedroza. A República noticiou “duas grandes
batalhas carnavalescas no Alecrim”, que ocorriam na semana que antecedia os festejos
carnavalescos, com a participação dos blocos, que percorreram as ruas Presidente Bandeira e
Amaro Barreto e, aos vencedores, foram entregues troféus oferecidos pela própria Prefeitura
Municipal96. As batalhas que antecediam o carnaval continuaram pelas décadas de 1950 e
1960, tanto que em 1958, a tribo Guaranys recebeu a taça de primeira colocada na batalha da
Vila Naval, no bairro Alecrim, seguidos pela tribo Potis, do município de Ceará-Mirim.
Além do bairro Alecrim, as batalhas carnavalescas ocorriam, também, nas Rocas e na
Cidade Alta, sempre com a participação do prefeito da capital e da Federação Carnavalesca e
Cronistas. O expediente de 17.01.1959 retrata bem esta multiplicidade festiva que ocorria em
Natal, ao anunciar as “batalhas carnavalescas” da cidade:
“A Federação Carnavalesca está providenciando tudo para a maior animação
das batalhas a terem lugar nos diversos bairros da capital. [...] Nos dias 24 e
25 na Vila Naval haverá o primeiro grito de carnaval de rua; nos dias 28,
outra batalha nas Quintas; a 31, no Alecrim; dia 1º, nas Rocas e dia 5, na
Cidade Alta”97.
Já no corso oficial, realizado nos dias momescos do carnaval de 1959, a tribo de índios
Carijós recebeu o troféu de “melhores índios”. Uma das categorias dos blocos carnavalescos
que desfilaram foi a “vitória” da tribo de índios Carijós, que recebeu o troféu de melhor tribo
a desfilar no corso oficial da Avenida João Pessoa.
96
97
A República de 01.02.1950.
A República de 17.01.1959.
[66]
Para Raimundo Brasil, o político Djalma Maranhão, primeiramente Secretário de
Cultura e membro da Federação Carnavalesca e, posteriormente, Prefeito de Natal, entre as
décadas de 1940 e 1960, contribuiu bastante para as manifestações culturais locais:
“Na época não faltava nada, aqui ele dava tudo, comprava roupa, dava
roupa, tinha o boi-calemba, tinha chegança, fandango, tinha tudo. Era uma
maravilha. [...] mataram Djalma Maranhão, acabou o folclore aqui de Natal.
[...] ainda tinha as rádios: a Nordeste e a Poti faziam a brincadeirinha de
carnaval e convidavam a gente. [...] tinha, naquele tempo, concurso de passo,
passista [...]” (Raimundo Brasil – Presidente da tribo de índios Potiguares).
De acordo com Gaspar Santos, quando Djalma Maranhão estava à frente do Executivo
Municipal da cidade “tinha chegança, tinha fandango, tinha boi do rei, pastoril, [...] teve um
tempo que tinha um desfile nas Rocas, na cidade”98, e continua, em “tom” de reclamação e
preocupação: “hoje não tem nada, hoje é só aqui [na Ribeira], terminou e ‘zefini’99, você gasta
tanto pra só um dia. Vou dizer uma coisa à você: aqui não existe roda de samba” (Gaspar
Santos – ex-Presidente da tribo de índios Tupinambá). Faz coro a fala saudosista de Paulo
Lira:
“Desde criança que eu me lembre, o maior prefeito que trabalhava com
cultura e gostava de cultura foi o saudoso prefeito Djalma Maranhão, ele
entrava dentro dos bambelôs, dentro do carnaval, das tribos de índios,
dançava com todo mundo, brincava, então esse prefeito era maravilhoso”
(Paulo Lira – Presidente da tribo de índios Tabajara).
Corrobora com as informações do carnavalesco as notícias dos jornais locais da época.
No jornal A República, em 1958, foi noticiado o ensaio geral da tribo Potiguares de “Seu
Brasil”, no bairro Rocas, tendo sido convidado o Prefeito de Natal, Djalma Maranhão, e os
cronistas especializados:
“Dessa vez é o pagé Brasil que nos diz estar fazendo toda força para servir
um caium à altura da tradição de sua nação indígena. Isso se dará no ensaio
geral da tribo, que será realizado às vinte horas de hoje, na Rua Areia
Branca, nas Rocas. [...] O Prefeito da Capital, a Federação e os Cronistas
especializados foram convidados. Vai haver uma demonstração de todas as
danças dos famosos ‘Potiguares’”100.
98
“cidade” é como costumeiramente a população de Natal se refere ao bairro Cidade Alta.
“zefini” consiste numa corruptela do francês “c’est fini”, cujo significado é o mesmo da frase francesa:
acabou, terminou. Tal palavra teve seu surgimento com o personagem Bertoldo Brecha (em homenagem ao
dramaturgo alemão Bertold Brecht), interpretado pelo saudoso humorista Juvemário Tupinambá, que imortalizou
o bordão: “Zefini, tá na boca do Brasí! (C’est fini, está na boca do Brasil!).
100
A República de 05.02.1958.
99
[67]
O prefeito Djalma Maranhão tinha um apreço especial pelas tribos de índios. Após a
importante visita aos Potiguares, no dia seguinte, o político participou do “cauim” oferecido
pela tribo de índios Guaranys, que homenageou o “pai branco”, como era chamado o prefeito
natalense:
“Na Ocara, à av. Alexandrino de Alencar, cruzamento com a Rua Jaguarari,
o Page Bum Bum extrai raízes de plantas medicinais e prepara, com um
álcool proveniente da erva cidreira, uma bebida que se constitui segredo da
tribo há mais de duzentos anos.[...] Essa oferenda, que é feita anualmente ao
“Pai Branco”, já se tornou uma tradição na ida da tribo e do Carnaval
natalense. [...] Foram convidados especialmente para assistir a essa
cerimônia, componentes da Federação Carnavalesca e os Cronistas”101.
As manifestações culturais e o folclore natalense eram bastante expressivos em
meados do século passado, subvencionados pela Prefeitura de Natal, sobretudo no governo do
Prefeito Djalma Maranhão, como lembrou o carnavalesco Raimundo Brasil. No expediente de
31.01.1959, A República realizou um balanço dos três anos de administração do político,
tendo sido lembrado os festivais folclóricos promovidos, realizados ininterruptamente nos
anos de sua gestão – de 1956 a 1959. O jornal lembrou o “fandango, lapinha, pastoril, boi
calemba, chegança, bambelô, congo e cavalhada” que eram apresentados em praça pública e
no Teatro Alberto Maranhão. Conforme o expediente do noticiário, um motivo de atração
turística, a exemplo dos folguedos, foi o “carnaval natalense considerado, pela imprensa do
Sul – como no ano passado aconteceu – como o terceiro maior Carnaval do Brasil”102.
O carnaval de Natal pós-1960 – quando teve seu “ápice cultural”, chegando a figurar
como o terceiro maior festejo momesco do Brasil – continuou a ser realizado, porém não com
a mesma veemência daqueles entre as décadas de 1950 e 1960. No lugar das “batalhas
carnavalescas”, o Executivo Municipal, em parceria com empresas locais, promovia ensaios
gerais com os blocos carnavalescos, como os ocorridos na prévia carnavalesca de 1979,
quando, juntamente com o Diário de Natal e a Rádio Poti, a Prefeitura de Natal realizou o
precedente carnavalesco “Carnaval dos Carnavais”, que contou com a presença das escolas de
samba, já em grande número na capital potiguar – quinze no total – e as três tribos de índios,
além dos quatro blocos de manobras e dezessete blocos estilizados103.
Ainda em 1979, foi anunciada a entrega da ajuda de custo às agremiações
carnavalescas pela Secretaria de Turismo, que disponibilizou para cada tribo de índios a verba
101
A República de 06.02.1958.
A República de 31.01.1959.
103
O Poti de 04.01.1979.
102
[68]
de Cr$ 18.000,00 (dezoito mil cruzeiros). No regulamento daquele ano, as três tribos de índios
– Tupinambás, Potiguares e Guaranis – desfilariam em chave única, cujos critérios julgados
para a escolha da campeã foram: melhor ritual, originalidade da fantasia, organização da tribo
e melhor feiticeiro. O prêmio consistiu em Cr$ 5.000,00 (cinco mil cruzeiros) para a campeã e
Cr$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos cruzeiros) para a vice, além de Cr$ 1.000,00 (mil
cruzeiros) para a tribo vencedora em cada critério julgado104.
Observa-se que as agremiações indígenas se encontravam em número bem menor que
as escolas de samba no carnaval de 1979, fato corrente na folia de momo natalense. É
provável que esta ocorrência habitual se deva ao foco dado às escolas de samba,
principalmente pela transmissão dos desfiles do Rio de Janeiro, a partir de meados da década
de 1970. Ademais, já se podia, ainda na década anterior, visualizar flashes dos desfiles
carnavalescos pela televisão. Ferreira (2004) coloca que foi a partir de meados dos anos 1940
que vários grupos carnavalescos pelo Brasil começaram a se organizar nos moldes das escolas
de samba cariocas, e continua: “Mas será a partir da década de 1960 que a difusão do carnaval
ao estilo da “Capital do Samba” tomaria de roldão quase todas as cidades importantes do
país” (FERREIRA, 2004: 373).
Em finais dos anos 1970 ainda não existia uma entidade representativa dos grupos
carnavalescos – Escolas de Samba e Tribos de Índios – e os problemas eram resolvidos pelos
próprios dirigentes das agremiações carnavalescas, como ocorreu no carnaval de 1979,
quando a Prefeitura de Natal atrasou a subvenção e os grupos de carnaval ameaçaram boicotar
o desfile por falta de verba. No entanto, a uma semana da festa momesca daquele ano, o
Executivo Municipal realizou o pagamento e as agremiações puderam confeccionar suas
fantasias e alegorias105.
Posteriormente, na década de 1980, quando muitos falavam em declínio do carnaval
da capital potiguar, verificamos uma efervescência da festa do Rei Momo. No ano de 1984, o
já tradicional “Carnaval da Saudade”, que antecedia as festas momescas, foi realizado na
avenida Tavares de Lira – que já foi palco de renhidas festas, conforme visto anteriormente –
e contou com a presença das escolas de samba, tribos de índios e o conhecido Trio Elétrico106.
Antes disto, porém, um mês antes do carnaval, a cidade já “respirava” a festa, com
apresentações das escolas de samba e tribos de índios, que estavam em número de cinco –
104
O Poti de 06.02.1979.
O Poti de 16.02.1979.
106
Diário de Natal de 21.02.1984.
105
[69]
Potiguares, Tupinambás, Surubajás, Gaviões-Amarelo e Iraci – em vários locais na capital,
como a primeira prévia carnavalesca daquele ano, realizada no Conjunto Santa Catarina, na
Zona Norte de Natal107.
Foi, ainda, no ano de 1984 que ocorreu um grave acidente envolvendo integrantes do
bloco “Puxa-Saco”, resultando no óbito de vários integrantes, sendo considerado pela
imprensa e população como o suposto declínio do carnaval em Natal. O acidente ocorrido
vitimou vinte e duas pessoas, dentre elas, o neto do Senador Dinarte Mariz. O Jornal O Poti,
que trouxe a notícia estampada em sua página principal, anunciou que a programação do
carnaval natalense para aquele ano, provavelmente, seria cancelada108. O ônibus encontravase com integrantes da escola de samba “Malandros do Samba”, retornando de uma prévia
carnavalesca realizada no bairro Alecrim e, desgovernado ao chocar-se com um veículo,
partiu em direção há quinhentas pessoas, conforme noticiado no jornal109.
Não obstante o luto oficial em virtude das mortes, os festejos continuaram e foi
decidido pelo então prefeito Formiga que haveria a folia momesca na cidade110, com o
“palco” montado na avenida Presidente Bandeira111, no bairro Alecrim, por onde passaram,
entre outras agremiações, as seis tribos de índios daquele ano: pela chave “B”, as tribos
Surubajás – vencedora –, Tabajara – vice –, Guaracy e Gaviões-Amarelo e pela chave “A”, as
tribos de índios Potiguares – vencedora – e Tupinambás – vice112.
A década de 1980 foi, ainda, o marco da inserção dos trios elétricos no carnaval do
Rio Grande do Norte, iniciando uma nova fase da festividade no estado. Ocorre, porém, que a
“chegada” dos trios elétricos não operou o declínio da festa na capital, mas o seu crescimento.
Foi no ano de 1986 que o então prefeito, Garibaldi Alves, “revolucionou” o carnaval
natalense ao trazer à cidade a principal referência do carnaval baiano, o trio elétrico de Dodô e
Osmar113, que animou os festejos carnavalescos, tendo como palco principal a avenida
Prudente de Morais, estendendo-se até a avenida Café Filho, na orla marítima. A euforia do
carnaval daquele ano era grande, ao ponto do jornal Tribuna do Norte anotar os festejos como
107
Diário de Natal de 08.02.1984.
O Poti de 26.02.1984.
109
O Poti de 26.02.1984.
110
Diário de Natal de 29.02.1984
111
É interessante observar que para o carnaval de 1984, foram montadas estruturas de arquibancadas, cujo acesso
se deu pela compra de ingressos para assistir aos desfiles carnavalescos.
112
Diário de Natal de 02.03.1984.
113
Dodô e Osmar animaram o carnaval natalense nos quatro dias de festa do ano de 1986.
108
[70]
uma festa popular esquecida e que foi retomada pela “administração democrática” da
Prefeitura:
“Esquecido pelo poder público há mais de uma década, o carnaval de Natal
ressurge com todas as forças, este ano, nas ruas. A presença do trio elétrico
de ‘Dodô e Osmar’ no chamado ‘corredor da alegria’, traz de volta à avenida
o povo e o ritmo quente do samba e do frevo. O enterro do carnaval
natalense coincidiu com os anos de prefeitos biônicos da cidade. Em
contrapartida a folia das elites crescia nos clubes, nos bailes ‘privés’, nas
praias frequentadas pelos mais sofisticados. Este ano, por determinação do
Prefeito Garibaldi Filho, o carnaval volta a ser a festa do povo”114.
Muito embora não possamos determinar que a folia momesca na capital potiguar de
1986 foi um divisor de águas, é fato que a vinda da concepção baiana de carnaval somou-se às
outras formas de “brincar”, tendo sido aceita pelo público. Esta nova modalidade inserida na
festa, logo irradiou para outros locais, tais como as praias do litoral potiguar e outros
municípios do estado. O carnaval de Macau/RN, em 1984, foi manchete do Diário de Natal,
trazendo uma matéria sobre o “Baile Preto e Branco”, já tradicional naquele município,
promovido pelo bloco “Jardim de Infância” e realizado na Associação Atlética Banco do
Brasil – AABB115. O mesmo jornal, dias depois, noticiou o já conhecido carnaval da praia de
Barra de Maxaranguape, no município homônimo, localizada no litoral norte do estado, onde
descontração e alegria “reafirmaram a tradição que se solidifica com o carnaval de Barra de
Maxaranguape, quase um território livre”116. O mesmo expediente também lembrou as praias
de Pitangui, no município de Extremoz, e Redinha, na capital potiguar, que também tiveram
seus atrativos e irreverências.
O carnaval de Natal agregou – e continua agregando – várias maneiras de se divertir
no carnaval, seja enquanto festejo de reunião de amigos em blocos para “as batalhas
carnavalescas” nas ruas e bailes nos clubes locais, ou com os “modernos” trios elétricos.
Todavia, hodiernamente, a folia potiguar, assim como vem ocorrendo em inúmeras cidades
brasileiras, tomou outras proporções, cuja compreensão, sem recair num determinismo ou
maniqueísmo, perpassa pela lógica do capital que permeia a festa117. Não obstante,
verificamos que não se trata de pensar que este carnaval espetacularizado excluiu as antigas
114
Tribuna do Norte de 09.02.1986.
Diário de Natal de 01.03.1984.
116
Diário de Natal de 08.03.1984.
117
A ideia de espetáculo carnavalesco, comércio e propaganda de forma mais generalizada no carnaval do Rio
Grande do Norte iniciou a partir das duas últimas décadas do século XX.
115
[71]
brincadeiras, mas de mostrar que, hoje, ambos coexistem e se superpõem: nos meandros do
carnaval-espetáculo encontramos as antigas batalhas.
Para além da forte presença do que estamos chamando de carnaval-espetáculo no Rio
Grande do Norte – assim como ocorre em diversos estados brasileiros – verifica-se na cidade
de Natal uma resistência através de outras manifestações culturais, algumas com a iniciativa
do poder público, como o carnaval tradicional da Ribeira, que estamos discutindo no presente
estudo, que contribui para a continuidade das festividades de rua, outras tendo a iniciativa da
própria população – com ou sem subvenção estatal –, a exemplo dos grupos e blocos
idealizados por famílias, ruas e bairros118, conforme veremos na sequencia.
Neste sentido, não podemos concordar que houve um declínio do carnaval natalense,
em detrimento de outras festividades que ocorrem no interior do estado e nas praias. Na
verdade, vislumbramos uma maior facilidade de deslocamento para outras localidades119, bem
como o aumento dos investimentos públicos e privados em festas nas cidades do Rio Grande
do Norte, o que permite boa infraestrutura e grupos musicais com grande aceitação pela
população120.
2.3. A ATUAL CONFIGURAÇÃO ESPACIAL DA FESTA MOMESCA EM NATAL
Precipuamente, é imprescindível colocar que não nos propomos adentrar na
problemática girada em torno dos termos “cultura popular” e “cultura de massa”121. Primeiro
porque a cultura é mais do que uma visão simplista que estabelece uma diferenciação ao
ponto de dicotomizar tais termos. Segundo, pelo fato mesmo de não devermos polarizar, posto
que diferenciar tais manifestações de massa e populares é matéria difícil, para não dizer
118
Cf. FARIAS, DOZENA, 2011.
Aqui falamos na estrutura que o atual meio técnico-científico-informacional permite: estradas, veículos,
pousadas/hotéis.
120
Podemos exemplificar com o curioso caso existente no Rio Grande do Norte, principalmente em Natal e nos
municípios circunvizinhos. A Banda Grafith, muito conhecida pela população natalense, tem a primazia de
conseguir deslocar um bom número de foliões para as localidades onde realiza suas apresentações no período
carnavalesco. Principalmente no município de Macau, onde há vários anos, conduzindo um trio elétrico,
promove uma das manifestações carnavalescas mais conhecidas pelo povo norte-rio-grandense: o “mela-mela”,
momento em que a população presente faz entre si uma brincadeira de “melarem” uns aos outros com mel
distribuído em caminhões cedidos pela Prefeitura, muito parecido com o famigerado entrudo popular
mencionado por Ferreira (2004).
121
Na introdução da presente dissertação já tratamos brevemente deste debate.
119
[72]
“impossível”, pois não há uma fronteira delimitadora destas culturas. A busca, no presente
trabalho, é entender o movimento dinâmico do carnaval, não polemizando ou
problematizando tal discussão que, para o que se pretende no momento, torna-se dispensável.
A cidade de Natal é espaço para várias manifestações carnavalescas, desde pequenos
blocos de família que saem às ruas para comemorar familiarmente até grandes eventos
institucionalizados, como os polos multiculturais subvencionados pelo Executivo Municipal.
O desfile das tribos de índios realizado no polo cultural da Ribeira, assim como os
polos do Alecrim, Rocas e Ponta Negra, onde ocorrem desfiles de vários blocos, seguem
paralelamente às festividades espetacularizadas “na forma da exposição geral da racionalidade
do sistema, e na forma de setor econômico avançado que modela diretamente uma multidão
crescente de imagens-objetos” (DEBORD, 2003: 12), configurando-se como uma alternativa
ao carnaval-espetáculo, coexistindo formas puras e impuras de lazer (SANTOS, 2000).
Se por um lado, existem quatro polos culturais na cidade que valorizam os festejos
mais tradicionais, como os blocos carnavalescos, a Prefeitura de Natal também realiza um
carnaval cujo formato delineia-se como a atual forma de se divertir nestes dias festivos, qual
seja, o das bandas de “axé music” e trios elétricos. Percebe-se que em paralelo ao lazer
artesanal localizado, faz-se presente o lazer industrial globalizado, ao que Santos (2000)
chamou de lazer autonomizado, presidido pelo consumo:
Essa autonomização faz do lazer uma indústria, uma operação onde as
diversas peças formam sistema, seja ele o turismo ou o esporte ou qualquer
sorte de divertimento. Trata-se de um sistema relativamente fechado e
autossustentado. Dele fazem parte a produção de eventos e suas
infraestruturas, a produção e a reprodução dos atores da cena, a sua difusão
massificada, a convocação ao consumo. Cria-se um lazer que tende mais a
agir sobre as sociedades do que vice-versa, e que tende a plasmar o gosto, a
domesticar o uso do tempo, a mobilizar em seu favor os recursos disponíveis
agora e no futuro, a conformar expectativas e a impor e reforçar imagens do
mundo e do outro (SANTOS, 2000: 32).
Ao carnaval natalense dito tradicional foi dado um (des)valor, de ordem econômica e
cultural, modificado pela importância dada a outras formas de festejar, deixando o lugar “à
margem da rede de lugares a que se vincula” (CORRÊA, 2003b: 40)122. As tribos de índios,
no processo de organização espacial do carnaval, sofreram um forte impacto pelas mudanças
122
Aqui nos referimos aos trios elétricos e à forte mídia, sugerindo aos foliões a saída da capital em direção aos
municípios e praias que promovem um carnaval ao estilo baiano de comemorar.
[73]
tecnológicas da sociedade, onde novas práticas espaciais123 selecionaram os lugares
destinados às festas carnavalescas. A prática de se festejar o carnaval, após a inserção do
“modelo baiano” no Rio Grande do Norte, sobrepondo-se aos desfiles e marchinhas,
reorganizou os territórios carnavalescos, influenciando diretamente a população.
Verificamos, assim, uma seletividade espacial, onde determinados municípios e praias,
por apresentarem “atributos julgados de interesse de acordo com os diversos projetos
estabelecidos” (CORRÊA, 2003b: 36), passam a ser os locais de destino da população
natalense, verdadeiras mercadorias que seduzem e atraem os consumidores, resumindo-se
numa completa fetichização. Em decorrência do aumento da demanda, a própria festa tende
ao crescimento, completando o círculo econômico de reprodução do capital.
O principal exemplo é o município de Macau, pertencente à mesorregião Central
Potiguar e, atualmente, um dos principais destinos carnavalescos da população natalense124.
Provavelmente pela proximidade com esta localidade, outros municípios aderiram o
“formato” macauense, com a inserção de grupos musicais renomados e trios elétricos em seus
festejos, o que proporcionou investimento privado, sobretudo local, a exemplo do Mercantil
Bompreço125 na cidade de Pendências, que tem sua logomarca estampada no trio elétrico nos
dias carnavalescos, bem como a imagem do casal de proprietários, valorizando-se
simbolicamente a família, como importante marketing para o comércio de uma cidade
arraigada em valores tradicionais. Quanto às praias, o fluxo é intenso tanto ao litoral norte,
destacando-se as praias de Muriú (Ceará-Mirim), Barra de Maxaranguape (Maxaranguape) e
Touros (Touros), quanto ao litoral sul do estado, principalmente a praia Pirangi do Norte
(Parnamirim).
As atrações que se apresentam nesta modalidade de carnaval, em sua grande maioria,
são grupos de “axé music”, sobretudo da Bahia e bandas de forró que tocam um ritmo
denominado de “forró elétrico”126. Tais grupos musicais se revezam participando dos
carnavais de várias cidades, numa espécie de circuito. O estágio alcançado pelo turismo
atualmente possibilita e impulsiona esta modalidade de festa. Não é outra a assertiva de
Carlos (1999):
123
Entendemos por práticas espaciais o “conjunto de ações espacialmente localizadas que impactam diretamente
sobre o espaço, alterando-o no todo ou em parte ou preservando-o em suas formas e interações espaciais”
(CORRÊA, 2003b: 35).
124
Destacam-se, também, os municípios de Caicó, Apodi, Areia Branca, Pendências e Assu.
125
O supermercado local é, atualmente, pertencente à Rede Gol, de proporções regionais.
126
Tal ritmo consiste numa forma de executar a música em um estilo similar ao “axé music”.
[74]
A indústria do turismo transforma tudo o que toca em artificial, cria um
mundo fictício e mistificado de lazer, ilusório, onde o espaço se transforma
em cenário para o “espetáculo” para uma multidão amorfa mediante a
criação de uma série de atividades que conduzem a passividade, produzindo
apenas a ilusão da evasão, e, desse modo, o real é metamorfoseado,
transfigurado, para seduzir e fascinar. Aqui o sujeito se entrega às
manipulações desfrutando a própria alienação e a dos outros (CARLOS,
1999: 26).
Em Natal, ao contrário, a prefeitura preferiu investir no artista local invocando a
valorização profissional dos grupos e dos cantores127. Se, por um lado, ocorre a seletividade,
por outro, a capital potiguar no período carnavalesco torna-se marginalizada espacialmente,
em virtude de fatores de ordem cultural, econômica e política. Se uma parte da população
deixou de comemorar a festividade momesca em Natal, migrando para as praias e interior do
estado, pari passu, os governos municipal e estadual destinam poucos investimentos, motivos
estes que afastam a iniciativa privada, que, por sua vez, busca outros lugares que ofereçam
rentabilidade aos seus investimentos, cumprindo a própria lógica do capital: mercantilização e
publicidade midiática. Exemplo disto é o “camarote Devassa” no carnaval macauense, da
marca de cerveja Devassa, do Grupo Schincariol, “legitimando” a marca como uma empresa
que apoia a “cultura”.
O carnaval encontrado em grande parte das praias e do interior potiguar teve seu valor
de uso absorvido pelo seu valor de troca, cuja experiência da festa de rua e local do encontro,
bem como das relações pessoais e de sociabilidade, subordina-se ao imperativo do prestígio
mercadológico. Vive-se, nestes lugares, uma indústria cultural que modela o cotidiano e
influencia diretamente as diversas culturas tendenciadas à homogeneização social. O carnaval
do Rio Grande do Norte, visto sob este ângulo, apresenta a configuração homogeneizante das
bandas baianas e trios elétricos e elevado consumo de produtos – principalmente bebidas –
num intenso comércio, que reúne agentes do circuito superior e circuito inferior da economia
urbana128 (SANTOS, 1979a). Claval (2001a), discutindo a cultura de massa, argumenta:
127
A informação foi retirada do site da Prefeitura de Natal, disponível em: <http://www.natal.rn.gov.br/noticia/
ntc-7790.html>, acesso em: 09.02.2012.
128
Os dois circuitos da economia urbana, embora opostos, estão longe de serem independentes, não devendo ser
estudados isoladamente. Cada um destes circuitos é um sistema, porém, se pensarmos a cidade como uma
totalidade, eles constituem subsistemas da urbe, interdependentes e complementares, sendo o circuito inferior
dependente do superior: “Mas, não há dualismo nisso, os dois circuitos têm a mesma origem, o mesmo conjunto
de causas e são interligados. Não obstante sua interdependência aparente, o circuito inferior é de fato dependente
do circuito superior” (SANTOS, 1979b: 38).
[75]
A revolução contemporânea da comunicação questiona, pois,
profundamente, a natureza geográfica e o papel dos componentes da cultura.
As tradições populares estreitamente localizadas são substituídas pela cultura
de massa onde muitas formas são as mesmas em todos os pontos do planeta
(CLAVAL, 2001a: 350).
Note-se, porém, que se por um lado existe um uso racional do espaço, por outro,
coexiste com este outros usos que se traduzem em espaços de sociabilidade, compostos por
“outras formas de racionalidade, racionalidades paralelas, divergentes e convergentes ao
mesmo tempo” (SANTOS, 1996a: 246).
Na década de 1990, a Prefeitura Municipal de Natal revitalizou o carnaval na cidade,
introduzindo os polos carnavalescos. Esta inovação buscou – e busca – concentrar a
população local na cidade no período carnavalesco, em virtude da proliferação das cidadesfestivas e praias-festivas129, onde o carnaval, enquanto mercadoria, “nega a invenção lúdica e
vai transformando história, cultura e tradição em divertimento e lazer” (SERPA, 2007a: 80),
mediatizado pela mercantilização que se estende à esfera social. É interessante observar que a
ação comunicativa130 expõe um significado e potencializa a “cidade-produto”, transformada
em símbolo cultural para a sociedade de consumo.
Buscando a memória da cidade e valorizando o carnaval de outrora, a Prefeitura, há
alguns anos, instituiu o polo Ribeira, justamente no bairro que “nasceu” com a cidade e já foi
o lócus político, econômico e cultural de Natal, ainda “vivo” em sua paisagem 131 e dotado de
uma memória coletiva132, por haver sido um espaço “que foi compartilhado por uma
coletividade durante certo tempo” (ABREU, 1998: 84).
Observa-se que o desfile das tribos de índios no polo multicultural da Ribeira permitenos falar em formas híbridas do festejo carnavalesco no interior da cidade, designado por
Canclini (2000) de heterogeneidade multitemporal, por se tratar da coexistência de diversos
tempos históricos na mesma festividade. De acordo com o teórico, a “heterogeneidade
129
O termo “cidade-festiva” foi utilizado por Serpa (2007a) referindo-se à cidade “que se reinventa para o
espetáculo e para o turismo prepara[ndo] uma ‘festa’ centralizadora e concentradora de renda” (SERPA, 2007a:
80). E parafraseamos o geógrafo ao usar “praia-festiva” de forma análoga à “cidade-festiva”, referindo-se às
praias do litoral potiguar.
130
Esta ação comunicativa se dá por meio da linguagem em suas várias formas: mídia, pessoal, formal e
informal.
131
Segundo Abreu (1998), o passado das cidades brasileiras “está sendo revalorizado e a
preservação/recuperação/restauração do que sobrou das paisagens urbanas anteriores é um objetivo que vem
sendo perseguido por inúmeros agentes, destacando-se aí os governos municipais” (ABREU, 1998: 81), a
exemplo de Natal.
132
Partilhamos do entendimento de que memória coletiva consiste em lembranças compartilhadas por um grupo,
desenvolvidas em um quadro espacial.
[76]
cultural da cultura moderna é conseqüência de uma história na qual a modernização operou
poucas vezes mediante a substituição do tradicional e do antigo” (CANCLINI, 2000: 74). É
assim que entendemos as cidades: “abrigam ao mesmo tempo uma cultura de massas e uma
cultura popular, que colaboram e se atritam, interferem e se excluem, somam-se e se
subtraem, num jogo dialético sem-fim” (SANTOS, 1987: 66).
Mesmo com a preservação das manifestações culturais e carnavalescas da cidade, por
meio da Secretaria de Turismo e da Fundação Capitania das Artes, a ausência de patrocínio e
mídia, aliados ao pouco investimento do executivo municipal e estadual, aparecem como
obstáculos à produção dos festejos pelos grupos carnavalescos – escolas de samba, tribos de
índios, troças, blocos. Exemplo disto foi a não realização do desfile no carnaval tradicional da
Ribeira em virtude da não subvenção do Executivo Municipal no ano de 2013.
O público que comparece ao carnaval tradicional da cidade é, basicamente, formado
por moradores da capital potiguar, sobretudo dos bairros menos abastados e que tangenciam a
localidade em que ocorre o evento. Neste universo, a maioria são familiares, amigos e
vizinhos dos participantes das tribos de índios e escolas de samba.
Observando-se o tradicional carnaval do bairro Ribeira, constatamos que se trata de
um evento valorizador da manifestação cultural de Natal, principalmente das tribos de índios,
mas que não possui muita repercussão em nível estadual. Embora visualmente o polo
carnavalesco pareça ter um grande público, notamos que este se restringe aos vínculos que as
pessoas têm com os participantes das agremiações, quando não são os próprios integrantes
que permanecem dispersos no entorno antes ou após o desfile, concentrando a população de
baixa renda que tem este evento como a alternativa para “brincar” o carnaval.
[77]
3. O CARNAVAL DAS TRIBOS DE ÍNDIOS: ARRANJOS E PRÁTICAS ESPACIAIS
Ao estudarmos as tribos carnavalescas, é importante compreender que não devemos
nos ater somente ao mundo carnavalesco, tendo em vista que tais agremiações, em um nível
de abstração preocupado com os aspectos econômicos e políticos, constituem-se numa
unidade complexa que exige, para seu pleno funcionamento, uma organização voltada para a
realização do desfile.
A organização formal que antecede os preparativos para a apresentação é cíclica,
iniciando-se no último quartel do ano. Após o carnaval, as tribos desarticulam-se, sobretudo
aquelas que não se consagraram vencedoras. É um momento de stand by que se encontram as
agremiações, ainda sem a perspectiva do que será realizado no próximo ano. Provavelmente,
isto se deve ao fato de não haver muitos investimentos e haver a total dependência dos entes
públicos. Os presidentes – talvez os únicos empenhados durante o ano – das tribos
vencedoras, nos primeiros meses após o carnaval, submetem-se a “visitar”, quase diariamente,
a FUNCARTE, em busca do prêmio pecuniário, com o intuito de realizarem a
confraternização com os “brincantes” e efetuarem o pagamento aos credores.
Como observado, uma abordagem econômica e política do carnaval das tribos de
índios faz-se necessária, mormente porque as necessidades materiais da vida social
necessitam de mecanismos político-econômicos acionados pelos agentes públicos no
planejamento e regulações para o período momesco.
Foi, principalmente, com a aprovação do Regulamento dos desfiles, por meio do
Decreto Municipal nº 8.368/2008, e o aumento de agremiações para a disputa carnavalesca,
que estes agenciamentos tornaram-se necessários, como veremos a seguir.
Não é interessante à pesquisa estudar as tribos de índios de carnaval por si só, isto é,
deixando de se considerar outros aspectos que as envolvem, como se fossem “aldeias” ou
“sociedades tradicionais”, nos moldes estruturalista e sincrônico. É imprescindível
compreender a dinâmica espacial que embarca as relações mantidas na sociedade. Tais
aspectos – econômico e político – serão, portanto, abordados no presente capítulo.
[78]
3.1. OS ASPECTOS ECONÔMICOS DO CARNAVAL DAS TRIBOS
É impossível pensar as relações sociais sem considerar os elementos globais
projetados nos lugares, principalmente quando estamos considerando estas relações na urbe.
Deste modo, não podemos deixar de observar as tribos de índios em uma dimensão
econômica, posto que “a ordem global busca impor, a todos os lugares, uma única
racionalidade. E os lugares respondem ao mundo segundo os diversos modos de sua própria
racionalidade” (SANTOS, 1996a: 272).
A criação das alegorias e a confecção das fantasias promovem uma importante rede de
relações econômicas, com toda a complexidade que caracteriza uma cidade, que não
permanece somente no bairro, mas espraia-se pela urbe e agrega uma gama de agentes.
Portanto, se existe um mercado que reproduz o capital no interior destas tribos, gerando renda
e ocupação, envolvendo o setor público e o privado, é imprescindível a abordagem econômica
na presente discussão.
É neste sentido que Santos (2000) ensina que o lazer é capaz de gerar empregos que
não se restringem ao âmbito das empresas e da burocracia, utilizando-se do tempo livre das
pessoas para produzir diversão, mas, também, trabalho, por meio de uma cadeia de
solidariedade.
Se o carnaval institucionalizado dos desfiles de escolas de samba do Grupo Especial
carioca e paulista indicam uma alta concentração econômica que estrutura uma rede de
comércio e trabalho133, a festividade momesca em Natal, se pensarmos em termos
comparativos, não conta com investimentos vultosos pelo Poder Público municipal, que, no
ano de 2012, subvencionou as escolas de samba com o valor de R$ 189.700,00 e as tribos de
índios com R$ 79.390,00. Quanto à premiação fornecida aos vencedores, às escolas foi
destinado o valor de R$ 123.000,00 e, às tribos, a importância de R$ 36.000,00134. Houve,
ainda, o investimento de R$ 120.000,00 para contemplar cinquenta projetos carnavalescos,
lançado por meio de Edital de Chamamento Público135. Quanto ao Governo Estadual, foram
133
É importante observar que estamos nos referindo à fábrica de entretenimento que se tornou o carnaval carioca
e paulista do Grupo Especial.
134
Os valores foram indicados pelo Tesoureiro da Associação das Escolas de Samba e Tribos de Índios de Natal
– AESTIN, em reunião ocorrida no dia 02.02.2012, bem como através dos Decretos Municipais nº 9.622/2012 e
9.623/2012.
135
Decreto nº 9.614/2012, de 26 de janeiro de 2012.
[79]
destinados R$ 410.000,00 para as festas em todo o Estado, dos quais, R$ 100.000,00 para as
escolas de samba e R$ 30.000,00 para as tribos de índios.
Tabela 1 – Investimento Público para o Carnaval/2012
200.000,00
180.000,00
160.000,00
140.000,00
120.000,00
Escolas de Samba
100.000,00
Tribos de Índios
80.000,00
60.000,00
40.000,00
20.000,00
0,00
Subvenção
municipal
Subvenção
estadual
Premiação
municipal
Fonte: Tabela elaborada pelo autor com base nos dados indicados pelo tesoureiro da AESTIN e os
Decretos Municipais nº 9.622/2012 e 9.623/2012.
A participação financeira da iniciativa privada para o carnaval tradicional da Ribeira é
inexistente, conforme relata o tesoureiro da AESTIN, Ronaldo Cruz: “não há participação da
iniciativa privada e as pessoas que trabalham na FUNCARTE não têm know-how para
trabalhar com cultura”. O entrevistado mencionou que a associação iria procurar por
investimentos privados, independentemente dos órgãos públicos, para aumentar a receita das
agremiações carnavalescas e, assim, produzir melhor o desfile.
Contudo, pensamos que, provavelmente, a intenção de angariar patrocínio privado
pela AESTIN – elemento essencial nos grandes eventos e festas – não avance em virtude da
pouca divulgação da imagem do patrocinador, pela ausência da mídia local. A divulgação se
restringirá às pessoas que forem assistir o evento, o que, em sua grande maioria, congrega a
população pobre da cidade.
Não podemos negar que, embora o montante destinado às agremiações carnavalescas
seja residual, a produção do desfile das tribos de índios movimenta – mesmo que
minimamente – a economia local, sobretudo o varejo moderno e o pequeno varejo, bem como
o trabalho autônomo no interior dos bairros, para a produção dos artefatos utilizados no
desfile. Neste sentido, Santos (2000) argumenta:
[80]
Ao mesmo tempo em que, com a globalização da economia, se modifica a
organização da produção e mudam as condições do emprego e as condições
do desemprego, criam-se novas atividades, inclusive essas ligadas ao tempo
livre e ao lazer, que passam a constituir um fenômeno misto, porque
participando como um setor importante da economia e porque vigorosa
manifestação da cultura, opondo e reunindo cultura de massa e cultura
popular, o mundo e o lugar, o mercado e a vida” (SANTOS, 2000: 35).
Os grupos carnavalescos são, assim, dependentes do capital, essencialmente na sua
forma líquida – em espécie –, diante da imperiosa necessidade do pagamento “à vista” para
determinados materiais importantes para a confecção, sobretudo àqueles adquiridos no
circuito inferior da economia urbana, posto que este circuito “tem uma verdadeira ‘fome’ de
dinheiro líquido, [...] ele [dinheiro em espécie] age como um ‘lubrificante’ nas engrenagens
do circuito inferior” (SANTOS, 1979a: 182)136. Zeneide Diniz descreve esta necessária
liquidez financeira:
“Pra gente botar a tribo na avenida, a gente não bota só com agave, com
cola, nem com papel. A gente precisa de agave, a gente tem que comprar. Eu
compro lá em São Gonçalo [do Amarante]. Para ir pra São Gonçalo, eu
preciso de ônibus, de carro, pra isso, eu preciso de dinheiro, né verdade? Pra
comprar, eu tenho que ter dinheiro. Um quilo de agave é três e vinte e cinco;
um quilo de agave só dá pra eu fazer uma saia. Eu tenho quase cento e
cinquenta componentes, aí tem que buscar esse agave e tem que fazer essa
saia; eu tenho que pagar uma pessoa pra fazer, pra isso tudo precisa de
dinheiro” (Zeneide Diniz – Presidente da tribo de índios Gaviões-Amarelo).
Há, também, a necessidade de deslocamentos a outros centros urbanos para comprar
determinados produtos não encontrados na capital, acarretando maior dispêndio à tribo em
virtude do aluguel de veículos para o traslado dos itens comprados. Paulo Lira analisa o fato
de ter se deslocado à cidade de João Câmara, distante 75 quilômetros da capital potiguar, para
realizar a compra de materiais importantes:
“Eu tomei trezentos reais emprestados pra comprar o agave e o sisal137 em
João Câmara, paguei o carro. O agave não é nem tão caro, mas foi cento e
cinquenta reais pra o rapaz ir comigo lá em João Câmara comprar o agave,
136
O dinheiro líquido, conforme Milton Santos (1979a), consiste num dos três elementos essenciais para o
funcionamento do circuito inferior, por assegurar várias funções no interior do circuito. Ele representa “os
pagamentos em numerário, indispensáveis ao consumidor final, bem como aos agentes, para pagarem
parcialmente suas dívidas e obterem assim novos créditos” (SANTOS, 1979a: 180).
137
Agave e sisal consistem no mesmo produto. Sisal – agave sisalana perr – é o nome popular de uma planta
que, entre outros fins, é utilizado no artesanato. As tribos de índios utilizam a fibra das folhas – chamada
popularmente de agave – para confeccionar as fantasias.
[81]
porque aqui em Natal não tem” (Paulo Lira – Presidente da tribo de índios
Tabajara).
Dois fatores, portanto, obrigam as agremiações a adquirirem produtos em localidades
distantes do centro urbano de Natal: a falta de determinados itens no comércio varejista local
e o preço. Conforme colocado alhures, por vezes é necessário viajar para outros municípios
em busca do material para a confecção dos artefatos.
A compra da fibra das folhas de sisal – agave – diretamente nas fazendas produtoras
permite às tribos de índios utilizarem um dos mecanismos característicos para a formação do
preço no âmbito do circuito inferior da economia urbana: a pechincha, isto é, “a discussão que
se estabelece entre o comprador e o vendedor sobre o preço de uma mercadoria (SANTOS,
1979a: 196). Outras aquisições, tais como pneus, rodas e tábuas para confeccionar as
alegorias, também exigem o dinheiro em cash, e, geralmente, tais produtos são adquiridos em
pequenos comércios locais – por exemplo, borracharias – e com baixa qualidade, sendo, quase
sempre, um material reutilizado – de “segunda mão”. Para Santos (1979a), esta estratégia de
minoração do valor do produto só é possível em atividades econômicas de pequena escala.
A contratação temporária para determinados serviços especializados também está
presente nas tribos de índios, a exemplo do soldador contratado para os trabalhos de solda das
alegorias da Tabajara. Esta é uma necessidade das agremiações carnavalescas, não obstante a
realização de alguns trabalhos com recursos de mão-de-obra sob o imperativo dos vínculos
vicinais e de amizade.
Esta modalidade de emprego temporário também necessita de dinheiro em espécie
para a aquisição do material que será utilizado e pagamento da diária ou empreitada do
autônomo, pautada numa economia popular: “se nós vamos mandar fazer um trabalho de
solda, nós pagamos, por sinal, eu comprei uma máquina de solda; é o meu vizinho, senhor
Augusto, ele não me cobra, mas a gente dá uma gratificação” (Paulo Lira – Presidente da tribo
de índios Tabajara).
No carnaval de 2011, a tribo de índios Gaviões-Amarelo contratou uma costureira do
bairro pelo simples fato de ser avó de um dos batedores da agremiação, ainda que a confecção
tenha saído relativamente mais “cara” que em outros lugares, reforçando os laços de
solidariedade e o vínculo de vizinhança, demonstrando uma lógica interna do mecanismo dos
preços diversos do sistema presentes no circuito moderno. A Tribo Tupi-Guarani também,
para aquele carnaval, contratou dez costureiras para as atividades de costura.
[82]
As atividades de solda e costura são constituintes do circuito inferior, com dimensões
econômicas reduzidas e não-modernas138. Enquanto o soldador da tribo Tabajara sequer
dispunha de seu instrumento de trabalho, que foi adquirido pela própria agremiação; por outro
lado, para a costureira que prestou seus serviços à tribo Gaviões-Amarelo, a máquina de
costura representa seu capital e a sua residência é o seu local de trabalho139. Tais atividades
exigem “pouco no plano dos equipamentos e de sua renovação e é sustentada pela exigência
de uma demanda na cidade, adaptando-se facilmente às oscilações desta última” (SANTOS,
1979a: 166).
Na tribo de índios Gaviões-Amarelo, alguns dos componentes são remunerados pela
“ajuda” dispensada ao grupo durante os meses de trabalho na produção das fantasias e
alegorias. Os “voluntários” que confeccionam o material recebem um “agrado” em virtude do
tempo despendido:
“Tem a contratação, só que eu faço o seguinte: eu boto minha filha e tem
duas componentes da tribo que fazem a fantasia junto comigo […]. Eu dou
uma contribuição; eu num vou dizer ‘eu pago’ porque a gente num tem
condições de pagar. Pronto, nesse ano mesmo [de 2011] eu dei uma
contribuição de cem reais para as meninas, pra me ajudarem, porque fizeram
as fantasias” (Zeneide Diniz – Presidente da tribo de índios GaviõesAmarelo).
Para o carnaval de 2012, Zeneide Diniz “contratou” três componentes para a feitura
das fantasias – das quais, duas são filhas da presidente – e pagou pelo serviço a quantia de R$
200,00. Quanto ao “desfio” do agave, um dos componentes recebeu R$ 1,00 para desfiar e R$
2,00 para cada peça (saia) confeccionada. Quanto às alegorias, o valor foi de R$ 500,00 por
cada uma das três, cuja montagem ficou a cargo de quatro componentes. As lanças e flechas –
chamadas de “bodoque” – foram feitas pelo feiticeiro, que recebeu a quantia de R$ 200,00.
Também houve pagamento – “gratificação” – para os componentes da bateria (batedores) e
destaques da agremiação (pajé, caçador, feiticeiro) pelo “trabalho diferenciado” à frente da
tribo de índios.
138
Preferimos utilizar circuito inferior que terceirização ou serviços, pois concordamos com Santos (1979a), ao
colocar que aquele “recobre uma realidade muito mais ampla que a expressa pelo termo ‘terciário’. Na realidade,
trata-se mais de um conceito que de uma denominação; o circuito inferior é o resultado de uma situação
dinâmica e engloba atividades de serviço como a doméstica e os transportes, assim como as atividades de
transformação como o artesanato e as formas pré-modernas de fabricação” (SANTOS, 1979a: 158).
139
Sobre o trabalho na residência, Santos (1979a) argumenta: “É comum que o local de trabalho dos artesãos e o
ponto de venda dos comerciantes sejam em sua habitação, mesmo que alguns disponham de uma venda no
mercado ou na cidade. Isso representa uma economia de tempo e de dinheiro e quase sempre constitui a única
possibilidade de ter uma atividade econômica” (SANTOS, 1979a: 170).
[83]
Estas contratações, baseadas em vínculos de vizinhança, parentesco e amizade,
constituem-se padrões culturais cuja racionalidade dos agentes sociais envolvidos foge àquela
dominante pautada em termos eminentemente econômicos. Estes “biscaites” de origem
familiar e vicinal permitem a produção sem mobilizar tanto capital, mas, por outro lado, é
dependente dos horários livres de cada trabalhador que exerce algum tipo de atividade
profissional, sendo, portanto, flexível e adaptável às condições impostas pelo tempo
hegemônico. Tais atividades são identificadas quando não desviamos totalmente a atenção
para a racionalidade hegemônica, que nos possibilita verificar estas experiências no interior da
sociedade produzidas pelos de baixo:
É necessário abrirmo-nos a outras soluções, fundadas no tripé: Território,
Cotidiano, Cultura. Gente junta, que cria trabalho. Gente reunida é produtora
de economia, criando, conjuntamente, economia e cultura. E sendo produtora
de cultura, também é produtora de política. O país 'de baixo' é uma fábrica
de manifestações genuínas, representativas, autênticas. É aí que se encontra a
riqueza da improvisação. Essas formas espontâneas, ou quase, tanto são
alimentadas das tradições quanto das inovações” (SANTOS, 2000: 35).
Percebe-se que há, no interior destes grupos carnavalescos certa racionalidade
organizacional, na medida em que, para alguns trabalhos, dada a sua extrema relevância para
o desfile, são contratados profissionais para a execução, e, nas contratações por afetividade,
também há exigência dos presidentes das agremiações para a consecução de um bom trabalho,
sempre evidenciando a necessidade de “sair bonito na avenida”. São ações cuja racionalidade
instrumental nos permite pensar numa finalidade objetivada de vencer o desfile.
Verificamos que não existe um número certo de contratações – seja de profissionais ou
de integrantes para ajudar na confecção – variando de um ano para outro. Esta variabilidade
também se refere aos valores e as próprias pessoas que são contratadas, pois, depende da
disponibilidade destas no momento da realização dos trabalhos de produção das alegorias e
fantasias, que se dá nos meses que antecedem o carnaval – geralmente de dezembro a
fevereiro.
As tribos de índios também dispõem de uma linha de crédito concedida por uma
empresa do comércio varejista local: a loja “Ponto dos Botões”. O crédito é aberto às
agremiações a partir de valores previamente combinados entre as tribos de índios e a AESTIN
e “representa a possibilidade de acesso ao consumo, mesmo que não tenham renda fixa”
(SANTOS, 1979a: 180). Este crediário, de acordo com o proprietário da empresa, foi
solicitado há sete anos pela associação dos grupos carnavalescos e foi aceito no intuito de
[84]
ajudar o carnaval local, tendo em vista a impossibilidade de organizarem-se, posto que a
subvenção do Poder Público é disponibilizada somente nas proximidades da festa
carnavalesca. Representa, pois, outra racionalidade, diversa daquela cuja relação é impessoal,
própria deste tipo de comércio moderno.
Não há um valor fixo para cada tribo nem a obrigatoriedade de se utilizar toda a linha
de crédito disponível, mas, frente às dificuldades em se produzir o carnaval, a empresa
varejista consolida-se como um “salva-vidas” destas agremiações, conforme podemos
perceber nas palavras do ex-presidente da tribo de índios Tupinambá, Gaspar Santos: “A
‘Ponto dos Botões’ é quem garante a gente”. Paulo Lira, no entanto, demonstra certa
insatisfação, por considerar elevados os valores dos produtos:
“O pessoal da AESTIN vai lá, conversa lá, faz um acordo com o rapaz do
Ponto dos Botões, aí, por exemplo, ele nos fornece mercadoria, dá um
crédito. Por exemplo, se é cinco mil reais, ele dá um crédito de três mil, e
dentro destes três mil tem que comprar pena, comprar cola, comprar tudo, só
que compra tudo mais caro, é como quando você vai comprar numa
mercearia” (Paulo Lira – Presidente da tribo de índios Tabajara).
As mercadorias que servem de matéria-prima para a confecção das fantasias destas
agremiações são artigos pouco vendidos e, geralmente, importados – tais como pena de
faisão, plumas e pena da costa – denotando uma margem de lucro alta por unidade, tornando o
custo elevado, sobretudo, pela cadeia de intermediários existente140. Tal fato é sentido pelas
tribos de índios:
“É dando no pescoço! Você sabe quanto que custa essa pena aqui? Um quilo
dessa pena tá custando cento e quarenta reais. Quando você faz qualquer
comprinha, vai embora setecentos, mil e cem, dois mil reais” (Gaspar Santos
– ex-Presidente da tribo de índios Tupinambás).
“A gente compra aquelas penas, pensando que dá, aí num dá, tem que
comprar mais, o dinheiro num dá pra pagar, quando vai pedir o dinheiro, o
dinheiro num dá pra pagar, a gente bota do próprio bolso, é fogo. Um quilo
da pluma, aquela pena pluma, é um mil reais, numa besteira a gente comprou
trezentos, quatrocentos, quinhentos, depende do tamanho, só bota pra lascar
mesmo” (Raimundo Brasil – Presidente da tribo de índios Potiguares).
“Esse ano foi quase sete mil, Ponto dos Botões fica quase com tudo. Esse
negócio aqui de cola custa R$ 21,69; não dá pra eu fazer nem dez penachos.
Aí me diga, como é que eu faço? Cada ‘bichinho’ desse aqui, eu tenho cento
140
Alguns destes artigos, por serem importados, perpassam vários agentes – atacadistas, transportadores – até
chegarem ao consumidor final, o que eleva o valor do produto por unidade e torna dificultosa a sua aquisição,
principalmente pelas camadas mais populares.
[85]
e poucas pessoas, né, esse ano eu fui com cento e vinte, aí me diga, como é
que eu faço? É todo mundo sem dinheiro” (Zeneide Diniz – Presidente da
tribo de índios Gaviões-Amarelo).
A loja citada alhures, que supre as necessidades das tribos de índios, constitui-se como
um elemento puro do circuito superior, caracterizado por Santos (1979a) de comércio
varejista moderno, isto é, de modernização do bazar. Pereira (2009) coloca as lojas de
variedade como instituições presentes no varejo moderno, contendo:
“[...] uma diversificação dos produtos rigorosamente controlada que garanta
uma razoável escolha por parte dos fregueses e ao mesmo tempo a venda em
massa de produtos padronizados, bastante espaço que permita a venda em
grandes quantidades combinada com diversificação de mercadorias”
(PEREIRA, 2009: 136-137).
Conforme Santos (1979a), analisando o Brasil dos anos 1970, este tipo de loja
representava um “fenômeno em expansão nos países subdesenvolvidos” (SANTOS, 1979a:
68). Percebemos, ainda, a atualidade deste fenômeno, como, por exemplo, a instalação de uma
filial do Ponto dos Botões na Zona Norte, uma região em franco crescimento na cidade, no
interior de um importante supermercado natalense, o Nordestão. Para Santos (1979a):
Sua existência está ligada à possibilidade de uma demanda mais numerosa e
mais diversificada, assim como às possibilidades de pagamento em dinheiro
líquido ou segundo as formas burocráticas de crédito, tais como os cartões de
crédito instituídos pelos bancos ou sistemas de crédito particulares a certas
firmas comerciais (SANTOS, 1979a: 68).
Pela própria característica de atividade vinculada ao varejo moderno, a população
consumidora dessa loja é composta, essencialmente, pelas camadas ricas e médias. Porém,
pela não-rigidez, percebemos a presença das camadas pobres – a exemplo destas agremiações
carnavalescas – no circuito superior, por se tratar “de um consumo parcial ou ocasional das
categorias sociais ligadas ao outro circuito” (SANTOS, 1979a: 33). Daí a reclamação e
lamentos dos presidentes, considerando os artigos com alto valor.
Ainda assim, pela necessária aproximação espaço-temporal com certas mercadorias, as
tribos de índios encontram-se prisioneiras deste mercado local, sobretudo pela frequência na
compra de determinados itens (tubo de cola, por exemplo) e pela indisponibilidade de verbas
para deslocar-se a outros centros urbanos, a exemplo de Recife, capital de Pernambuco, que
dispõe de produtos mais baratos. Conforme Santos (1979a), para alguns tipos de consumo,
“todo indivíduo, qualquer que seja sua condição ou seu nível de renda, é prisioneiro da
[86]
cidade. É o caso dos bens e serviços que por sua natureza ou devido à frequência da demanda,
exigem uma proximidade no espaço e no tempo” (SANTOS, 1979a: 264).
Para o deslocamento à cidade de Recife – fato já ocorrido entre as agremiações em
anos anteriores – necessita-se de dinheiro em espécie para o pagamento do transporte e para
as compras. Diante da ausência de capital pela demora da subvenção do Poder Público, são
imprescindíveis os empréstimos a usurários, com alta taxa de juros, tornando-se, assim,
inviável a viagem para a capital pernambucana em busca de matéria-prima barata, fato que
aprisiona as agremiações ao comércio local. É neste sentido que Santos (1985) sinaliza a nãohomogeneidade do consumo, pois a capacidade de aquisição de produtos é representada pela
“disponibilidade financeira (recursos efetivos ou créditos), mas também pela acessibilidade do
bem ou do serviço demandado. Essa acessibilidade tanto pode ser física, quanto pode estar
ligada às disponibilidades de tempo” (SANTOS, 1985: 63-64).
As tribos, por não oferecerem garantias para estabelecer contratos de empréstimo
financeiro, ficam impossibilitadas de procurar as linhas de crédito bancário por meio das
grandes instituições financeiras. E, na ausência desta modalidade de aquisição de dinheiro,
somado à fragilidade financeira das agremiações, elas valem-se de agiotas, que concedem
crédito pessoal não-institucional para que sejam efetuadas as compras de matérias-primas em
locais e meios que exigem o capital fluido. Conforme Santos (1979a), as “regras de
funcionamento do sistema bancário são incompatíveis com as do funcionamento do circuito
inferior. Daí o recurso [...] aos usurários que oferecem mais flexibilidade aos que tomam
emprestado” (SANTOS, 1979a: 183).
A agiotagem praticada é legitimada pela própria AESTIN, que indica o onzenário para
conceder o crédito informal, a juros de vinte por cento sobre o valor:
“Tudo eu tenho que tirar do meu bolso, ou pedir dinheiro emprestado, como
eu fiz; pedi a um agiota, que quem arranjou foi a AESTIN. A AESTIN
arranjou uma pessoa pra gente pegar dinheiro emprestado. Agora, pegava
quem quisesse, mas lógico que a gente tem que pegar, porque se eu não
botar a minha tribo na avenida, vem outro e bota, e aí? [...]
Eu digo agiota e ao mesmo tempo ele é o amigo da tribo, das tribos e das
escolas de samba. Ele é amigo do pessoal da AESTIN. [...] O juros é a vinte
por cento, eu mesmo paguei três mil, cento e vinte a ele (Zeneide Diniz –
Presidente da tribo de índios Gaviões-Amarelo).
Tais práticas financeiras, muito comuns entre os grupos de índios e as escolas de
samba de Natal, são vistas, também, como “salva-vidas”, muito embora, em virtude da falta
[87]
de segurança e do custo do dinheiro, tais empréstimos “se realizem a taxas muito elevadas”
(SANTOS, 1979a: 190):
“O agiota ainda fez a bondade de me emprestar, porque eu tinha que pagar
caminhão, tinha que pagar carro, eu tinha que levar lanche das crianças, pros
pais, pro pessoal que vai dançar, tinha que levar água mineral” (Zeneide
Diniz – Presidente da tribo de índios Gaviões-Amarelo).
Percebemos que várias relações econômicas são praticadas na produção do desfile das
tribos de índios carnavalescas, perpassando os circuitos da economia urbana (SANTOS,
1979a), intermediado pelo Poder Público municipal e estadual, que subvencionam o desfile
carnavalesco, cujos mecanismos financeiros consistem no crediário estabelecido diretamente
com a loja Ponto dos Botões, pertencente ao varejo moderno; o dinheiro líquido, diante da
extrema necessidade do pagamento em cash; e os intermediários financeiros, na figura dos
usurários, que emprestam dinheiro a juros aos presidentes das agremiações.
A partir destes produtos adquiridos tanto por meio do circuito superior, quanto do
circuito inferior, e todo o mecanismo financeiro necessário, são produzidas as fantasias e
alegorias por pessoas contratadas para tais fins, sejam aqueles profissionais especializados –
soldador e costureira – ou a mão-de-obra não-especializada – amigos, familiares,
demonstrando-se a complementaridade existente no sistema econômico, que envolve uma
estrutura de produção e comercialização de bens e serviços para a feitura do desfile
carnavalesco.
3.2. OS USOS POLÍTICOS DO TERRITÓRIO NO CARNAVAL DAS TRIBOS
Compreender a rede de relações políticas ligadas ao carnaval das tribos de índios
conduz a um importante contexto espacial141. É no nível político “que são feitas as escolhas
que repartem entre os cidadãos as possibilidades de agir sobre o espaço” (CLAVAL, 2001a:
299). O uso político do território define diferentes territorialidades, implicando em práticas
que congregam inúmeros agentes e revelam vários campos de poder, interesse e negociação:
141
Neste sentido, Roberto Lobato Corrêa (2003b) nos afirma que “o espaço organizado pelo homem desempenha
um papel na sociedade, condicionando-a, compartilhando do complexo processo de existência e reprodução
social” (CORRÊA, 2003b: 28).
[88]
“Toda sociedade é tecida de jogos de influência, de dominação e de poder na medida em que
se trata de aspectos inerentes à vida de relações” (CLAVAL, 2008: 32). A proposta aqui
analisada não se refere somente ao poder institucional das esferas legais – estado e município
– mas também aos outros agentes que participam desta trama, delimitando e reorganizando o
território, estabelecendo relações e interesses locais.
Tal rede de relações existente no carnaval das tribos de índios demonstra que, embora
o evento seja sinônimo de lazer e divertimento, guarda tensões e conflitos, assim como
projetos e discursos mediados pelos entes públicos e privados, em um espaço estruturado por
posições “cujas propriedades dependem da sua posição nesses espaços e que podem ser
analisadas independentemente das características de seus ocupantes” (BOURDIEU, 2003a:
119).
Essa rede de agentes que se estabelece no meio urbano os articula: o Poder Público, as
tribos de índios – através dos seus representantes –, os políticos, as lideranças comunitárias –
que, por sua vez, têm relação com partidos e políticos locais. Esta trama congrega uma
variedade e pluralidade de agentes que “agem e, em conseqüência, procuram manter relações,
assegurar funções, se influenciar, se controlar, se interditar, se permitir, se distanciar ou se
aproximar e, assim, criar redes entre eles. Uma rede é um sistema de linhas que desenham
tramas" (RAFFESTIN, 1993: 156).
O carnaval das tribos de índios atravessa circuitos que envolvem o Poder Público e as
agremiações, cujo foco de atuação consiste em subvencioná-las, fomentando uma política de
valorização cultural. Nas festividades momescas do ano de 2012, o auxílio do governo
estadual ocorreu mediante edital que contemplou nove tribos de índios. O edital exigiu
inúmeros documentos aos presidentes das tribos, impossibilitando algumas agremiações de
participarem do processo editalício, devido à existência de dívidas com o erário, como
ocorreu com Valdir, presidente da tribo de índios Tapuias. Já a prefeitura da cidade, menos
exigente, subvencionou todas as tribos das chaves A e B, excetuando-se a agremiação que
desfilou no grupo de acesso142.
142
O desfile das tribos de índios é dividido em duas chaves e o grupo de acesso. Desfilam cinco tribos de índios
na chave “A” e quatro agremiações indígenas na chave “B”. Quanto ao grupo de acesso, de acordo com o
decreto regulamentador do desfile, não há indicativo do número de agremiações no grupo de acesso, porém, para
o carnaval de 2012, assim como ocorreu em anos anteriores, somente uma agremiação desfilou, provavelmente
pela falta de incentivo financeiro àqueles que saem no grupo de acesso. A tribo de índios Potiguares, por ser au
concours, não se encontra em nenhuma das chaves nem disputa o título.
[89]
Um primeiro dado a ser apontado dentro de uma discussão jurídico-política que
envolve as tribos de índios carnavalescas é a restrição espacial das agremiações. Conforme o
Regulamento para o carnaval de 2012, a exemplo dos anos anteriores, as inscrições para os
grupos de temática indígena restringe-se àqueles provenientes da Região Metropolitana de
Natal – RMN. Observa-se, entretanto, a ausência de dois municípios que participam da RMN,
Monte Alegre e Vera Cruz – incluídos em 2005 e 2009, respectivamente –, que não figuraram
entre as cidades que poderiam ter grupos inscritos para o carnaval de 2012.
Temos, portanto, a construção de uma base social-geográfica do fenômeno num
território jurídico-político restrito a sete municípios do estado (Natal, Extremoz, Macaíba,
Parnamirim, São Gonçalo do Amarante, Ceará-Mirim, São José de Mipibu e Nísia Floresta).
Destes, apenas dois – Extremoz e Nísia Floresta – não têm tribos de índios no desfile
carnavalesco de Natal.
Na relação entre gestores e grupos indígenas – bem como os outros grupos
carnavalescos – existem variações jurídicas, políticas e econômicas conforme o titular do
Executivo (municipal e estadual), fato que reflete diretamente nas agremiações:
“Quando tem um governo que é transparente, temos um bom
relacionamento. Há uma identificação diferenciada de um governo para
outro. Neste governo agora [referindo-se à prefeita da capital Micarla de
Sousa], tivemos os quatro anos de governo, quatro anos de sofrimento [...].
Agora nós estamos com dificuldades, não recebemos o prêmio de 2012. No
ano passado saiu no mês de agosto e agora, a gente não sabe nem se sai esse
ano” (Kerginaldo Alves – Presidente da AESTIN).
Se tomarmos como parâmetros os anos de 2011 e 2012, o Executivo Estadual não
patrocinou o carnaval no primeiro ano de governo alegando inviabilidade financeira, o que
gerou desconforto nas tribos de índios, conforme podemos perceber na colocação da
presidente da tribo de índios Gaviões-Amarelo:
“Todo ano o Governo dá uma contribuição, dava né, até Rosalba entrar, que
desde o começo que ela entrou, só fala em buraco. Num sei quando vai tapar
esse buraco, mas ela tem que tapar e dar uma ‘abertinha’ pra colocar a
cultura no meio, que é botar o carnaval” (Zeneide Diniz – Presidente da tribo
de índios Gaviões-Amarelo).
Já no carnaval de 2012, foi publicado edital que contemplou várias categorias
carnavalescas – escolas de samba, tribos de índios, festas, blocos e troça. Como promotor das
festividades na capital, o Governo do Estado buscou legitimar essa participação promovendo
um evento para a entrega simbólica dos recursos financeiros aos grupos carnavalescos e as
[90]
tribos de índios, ocorrida no Palácio da Cultura – antiga sede do governo do RN – em ato
público, com a participação da Governadora Rosalba Ciarlini que, através de suas “próprias
mãos”, entregou os cheques aos grupos vencedores da concorrência editalícia. Ato político e
ritualístico, o evento atraiu inúmeros olhares, sobretudo os da imprensa local.
Figura 1 – “Ritual” de entrega da subvenção estadual para o carnaval de 2012
Foto: Autor, 2012
A Prefeitura de Natal, por seu turno, como principal promotora do evento
carnavalesco, dispõe recursos às agremiações e monta a estrutura utilizada na festa. Para
garantir o efetivo controle, o executivo municipal promove reuniões com as tribos de índios e
escolas de samba. Nelas, trata-se dos aspectos necessários para a realização do carnaval.
Numa das reuniões, que contou com a participação de funcionários da FUNCARTE, membros
da AESTIN e os presidentes – ou seus representantes – das agremiações, foram discutidos os
valores a serem repassados às agremiações.
Com momentos de tensão, a reunião demonstrou o claro conflito existente entre
escolas de samba e tribos de índios – apontadas pelas escolas de samba como uma espécie de
“escolas de samba de pequeno porte” –, revelando que os conflitos existentes não se dão
somente entre as agremiações e a administração pública. A Prefeitura disponibilizou um valor
[91]
global para as tribos e escolas, que foi repassado à AESTIN. Esta, por sua vez, montou três
tabelas de repasse aos grupos de carnaval, pelo que foram debatidas na reunião com o intuito
de escolher qual seria efetivamente aplicada.
Notamos imensas discussões, sobretudo pelos membros das tribos de índios que
insistiam nos repasses de forma igualitária com as escolas de samba. Dissensões internas
também foram verificadas, como os conflitos referentes aos valores entre as chaves A e B dos
respectivos grupos (escolas e tribos). Vimos, pois, diferentes interesses na rede de agentes,
que não nos permite imprimir uma ideia de homogeneidade e unidade das agremiações
carnavalescas.
Fórum privilegiado para a reflexão sobre a ordem de desfile e composição da
comissão julgadora, novos impasses ocorreram. No que concerne à ordenação, foi possível
compreender as peripécias de alguns presidentes de tribos de índios em desfilar em primeiro
ou último, no sábado ou domingo, em virtude do “aluguel” de pessoas às outras agremiações.
O mote para que se colocasse, por exemplo, a tribo de índios Potiguares para desfilar no
sábado, abrindo o carnaval tradicional, ao invés de entrar na avenida no domingo, junto com
as tribos da chave A, residiu no fato de que os participantes foram os mesmos que desfilaram
na tribo de índios Tabajara, garantindo um bom retorno financeiro para o presidente desta,
Paulo Lira.
Quanto à contribuição da prefeitura destinada às agremiações carnavalescas, Paulo
Lira fala, com infelicidade, do prêmio destinado aos vencedores do carnaval de 2011:
“Quando eu entrei no carnaval já existia [apoio], só que a prefeitura dava
essa ajuda. Agora, infelizmente, nosso município é de acordo como o povo
merece: elegeram Micarla de Souza. A premiação do carnaval deste ano veio
sair no mês de setembro. Então olhe o quanto esse povo sofre pra fazer
cultura. Se eu esperar só esse dinheiro eu não consigo fazer não” (Paulo Lira
– Presidente da tribo de índios Tabajara).
A ausência de investimentos e apoio traduz no que Dozena (2009) chamou de
“condição de mendicidade”, fato observado nas tribos de índios do carnaval natalense. Se, por
um lado, tal condição inviabiliza o crescimento estrutural da agremiação, por outro, permite
que o grupo busque, justamente pela escassez, alternativas que torne exequível a pretensão de
desfilar no carnaval. Alguns presidentes de tribo, por meio de ajustes locais, adquirem, ainda
que momentaneamente e sem prazo certo, locais que possam colocar os artefatos da
[92]
agremiação, outros, porém, não conseguem tais ajustes e utilizam suas próprias residências
como barracão.
Mapa 2 – Barracões e os agenciamentos socioespaciais
A tribo de índios Potiguares, do bairro Rocas, guarda suas alegorias e fantasias na
Escola Estadual Café Filho, porém, o agenciamento estabelecido com a diretoria da escola
não é tão amistoso, conforme podemos perceber na colocação do presidente da agremiação:
“A gente guarda tudo junto ali no Café Filho; é uma briga danada aqui com a gente lá do Café
Filho, tira num tira, [...] fui na Secretaria de Educação, falar lá, pra nós ficar” (Raimundo
Brasil – Presidente da tribo de índios Potiguares).
Por outro lado, a agremiação Tabajara, localizada no bairro Felipe Camarão,
conseguiu o apoio do Clube de Mães Sali Farias, que cedeu o espaço e hoje é a atual sede do
grupo carnavalesco. Já a Gaviões-Amarelo não conseguiu lugar para depositar os artefatos
entre os agenciamentos locais, muito embora tenha recebido ajuda do Conselho Comunitário
local.
[93]
A condição de mendicidade funciona como engate aos engajamentos políticos pelas
agremiações. No ano eleitoral de 2010, por exemplo, muito embora não tenha ficado muito
satisfeita, a presidente da tribo Gaviões-Amarelo, Zeneide Diniz, informa que foi ajudada por
políticos:
“Ano passado foi ano político, ninguém pôde ajudar, porque estava todo
mundo em política, gastando demais e eu fiquei a ver navios, mas mesmo
assim, eu tive ajuda ainda de Cláudio Porpino, porque eu trabalhei pra ele,
eu pedi voto pra ele. Iberê ainda deu um pouco de ajuda, mas não porque é
pra sua tribo assim; deu porque eu trabalhei pra ele, porque eu fui atrás de
voto pra ele. Não é que ele compre alguma coisa, é que eles têm esse
trabalho. Como eu tenho um grupo desses, é interesse pra ele, é interesse pra
qualquer político. Tem eleitor no meio; tendo eleitor você tem voto. Os
meus meninos, muitos deles votaram” (Zeneide Diniz – Presidente da tribo
de índios Gaviões-Amarelo).
Em 2012, a mesma presidente apoiou, novamente, o candidato a vereador Cláudio
Porpino, relacionando inúmeros votos. De acordo com Zeneide Diniz, o elegível garantiu que,
caso assumisse uma cadeira na Câmara dos Vereadores de Natal, viabilizaria um terreno para
a construção da sede da tribo de índios.
Se pensarmos em uma rede de poder, percebemos que na correlação de forças entre a
representante da tribo de índios e o político, eles se encontram em planos diversos, não
obstante haja interesses de ambos. O candidato necessita dos votos, todavia, pela própria
ausência de recursos, a agremiação carnavalesca tem um maior interesse em jogo, até mesmo
para a própria subsistência do grupo carnavalesco. Ademais, a votação é anterior à promessa
do terreno para a construção do barracão, isto é, ainda que o candidato consagre-se vereador
da cidade, não há a garantia do espaço físico, estando, tão somente, no plano ideológico.
Podemos perceber que no interior dos grupos sociais, incluindo-se as agremiações
carnavalescas, é verificada a construção de modernos “currais eleitorais” e mecanismos de
trocas de favores: auxílio pecuniário por voto. Esta prática é conhecida no Brasil desde a
República Velha e adotada ainda hoje por meio de outras vias, como os pequenos grupos em
bairros dos grandes centros urbanos.
Esta dimensão política enquanto uma rede de relações espacialmente estabelecidas
espacialmente propõe a instrumentalização de territorialidades a partir dos interesses dos
agentes que participam deste complexo relacional. Ainda com relação à tribo de índios
Gaviões-Amarelo, foi possível observar os raios de ação que convergiam para candidatos
locais: Rafael Motta e Cláudio Porpino. Em busca de melhorias para a tribo de índios, a
[94]
presidente da agremiação Zeneide Diniz se permitiu adentrar neste “imbróglio”, de modo a
apoiar os dois políticos para as eleições de 2012.
Já vimos alhures os interesses que permearam a relação entre a tribo carnavalesca e o
vereador eleito Cláudio Porpino. Quanto ao também eleito à Câmara Municipal de Natal pelo
Partido Progressista, Rafael Motta, não se tratou substancialmente de interesses vindouros,
mas de retribuição à ajuda e empenho da presidente do Conselho Comunitário do Conjunto
Cidade do Sol.
Expressa espacialmente no Conselho Comunitário, a territorialidade da entidade
representativa do conjunto Cidade do Sol, por meio de sua presidente Judinéia Belchior,
abrange toda a localidade, definindo o controle e os limites de ação das redes políticas
estruturadas em torno do conselho. E a tribo de índios, por se encontrar localizada em seu raio
de abrangência e, sobretudo, pelas relações estabelecidas com a entidade, foi colocada nos
planos de orientação política do ente comunitário. Tal relação possibilita-nos identificar a
multidimensionalidade do poder, construída a partir de uma rede hierarquizada entre o
político, o conselho comunitário e o grupo carnavalesco.
A presidente da tribo carnavalesca ao não agir nos moldes esperados pela presidente
da entidade representativa do conjunto, isto é, não desenvolver o apoio político a contento,
ocasionou uma dissenção que, certamente, será sentida pela agremiação no próximo carnaval,
a não ser que o vereador eleito Cláudio Porpino supra as necessidades que outrora foram
realizadas pelo Conselho Comunitário. Entendemos, pois, que as territorialidades definiramse pelas articulações políticas que envolveram diversos agentes sociais.
Tais territórios políticos são configurados de forma descontínua e dinâmica, sendo
definidos pela influência dos agentes e pelas relações políticas estabelecidas. Assim, se no ano
de 2012 a relação entre o Conselho Comunitário e a tribo de índios Gaviões-Amarelo foi
positiva, para o ano de 2013, possivelmente, não será tão amistosa pela dissenção ocorrida em
virtude das escolhas políticas.
Pelo exposto no presente tópico, podemos perceber que o carnaval das tribos de índios
figura-se como palco para negociações e agenciamentos políticos em vários níveis, desde a
participação efetiva dos governos estadual e municipal até relações que se estabelecem no
interior dos bairros, mas que se refletem externamente.
[95]
4. AS TRIBOS DE ÍNDIOS E SUAS PROJEÇÕES NO ESPAÇO CITADINO
Buscamos analisar os fenômenos que ocorrem no espaço sob a égide do olhar
geográfico, pois os fatos têm uma dimensão espacial que é determinada/determinante por e a
partir das outras instâncias sociais143. Milton Santos (2005) alerta sobre a importância do
espaço enquanto instância para a formação socioespacial, declarando a inexistência de
sociedade a-espacial. Conforme assinalou DaMatta (1997), “o espaço não existe como uma
dimensão social independente e individualizada, estando sempre misturado, interligado ou
‘embebido’ [...] em outros valores que servem para a orientação geral” (DAMATTA, 1997:
19).
Considerando o espaço como um elemento do sistema social, concordamos com a
ideia de que o arranjo espacial é quem permite a produção das ações, ou seja, “as práticas
sociais são dependentes de certa distribuição ou ‘arrumação’ das coisas. Não há, por assim
dizer, uma determinação ou um simples reflexo da sociedade no espaço” (GOMES, 1997: 36).
O presente capítulo tem como objetivo analisar as apropriações do espaço pelas tribos
de índios do carnaval de Natal, imprimindo um domínio do território e revelando um
significado para aqueles que dele se apropriam, onde são tecidas complexas redes de
apropriações e significações:
A cartografia da metrópole moderna é, portanto, muito mais rica e
controversa do que nossos genéricos modelos podem supor. Além da grande
diferenciação no tecido urbano, que cria espaços singulares, da distribuição
desigual dos equipamentos e serviços, para além desta configuração física há
uma complexa rede de relações entre grupos que traçam laços de identidade
com o espaço que ocupam, criam formas de apropriação e lutam pela
ocupação e garantia de seus territórios (GOMES; HAESBAERT, 1988: 58).
É na cidade – e nas suas formas urbanas – que encontramos a vida se realizando em
sua processualidade, permitindo que encontremos os vários modos de apropriação e
significação de seus objetos que revelam dimensões da vida social – como o simples estar na
143
Aliado às instâncias althusserianas, entendemos, com Santos (2005), que o espaço também é
determinante/determinado pela sociedade, todavia, como ressaltado anteriormente, não compreendemos que
exista instância mais importante que as outras, desconsiderando a ideia de infraestrutura e superestrutura. Indo
além, Santos (1986) expõe que a estrutura espacial “é como as demais estruturas sociais, uma estrutura
subordinada-subordinante. E como as outras instâncias, o espaço embora submetido à lei da totalidade, dispõe de
uma certa autonomia que se manifesta por meio de leis próprias, específicas de sua própria evolução” (SANTOS,
1986: 145).
[96]
rua – efetivados por práticas e comportamentos colocados na paisagem. Esta é, também, a
compreensão de Santos (1985):
Para além da materialidade dos espaços e dos processos que neles se
desenvolvem, procuramos as dimensões simbólicas que possam apresentar.
Entendemos que em qualquer sociedade há códigos culturais que viabilizam
a leitura, a apropriação e o aproveitamento dos lugares (SANTOS, 1985:
13).
Essas tribos são marcas que individualizam o caráter geográfico da pesquisa e “são
obtidas essencialmente pela importância explicativa que atribuímos à localização relacional
que se estabelece entre as coisas, os fatos, os fenômenos e as pessoas” (GOMES, 2008: 188).
Pensá-las, portanto, é imaginar o cotidiano da cidade, a partir do bairro onde elas se instalam,
no uso da rua, da residência, da calçada, enfim, do sistema de objetos dispostos e das ações
realizadas. O complexo caráter social da realidade urbana contém múltiplas apropriações do
espaço urbano, nos mais variados sentidos e tempos.
As tribos de índios revelam apropriações espaciais que vislumbram novas
funcionalidades às formas, dotando-as de novos conteúdos. Os objetos que cercam a
sociedade são condições para a vida e podem, ao longo do tempo, alterar “seu conteúdo, sua
função, sua significação, sua obediência perante a ação. As determinações mudam, mudando
seu objeto” (SANTOS, 1997: 109).
Neste sentido, não podemos estudar os objetos separados das intencionalidades, por tal
motivo é que devemos compreender as formas-conteúdos (SANTOS, 1996a), numa dialética
relacional. Acompanhando este entendimento, Gomes (1997) esclarece que “o espaço é uma
forma-conteúdo, ou seja, uma forma que só existe em relação aos usos e significados que nela
existem e que têm nela sua mesma condição de existência” (GOMES, 1997: 26).
O espaço enquanto produto, condição e meio de reprodução social nos autoriza a dizer
que as tribos do carnaval usam o território, transformando-o num lugar de encontro e de lazer,
mas também de contradições e estratégias de dominação, reproduzidas por suas práticas
materiais. São estes agenciamentos sociais que ocorrem nos lugares e nas práticas cotidianas
que produzem, contraditoriamente, formas de resistência à imposição do capital, revelando
outros meios de viver em sociedade. Se, por um lado, a racionalidade tende à individualização
das ações, por outro, as pessoas procuram agregar-se em grupos que se multiplicam na urbe. E
[97]
nessa dialética dos conteúdos nos espaços, revela-se a produção de sociabilidades e laços de
solidariedade.
Se a cidade, para alguns teóricos, pode ser entendida como um espaço da mercadoria,
determinada pelo seu valor de troca, por outro lado, ela nos permite lê-la em seus usos
cotidianos e “irracionais”, proporcionados pela criatividade dos homens de tempos lentos, em
sua forma aberta, inorgânica e aproximativa (SANTOS, 1997)144. Destarte, a sociabilidade
cotidiana é o elemento propulsor que explica a existência das tribos de índios de carnaval nos
bairros menos abastados da cidade, seja pela tradição, passada culturalmente de “pai para
filho”, a exemplo das tribos de índios Potiguares e Guaracis; seja pela autonomização de
grupos juninos ou mesmo carnavalescos, como as tribos Tabajara e Gaviões-Amarelo.
Assim, tomamos o espaço público como um cenário da sociedade cujas ações
conduzem aos inúmeros atos espontâneos praticados neste espaço. As tribos, nesta ótica,
imprimem uma trama que transforma os espaços funcionais a partir da vivência social,
escapando ao propósito racional que lhes foram atribuídos. Existe uma dimensão dada pelas
ações revestidas de signos impressos na paisagem que possibilitam a estas agremiações
comporem o movimento da cidade, dotando a via pública, o bairro e os objetos de um novo
significado, criando um espaço simbólico de mantença dos vínculos e laços de pertencimento.
Podemos, pois, desconstruir o discurso de que nos bairros menos abastados de Natal estão
presentes unicamente a pobreza, a delinquência e as drogas.
Entendemos que o carnaval pode ser visto como uma gigantesca peça, a cidade é o
teatro sem paredes e as ações, o “conjunto de acontecimentos estruturados mais ou menos
formalmente” (BURKE, 1989: 207), com a ressalva de que este “conjunto de acontecimentos”
tem início antes da festa carnavalesca.
No presente capítulo analisaremos a projeção das tribos de índios neste “teatro sem
paredes”. Primeiramente, procuraremos compreender a configuração espacial destas
agremiações no desfile carnavalesco e, posteriormente, adentraremos ao universo das
apropriações espaciais das tribos carnavalescas nas ruas e bairros, observando a construção de
uma práxis horizontal no cotidiano dos indivíduos.
144
Conforme visto anteriormente, trata-se de agentes constituintes das zonas opacas da cidade que desafiam a
perversidade dos tempos hegemônicos em suas áreas luminosas, produzindo contrafinalidades a partir de um
cotidiano conforme, porém não-conformista.
[98]
4.1. A CONFIGURAÇÃO ESPACIAL E A (DES)ORDEM DA “AVENIDA”
A Avenida Duque de Caxias145, localizada no bairro Ribeira146, é um dos “palcos”
para as manifestações carnavalescas institucionalizadas, onde ocorre o carnaval tradicional
das escolas de samba e das tribos de índios. O polo carnavalesco montado pela Prefeitura de
Natal impõe uma nova configuração espacial do entorno e conduz a diversas apropriações do
espaço público.
A avenida é interditada normativamente, com a paralisação do trânsito na localidade
pelo órgão municipal competente – SEMOB, transformando-se na “avenida carnavalesca” e
com novos usos são destinados nos quatro dias de carnaval. Numa das faixas duplas do
logradouro é montado o corredor por onde desfilam as tribos de índios e escolas de samba,
enquanto que a outra faixa é reservada aos transeuntes e ambulantes. Várias arquibancadas e
camarotes são montados no canteiro central, para comportar os espectadores, jurados e
autoridades.
O fechamento das vias públicas, o trânsito, as novas regras, permissões, proibições e
comportamentos no momento festivo, justificam as organizações espaciais específicas do
carnaval. Com isso demarca-se um espaço próprio para a folia momesca, refuncionalizando as
formas urbanas.
No presente tópico, procuraremos entender esta refuncionalização, a partir das ações
dos agentes que participam do desfile carnavalesco, dentro e fora da “avenida”, operando uma
nova ordem espacial pela disposição dos objetos – arquibancadas, camarotes, trailers, mesas –
e pelos agenciamentos realizados por todos aqueles que participam da folia no carnaval
tradicional natalense, em homenagem ao “Deus Momo”.
145
A Avenida Duque de Caxias é uma importante via da cidade, onde se encontram prédios públicos municipais
– Secretaria Municipal de Mobilidade Urbana, estaduais – Instituto Técnico-Científico de Polícia – e federais –
Receita Federal, do Judiciário – Juizado Especial Cível – assim como uma das mais antigas agências do Banco
do Brasil, entre vários estabelecimentos comerciais. É esta avenida que faz a ligação do bairro Rocas com o
bairro Cidade Alta, consistindo em um importante eixo da malha urbana, por onde passam dezenas de linhas de
ônibus e transportes alternativos.
146
O bairro Ribeira guarda um importante valor histórico e cultural para a cidade, incidindo sobre a área que
contempla a Avenida Duque de Caxias uma Zona Especial de Preservação Histórica – ZEPH, criada por meio da
Lei nº 3942/1990, que prescreve parâmetros urbanísticos para a localidade e visa preservar prédios e sítios com
notável valor histórico, arquitetônico, cultural e paisagístico, conforme disposto no art. 3º, caput, do referido
estatuto legal.
[99]
4.1.1. O espaço do carnaval e seus agentes
As pessoas ocupam a rua ao invés dos carros e veda-se o acesso destes ao seu “meio”
par excellence, com exceção dos “veículos oficiais”, tais como as viaturas policiais e
ambulâncias, cujos deslocamentos são realizados com cautela em respeito aos novos “donos
do pedaço”. Antes impessoal e fruto de uma ideologia individualista da sociedade ocidental, a
rua, no período carnavalesco, passa a ser o lugar das dramatizações, isto é, dos encontros
pessoais, das “farras” e dos desfiles.
Falam-se muito em inversões, loucuras e exageros no período carnavalesco 147; de fato,
vislumbramos determinadas ações que se aproximam destas adjetivações, tais como as
necessidades fisiológicas realizadas na própria rua e, por vezes – até ironicamente – próximo
aos banheiros químicos, ou, ainda, quando vemos beijos e abraços calorosos em meio ao
público que podem, sem qualquer pudor, transformar-se em ato sexual explícito que – ao
contrário do que ocorreria em situações normais do cotidiano – é assistido pelas pessoas
indiscriminadamente e, por vezes, sem reprovação, trazendo para o público/rua aquilo que,
rotineiramente é realizado no privado/casa148. Temos, pois, que determinadas regras morais
são suspensas no período momesco, cujas ações carregadas de valores “negativos” ou
“privados” na vida diária, adquirem status de trivialidade.
Por outro lado, paralelamente às subversões carnavalescas, verificamos encontros
entre pessoas e várias formas de être-ensemble: conversas casuais de amigos que se
reencontram após muito tempo ou indivíduos que se conhecem no momento festivo e
constroem uma vida a dois. Além destas formas de socializar, pessoas e grupos vão à festa
carnavalesca com outras finalidades: assistir ao espetáculo, trabalhar, ou, ainda, estudar, como
foi o caso do pesquisador do presente trabalho. Estas são algumas das várias interações
possíveis com a festa, que permite uma heterogênea dinâmica do homem com o espaço.
Diante destas diversas relações criadas e ritualizadas no carnaval, devemos concordar que:
[…] nos estudos das festas populares, se se pretender ter uma visão mais
ventilada desses rituais, talvez seja recomendável a adoção de uma postura
147
Cf. DaMatta (1990).
Para Burke (1989), o carnaval na Idade Média se opunha à vida cotidiana, por se tratar de “uma representação
do ‘mundo virado de cabeça para baixo’” (BURKE, 1989: 212). Conforme o estudioso, o carnaval “é uma
Cocanha passageira, com a mesma ênfase sobre a comida e as inversões” (ibidem: 214), ou seja, época de
desordem institucionalizada agrupando rituais de inversão.
148
[100]
mediadora dessa relação entre festa e cotidiano que tanto supere os exageros
idealistas de Duvignauld, quanto a exacerbação materialista de Canclini
(MAIA, 1999: 196)149.
O importante das festas são estas relações produzidas e reproduzidas, que englobam
“conhecidos” e “estranhos” compartilhando momentos que podem revelar amizade,
desavença, lazer, trabalho, enfim, uma infinidade de possiblidades, as quais estamos tentando
expor no presente estudo.
Neste universo formado, podemos identificar vários grupos de agentes: agremiações
carnavalescas,
espectadores,
ambulantes,
jurados,
trabalhadores,
e
várias
outras
pessoas/grupos que também participam da festa e inscrevem seus territórios, produzindo
múltiplas territorialidades, conformando a composição espacial do evento:
Mapa 3 – Configuração espacial do desfile e a des(ordem) do carnaval natalense
149
De acordo com o geógrafo, os exageros festivos, para Duvignaud, constituem ações subversivas com o
império do “id” que suplanta os códigos e normas legais e morais, ao passo que Canclini entende que na festa
ocorre a reprodução das contradições sociais (MAIA, 1999).
[101]
Para explicar o mapa acima, recorremos à ideia da “rua” enquanto lócus privilegiado
para o ritual festivo, deixando “de ser o local desumano das decisões impessoais para se
tornar o ponto de encontro da população” (DAMATTA, 1990: 46). Não obstante ser o
momento em que a população se encontra festejando, é no carnaval que se dá o universo da
competição dramatizada nos dias festivos (TURNER, 1974): as agremiações disputam o
desfile, os espectadores competem pelos melhores lugares, os ambulantes demarcam seus
espaços, materializando os vários papéis e posições das pessoas e grupos que, dada a
heterogeneidade, territorializam-se ocupando lugares diversos e atribuindo ações diferentes no
“espaço da folia”.
Inerente às festas, o consumo possibilita a utilização do espaço por vendedores que
instalam seus “carrinhos”, trailers, mesas e cadeiras pelo entorno do local de desfile, para a
venda de refrigerante, cerveja, churrasco, cachorro-quente, etc. A disputa pelos melhores
lugares se inicia com a antecipação dos ambulantes e a prévia demarcação do território.
Figura 2 – Territorialidades da economia informal no desfile carnavalesco 150
Foto: Autor, 2012
150
Utilizamos “economia informal” com a finalidade de caracterizar a situação ocupacional de um segmento de
trabalhadores que se encontram inseridos no circuito inferior da economia urbana, sobretudo no comércio de
ambulantes, estabelecidos nas ruas.
[102]
Verificamos a presença maciça de agentes do circuito inferior da economia urbana,
produzindo relações “em toda parte e todo o tempo, entre agentes, entre agentes e clientes, no
exercício da própria atividade e na sua significação global dentro da sociedade” (SANTOS,
1979b: 54), funcionando, portanto, racionalmente, seguindo a lógica da economia capitalista e
difundindo, entre os pobres, o modo de produção que encontramos inseridos: de um lado está
quem vende o produto e de outro, quem compra.
Não raro, alguns destes vendedores se utilizam do trabalho infantil, colocando os
filhos menores para trabalharem no “estabelecimento”, fato que não é apurado pelo
policiamento destacado no local. É inevitável traçar um paralelo com o trabalho realizado pela
Prefeitura, através da Secretaria de Assistência Social – SEMTAS, em conjunto com a Polícia
Militar, a Guarda Municipal e o Poder Judiciário, no Carnatal 151, em que os menores que se
encontram em estado de vulnerabilidade, são deslocados para um espaço contendo
brinquedos, alimentação e colchões nas noites festivas e, ao final da festa, retornam aos pais.
Este tipo de ação não é verificado no carnaval natalense; não há, sequer, fiscalização
do Poder Público nas situações de vulnerabilidade social dos menores. Um dos motivos talvez
seja a visibilidade das ações do ente estatal no Carnatal, associado ao alto índice de crianças e
adolescentes trabalhando no evento, diferentemente do carnaval da Ribeira. Todavia, o fato de
existir um número menor de crianças e adolescentes, não justifica a inércia dos órgãos
públicos municipais e estaduais.
Ainda concernente à atuação do Poder Público, no primeiro dia de desfile das tribos de
índios (sábado), um dos componentes da tribo Mobralino Mapabu necessitou de atendimento
médico e prontamente foi atendido por uma das ambulâncias do Serviço de Atendimento
Móvel de Urgência – SAMU, entretanto, no dia seguinte, quando duas integrantes da tribo
Gaviões-Amarelo se sentiram mal ao término do desfile, não havia ambulância no local, fato
este presenciado pelo próprio pesquisador que solicitou o serviço e foi informado que não
havia ambulâncias disponíveis.
Observamos, também, que nem o titular do Executivo Municipal152, tampouco a
Governadora do Estado, fizeram-se presentes na abertura da festividade. Outros políticos –
151
O Carnatal é o carnaval fora de época de Natal e considerado uma das maiores micaretas do Brasil, sendo
prestigiado por milhares de foliões que vêm de vários estados brasileiros, assim como se verifica uma
significativa presença significativa de estrangeiros.
152
Frisamos, no entanto, que vislumbramos a presença do Prefeito em exercício na época, que compareceu
rapidamente no primeiro dia carnavalesco.
[103]
vereadores, senadores e deputados – igualmente não compareceram ao tradicional carnaval da
Ribeira, denotando um descaso dos próprios entes políticos.
Enquanto algumas pessoas se projetam nos “territórios de consumo”, entre as mesas e
cadeiras dos vários trailers, para comer e beber enquanto assistem ao desfile, a maioria
prefere manter-se no lado oposto, não consumindo (ou “gastando” o necessário para se manter
na festa) ou nas arquibancadas, com visão privilegiada do evento, e, igualmente, participando
do carnaval. Há, aqui, um dado espacial importante: o espaço como norma para as
territorializações dos locais de consumo de alimentos e bebidas, que só podem se
territorializar de um lado da “avenida”, que comporta espacialmente as várias mesas e
cadeiras.
Figura 3 – O espaço normatizado para o consumo
Foto: Autor, 2012
Contudo, não podemos essencializar o fato e afirmar que as pessoas que se encontram
de um lado (ou nas arquibancadas) não possam deslocar-se ao outro para o consumo;
queremos, com a discussão, dizer que a paisagem projetada conduz a uma leitura funcional do
espaço, onde uma parte consome a “cultura-arte” e outra tem como consumo o espetáculo
somado ao consumo de produtos agregados ao carnaval: bebida, comida, etc.
[104]
Há, também, aqueles que têm o evento como local de encontro, onde conversam,
bebem, flertam, namoram, não se preocupando com o desfile carnavalesco. O espaço destas
pessoas é, preferencialmente, o que se encontra abastecido de ambulantes para comprarem sua
bebida e “tira-gosto”. A finalidade está nos vínculos afetivos em que amigos vão à festa, em
sua maioria jovens e adolescentes, por vezes, como “preliminar” para o evento que ocorre na
praia da Redinha, onde grupos se deslocam àquela localidade, também um dos polos
carnavalescos da Prefeitura de Natal, e permanecem até o amanhecer do dia, valendo-se,
principalmente, da relativa proximidade entre os dois bairros (Ribeira e Redinha), interligados
pela Ponte Newton Navarro.
Outro grupo que exerce uma função e, portanto, estabelece uma territorialidade no
polo carnavalesco, são os jurados do desfile. Como já destacado alhures, o carnaval é um
tempo de trabalho, não só para as agremiações, mas, também, para outros agentes que
exercem uma importante atividade, podendo, inclusive, traçar os rumos futuros de uma tribo
de índios. Exemplo disso foi a agremiação Tapuias, onde o rebaixamento para a chave B no
carnaval de 2012 levou a que o presidente confidenciasse que não iria desfilar no ano
seguinte.
Tal papel desempenhado pelos jurados é, pois, de grande relevância, para o carnaval e
os participantes sabem bem disto. Em um dos momentos, registramos o desespero do
presidente da tribo de índios Guaracis, Joselito Damasceno, quando o grupo carnavalesco não
procedeu ao ritual diante do júri, fato que retirou uma grande pontuação. Noutro, verificamos
a reverência do Pajé da tribo Gaviões-Amarelo, como forma de obter a simpatia do corpo de
jurados.
Tais ações legitimam a relação hierárquica entre a agremiação e o júri, que se
manifesta, também, espacialmente: os jurados encontram-se no alto, “acima de tudo e todos”,
vislumbrando todo o grupo que está desfilando e verificando cada detalhe que abrilhante o
desfile ou o prejudique, sob um “olhar panóptico”, num “estado consciente e permanente de
visibilidade que assegure o funcionamento automático do poder” (FOUCAULT, 1987: 166).
O panóptico é aqui utilizado por sua polivalência, servindo para inúmeras situações, por
tratar-se de:
[...] um tipo de implantação dos corpos no espaço, de distribuição dos
indivíduos em relação mútua, de organização hierárquica, de disposição dos
centros e dos canais de poder, de definição de seus instrumentos e de modos
de intervenção. [...] Cada vez que se tratar de uma multiplicidade de
[105]
indivíduos a que se deve impor uma tarefa ou um comportamento, o
esquema panóptico deverá ser utilizado (FOUCAULT, 1987: 170).
Os frequentadores – estejam trabalhando ou “curtindo”, “de passagem” ou
permanecendo até o final do desfile – deste “pedaço efêmero” podem não se conhecer, porém
se reconhecem pela corporalidade – aspectos simbólicos de identidade, como roupa e
linguagem – que traz as marcas de seu pertencimento a uma classe menos abastada, mas que,
igualmente, deixa-se levar pelo lazer, permitindo-se vivenciar o carnaval.
No próximo tópico analisaremos o dia do desfile das tribos de índios, desde os atos
preparatórios que antecedem o acontecer na avenida até a dispersão do bloco carnavalesco,
buscando compreender as apropriações dos espaços públicos com suas alegorias e brincantes,
práticas que se iniciam a partir da concentração na sede do bloco carnavalesco.
4.1.2. O acontecer da tribo na “avenida”: atos preparatórios e o desfile carnavalesco
Domingo de carnaval, eram 16h00min quando os primeiros componentes chegaram à
residência da presidente da tribo de índios Gaviões-Amarelo. Crianças e jovens ansiosos por
suas fantasias, feitas sob medida. De forma ritualística, os integrantes passam a se vestir: saia,
cocar, lança, arco e flecha e demais artefatos. As crianças logo encetam as brincadeiras na rua,
imitando o “índio tradicional”, ato provavelmente aprendido na escola ou em casa.
Também é tempo para os últimos ajustes nas roupas, realizados pela equipe de apoio.
Desprovidos de qualquer pudor, os integrantes trocam-se na rua – homens e mulheres,
meninos e meninas com saias feitas de agave e por baixo, em alguns deles, apenas as roupas
íntimas que a ação do vento, por vezes, permite visualizar – e, em poucas horas, o espaço está
repleto de jovens indígenas, numa paisagem que nos permite confirmar um tempo diverso
daquele das racionalidades: o tempo da folia. Afinal, é carnaval!
Em meio à profusão de brincadeiras e muita alegria, aqueles que lideram a
organização da tribo se encontram em pleno movimento, correndo de um lado a outro para
que nada fuja da “normalidade”. Para o carnaval de 2012, a tribo de índios Gaviões-Amarelo,
contando com a ajuda do Conselho Comunitário do Conjunto Cidade do Sol, alugou dois
[106]
ônibus153 que conduziram os integrantes ao local de desfile. Esta foi uma das menores
preocupações, tendo em vista que os transportes chegaram ao local combinado com bastante
antecedência.
Para estas pessoas que estão à frente da organização, há, concomitantemente com o
“tempo de folia”, o “tempo de trabalho”. Já na manhã do grande dia, preocupam-se com o
transporte das alegorias; contrata-se um caminhão que, com muita cautela e cuidado,
transporta os itens alegóricos para o bairro Ribeira. Os homens mais engajados com a
agremiação ajudam no carregamento do material. Observamos tanto na tribo de índios
Gaviões-Amarelo quanto na Tabajara o mesmo procedimento: jovens brincantes que se
predispuseram a ajudar.
Figura 4 – Montagem da alegoria da tribo Tabajara na manhã do desfile
Foto: Autor, 2012
É chegada a hora de partir para o desfile; os componentes adentram ao ônibus que os
aguarda. Uma hora depois, chega-se ao destino: o bairro Ribeira. Nas ruas perpendiculares à
Avenida Duque de Caxias, verificamos o domínio dos espaços pelas agremiações para os
153
De acordo com a presidente Zeneide Diniz, o aluguel pago foi R$ 300,00 reais pela tribo e R$ 100,00 pelo
Conselho Comunitário. Após o desentendimento com a presidente do Conselho Comunitário, o que antes era
considerado “ajuda” por Zeneide Diniz, deixou de ser, prevalecendo o discurso do interesse.
[107]
últimos ajustes, principalmente as maquiagens. Os maquiadores da tribo de índios GaviõesAmarelo são o Pajé e o Feiticeiro.
Um momento de tensão da referida agremiação foi o esquecimento da arma do
caçador na sede da tribo. Ir de ônibus, ainda mais em época de carnaval, tornar-se-ia
impossível. A saída foi utilizar o automóvel do pesquisador que não teve outra alternativa a
não ser permitir a ida dos integrantes em busca do artefato, ademais, eu já me encontrava
como integrante do grupo carnavalesco, o que legitimou o pedido e, pari passu, a concessão.
Para a tribo de índios Apaches tudo é festa e não poderia faltar a bebida. Os adultos,
em sua imensa maioria, aproveitavam do tempo em que se encontravam aguardando para a
entrada no desfile e festejavam, dançavam, bebiam, até a entrada na “avenida”. Já a
agremiação Gaviões-Amarelo preferiu “orar”, pedindo força e brilhantismo para a tribo.
Após os preparativos, um novo momento surge: o acontecer das tribos de índios na
“passarela” carnavalesca, em um profundo momento de festejo, mas também de organização.
É a ocasião crucial no qual estão em jogo vários meses de preparação, sobretudo para o
presidente da tribo de índios – sempre o mais empenhado. O tempo é cronometrado e a
agremiação dispõe de quarenta ou cinquenta minutos (Chave B e Chave A, respectivamente)
para atravessar o espaço destinado à apresentação, com a necessidade de demonstrar o “ritual
da morte do caçador”, por duas vezes, em frente aos dois palanques de jurados – o primeiro
localizado no centro da avenida e o segundo já no final do desfile.
Antes do primeiro toque do surdo, o presidente da tribo de índios Guaracis, Joselito
Damasceno, localizada no bairro Mãe Luíza, promove um discurso que reforça e vangloria o
fato de ser a “única” agremiação cujos integrantes são, em sua totalidade – duzentos e
quarenta componentes –, do bairro da tribo. Ele manifesta uma identidade territorial
construída a partir da identificação do grupo com o lugar por meio deste discurso que aciona
uma alteridade154. Tal significação está assentada no sujeito pós-moderno de Stuart Hall
(2003)155, que, naquele momento, encontrava-se inscrito numa identidade barrial, pois é “se
opondo aos outros e, simultaneamente se identificando aos seus, que se constrói uma
identidade” (CLAVAL, 2008: 21).
154
“Isto significa que discursos, por uma parte, e ações, por outra, não são realidades que se opõem, nem que
uma opera distorcendo a outra: seriam antes formas diferentes mas complementares de expressão de um mesmo
universo simbólico que só pode ser apreendido como sistema abstrato, mas que se manifesta através da
especificidade de cada situação concreta” (MAGNANI, 1998: 58).
155
“[...] à medida em que os sistemas de significações e representação cultural se multiplicam, somos
confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das
quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente” (HALL, 2003: 13).
[108]
Figura 5 – Discurso do presidente da tribo de índios Guaracis
Foto: Autor, 2012
Ao pensarmos a identidade territorial conjuntamente com a identificação social do
grupo, estamos sendo tributários do pressuposto geral de que:
[...] toda identidade territorial é uma identidade social definida
fundamentalmente através do território, ou seja, dentro de uma relação de
apropriação que se dá tanto no campo das ideias quanto no da realidade
concreta, o espaço geográfico constituindo assim parte fundamental dos
processos de identificação social (HAESBAERT, 1999: 172).
Esta prática discursiva liga-se à representação e à construção social das várias
identidades postas em interação: por um lado, a tribo de índios de Mãe Luíza, por outro, as
tribos dos outros bairros da cidade e municípios do estado. Este caráter “grupal” aparece
como um contraponto ao individualismo enquanto valor fundamental da sociedade
moderna156 e a disputa surge não somente relacionada às agremiações carnavalescas, mas,
156
Dumont (1985) anota o individualismo como a ideologia moderna, contrapondo-se à ideologia holista das
“sociedades tradicionais”, porém, “no estágio atual da pesquisa, essa coexistência, na ideologia do nosso tempo,
do individualismo e de seu oposto impõe-se com mais força do que nunca. É nesse sentido que, se a
configuração individualista de ideias e valores é característica da modernidade, não lhe é coextensiva”
(DUMONT, 1985: 29).
[109]
sobretudo, às localidades – tribo Guaracis do “bairro” de Mãe Luíza e tribo Tupi-Guarani do
“município” de São Gonçalo do Amarante – enquanto lugares de referência coletiva.
Estes são os aspectos da realidade subjetiva que criam uma identidade comum através
da manifestação do sentimento de pertença (MAIA, 2003), que pode se dá na relação tribobairro ou tribo-município, existentes na vida social destes grupos, mas que ganha relevo em
determinados momentos ritualísticos, ao transmitirem valores, possibilitando a tomada de
consciência das coisas, definindo sua posição social e reforçando sua coletividade:
O ritual tem, então, como traço distintivo a dramatização, isto é, a
condensação de algum aspecto, elemento ou relação, colocando-o em foco,
em destaque, tal como ocorre nos desfiles carnavalescos.
[...] podemos conceituar o mundo do ritual como totalmente relativo ao que
ocorre no quotidiano. Uma ação que no mundo diário é banal e trivial pode
adquirir um alto significado (e assim ‘virar’ rito) quando destacada num
certo ambiente, por meio de uma sequência (DAMATTA, 1990: 31).
A passagem pela “avenida” é a coroação dos momentos de compartilhamento e
relacionamento do grupo, da rede de sociabilidades construídas, externando os referenciais
simbólicos que os identificam socialmente e espacialmente como participantes da agremiação
e do bairro. A “passarela” passa a se constituir em um território cujos grupos sociais – a
própria tribo de índios – constroem microterritorialidades a partir da singularização de uma
parcela do espaço onde este grupo exerce suas práticas sociais, de modo a afirmar seus
predicados identitários e preservar a identidade: “Identificar-se com um território implica
tornar-se parte de determinados círculos sociais e redes de lugares e itinerários e partilhar um
sentimento coletivo em relação a signos, códigos e práticas culturais” (MARANDOLA JR;
DAL GALLO, 2009: 07).
Vemos que o fator preponderante dessa identidade territorial de que estamos falando
não está no simples fato de residir em determinado bairro – Mãe Luíza para os brincantes da
tribo de índios Guaracis – mas “a significação que essa contiguidade espacial ganha dentro de
um contexto específico” (GOMES, 2010: 119). É o significado da solidariedade adquirida no
fenômeno do coabitar que interessa e não a coabitação em si. Esta ressalva é importante na
análise, pois tal identidade é clamada em determinadas circunstâncias e noutras pode ter
variabilidade, sendo algo reversível e mutável.
Durante o desfile, vários agentes no interior da tribo de índios têm seus papéis
revelados e a agremiação funciona como um organismo, numa completa dependência uns dos
outros para o bom desempenho, que pode ser expresso na luta entre o caçador e os índios, que
[110]
perdura por todo o desfile. Aquele, juntamente com o Pajé e o Feiticeiro, percorre toda a tribo,
com movimentos diferentes da dança em que se encontra a quase totalidade dos participantes.
Busca-se, com isso, a representação simbólica do enredo, sobretudo o ritual de morteressurreição do caçador, juntamente com o movimento e a ocupação do espaço, inscrevendo
uma nova dinâmica espacial.
A primeira ala que segue à frente encabeçada pelo Cacique empreende uma dança
gingada, carregando arcos e flechas que se tocam ao ritmo da toada realizada pela “bateria” ao
final da agremiação. A “bateria”, ao contrário do que ocorre nas escolas de samba, não
executa o “recuo” – considerado um momento complexo da performance dos grupos de
sambistas – mas se coloca em linha, sempre por último e atravessa a “avenida” juntamente
com a tribo carnavalesca.
Entre os carros alegóricos, há algumas alas de homens, mulheres e crianças
enfileirados e realizando, de forma sincronizada, uma única dança por todo o tempo na
“avenida”. E, à frente da agremiação, o estandarte da tribo de índios, igualmente como os
cucumbis de outrora, demarcando a territorialidade efêmera do grupo indígena.
Ao final, após a execução do ritual para o segundo corpo de jurados, chega-se ao
término da apresentação, em que os vários integrantes, acompanhados do presidente da tribo,
deslocam-se, cansados pelo exaustivo desfile, aos ônibus que os esperam para o retorno às
suas residências. Alguns, porém, permanecem no polo carnavalesco e somam-se àqueles
espectadores e consumidores para festejarem e assumirem outra identidade e inscreverem
outra territorialidade, sem deixar, porém, de serem membros da tribo de índios, pela própria
corporalidade posta à visibilidade, pois, geralmente, permanecem com a fantasia indígena,
embora novas ações surjam para estes participantes.
Ultrapassada a discussão acerca das várias territorialidades encontradas no desfile do
carnaval natalense, adentraremos em outros espaços públicos para compreender as
territorialidades das agremiações nas relações com o entorno, nas ruas e bairros da capital
potiguar, demonstrando usos do território que, por vezes, escapam à análise geográfica, mas
que produzem, no interior da urbe, ocupações e significados passíveis de um estudo de perto e
de dentro.
[111]
4.2. A RUA DAS TRIBOS E A REFUNCIONALIZAÇÃO DO LUGAR
Ouve-se o apito, seguido da forte batida do surdo. A tribo de índios sai à rua para o
ensaio. As crianças deixam suas casas para participarem da “festa”, e os jovens saem para o
encontro com os amigos, cuja duração é demarcada pelo tambor e pela musicalidade peculiar
da agremiação indígena, rearranjando espacialmente o lugar e atribuindo-lhe um novo
significado, semiografando um limite no território geograficamente imaginado, cujos
indivíduos assumem uma “identidade imaginada” e, chamados de “índios”157, iniciam uma
dança seguida do ritual de morte e ressureição, inscrevendo na rua outra configuração. Estes
ensaios são, para os integrantes, momentos de trabalho e, sobretudo, de lazer.
Para Magnani (1998), o lazer “é parte integrante da vida cotidiana das pessoas e
constitui, sem dúvida, o lado mais agradável e descontraído de sua rotina semanal”
(MAGNANI, 1998: 18)158, consistindo nos tempos livres dos homens que optam entre as
possibilidades existentes, dentro dos limites possíveis para a escolha, que está intrinsecamente
ligada ao poder aquisitivo da pessoa e ao lugar onde ela se encontra. Na atualidade, as opções
de lazer culturais e desportivas “disputam” seu tempo-espaço com a ida aos shoppings-centers
e com os equipamentos eletrônicos (televisão, computador, videogame e celular, por
exemplo)159. Se, por um lado, a interatividade dos aparelhos tecnológicos e os passeios às
compras nos shoppings, diante dos seus altos custos, estão voltados para uma população mais
abastada, por outro, o andar pelas ruas do bairro, indo à casa de um amigo ou saindo para
jogar futebol, é, geralmente, o lazer dos pobres.
Uma das nossas preocupações é compreender este “tempo de lazer” que os brincantes
têm nas tribos de índios. Ainda que momentâneo, constituindo um intervalo de dois ou três
meses, esta modalidade de lazer contrapõe-se àquele tempo anestesiante que exaure e aliena o
157
Utilizado aqui de forma metafórica, mas que, no trabalho de campo, revelou-se como uma verdadeira
identidade produzida no período (pré-)carnavalesco, em que os brincantes e, principalmente, os presidentes das
tribos de índios são conhecidos como “índios”, fazendo referência à agremiação.
158
Santos (1987) critica o direito ao entorno que existe somente no plano do discurso. O modelo produtivo que
vivenciamos desrespeita os valores dos cidadãos, cujo lazer citadino torna-se um lazer pago, “inserindo a
população no mundo do consumo” (SANTOS, 1987: 48) e quem não pode pagar por ele, torna-se excluído para
gozá-lo, ainda que devessem ser públicos.
159
Dentro de uma dimensão espacial, a ida ao shopping diverge dos jogos capitaneados pela televisão ou
computador, pois enquanto no primeiro há um deslocamento geralmente interbairro, sendo local de encontro dos
grupos urbanos, o segundo é mais individualista e o contato com outras pessoas se dá por intermédio da
tecnologia.
[112]
homem enquanto mercadoria160. Magnani (1994) expõe que o lazer surge a partir do universo
do trabalho para se opor a ele, compreendendo-o, portanto, como as ocupações que
preenchem este tempo. Ressalvamos, todavia, que entender o papel do lazer na vida cotidiana
é, também, vinculá-lo ao mundo do trabalho, posto que a própria produção do carnaval das
tribos constitui trabalho, mas a diferença reside no ethos, isto é, naquilo que as pessoas
vivenciam.
As crianças, jovens e adultos que participam dos ensaios, muitos deles já brincantes da
agremiação há vários anos, tecem relações de afetividade e vizinhança, ancorados num laço
existente que é fruto do cotidiano destes indivíduos, por terem sido criados na tribo de índios
ou através de outras formas de estar-junto: frequentadores da mesma escola, da mesma igreja,
do mesmo grupo, participando uns da vida social dos outros. As tribos de índios possibilitam
a união e o contato destes vários grupos e pessoas, instituindo um espaço para o exercício da
sociabilidade e edificando uma identidade, afirmando-a e vivendo-a161.
Ocorre com as tribos de índios aquilo que Cunha (2001) identificou nas ruas cariocas
durante os ensaios dos grupos carnavalescos menos abastados nas primeiras décadas do
século XX: “[...] é mais provável que muitos ensaios acontecessem nas ruas ou em quintais, a
céu aberto, atraindo com sua bulha o povo das redondezas e animando as noites dos bairros
mais pobres e destituídos de lazer acessível aos participantes habituais desses grupos”
(CUNHA, 2001: 198).
A ausência de objetos permanentes – tais como sede social, barracão e quadra de
ensaios – traduz-se na utilização de espaços públicos por estas agremiações, dando novos usos
e significados às formas espaciais. As vias públicas como espaços para ensaios constituem a
“realização de desejos, isto é, lugares reapropriados para outro uso sem a intermediação da
propriedade privada ou das normas impostas pelo poder público” (CARLOS, 2002: 183).
Entendemos que a rua é o lugar da sociabilidade por excelência, onde conhecemos,
brincamos, brigamos, dialogamos, discutimos, enfim, é ela “que resgata a experiência da
160
O tempo anestesiante de que falamos consiste na “dura realidade da vida” do indivíduo, fruto da “luta” diária
de trabalho e dominação, que aliena o homem enquanto processo que resulta da própria atividade material
humana, cuja transformação alienada é fruto de um quadro concreto-simbólico, pautado na ideologia, como
instrumento de dominação da classe dominante, que inverte a realidade num plano da representação. Conforme
Chauí (1994), a função da ideologia “consiste em impedir essa revolta fazendo com que o legal apareça para os
homens como legítimo, isto é, como justo e bom. Assim, a ideologia substitui a realidade do Estado pela ideia do
Estado. E substitui a realidade do Direito pela ideia do Direito” (CHAUÍ, 1994: 91).
161
Para Bossé (2004), “o lugar é considerado como o suporte essencial da identidade cultural, não mais em um
sentido estritamente naturalista, mas porque fica evidenciado o vínculo fenomenológico e ontológico
fundamental que ancora a pessoa humana naquilo que Eric Dardel chamou de sua ‘geograficidade’” (BOSSÉ,
2004: 166).
[113]
diversidade, possibilitando a presença do forasteiro, o encontro entre desconhecidos, a troca
entre diferentes, o reconhecimento dos semelhantes, a multiplicidade de usos e olhares - tudo
num espaço público, e regulado por normas também públicas” (MAGNANI, 2003: 02).
A rua está associada à organização social e é delimitada normativamente, definindo
uma dinâmica para este objeto espacial, prevalecendo a lógica formal do espaço 162. É, assim,
um espaço físico morfologicamente criado para se viver em sociedade. Esta norma imposta
pelo Poder Público se inscreve naquilo que Gomes (2010) conceitua como nomoespaço:
O espaço é hierarquizado, assim como os poderes que sobre ele são
exercidos. Sua estrutura é complexa, assim como o são as disposições
formais (da lei) que o regem e controlam sua dinâmica. A esse tipo de
relação social com o território demos o nome de nomoespaço, ou seja, uma
extensão física, limitada, instituída e regida pela lei (GOMES, 2010: 37).
Entendemos que as vias públicas são hierarquicamente normatizadas, com o fim de
promover o deslocamento das pessoas, automóveis, que, não obstante coexistam com tempos
diversos, seguem, igualmente, normas e códigos de conduta, tendendo a homogeneizar os
usos e o próprio sentido do espaço, posto que estejam propostos a obedecer as regras impostas
para sua utilização, frutos de uma sociedade contratual fundada na “ideia de um espaço
normativo, regulador e formalizador de práticas” (GOMES, 2010: 40), isto é, espaços
contratuais.
Numa visão jurídica, a rua consiste em um bem público indisponível, imprescritível e
inalienável, não podendo, o Poder Público, dispô-la nem perdê-la, desde que seja afetada a
uma finalidade pública. Nos parâmetros legais, a via pública consiste num bem público de uso
comum do povo, conforme dispõe o Código Civil Brasileiro, em seu artigo 99, inciso I. A
sociedade atua através de códigos sociais que se complementam, mas são diferentes, entre os
quais temos o código da rua “baseado em leis universais, numa burocracia antiga e
profundamente ancorada entre nós, e num formalismo jurídico-legal que chega às raias do
absurdo” (DAMATTA, 1997: 15). O próprio nome da via pública consiste num sinal de
identificação enquanto modelo normativo, que impregna o lugar de cultura e poder: “O nome
de rua não é mais somente um meio referencial local, mas reporta-se a um contexto cultural
que simboliza os modos ou preferências das municipalidades” (CLAVAL, 2001a: 205).
162
“A vida social implica a organização das vias de circulação e dos espaços públicos para permitir a uns e
outros realizar as suas ocupações e reencontrar os parceiros de sua escolha” (CLAVAL, 2001a: 293).
[114]
Percebemos, então, que a sociedade está repleta de significações vivenciadas nos
espaços que dão indicações de como eles são organizados. O motorista sabe perfeitamente
onde dirigir; o pedestre, por sua vez, entende a imperiosa necessidade de andar na calçada,
posto que a via pública tem como função ordinária a passagem de veículos. Existe, para essa
delimitação, um marco – o meio-fio – sinalizando a fronteira entre o automóvel e o pedestre.
Esta é a ordem constitutiva da via pública, como compromisso com a funcionalidade e a
racionalização dos usos: “um lugar para cada coisa em seu lugar” (GOMES; HAESBAERT,
1988: 63).
Essa condição normativa necessária aos espaços públicos, que transmite a ideia de um
pacto social contratual da sociedade moderna é transmudada por outros usos que se impõe às
relações formais das vias públicas, tornando-se um território “preenchido de signos
inclusivos, ou seja, signos que demarcam a presença ou controle daquele território pelo grupo
ou comunidade” (GOMES, 2010: 64). Ao pensarmos somente a forma – a aparência imediata
– daremos conta apenas dos processos do passado que estão cristalizados na paisagem, mas,
ao pensarmos nas apropriações materiais e simbólicas163 deste objeto, nas suas inúmeras
temporalidades e intencionalidades, entendemos o movimento da sociedade e os novos
valores e significações dados àquela coisa. Estamos, pois, diante do que Santos (1996a)
denominou de forma-conteúdo164.
Tais apropriações das vias públicas pelas tribos de índios demonstram a existência de
vários tempos sociais, que se revelam nos usos destes territórios. Poderíamos exemplificar o
tempo das tribos com a simples batida do surdo que demarca a temporalidade do ensaio até o
silenciar do tambor que determina o fim. De acordo com a presidente do Conselho
Comunitário do conjunto Cidade do Sol165, Judinéia Belchior, “eles começam a bater que é
pra atrair os outros, quem tiver em localidade perto, que é do bloco, já vai saber que estão se
organizando”. A rua utilizada pelas tribos carnavalescas ultrapassa a leitura funcional de um
simples suporte espacial; experienciá-la permite vê-la para além de um caminho, isto é,
163
Dozena (2011a) aponta, ainda, que as apropriações simbólicas do território, “a partir das relações sociais,
produzem e podem fortalecer uma identificação que utiliza o espaço como referência. [...] esses lugares
adquirem uma diversidade de significados e valores subjetivamente projetados e territorializados” (DOZENA,
2011a: 204).
164
“Pode-se dizer que a forma, em sua qualidade de forma-conteúdo, está sendo permanentemente alterada e que
o conteúdo ganha uma nova dimensão ao encaixar-se na forma. A ação, que é inerente à função, é condizente
com a forma que a contém: assim, os processos apenas ganham inteira significação quando corporificados”
(SANTOS, 1985: 02).
165
Cidade do Sol é um dos vários conjuntos do Bairro Igapó, onde está localizada a tribo de índios GaviõesAmarelo.
[115]
constitui-se em “um universo de múltiplos eventos e relações” (SANTOS, 1985: 25);
pensamos na rua em sua materialidade mas, sobretudo, na experiência de se encontrar nela:
usando-a e experienciando-a. Gomes e Haesbaert (1988) clareiam ao anotarem:
Além de garantir o espaço da reprodução social, é preciso conquistar e/ou
garantir outros, como em uma estratégia de guerra. A grande arma das
metrópoles são as áreas ainda efetivamente comuns, públicas,
“desocupadas”. Nestas são traçadas as verdadeiras campanhas táticas
informais de ocupação e domínio. Praças, ruas e equipamentos diversos de
lazer e serviços são o território onde ocorrem ofensivas e retiradas, onde se
alternam controles e normas próprias a cada grupo (GOMES;
HAESBAERT, 1988: 63).
Dozena (2008) esgrime que a apropriação simbólica de espaços públicos e privados
pelos movimentos de samba nos diversos bairros paulistanos funcionam como uma prática de
resistência e contrafinalidade. Podemos aplicar ao presente estudo das tribos de índios, tendo
em vista que tais apropriações agem:
[...] como remediador[as] da falta de espaços para as manifestações culturais
e o lazer na cidade. [...] estas diligências mudam a natureza da escassez de
espaços e organizam práticas sociais que ensinam cidadania a partir dos
diferentes usos territoriais, pois é no uso dos territórios que tais espaços
ganham significado (DOZENA, 2008: 02).
Enquanto a toada permanece soando, a tribo de índios está nas ruas, delimitando um
território e dando um novo conteúdo à forma urbana, que deixa de ser um espaço com funções
sociais ordinárias, para tornar-se um lugar que imprime a cadência de ritmo lento e dança
performática. O mesmo espaço público do tempo hegemônico, da rapidez e fluidez dos carros,
ônibus, motos, da passagem de pessoas que vão ao trabalho, à escola, torna-se um lugar do
encontro, um verdadeiro teatro espontâneo do cotidiano, onde o indivíduo torna-se
“espetáculo e espectador, às vezes ator” (LEFÈBVRE, 2008: 27)166:
Enquanto imagem e símbolo de um “modo de vida urbano”, lugar onde se
acredita ocorrerem as formas de interacção social “mais típica da cidade”, a
rua condensa e viabiliza todo um imaginário composto por bipolarizações
classificatórias (casa/rua; público/privado; urbano/tradicional), discursos,
imagens, memórias e emoções que atravessam, elaboram e estruturam
simbolicamente a cidade naquilo que ela tem de mais originalmente urbano
(CORDEIRO; VIDAL, 2008: 10).
166
Pensar estes agentes enquanto atores em meio a um espetáculo que ocorre neste espaço privilegiado e
socialmente misturado é compreender o protagonismo social destes indivíduos e grupos que interagem,
integram-se, intercruzam sociabilidades e interações sociais, de vários significados.
[116]
Estes territórios de sociabilidades são apropriados pelos membros das agremiações
carnavalescas e por aqueles que, de forma direta ou indireta, participam e se territorializam,
requalificando o espaço público, o que possibilita aos grupos estabelecerem uma ordem local,
realizando um determinado tempo-espaço167, fundada na escala do cotidiano e na
contiguidade, tendo como parâmetros “a co-presença, a vizinhança, a intimidade, a emoção, a
cooperação e a socialização” (SANTOS, 1996a: 272). Esta requalificação da rua, pensada
numa ótica cultural da geografia, permite-nos vislumbrar a mudança na paisagem – de via
normativa à rua das tribos –, entendendo-a como um contexto material híbrido e palimpsesto,
composta de objetos, valores e funções, ou seja, de formas-conteúdos imbuídas de intenções e
significados, mostrando que o “uso e o valor de uso podem dominar a troca e o valor de troca”
(LEFÈBVRE, 2008: 27-28).
A apropriação da rua pode ser compreendida como uma relação de poder estabelecida
com a sociedade, criando mecanismos para exercer o domínio deste espaço, ocupando-o e
estabelecendo uma territorialidade, pois o que muda não é o objeto em si, mas o significado
dado a ele e ao conjunto de táticas utilizadas para estabelecer o seu domínio – mediadas pelo
corpo enquanto condição de uso dos espaços – de modo a impedir as imposições unilaterais
da funcionalidade normativa. É, pois, no interior do espaço tecnocrático que se formam
“frases imprevisíveis, ‘trilhas’ em parte ilegíveis” aos olhos macros (CERTEAU, 1994).
Neste sentido, Certeau (1994) arremata:
[...] procedimentos populares (também ‘minúsculos’ e cotidianos) jogam
com os mecanismos da disciplina e não se conformam com ela a não ser para
alterá-los; enfim, que ‘maneiras de fazer’ formam a contrapartida, do lado
dos consumidores (ou ‘dominados’?), dos processos mudos que organizam a
ordenação sociopolítica [...]
Essas “maneiras de fazer” constituem as mil práticas pelas quais usuários se
reapropriam do espaço organizado pelas técnicas da produção sociocultural
(CERTEAU, 1994: 41).
De acordo com Paulo Lira, quando os ensaios ocorriam na via pública – referindo-se
àqueles que antecederam o carnaval de 2011 – ele “fechava a rua na marra de um lado e do
outro, colocava até os carros atravessados para ninguém passar, sendo xingado por uns e
elogiado por outros” (Paulo Lira – Presidente da tribo de índios Tabajara). O ato de colocar
automóveis atravessados na via pública impedindo o acesso é um meio de cristalização do
167
Lefèbvre (2008) coloca que na rua e através dela, “um grupo se manifesta, aparece, apropria-se dos lugares,
realiza um tempo-espaço apropriado” (LEFÈBVRE, 2008: 27).
[117]
domínio sobre o espaço, produzindo uma territorialidade, delimitando um campo de ação e de
poder da tribo de índios. O território passa a ser “um campo de forças, uma teia ou rede de
relações sociais que, a par de sua complexidade interna, define ao mesmo tempo um limite,
uma alteridade: a diferença entre ‘nós’ (insiders) e os ‘outros’ (outsiders)" (SOUZA, 1995:
86). Com fronteiras flexíveis, este microterritório formado propicia a disputa entre aqueles
que utilizam a rua em sua morfologia normativa e a tribo que a refuncionalizou e passa a
exercer um domínio sobre o espaço. Valdir nos explica essa tensão existente:
“Eu estou vendo a hora de eu ser atropelado aqui por um carro desses ou
uma moto, que num respeitam na porta de casa. [...]
Antigamente o povo respeitava [...] nós estávamos batendo aqui, de repente
aparecia um carro acolá, quando já vinha acolá assim, ele parava. Se nós
abríssemos, o carro passava; se não abrisse, o carro não passava. Mas agora
não, quando ele vem de lá pra cá, temos que tirar tudo do meio, até as caixas,
senão passa por cima” (Valdir – Presidente da tribo de índios Tapuias).
O espaço, antes normatizado, reveste-se de outros usos, por vezes não autorizados pelo
Poder Público, conformando-se com a função de lugar para ensaio e lazer, refletindo outro
aspecto da vida cotidiana, com conflitos gerados pelo rearranjo espacial.
Figura 6 – Ensaio da tribo de índios Tapuias e o “desrespeito” do veículo
Foto: Autor, 2012
[118]
Francisca das Chagas reforça este fato ao dizer: “Quando a gente tá ensaiando os
carros passam ligeiros [...] temos que tirar as crianças senão eles passam por cima [...] a gente
tem medo de tá ensaiando e acontecer alguma coisa” (Francisca das Chagas – Membro de
apoio da tribo de índios Tapuias). A vida social democrática muito embora seja permeada de
diálogos, em que os acordos existem expressamente ou de forma tácita, evidencia ocasiões em
que estes inexistem, sobretudo quando se trata do embate causado entre o uso racional e o
“contrarracional” de um objeto urbano.
Como mecanismo de controle, a tribo de índios Tapuias criou lombadas na rua como
medida alternativa, no intuito de controlar a velocidade dos veículos e normatizando o espaço.
Tais “invenções” realizadas por iniciativa popular, não obstante a ausência de previsão legal,
servem como um suporte para o domínio do espaço público, pois sua colocação tem como
fundamento tão somente a possibilidade do ensaio ocorrer na rua: “Isso aí era um coqueiro
que botaram, olha, tá vendo aí? Essa lombada aí? São coqueiros que enterramos; agora num
freie aqui não! Isso aí é um coqueiro inteirinho, essa lombada aí” (Valdir – Presidente da tribo
de índios Tapuias).
Se algumas tribos de índios apropriam-se da rua sem a devida anuência do órgão
público competente, a tribo Gaviões-Amarelo preferiu solicitar a permissão para promover os
ensaios. Com o devido alvará para ensaiar, a agremiação colocou cones sinalizando o
impedimento da passagem dos meios de transporte. Reforçando a linha divisória, os
integrantes da bateria se colocam à frente dos objetos limitadores, perfazendo outro traço
delimitador, robustecendo e destacando a imperiosa necessidade do espaço para o ensaio da
agremiação.
É interessante observar que a fronteira estabelecida, muito embora seja concreta,
permite uma interação simbólica com o limite do outro: a tribo de índio respeita o território
demarcado pela jogatina que ocorre, também, na rua, em frente a um estabelecimento
comercial.
A particularidade da tribo de índios Gaviões-Amarelo nos possibilita “identificar os
graus de variabilidade de um fenômeno e seu quadro referencial” (GOMES, 2010: 209), no
qual podemos traçar relações – semelhanças e dessemelhanças – de um mesmo fenômeno que
se procede diferentemente em vários lugares.
[119]
Figura 7 – Limites da Tribo de índios Gaviões-Amarelo
Foto: Autor, 2012
Tal limite estabelecido é, no entanto, “desrespeitado” pela própria a tribo quando
promove o “ensaio geral”, de modo a simular o desfile na “avenida” e verificar a evolução de
toda a agremiação. É o momento em que a agremiação ultrapassa o quadrante destinado aos
ensaios técnicos.
A tribo de índios Gaviões-Amarelo realizou seus ensaios, para o carnaval de 2012, na
Rua Marte, em frente à sede da agremiação. Porém, nos dois últimos ensaios, o grupo
carnavalesco percorreu várias ruas do entorno (Marte, Júpiter, Netuno e Vênus). Indo além de
uma leitura técnica destes ensaios, necessários nos movimentos racionalizados para apresentar
ao corpo de jurados, visto que se trata de uma competição, também vislumbramos
espontaneidade e alegria dos participantes.
Tem-se, pois, dialeticamente, uma dupla carga imprescindível para experienciar
plenamente o ensaio da tribo de índios: o elemento racional próprio do competidor que
trabalha para vencer o desfile carnavalesco e o elemento subjetivo da performance
carnavalesca diante dos amigos e vizinhos, carregado de uma carga emocional. Por isso
acreditamos que estas territorialidades se expressam (i)materialmente, supondo, ao mesmo
tempo, qualificações objetivas-subjetivas.
[120]
Mapa 4 – Representação espacial dos ensaios da Tribo de Índios Gaviões-Amarelo
A tribo de índios Apaches, por sua vez, realiza, no município de Ceará-Mirim, uma
prática não mais vista entre as agremiações carnavalescas da capital potiguar: os “assaltos”.
Acompanhamos um “assalto carnavalesco” realizado no dia 07 de fevereiro de 2012 e
percebemos a animação dos participantes da tribo numa verdadeira festa. Não somente os
integrantes do grupo, mas várias pessoas se colocavam na rua para assistir o “desfile”, que
percorreu vários logradouros. Ao chegar à residência a ser assaltada, como forma de
agradecimento pelo convite, a tribo de índios procedeu ao “ritual do fogo”, com um “show”
pirotécnico e acendimento de várias tochas. Após, os integrantes adentraram a casa para o
momento de sociabilidade, onde foi servida uma canja e muita bebida aos brincantes. Em
seguida, retornaram à sede, quando, enfim, terminou a “festa”.
No trajeto, embora curto, verificamos vários agenciamentos e acordos momentâneos,
ainda que restritos a um simples pedido para que os carros parassem em respeito à tribo que
desfilava pela cidade. Também foi possível observar a mudança na própria estrutura da
agremiação, sobretudo ao sair da Rua Euclides de Souza e entrar na Rua Manoel Marques, em
[121]
virtude da largura dos dois logradouros, o que ocasionou certa desorganização do grupo, mas
que, rapidamente, realocou-se promovendo uma nova distribuição espacial na via pública:
Mapa 5 – Representação espacial do “assalto” carnavalesco dos Apaches
O próprio espaço, através das formas dispostas na paisagem, permite ou não que
determinados eventos ocorram ou se tornem dificultosos. Queremos dizer que a maneira como
os objetos estão colocados ditam as ações. Diferentemente das tribos de índios GaviõesAmarelo e Tapuias, a sede da agremiação Tupi-Guarani localiza-se numa importante artéria
do Município de São Gonçalo do Amarante. Se, para aquelas primeiras, a realização dos
ensaios se dava com certas dificuldades, para esta torna-se quase impossível diante do grande
fluxo de veículos. A “saída”, então, é se deslocar para uma rua perpendicular, distante a
aproximadamente 400 metros.
[122]
Mapa 6 – Trajetória ritualizada da Tupi-Guarani
Ao som da conhecida toada, os “índios” realizam o deslocamento, andando e
dançando na própria rua e, durante o percurso, inúmeras pessoas saem do interior de suas
casas para ver a agremiação passar. Este colocar-se à rua, do privado ao público, é entendido
como um rito; e a ida da tribo ao local de ensaio torna-se ritualizada, pois carrega em si uma
performance teatralizada e espetacularizada do próprio trajeto.
Após o ensaio, o grupo retorna à residência do presidente, com seus arcos e flechas à
mão para o momento de socialização, onde, entre um copo d’água e outro, os jovens
conversam e se divertem, mas, também, ouvem com atenção as orientações de Paulo Sérgio
dos Santos.
Verificamos uma disputa territorial entre os usos normatizados, através da utilização
da rua como espaço de fluxo, nos parâmetros legais, e o uso paralelo, lugar da cotidianidade e
espontaneidade, ultrapassando a lógica formal e recriando a normatização. Neste sentido, os
indivíduos tornam-se agentes do cenário por escreverem novas dinâmicas no espaço, através
de outros usos possíveis, para além do funcional/racional, tornando-se, a rua, um lugar de
[123]
ações e intencionalidades, modificando-se o estatuto e a finalidade do espaço público168. Pari
passo, reorganiza-o através de um novo cenário improvisado por outras práticas.
Esta dinâmica estabelecida pelas tribos carnavalescas em Natal nos autoriza a afirmar
diferentemente de Carlos (1996) em que, analisando a realidade das metrópoles do mundo
moderno, afirma estar havendo uma atenuação das sociabilidades, em virtude do fim das
atividades que ocorriam nos bairros. A geógrafa constatou “o fim dos encontros nas esquinas,
os ensaios das escolas de samba que antes ocorriam nas ruas dos bairros, hoje ocorrem em
quadras cobertas e fechadas” (CARLOS, 1996: 88). No entanto, esta realidade revelada pela
autora não deve ser contemplada de forma absoluta, visto que a rua tem, também, o sentido da
festa, da reivindicação e do encontro 169.
Ademais, não são as quadras das agremiações carnavalescas que definirão o fim das
sociabilidades, mas, pelo contrário, a quadra passou a ser ela mesma este espaço para os
encontros. Analisando as territorialidades do samba em São Paulo, Dozena (2009) demonstra
claramente esta perspectiva das apropriações dos espaços a partir de um imaginário
relacionado ao samba, enquanto representações da vida urbana:
São estas apropriações do espaço geográfico que o transforma em
“territórios do samba”, apropriações assumidas como mediação de
representações construídas a partir de um imaginário ao samba relacionado,
onde os próprios bairros passam a fomentar representações da vida urbana.
Não somente eles como também as quadras e barracões das escolas de
samba, os viadutos apropriados para ensaios, os fundos de quintal, as lajes de
casas simples, os centros culturais e praças públicas, os bares, as feiras e ruas
onde as rodas de samba acontecem. Mais do que simples edificações ou
áreas situadas em algum ponto da cidade, estes lugares adquirem uma
diversidade de significados e valores subjetivamente projetados e
territorializados (DOZENA, 2009: 25).
É interessante frisar que além da apropriação da via pública pela tribo de índios, para
os ensaios, existem outras apropriações deste mesmo espaço público por outros indivíduos e
grupos, demonstrando a existência de múltiplas territorialidades presentes e coexistentes num
168
Conforme Luchiari (2001), “As mudanças morfológicas na paisagem não são inócuas e não podem ser
analisadas independentemente das práticas sociais. A produção de um novo contexto material altera a
forma/paisagem e introduz novas funções, valores e objetos. Esses objetos, formas dotadas de conteúdo,
permeadas pelas ações e contextualizadas por um sistema de valores, são imbuídos de significação e
intencionalidade. A noção de intencionalidade estabelece uma estreita relação entre ação e objeto” (LUCHIARI,
2001: 12-13).
169
Na mesma obra, Carlos (1996) coloca que o sentido do lugar de encontro e da reunião na metrópole
paulistana não se perdeu definitivamente, mas que se tornou esporádico (CARLOS, 1996: 88).
[124]
mesmo espaço e com finalidades diversas170. A partir daqueles que seguem às ruas para
produzir a encenação carnavalesca, agregam-se outros usos do território por aqueles que saem
à rua para assistir, permitindo relações de sociabilidade e de vizinhança no interior do grupo,
mas, também, exterior a ele. Neste sentido, os “significados que um determinado suporte
material (esquina, calçada, quintal, rua, etc.) pode assumir, resultam da sua conjugação com
uma atividade e mudam de acordo com ela” (SANTOS, 1985: 49).
A única alternativa de ensaiar na rua traduz-se na visibilidade, ou seja, no ver e ser
visto pela sociedade. As relações de vizinhança são importantes no bairro, na rua, enfim, nos
ambientes sociais. É neste sentido que se verifica o diálogo existente nas tribos de índios com
o seu entorno, conforme podemos perceber nas palavras de Valdir: “Aqui mesmo eu faço,
aqui mesmo eu fico, aqui mesmo eu ensaio. Peço licença a esse pessoal aqui, peço licença, em
virtude do barulho, para não perturbar” (Valdir – Presidente da tribo de índios Tapuias).
Note-se o respeito com os vizinhos ao enfatizar que solicita às pessoas que ali moram
a permissão para realizar o ensaio. Também, nos dias em que há culto religioso (evangélico)
em alguma residência do entorno, o ensaio é feito no interior da casa do presidente da
agremiação. No presente caso, verificamos a relação dialógica entre aqueles integrantes da
tribo de índios com o entorno. Trata-se de uma disputa territorial, um lugar de negociação,
seja por meio do diálogo ou do conflito, dependendo dos ritmos e sentidos dos agentes. Neste
sentido, ensina Haesbaert (1999): “É no encontro ou no embate com o outro que buscamos
nossa afirmação pelo reconhecimento daquilo que nos distingue, que pode promover tanto o
diálogo quanto o conflito com o outro” (HAESBAERT, 1999: 175).
As dissenções e discordâncias nas apropriações que as tribos fazem dos espaços
públicos são condições sine qua non para o viver em sociedade, pois o choque é próprio da
dinâmica social. Mas, o mais importante, é a negociação a partir do dissenso. Restabelecer o
equilíbrio é pensar na flexibilização das normas sociais (morais) criadas pelos apropriadores
dos espaços, sempre na lógica do acordo.
É no sentido aqui esboçado que compreendemos os usos da rua em sua
processualidade, cujas regras encontram-se sempre em construção, tanto do espaço quanto das
relações sociais estabelecidas. Nesta combinação percebemos a rua não só como um suporte
170
Neste sentido, Gomes (2001) explicita: “[...] cada um destes grupos desenvolve formas próprias de agenciar
sua territorialidade, ou seja, de impor uma presença identitária sobre uma certa extensão espacial, definida pelo
contraste e pelo conflito, e que por isso se define como um território” (GOMES, 2001: 100).
[125]
espacial, mas como um conjunto de ações determinadas e determinantes deste espaço,
valorada pelos agentes que desempenham papéis diversos: os participantes da tribo, os
transeuntes, os que assistem o ensaio, entre outros.
Entre os participantes, enquanto alguns estão dançando, outros se acham no apoio.
Aos que assistem, alguns se encontram na rua ou na calçada, sentados ou em pé, e outros
permanecem no interior de suas casas, assistindo através da janela171. São nestes momentos de
interação que verificamos, sobretudo no substrato mais pobre da cidade, as sociabilidades
fundadas nos laços vicinais, existindo, pois, uma interpenetração do espaço público com o
espaço privado que pode ser compreendida como o entrelaçamento destes dois domínios que
convidam à sociabilidade, enquanto lócus da convivência por excelência.
O ensaio, muito embora ocorra na rua, cria um espaço que atravessa o público e
adentra a casa do presidente da tribo, que, neste momento, perde o status de residência e
assume o caráter de “sede do bloco”. As palavras de Milton Santos (1987) resumem o que
estamos querendo dizer, pois o território no qual vivemos “é mais que um simples conjunto de
objetos, mediante os quais trabalhamos, circulamos, moramos, mas também um dado
simbólico” (SANTOS, 1987: 61).
O presente tópico buscou, em linhas gerais, entender o “espaço da rua”, a partir da
análise da sua apropriação pelas tribos de índios, bem como o entrecruzamento e as relações
que são estabelecidas entre os vários agentes na rua, enquanto espaço de interação e de uso,
escrevendo sociabilidades e tornando públicas e visíveis as ações, propriedades do espaço
público. Ultrapassando a rua e ampliando para o bairro, procuraremos, no próximo tópico,
analisar as relações de vizinhança existentes nas tribos.
4.3. AGENCIAMENTOS ESPACIAIS: O COTIDIANO DO BAIRRO
Ao tratar das tribos carnavalescas de Natal/RN, em uma perspectiva geográfica, é
imprescindível identificar a dimensão espaço-temporal da manifestação em análise, que se
171
É interessante notar que aqueles indivíduos que assistem da janela encontram-se no limbo entre o público e o
privado, entre a visibilidade e a invisibilidade. Esta zona fronteiriça é material, concreta, mas, sobretudo,
simbólica.
[126]
passa no centro urbano “atravessado, perfurado pelo tempo, pelos fluxos de pessoas e
imagens, por sons e variados ruídos” (ROCHA, 2008: 92).
As tribos de índios do carnaval, em sua projeção no espaço citadino, caracterizam-se
pelo papel da vizinhança, edificando identidades e estabelecendo relações que são vivenciadas
na sua cotidianidade, forjando um sentimento de pertença social. Estes comportamentos
compreendem algumas dimensões apontadas por Castells (1983):
[…] as atividades relativas à vizinhança (a ajuda e o empréstimo mútuos, as
visitas, os conselhos, etc.) e as relações sociais propriamente ditas (a saber, a
ligação entre relações de amizade, familiares, de vizinhança, participação em
associações e centros de interesses, etc.). O conjunto destes comportamentos
exprime a definição cultural do papel do vizinho; este papel varia em
intensidade e intimidade, segundo as dimensões e segundo as normas
culturais interiorizadas pelos diferentes grupos sociais (CASTELLS, 1983:
125).
Aqui acionamos uma perspectiva que aprecia a dimensão material e não-material da
cultura, numa escala local, mas que não desvincula-se do regional e do global, considerando
“tanto aspectos concebidos como vivenciados, tanto espontâneos como planejados, tanto
aspectos objetivos como intersubjetivos” (ROSENDAHL; CORRÊA, 2003: 13).
Dentro da análise, nos filiamos à nova abordagem cultural em Geografia, cujas
transformações em curso no espaço urbano devem ser apreciadas como marca e matriz
cultural (BERQUE, 1998); a paisagem urbana expressa um grupo – marca – e contribui para a
transferência da cultura – matriz. Dentro desta perspectiva, podemos entender que a sociedade
é dependente de uma cultura não homogênea, visto que “uma sociedade pode incluir culturas
tão radicalmente diferentes que parecem incompatíveis” (COSGROVE, 1998: 104) 172. A
cultura “não é uma categoria residual, mas o meio pelo qual a mudança social é
experienciada, contestada e constituída” (COSGROVE; JACKSON, 2003: 136).
No presente tópico pretenderemos analisar as tribos carnavalescas e suas relações com
o entorno, a partir de uma leitura hermenêutica das práticas socioespaciais, de modo a
compreender a teia de significados que circunda esta relação, tecida pelos indivíduos (os “de
172
Partilham desta compreensão inúmeros antropólogos, geógrafos, sociólogos e teóricos do cultural studies que
se dedicam às abordagens culturais, dos quais podemos citar: Raymond Williams, Clifford Geertz, Marshall
Sahlins, Augustin Berque, James Duncan, Fredric Jameson, Paul Claval, Denis Cosgrove e Peter Jackson. No
Brasil, podemos enumerar: Silviano Santiago, Renato Ortiz e Roberto Lobato Corrêa. Dentre os teóricos atuais,
que abordam temas culturais, temos Alessandro Dozena.
[127]
dentro” e os “de fora”)173. Interessamo-nos pelas ações e intenções humanas insertas no
espaço174, especificamente, no bairro, que nos revelará significados atribuídos pelo grupo,
permitindo-nos relacioná-los às condições de existência dos indivíduos.
Buscando discutir os agenciamentos espaciais que são observados nas agremiações,
percebemos que a leitura das práticas ordinárias destas tribos nos conduziu a importantes
debates. Nesse sentido, temos que os “significados das diversas práticas espaciais associadas
ao cotidiano, envolvendo as coisas correntes, e as manifestações menos frequentes ou
periódicas estão, com raras exceções, a serem evidenciados pelos geógrafos brasileiros”
(ROSENDAHL; CORRÊA, 2003: 17).
É certo que existe limitação na proposta empreendida, pois a dinâmica social – regras
de conduta, comportamento, linguagem, valores e significados – modifica-se na proporção
que se muda o lugar onde enxergamos as práticas sociais. Quero dizer com isso que as tribos
carnavalescas não se diferenciam somente espacialmente, mas, sobretudo, quanto a práxis
cotidiana. Todavia, as semelhanças quanto à carência, experiência da escassez, ausência da
oferta de lazer nas comunidades em que se inserem estas tribos de índios nos possibilita
realizar uma leitura de aspectos genéricos relevantes e particularidades no interior dos grupos
carnavalescos estudados.
Se cada lugar – uma rua, uma praça, um bairro – é diferente quanto aos objetos e
ações, tentar entender as dinâmicas espaciais das tribos no interior da cidade consiste em uma
ação restrita e incompleta, pois “à cidade são dados forma e sentido a partir do momento em
que os espaços são vivenciados como um todo [...] um complexo conjunto de elementos
concretos e abstratos” (VAZ DA COSTA, 2005: 85).
Esta complexidade do espaço citadino enquanto matriz do urbano é de difícil
apreensão, se pensarmos a cidade como um complexo símbolo que exprime uma tensão entre
a racionalidade geométrica e o emaranhado de existências humanas. Cada ângulo dela nos
permite visualizar uma determinada paisagem urbana, a depender das “lentes” de quem a vê e
a vivencia, em suas diferentes localidades e sentidos; em qualquer sociedade “não há um
único contexto e, sim, uma série de contextos em uma variedade de escalas” (DUNCAN,
2003: 88), por ser “uma realidade objetiva com suas ruas, construções, monumentos, praças,
173
Aqui nos aproximamos da ideia de cultura e sua interpretação das práticas sociais presentes nas obras de
Geertz (A interpretação das culturas) e Williams (Cultura).
174
Nossa proposta é um pouco diversa daquela de Sauer, pois consideramos a existência do elemento simbólico,
não sendo, o espaço, somente as obras humanas inscritas na superfície terrestre, como entendia Sauer (2003).
[128]
mas sobre este ‘real’ os homens constroem um sistema de ideias e imagens de representação
coletiva” (PESAVENTO, 1997: 26), podendo ser representada de inúmeras formas e adquirir
vários significados.
O bairro, por sua vez, organiza-a, delimitando fronteiras e representando divisões no
interior da urbe, congregando, numa escala menor, um conjunto de objetos e ações, onde as
pessoas podem “ancorar as suas identidades na realidade circundante” (CLAVAL, 2003: 162).
Conforme Mayol (1996), o bairro consiste no “lugar onde se manifesta um 'engajamento'
social ou, noutros termos: uma arte de conviver com parceiros [...] que estão ligados a você
pelo fato concreto, mas essencial, da proximidade e da repetição” (MAYOL, 1996: 39).
Mayol (1996), em seu brilhante trabalho, continua:
A cidade é, no sentido forte, ‘poetizada’ pelo sujeito: este a re-fabricou para
o seu uso próprio desmontando as correntes do aparelho urbano; ele impõe à
ordem externa da cidade a sua lei de consumo do espaço. O bairro é, por
conseguinte, no sentido forte do termo, um objeto de consumo do qual se
apropria o usuário no modo da privatização do espaço público. [...] o espaço
urbano [no bairro] se torna não somente o objeto de um conhecimento, mas
o lugar de um reconhecimento (MAYOL, 1996: 45).
Devido à complexidade da nossa sociedade, torna-se difícil manter vínculos
permanentes com as pessoas, mas, no bairro ainda é possível manter esse laço. De acordo com
Magnani (1998), “é principalmente o lugar de moradia que concentra as pessoas, permitindo o
estabelecimento de relações mais personalizadas e duradouras que constituem a base da
particular identidade produzida no espaço” (MAGNANI, 1998: 116). Faz coro com esta
perspectiva a assertiva de Serpa (2007b), ao compreender que no bairro “se elabora o
sentimento de pertencimento ao ‘lugar’, espaço das práticas cotidianas e aparentemente
banais” (SERPA, 2007b: 10)175. Neste sentido, Dozena (2011b) argumenta:
Os próprios bairros passam a fomentar representações da vida urbana. Não
somente eles, como também as quadras e barracões das escolas de samba, os
viadutos apropriados para ensaios, os fundos de quintal, as lajes de casas
simples, os centros culturais e praças públicas, os bares, as feiras e ruas onde
as rodas de samba são realizadas (DOZENA, 2011b: 18-19).
175
Entendemos que o bairro é composto de movimentos contraditórios que se compensam e se combinam para
além do poder panóptico das estratégias socioeconômicas e políticas, proliferando astúcias e combinações de
poderes locais e contrarracionais, que escapam ao discurso homogeneizador e racional, nos conduzindo ao
caminho quase oculto pelos dispositivos e discursos alienantes das “práticas microbianas, singulares e plurais,
que um sistema urbanístico deveria administrar ou suprimir e que sobrevivem a seu perecimento” (CERTEAU,
1994: 175).
[129]
Dozena (2011b) demonstra a importância do bairro em estudos de grupos
carnavalescos. Poderíamos claramente substituir quadras e barracões das escolas de samba
por sede das tribos de índios e rodas de samba por toadas dos ensaios para aplicar ao caso
ora estudado.
Muito embora não seja o objetivo do presente trabalho, compreendemos, também, esta
porção da cidade enquanto um espaço vivido cotidianamente, com uma lógica própria,
caracterizado pelos arranjos, práticas sociais e representações simbólicas, compreensíveis pelo
caráter topofílico – construído e vivenciado – do bairro, cuja afetividade é propulsora da
relação entre as pessoas e o lugar (TUAN, 1983), desencadeando um sentimento de
aproximação “despertado pelo espaço apropriado, da convivência e da felicidade” (MELLO,
2001: 88). Esta experiência176 do bairro implica na “capacidade de aprender a partir da própria
vivência” (TUAN, 1983: 10), tratando-se, portanto, de “um espaço público que conjuga certa
funcionalidade com uma inegável carga simbólica” (MAFFESOLI, 2000: 33).
Se por um lado, percebemos nas cidades modernas – receptáculos do capital e da
mercadoria – uma intensa urbanização, diante do atual estágio que passa o capitalismo, por
outro, em seu interior, nos “pedaços” da cidade177, podemos encontrar as inúmeras
experiências banais da vida social – e aqui incluímos a relação das tribos de índios com o
bairro – que é visto com uma extrema beleza pelo flâneur baudelairiano178, passíveis de serem
apreendidas com o próprio movimento da sociedade. Reproduzimos o entendimento de que a
vida cotidiana não se baseia tão somente na divisão do trabalho e nas instituições sociais, mas,
sobretudo, em pequenos sistemas e realidades sociais cuja apropriação espacial produz
campos simbólicos e práticas culturais.
Buscando os aspectos concretos da existência da população, nas formas de
entretenimento possibilitados pelas tribos de índios nos bairros da periferia enquanto parte
176
A experiência, para Tuan (1983), consiste num termo “que abrange as diferentes maneiras através das quais
uma pessoa conhece e constrói a realidade. Estas maneiras variam desde os sentidos mais diretos e passivos
como o olfato, paladar e tato, até a percepção visual ativa e a maneira indireta de simbolização” (TUAN, 1983:
09).
177
Conforme Magnani (2002), um dos elementos constitutivos do “pedaço” é de ordem espacial correspondente
a uma rede de relações sociais.
178
“A multidão é seu universo, como o ar é o dos pássaros, como a água, o dos peixes. Sua paixão e profissão é
desposar a multidão. Para o perfeito flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência
no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa, e contudo sentir-se em
casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo, eis
alguns dos pequenos prazeres desses espíritos independentes, apaixonados imparciais, que a linguagem não pode
definir senão toscamente. O observador é um príncipe que frui por toda a parte o fato de estar incógnito”
(BAUDELAIRE, 1996: 19-20).
[130]
integrante do cotidiano, procuraremos entender a composição social, destacando elementos e
ingredientes sociais mobilizados no contexto de duas tribos de índios – Tabajara e GaviõesAmarelo – em seus respectivos ambientes urbanos.
Preferimos não optar pela escolha de tribos até com grande tradição, como a
Potiguares e Tupinambás, pelo fato de não identificarmos nela uma relação com o bairro,
fincadas nos laços de solidariedade e amizade. Pelo contrário, os componentes, em sua quase
totalidade, são provenientes de outras tribos de índios, “alugados” para desfilarem 179. Para a
escolha das agremiações Tabajara e Gaviões-Amarelo, consideramos as sociabilidades delas
com o seu entorno e a receptividade encontrada, que foram preponderantes para a
compreensão das minúcias na preparação para o desfile, cujos dados coletados foram
provenientes da observação participante.
4.3.1. A tribo de índios Tabajara e o bairro Felipe Camarão
O bairro Felipe Camarão, localizado na Zona Oeste da capital, é estigmatizado como
um local pobre e violento, não havendo a preocupação do Poder Público com o lazer na
localidade, fato exemplificado pelo reduzido número de praças públicas e equipamentos
desportivos, conforme dados informados pela SEMURB (2009). Esta situação é fruto do
modelo de urbanização e desenvolvimento econômico adotado, geradores de desigualdades
socioespaciais, contrastando com o contexto da cidade, que se torna fragmentada e a
população dos bairros pobres passa a conviver com a precariedade de infraestrutura e
equipamentos coletivos.
O bairro foi formado a partir da antiga localidade denominada Peixe-Boi, que na
década de 1960 foi loteada pelo proprietário da empresa Gerna, que passou a se chamar
Reforma. Em homenagem ao chefe indígena dos potiguaras, recebeu o nome de Felipe
Camarão.
179
De acordo com o pesquisador Gutemberg Costa, a sublocação de componentes de outras agremiações foi um
“invento” do carnavalesco Evaldo da Silva: “Na falta de componentes para as suas agremiações, Evaldo
‘sublocava’ as existentes em Ceará-Mirim, Macaíba ou São José de Mipibu. [...] Nesta terceirização, invento de
Evaldo, ele trouxe uma tribo de índios de Ceará-Mirim para Natal e registrou como o nome de ‘Bororós’
pagando aos convidados, Cr$ 3.000,00 e recebendo para si a quantia de Cr$ 16.000,00” (COSTA, 1999: 122).
[131]
A vida urbana precária das classes populares, principalmente na área da Zona Oeste da
capital, que dispõe, dentre outros problemas, de um déficit imobiliário, revela, também, a
ausência dos equipamentos necessários à vida e garantidores dos direitos sociais estabelecidos
constitucionalmente180. Malgrado o “esquecimento” do bairro no que se refere à cultura e ao
lazer pelos órgãos públicos, os moradores, voluntariamente, desenvolvem atividades que
revelam a espontaneidade e a solidariedade, tais como: grupos de capoeira, escolas de futebol,
quadrilhas juninas e, mais especificamente, a tribo de índios carnavalesca Tabajara. Neste
sentido, entendemos que o desenho urbano das cidades modernas e sua estrutura social
voltada para os ditames capitalistas valorizam determinados espaços – luminosos – e
segregam outros – opacos – que, por força da criatividade e solidariedade de seus agentes,
produzem cultura181.
É interessante notar que o presidente da tribo de índios Tabajara, Paulo Lira, também
organiza uma quadrilha no período das festas juninas e é um dos idealizadores do balé popular
da cidade:
“A gente trabalha pro carnaval, quando termina o carnaval, a gente faz um
outro trabalho para o São João, nós trabalhamos com o balé popular de
Natal. Num é um balé clássico, é um balé popular resgatando as nossas
danças, as nossas raízes, como Araruna, como coco, vem num pacote só,
então a gente faz esse trabalho até dezembro” (Paulo Lira – Presidente da
tribo de índios Tabajara).
Felipe Camarão “respira” uma cultura realizada pela própria comunidade, e a tribo
Tabajara contribui para essa vivência cultural e folclórica formando um conjunto
fundamentado pela “inscrição social, pela espacialização e pelos mecanismos de solidariedade
que são seu corolário” (MAFFESOLI, 2000: 33), acionando estruturas sociais vividas na
180
Pelos dados da SEMURB (2009), a cidade de Natal dispõe de 246 praças públicas, das quais apenas 15
localizam-se na Região Administrativa Oeste da cidade e, dessas, apenas uma encontra-se instalada em Felipe
Camarão, que comporta uma área de 663,40ha. Para contrastar essa realidade, estabelecemos um paralelo com o
bairro Cidade Alta, um dos mais antigos da capital, que contém 20 praças para uma área de 94,10ha. De igual
modo, os equipamentos desportivos em Felipe Camarão são reduzidos, comportando somente duas quadras e um
campo de futebol, justamente num lugar em que o entretenimento e o lazer das crianças e jovens do sexo
masculino consistem nos jogos de futebol, o que denota a ausência de estruturas urbanas para fins de lazer no
bairro estudado.
181
A cidade, segundo Milton Santos (1997), contém áreas luminosas que se justapõem, contrapõem e superpõem
os pontos e manchas da cidade onde vivem os pobres, nas zonas urbanas opacas. As zonas opacas constituem os
espaços do aproximativo, inorgânicos, abertos e de lentidão; em contraposição, as áreas luminosas consistem nos
espaços de exatidão, racionalizados, racionalizadores e de vertigem.
[132]
cidade e divergentes daquela ideia de selvageria presente nos temas distópicos das ilustrações
do século XIX acerca da modernidade182 (SINGER, 2001)183.
Além dos valores comunitários, percebe-se um envolvimento familiar na cultura
popular do bairro Felipe Camarão, passada de geração a geração, nos moldes da tradição
cultural operária do bairro lionês Croix-Rousse, estudado por Pierre Mayol184. Se na colina
francesa havia uma tradição familiar de ser operário, no bairro natalense, as famílias
participam tradicionalmente das manifestações culturais locais – tribos de carnaval, quadrilha
junina, auto de Natal, etc. –, “na qual predominam valores de identificação, essenciais, que
giram principalmente em torno de práticas de solidariedade” (MAYOL, 1996: 81).
Hodiernamente verificamos a imagem reproduzida pelos meios de comunicação e pela
própria ciência social, de um urbano ditado pelo capital, resumindo-se à mercadoria, inclusive
a força de trabalho do homem185. Todavia, para além desta perspectiva, encontramos, no
cotidiano das pessoas, o lugar da descoberta e a escola da desalienação que os conduzem a
outras práxis sociais, como os mecanismos de solidariedade dos participantes da tribo
carnavalesca Tabajara:
“Aqui eu preciso ajeitar pneu, alegorias, aí, a moçada que trabalha a gente
tem que dar uma gratificação a um ou outro. [...] Porque eu tenho que
aproveitar os meninos que estão ralando comigo" (Paulo Lira – Presidente da
tribo de índios Tabajara).
A preferência pelos “meninos” da agremiação demonstra uma relação que extrapola os
limites da materialidade, evocando um elemento simbólico desta primazia dos “de dentro” em
relação aos “de fora”, baseando-se numa rede de afinidade e proximidade:
182
Estamos nos referindo ao ambiente caótico da Nova Iorque moderna para a imprensa do século XIX apontada
por Ben Singer (2001) em seu estudo sobre o sensacionalismo dos jornais e revistas frente à nova forma de viver.
183
Esta valorização da cultura presente no bairro sugere uma semelhança com o movimento negro norteamericano nos anos 1980 apontado por Davis (2009), a partir do surgimento do rap e da chegada de artistas,
poetas e escritores latino-americanos, que, enraizados no solo local, foi um “exemplo notável da sobrevivência
dos valores culturais comunitários [...] da América negra (Roots and Folklore)” (DAVIS, 2009: 76).
184
Aqui nos referimos ao trabalho empírico de Pierre Mayol (1996), na cidade francesa de Lyon. A Croix-Rousse
é um bairro situado numa colina de mesmo nome. A colina já foi chamada de “o morro que trabalha”, referindose aos tecelões do século XIX.
185
Marx, em sua vasta obra, explica a alienação do homem, que não tem o controle sobre seu trabalho e o
produto deste. Nesta acepção, o homem passa a ser uma força de trabalho, que tem um valor de troca no mercado
de trabalho, ao vender suas aptidões e habilidades ao proprietário dos meios de produção. Neste sentido, Santos
(1987) sinaliza que no mundo atual, “onde, para nascer, as coisas já são desenhadas como mercadorias e
planejadas com símbolos, a alienação não é apenas resultante, mas já nasce também quando o homem nasce”
(SANTOS, 1987: 50).
[133]
“[...] por exemplo, a gente186 vai pro cortejo de Natal, nesse cortejo cada um
vai ganhar seiscentos reais por cinco dias, só que no lugar de eu pegar
pessoas de fora, eu prefiro pegar meus meninos aqui, que estão ralando
comigo, filhos deles, netos, que são pessoas que sempre estão comigo”
(Paulo Lira – Presidente da tribo de índios Tabajara).
A diferença entre os insiders e os outsiders aciona uma alteridade e impõe um limite
entre aqueles que estão dentro e fora do círculo relacional. Há uma relação de proximidade –
acionando o caráter espacial do fenômeno – em que o morador do bairro e participante do
grupo compartilha e contribui com as ações realizadas, forjando uma identidade territorial187.
Tal construção relacional no “estar próximo” é aquilo que Maffesoli (2000) compreendeu por
proxemia:
[...] componente relacional da vida social. O homem em relação. Não apenas
a relação interindividual, mas também a que me liga a um território, a uma
cidade, a um meio ambiente natural que partilho com outros. Estas são as
pequenas histórias do dia-a-dia: tempo que se cristaliza em espaço
(MAFFESOLI, 2000: 169)188.
A relação de proxemia na tribo de índios Tabajara possui uma lógica e um ethos
próprios que ultrapassa a dinâmica capitalista do espaço reprodutor da mercadoria e do capital
em direção a uma experiência horizontalizada do cotidiano, perpassando a corporalidade
(dimensão objetiva) e a individualidade (dimensão subjetiva), para produzir socialidade
(SANTOS, 1996b).
A valorização da cultura é levantada como uma espécie de finalidade da agremiação
que tem como “palco” o bairro sobrepondo vários usos, entre os quais, o território das drogas,
como colocado pelo presidente da tribo de índios Tabajara:
“Se o rapaz já tá morando numa comunidade que é violenta, nós não
podemos passar justamente violência para aqueles componentes. A ideia é
tirar justamente esse jovem do tempo ocioso que ele tem, pra que ele não
fuja da cultura, não fuja do foco do que ele tá fazendo. [...] essas crianças
quando começam a crescer dentro da cultura fica mais difícil, dentro da
cultura, dentro do esporte, fica mais difícil ele ir ao outro lado, infelizmente
186
É importante frisar que neste momento o entrevistado referia-se ao cortejo natalino realizado pela Prefeitura
de Natal/RN, onde participam os jovens que não só desfilam na tribo de índios Tabajara, mas também fazem
parte da Quadrilha Junina e do Balé Popular. Nestes grupos culturais, o entrevistado exerce as funções de
diretor/presidente e os grupos são formados por uma mesma base de jovens do bairro Felipe Camarão.
187
Falamos em identidade territorial para estabelecer uma relação identitária com o lugar. Todavia, partilhamos
do entendimento de Hall (2003) de que o indivíduo, na modernidade tardia (ou pós-modernidade, para alguns), é
portador de várias identidades não-excludentes, que podem se relacionar a grupos, lugares, etnia, religião, etc.
188
Haesbaert (2004) entende a postura do sociólogo francês como culturalista e mesmo saudosista da ideia de
território, “ao enaltecer o ideal comunitário presente-território-mito” (HAESBAERT, 2004: 224).
[134]
as drogas se propagam todo dia aí” (Paulo Lira – Presidente da tribo de
índios Tabajara).
A vida na sociedade é determinada, também, pelo “local proxêmico”189. Este “local”
citadino – Felipe Camarão – possibilita inúmeros agenciamentos entre a tribo e o seu entorno,
de caráter econômico, social, simbólico, cultural e político, promovendo territorialidades
peculiares ao bairro que não se vinculam somente ao domínio da produção. A leitura do
urbano engloba as várias dimensões existentes na sociedade, tornando “inteligíveis as
espacialidades e temporalidades expressas na cidade” (CORRÊA, 2003a: 167), conforme
podemos perceber na fala do presidente da tribo de índios Tabajara:
“Eu estou me programando pra fazer um bingo no próximo mês, fazer um
festival de prêmios, onde eu tenho uns amigos parceiros que ajudam na
comunidade, por exemplo, tem um menino de uma loja que toda vez que eu
vou fazer um bingo ele me dá um conjunto de estofado; o rapaz aqui, que
tem ‘Moto Peças’, sempre me ajuda, mesmo quando ele tá meio ‘aperreado’,
que não tem um brinde maior pra me dá, ele dá um ventilador, o rapaz da
Ótica Esperança, do Mercadinho São Francisco, enfim, são parceiros da
comunidade que vem nos ajudando” (Paulo Lira – Presidente da tribo de
índios Tabajara).
Os agentes situam-se em posições diferentes no interior do campo cujo capital
determina a estruturação do espaço social190. As condições precárias de funcionamento,
impedindo a construção de locais próprios para a agremiação e contribuindo para as alocações
marginais a que se submete a maioria das tribos, geralmente nos quintais das residências dos
presidentes, conduz à necessidade de apoio, sobretudo, financeiro para a tribo de índios
Tabajara. A condição de mendicidade possibilita uma práxis cotidiana, como a identificada na
tribo em estudo, que conseguiu a cessão do desativado Clube de Mães de Felipe Camarão
com a contrapartida de efetuar os pagamentos de contas em atraso e assumir os subsequentes.
Este contexto de precarização social potencializa a rede de solidariedade tecida no local,
como condição de resistência e sobrevivência da agremiação.
A relação entre a tribo de índios Tabajara e o comércio local, consubstanciada na
ajuda-mútua existente entre a agremiação e os comerciantes, dá-se mediante a incorporação
de um mecanismo de contraprestação que permeia a vida social, estruturada na reciprocidade:
189
“[...] é a partir do ‘local’, do território, da proxemia, que se determina a vida de nossas sociedades. E todas
essas coisas se referem, também, a um saber local” (MAFFESOLI, 2000: 81).
190
Bourdieu (2003a) entende que “é preciso construir o espaço social como estrutura de posições diferenciadas,
definidas, em cada caso, pelo lugar que ocupam na distribuição de um tipo específico de capital” (BOURDIEU,
2003a: 29).
[135]
“O de retorno é o seguinte: todos os eventos, independente de carnaval, de
São João, todas as épocas, nós fazemos divulgações, [...] divulgamos o nome
deles, na hora do bingo divulgamos, [...] Nós sabemos que todo mundo
planta uma bananeira, pois tá com interesse no cacho que aquela bananeira
dá, então, no caso, as pessoas que nos ajudam, de qualquer forma, a gente dá
um retorno, porque a gente dá o retorno em propaganda, divulgação” (Paulo
Lira – Presidente da tribo de índios Tabajara).
O mecanismo de sociabilidade no bairro permite haver entre a tribo e o comércio local
esta mutualidade, baseada em práticas cotidianas que fogem ao controle rígido da
racionalidade, fundamentada no être-ensemble como substrato da vida social, cujas ações,
duradouras ou efêmeras, enraízam-se no presente das tribos de índios e será, conforme Santos
(1996a), “tanto mais intensa quanto maior a proximidade entre as pessoas envolvidas”
(SANTOS, 1996a: 318). Esta é, também, a compreensão de Marinho (2010):
A socialidade191, então, apreendida desta forma, remete-nos à tomada de um
entorno da vida que, nas relações contraditórias do estar junto, propicia uma
experiência de co-existência, de co-presença, de co-determinação que
conecta, pela capacidade dos indivíduos de produzir extensão e signos, os
pedaços do território da vida (bairros, distritos, vilas, p. ex.) – que também
são espaços de existência – ao espaço total da vida, o espaço de existência (a
cidade, p. ex.) (MARINHO, 2010: 63).
Se, por um lado, os comerciantes promovem doações de objetos que serão utilizados
pela agremiação para angariar recursos voltados à produção do carnaval. Por outro, a tribo
carnavalesca divulga estes estabelecimentos comerciais circunvizinhos. Não se trata, a priori,
de uma relação puramente comercial, mas de um mecanismo de solidariedade que fortalece o
laço de identidade comunitária, reforçando os valores mútuos de trocas simbólicas.
Todavia, ainda que a fundamentação do dar e retribuir não tenha uma conotação
econômica aprioristicamente, se analisarmos com uma maior acuidade, conseguiremos
transpor essa ideia de gratuidade nas trocas e verificar que, de fato, há uma ação econômica.
O ato de doar mercadoria ou recursos não se trata de uma simples generosidade, pois, por
mais que seja um comércio pequeno e local, ele se encontra inserido numa lógica de mercado
e capital e o mecanismo de divulgação – a contrapartida da tribo de índios – constitui-se numa
191
Frisamos que a concepção de “socialidade” em Marinho (2010) aproxima-se da “sociabilidade” e distancia-se
da “socialidade” proposta por Baechler (1995), pois a “socialidade” para o geógrafo Samarone Marinho consiste
na experiência do estar junto, enquanto que “socialidade” para o sociólogo Jean Baechler é a “capacidade
humana de manter coesos os grupos [sodalidade] e as redes [sociabilidade], de lhes assegurar a coerência e a
coesão que os constituem em sociedades” (BAECHLER, 1995: 66), designada por ele como uma morfologia,
isto é, realidades fundamentais da sociedade humana, a exemplo da cidade e da nação.
[136]
importante ferramenta para a comercialização dos produtos. Outrossim, na medida em que os
comerciantes da vizinhança contribuem para o carnaval da tribo, eles se beneficiam com o
aumento da clientela oriunda dos participantes da agremiação, como podemos notar nas
palavras de Paulo Lira: “Por exemplo, o menino da ótica: todo mundo que tá precisando fazer
uns óculos, eu encaminho pra lá; ele também já faz um precinho mais acessível” (Paulo Lira –
Presidente da tribo de índios Tabajara).
Existe uma rede social de vizinhança, expressa espacialmente pela tribo de índios
Tabajara e o entorno do bairro Felipe Camarão. A rede serve de suporte para a vida social e
possibilita que este espaço seja apropriado pelos fluxos, como a “parceria” estabelecida entre
a tribo e o comércio local, que aciona estes mecanismos comunicacionais e políticos. A
relação de sociabilidade é, portanto, permeada e indissoluvelmente imbricada pelas esferas
econômica e simbólica – “economia das trocas simbólicas” – baseada na reciprocidade e
instituída socialmente192. Aqui pensamos na sociabilidade como:
[...] a capacidade humana de estabelecer redes, através das quais as unidades
de atividades, individuais ou coletivas, fazem circular as informações que
exprimem seus interesses, gostos, paixões, opiniões...: vizinhos, públicos,
salões, círculos, cortes reais, mercados, classes sociais, civilizações
(BAECHLER, 1995: 65-66).
Vemos, pois, que por meio da agremiação carnavalesca há uma rede submersa
(VILLASANTE, 1997), pautada na informalidade e na cotidianidade, através de vínculos
vicinais, que permite a construção de uma identidade social e define uma territorialidade
materializada por esta rede de solidariedade. É de se considerar que tal ocupação espacial
coexiste com outras redes existentes na sociedade – seja global ou local – e que, de forma
macro ou residual, instalam-se nos lugares: “Eu diria que é a dinâmica desses ‘conjunto de
ação’ que pode ligar tanto as redes globais quanto as locais, e ainda as redes submersas”
(VILLASANTE, 1997: 37).
Nesta rede convivencial construída pela tribo de índios Tabajara – superposta a outras
redes de cunho político, econômico, etc. – verificamos a preocupação cotidiana de solidarizar,
que é a sua grande força legitimadora.
192
De acordo com Bourdieu (1996), “há uma razão para os agentes fazerem o que fazem [...], razão que se deve
descobrir para transformar uma série de condutas aparentemente incoerentes, arbitrárias, em uma série coerente”
(BOURDIEU, 1996: 138).
[137]
Mapa 7 – Redes socioespaciais da tribo de índios Tabajara
Percebemos, pois, uma interação e superposição entre esta rede submersa ou informal,
criada a partir dos laços de vizinhança, parentesco e solidariedade, com redes locais que
desenvolvem ações no bairro Felipe Camarão:
“Sou voluntário do NAM, que é Núcleo de Amparo ao Menor, [...] como eu
sou voluntário e também faço com meu grupo quando precisa alguns
trabalhos pra ajudar, porque nós precisamos também ajudar os menores,
aquelas crianças nossas que vão crescendo, então, o NAM é um dos
parceiros nossos, por exemplo, aqueles tambores de alumínio, ele que nos
deu, quando nós precisamos de espaço para o ensaio, é uma forma daquela
parceria que nós temos do espaço com eles, nós sentimos feliz porque nós
ajudamos de um lado, recebemos do outro, e assim a comunidade vai
crescendo e também vai melhorando” (Paulo Lira – Presidente da tribo de
índios Tabajara).
O Núcleo de Amparo ao Menor é uma instituição beneficente do terceiro setor que
desenvolve projetos no bairro Felipe Camarão, sobretudo nas áreas da educação, lazer, esporte
e cultura, atendendo crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. Tal necessidade
[138]
de uma rede local vinculada aos movimentos sociais surge da inércia do Poder Público e suas
“redes de poder” (VILLASANTE, 1997) voltadas para a racionalidade hegemônica.
Outra importante ONG com atuação no bairro e que se relaciona com a tribo de índios
Tabajara é a Fundação Fé e Alegria, vinculada à Companhia de Jesus e à Federação
Internacional do Movimento de Educação Popular Integral Fé e Alegria, com ações em vários
países e estados brasileiros, considerada, portanto, como pertencente a uma rede global com
ação local:
“Tem a Fundação Fé e Alegria, [...] que é outra parceira, [...] de vez em
quando conseguimos consultas de oftalmologistas com eles. [...] No
momento tá parado, mas a Fundação Fé e Alegria, quando recebe feijão da
Mesa Brasil193, eles também nos apoiam ajudando, pra que a gente distribua
pra essas famílias esse feijão que vem do Governo Federal” (Paulo Lira –
Presidente da tribo de índios Tabajara).
A alimentação distribuída pela ONG Fé e Alegria não advém do Governo Federal, mas
do SESC, que é uma entidade sem fins lucrativos, mantida por empresários do comércio com
vários projetos e programas com o objetivo de promover o desenvolvimento social,
econômico e cultural da cidade. Para viabilizar a ação no bairro, a entidade estabelece
parcerias com outras instituições, construindo uma rede local, ligando agentes – globais e
formais e/ou locais e informais – que tem elos “fortes” e “fracos” com a comunidade194 –
SESC, ONG Fé e Alegria e tribo de índios Tabajara –, formando um complexo de redes que
entrelaça relações e contribuem para a produção de um capital social no interior do bairro 195.
De acordo com Putnam (1996), a sociedade “se caracteriza por sistemas de intercâmbios e
comunicação interpessoais, tanto formais quanto informais” (PUTNAM, 1996: 182).
Percebemos, assim, que a tribo de índios Tabajara e o seu entorno realizam ações que
acionam um aspecto solidário nas sociabilidades e mecanismos de ajuda-mútua, valorizando o
193
O Mesa Brasil é um Programa de Segurança Alimentar e Nutricional, realizado pelo SESC, com ações
educativas e assistenciais para o desenvolvimento comunitário. O projeto atende pessoas assistidas por entidades
sociais em condição de vulnerabilidade social e nutricional.
194
Os elos “fortes” e “fracos” seguem a tipologia dos intercâmbios sociais de Putnam (1996).
195
No bairro Felipe Camarão há, ainda, a atuação da ONG Companhia TerrAmar, com o projeto “Conexão
Felipe Camarão”, que realiza ações sociais, tais como oficinas de arte e música, e promove a cultura local,
sobretudo as manifestações folclóricas, com incentivos e parcerias de grandes agentes sociais públicos e
privados: Instituto Federal do Rio Grande do Norte – IFRN, Grupo Votorantim e Petrobrás. Não há relação entre
a tribo de índios Tabajara e a ONG, pois, de acordo com o presidente da agremiação, a instituição é fechada e
restrita, “eles não convidam aquelas pessoas que trabalham com cultura no bairro” (Paulo Lira – Presidente da
tribo de índios Tabajara).
[139]
estar junto e estabelecendo uma rede social de vizinhança territorializada no bairro Felipe
Camarão.
4.3.2. O lugar da tribo de índios Gaviões-Amarelo: as táticas socioespaciais
Para compreender a complexa rede de relações (sociais, econômicas, políticas e
simbólicas) desenvolvidas pelas agremiações indígenas, resolvemos abordá-la, também, a
partir do universo da tribo de índios Gaviões-Amarelo, buscando compreender o
funcionamento dos bastidores, que se inicia, aproximadamente, três meses antes do carnaval,
evidenciando “uma rede de significados e relações importantes no interior desses grupos
carnavalescos, constituindo uma janela através da qual podemos espiar a vida de gente
comum” (CUNHA, 2001: 189) que se divertem na época da folia momesca. E, para esta
empreitada, é importante compreender o lugar onde se estabelece a tribo, a partir da análise
das suas interações e organização espacial.
Segundo a presidente da agremiação, a tribo de índios Gaviões-Amarelo foi fundada
em 1983, tendo desfilado alguns anos no carnaval de Natal. Encontrava-se desativada até o
ano de 2007, quando foi resgatada e “levada” para o conjunto Cidade do Sol, no bairro Igapó
– Zona Norte de Natal:
“A gaviões-amarelo estava morta há mais de dez anos. [...] Eu resgatei em
2007 pra 2008, através de Seu Raimundo Brasil. [...] Seu Raimundo Brasil
me fez essa proposta, se eu queria tomar conta da Gaviões-amarelo; eu disse
que não tinha condições nem sabia de nada sobre isso; aí, um amigo meu,
que é da Tupi-Guarani, de São Gonçalo do Amarante, Paulo Sérgio, tinha me
convidado pra dançar na dele, e eu dancei em 2006 na tribo dele, na TupiGuarani, gostei, adorei, e aí eu disse: ‘não, eu não entendo de nada disso’, aí
ele disse: ‘no começo eu te dou uma ajuda’, [...] ele disse: ‘você tem que
arrumar umas pessoas’, bem, então eu aceitei o desafio, e fui embora, né”
(Zeneide Diniz – Presidente da tribo de índios Gaviões-Amarelo).
Assim como outras tribos de índios, a Gaviões-Amarelo não dispõe do principal
espaço de organização social das agremiações carnavalescas: a quadra. Maia (2003),
analisando os aspectos da realidade objetiva das escolas de samba, aponta que no bairro
“realiza-se grande parte do trabalho necessário a fim de se ‘pôr o Carnaval na rua’” (MAIA,
2003: 198) e, para esta finalidade, é necessária a quadra enquanto “lugar central de atividades
[140]
carnavalescas” (ibidem: 199), com as funções de sede administrativa da agremiação, local de
ensaio e espaço de atividades exteriores ao “mundo carnavalesco” (lazer, esporte, cultura,
etc.). Ademais, é na quadra que se pode angariar recursos, com a realização de festas,
apresentações e “ensaios gerais”.
Pela inexistência da quadra, a residência da presidente torna-se o lugar onde se
realizam as reuniões – sede administrativa – e a confecção do material utilizado no desfile –
barracão, refuncionalizando o ambiente privado do quarto ao quintal.
Figura 8 – Quarto: de dormitório a depósito de fantasias
Foto: Autor, 2012
Os ensaios na rua contribuem para uma maior visibilidade da tribo de índios na
comunidade, possibilitando a forte relação com o conjunto Cidade do Sol e seus moradores.
Esta é, pois, a importância social da agremiação para a comunidade. Realizamos um
levantamento entre os integrantes da agremiação carnavalesca e verificamos a concentração
de pessoas do bairro e da circunvizinhança, inexistindo integrantes residentes noutra Região
Administrativa da cidade. Todavia, a entidade agrega, também, pessoas de outros bairros e
municípios:
[141]
“Eu tenho pessoas do Golandim, tenho pessoas do Paraíso, tem pessoas de
Extremoz, tem pessoas também que vem, tenho seis pessoas de São Gonçalo
[do Amarante] que dançam com a gente” (Zeneide Diniz – Presidente da
tribo de índios Gaviões-Amarelo).
Não obstante a presença de pessoas provenientes de outras localidades, sempre há um
vínculo de parentesco ou de amizade, a exemplo das “pessoas de Extremoz” que consiste na
filha, genro e neta da presidente da tribo. Quanto aos moradores do Golandim – distrito de
São Gonçalo do Amarante – são, na verdade, os integrantes do Grupo de Capoeira Arte Negra
do Mestre Carlos.
As relações de vizinhança, amizade e parentesco são os elementos principais que
favorecem o desenvolvimento das atividades, vindo à tona quando buscamos o vínculo entre a
tribo e seus integrantes. A tribo de índios é, pois, entendida como uma coletividade
carnavalesca, uma associação espontânea196 constituída por parentes, amigos e vizinhos. É no
interior destes grupos que verificamos o modo de expressar a vida social nos laços vicinais,
nas relações de parentesco e nos vínculos de amizade.
O agrupamento deriva do influxo de amigos e familiares ou da vivência no bairro,
exprimindo uma identidade grupal, cuja composição social é formada quase totalmente por
pessoas das camadas pobres. Este vínculo pode ser percebido nas palavras de Zeneide Diniz:
“Os índios tem meus bichinhos pequenininhos, essa aqui é minha neta, ela começou aqui”.
Para ilustrar, vejamos o que nos colocou o feiticeiro da tribo:
“Porque a minha mãe ela toma conta, eu comecei com meu tio mas tenho
que ajudar minha mãe; a tribo é tudo na minha vida, eu sempre gostei e
nunca vou deixar de gostar. Quando eu comecei a dançar nos índios, eu fui
fazendo amigo. Tenho os amigos que jogam futebol, jogam capoeira. A tribo
é uma coisa muito boa” (Eudes Silvestre – Feiticeiro da Tribo de Índios
Gaviões-Amarelo).
O feiticeiro, um dos papéis de destaque, é filho da companheira de Zeneide Diniz,
Sandra Silvestre, também membro da diretoria. As três filhas da presidente da tribo também
participam da agremiação carnavalesca. Este universo familiar ultrapassa as barreiras do
grupo de carnaval, pois, antes de assumir a Gaviões-Amarelo, a família dançava na tribo de
índios Tupi-Guarani, de São Gonçalo do Amarante, cujo presidente, Paulo Sérgio dos Santos,
é irmão de Sandra Silvestre.
196
Falamos em espontaneidade porque tal sistema é sazonal e, até mesmo, frágil, podendo ser rompido a
qualquer momento, quando, por exemplo, o presidente da tribo carnavalesca resolve não concorrer em
determinado ano.
[142]
Observamos enfaticamente a coletividade construída em termos familiares e de
amizade, sobretudo na transmissão de significados comuns no interior do grupo. O prazer e
satisfação que existe em ser membro da tribo de índios agregam outros valores, tais como a
união familiar, cujo elemento mediador é a própria agremiação, ultrapassando a leitura
estritamente concreta da realidade. Textualizando hermeneuticamente estas relações,
verificamos uma complexa teia de significados consubstanciada na solidariedade – seja no
interior da agremiação ou entre ela e as outras – e no contexto social propício à convergência
de relações familiares e comunitárias. São estas relações que vivificam a cidade, em suas
múltiplas redes.
O significado da tribo de índios na própria vida de Zeneide Diniz é tão relevante que,
após a mudança de residência e, inclusive, de município, a presidente, em poucos meses,
retornou ao Conjunto Cidade do Sol, sobretudo em virtude da agremiação. Para entidades
como as tribos carnavalescas, a territorialização possibilita que desenvolvam suas atividades
carnavalescas de modo a garantir a sobrevivência. Diante do vínculo vicinal assegurador da
tradição, a mudança domiciliar ameaça a própria existência da agremiação, que é dependente
dos laços proximais estabelecidos com os moradores do entorno. É interessante anotar o fato
de que, para a escolha da moradia, é levado em consideração as dimensões da área externa
para a construção das alegorias. Se, para a maioria das pessoas, o carnaval é um momento de
diversão, para a responsável da tribo Gaviões-Amarelo, a festividade determina até mesmo o
local onde irá residir.
Alguns agentes são produtos do universo social e cultural da tribo de índios, a
exemplo da presidente Zeneide Diniz e suas filhas. Outros, porém, têm participação recente
na tribo, contudo, não polarizam com os primeiros, mas somam-se àqueles. Não obstante,
verificamos vários graus de envolvimento com a agremiação. Enquanto alguns apenas se
predispõem a participar dos ensaios, outros “abraçam a causa” e ajudam na elaboração e
confecção das fantasias e alegorias.
O sentimento de pertencer ao grupo é verificado na extrapolação das fronteiras
carnavalescas para múltiplas ocasiões sociais, como aniversários e celebrações. Exemplo disto
foi o ritual da capoeira realizado na sede do Conselho Comunitário com a participação dos
integrantes não-capoeiristas da tribo de índio. O evento contou, também, com a presença do
político Cláudio Porpino, que, inclusive, patrocinou a confecção das camisas para o evento.
Tais ocasiões não limitam ou restringem os participantes para o desempenho das atividades
[143]
sociais, cuja linha de domínio entre o público e o privado é tênue e o grupamento social
frequentador é ilimitado.
Pela inserção na comunidade, a tribo Gaviões-Amarelo, muito embora não disponha
de um projeto social em virtude da ausência de capital e incentivo para a implementação, ela
mesma, enquanto lócus de atividades sociais, constitui-se em uma ação social. Frequentar a
agremiação é suficiente para que as pessoas se relacionem, sejam conhecidos ou não; faz-se
ou renova-se a amizade.
Contudo, a intenção da presidente da tribo não é permanecer somente com a
agremiação enquanto ação social, mas realizar projetos paralelos à tribo que sirvam aos
componentes e ao público externo. Porém, para que sejam colocados em prática são
imprescindíveis os meios necessários ao pleno funcionamento, partindo de uma estrutura
física para a realização:
“O que eu queria mesmo era um canto assim, eu queria uma sede para os
Gaviões. O que eu pretendo no próximo ano, ganhando, é comprar um
terreno, nem que seja pequeno; fazer uma sede, um galpão grande para os
Gaviões, porque nesse meio da tribo, é como eu lhe disse, tem as meninas
que eu posso botar elas pra fazerem apresentações, tem as mães que eu posso
botar até mesmo pra fazerem as fantasias, ensinar elas a fazer bordado, não
ficar só nisso: tribo de índio. [...] Você tendo uma sede própria, tem os
meninos da capoeira, eu posso pegar e tirar os meninos da rua, [...] pegar
outras crianças que tá por aí. Vamos estudar, vamos fazer capoeira, vamos
fazer danças, vamos fazer outras coisas, é o folclore, vamos fazer dança
folclórica” (Zeneide Diniz – Presidente da tribo de índios Gaviões-Amarelo).
É neste sentido que a própria existência da agremiação carnavalesca na comunidade é
um projeto social, por proporcionar momentos de encontro entre pessoas. E o almejo por
melhores condições, sobretudo a quadra da tribo de índios, visando promover ações para a
comunidade, reflete, em termos espaciais, um processo de estruturação social, pois a busca do
espaço destinado ao grupo tem proporções que ultrapassam as necessidades da própria tribo,
carregada de intenções e valores, adentrando ao universo espacial da psicoesfera (SANTOS,
1996a).
Por estes momentos de compartilhamento no interior do grupo social, a tribo obteve a
admiração da Presidente do Conselho Comunitário do Conjunto Cidade do Sol – que pode ser
considerada como a “patrona” da tribo de índio –, que colaborou para o desfile, sobretudo
pela solicitação do Alvará para os ensaios na via pública junto ao órgão municipal competente
e a participação no aluguel de dois ônibus para o traslado dos componentes ao desfile
[144]
carnavalesco. Vejamos a declaração da presidente da tribo de índios: “Esse ano [de 2012] eu
estou vendo que vai ser um pouquinho melhor porque tem a presidente do conselho
comunitário [do conjunto Cidade do Sol], que teve aqui na minha casa e disse que ia me
ajudar no que puder” (Zeneide Diniz – Presidente da tribo de índios Gaviões-Amarelo).
É de se observar dois dados importantes nesta relação entre o Conselho Comunitário e
a tribo de índio Gaviões-Amarelo: a proximidade e o capital social. O primeiro, de ordem
espacial, permitiu uma maior visibilidade da tribo pelo Conselho. A “sede” da agremiação –
na época do carnaval de 2012 – e a residência da presidente do Conselho Comunitário
localizam-se na mesma rua – Rua Marte – o que contribuiu para a criação dessa rede
relacional.
Aqui podemos recorrer a uma das propriedades do espaço público: a visibilidade. O
espaço da rua gera um conjunto de ordenamentos que rege a co-presença e possibilita que os
agentes tornem-se visíveis aos outros197. Os ensaios na rua promoveram uma cena pública
capaz de permitir a visualização de “momentos da cidade” pelos moradores que se encontram
e se reúnem, proporcionando valores positivos para a comunidade, definindo um
compromisso moral, afetivo e de coesão social existente no interior do que Tönnies (1995)
denominou de “comunidade de lugar” regida pela condição de vizinhança. A visibilidade da
tribo de índios pela população permitiu a criação de laços entre ela e o Conselho Comunitário.
A co-presença quando relacionada à condição de vizinhança, constitui “a condição desses
acontecimentos infinitos, dessas solicitações sem-número, dessas relações que se acumulam,
matrizes de trocas simbólicas que se multiplicam, diversificam e renovam. [...] que unem
razão e emoção” (SANTOS, 1996a: 319).
Para além da admiração, o apoio dispensado pela representação política do conjunto à
tribo de índios é carregado de intencionalidades. O Conjunto Cidade do Sol atravessava, no
início do ano de 2012, um momento político no qual grupos locais se organizavam para as
eleições do Conselho Comunitário. Não podemos afirmar que a conjuntura política local foi
determinante para o apoio da presidente e, na época, presidenciável, à tribo Gaviões-Amarelo,
contudo os votos dos integrantes da tribo favoreceram a vitória nas urnas e a reeleição de
Judinéia Belchior. É neste sentido que Bourdieu (2007) fala em lucros advindos das relações
entre agentes.
197
De acordo com Goffman (2010), a co-presença se dá quando pessoas encontram-se próximas o bastante para
serem percebidas, produzindo a sensação mesma de estarem sendo percebidas.
[145]
Figura 9 – Co-presença: Gaviões-Amarelo e o entorno
Foto: Autor, 2012
A proximidade permitiu a construção de um capital social, isto é, um “conjunto de
recursos reais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais
ou menos institucionalizadas de interconhecimento e inter-reconhecimento […] cuja
instauração e perpetuação supõem o re-conhecimento dessa proximidade” (BOURDIEU,
2007: 67). A relação durável criada auxiliou nas trocas mútuas – materiais e simbólicas –,
objetivadas, por exemplo, na ajuda da tribo para reeleger a presidente do Conselho
Comunitário. Nesse aspecto, a concepção bourdieusiana de capital social correlaciona com as
ideias de sociabilidade (BAECHLER, 1995) e redes sociais (VILLASANTE, 1997) aqui
propostas, tendo em vista que a rede constrói-se nas ações recíprocas elevadas à esfera de uma
interação social.
Esta rede social integra aspectos locais – a própria relação da associação de bairro com
a tribo de índios – e globais – relação entre o Conselho Comunitário e políticos. Contudo, a
rede relacional construída com a presidente do Conselho Comunitário, assim como ocorre em
quaisquer relações, pode, num caso de conflito, passar do adensamento da sociabilidade à sua
rarefação, pois, afinal, trata-se de um campo de poder, objeto permanente de luta:
[146]
“Judinéia nunca mais falou comigo, ela não sabe trabalhar, confunde as
coisas; eu não posso confundir política com pessoas, porque, ela sempre
apoiou Rogério Marinho, só que Judinéia não quis ver meu lado; eu sempre
apoiei Cláudio Porpino” (Zeneide Diniz – Presidente da tribo de índios
Gaviões-Amarelo).
Tal transposição ressalta o poder das relações societárias, que envolvem o mundo
social, em contraposição às relações comunitárias, menores e menos adensadas – como um
bairro, um grupo –, têm na sociedade urbana e podem refletir na dinâmica intralocal do bairro.
O discurso da “ajuda” foi suplantado pelo da “vantagem”:
“Ela não me ajudou em nada, ela não ia nem ver, poucas vezes ela foi filmar
pra levar vantagem em cima da tribo, ela só quis levar vantagem em cima da
tribo e eu não deixei que ela fizesse isso. [...] Agora na política ela queria
que eu pegasse o pessoal da capoeira e colocasse dentro de um ônibus pra ir
levar pra uma festa de Rogério Marinho e eu não fiz isso e ela ficou zangada
comigo” (Zeneide Diniz – Presidente da tribo de índios Gaviões-Amarelo).
O complexo social da agremiação é composto, fundamentalmente, de agentes das
camadas populares. Observamos a relação estabelecida entre a agremiação e dois grupos de
capoeira da localidade, surgida diante da dificuldade de componentes para o desfile
carnavalesco. Estes agenciamentos verificados na tribo de índios constituem-se em práticas
cotidianas do tipo “tática”, que se diferem das “estratégias”, àquelas vinculadas às astúcias
sutis das pessoas em seu cotidiano, sobretudo dos pobres, e estas à racionalidade e
mecanismos de poder da política, da economia e do Estado:
Chamo de “estratégia” o cálculo das relações de forças que se torna possível
a partir do momento em que um sujeito de querer e poder é isolável de um
‘ambiente’. Ela postula um lugar capaz de ser circunscrito como um próprio
e portanto capaz de servir de base a uma gestão de suas relações com uma
exterioridade distinta. A nacionalidade política, econômica ou científica foi
construída segundo esse modelo estratégico [...]
Denomino, ao contrário, “tática” um cálculo que não pode contar com um
próprio, nem portanto com uma fronteira que distingue o outro como
totalidade visível. A tática só tem por lugar o do outro. Ela aí se insinua,
fragmentariamente, sem apreendê-lo por inteiro, sem poder retê-lo à
distância. Ela não dispõe de base onde capitalizar os seus proveitos, preparar
suas expansões e assegurar uma independência em face das circunstâncias. O
“próprio” é uma vitória do lugar sobre o tempo (CERTEAU, 1994: 46).
Entre as “táticas”, verificamos os mecanismos de ajuda-mútua, que integra uma rede
submersa existente entre a tribo de índios e os grupos capoeiristas. Mesmo com a presença de
integrantes provenientes de outros locais, a agremiação não conseguiu, no carnaval de 2012, a
exemplo dos carnavais de anos anteriores, reunir, para a presidente, um número considerável
[147]
de pessoas e, assim, recorreu aos grupos capoeiristas. A “necessidade”, portanto, permitiu o
agenciamento: a tribo precisava de pessoas e a capoeira, de material para confeccionar as
roupas dos alunos.
O Mestre Carlos garantiu a participação de trinta alunos para desfilarem na tribo de
índios, que, por sua vez, acordou que cederia o tecido para serem confeccionadas trinta calças
de capoeira. Tratou-se de um contrato tácito, firmado verbalmente, mas que, entre eles, tem
muita validade, visto que ambos estavam necessitados da ajuda. São sociabilidades
construídas pela experiência da escassez, reino da necessidade, que atinge as camadas pobres
da sociedade, mas que, por outro lado, garante a comunicação destes agentes. Neste sentido,
Santos (1996a) coloca que nos guetos urbanos tende-se “a dar às relações de proximidade um
conteúdo comunicacional ainda maior e isso se deve a uma percepção mais clara das situações
pessoais ou de grupo e à afinidade de destino, afinidade econômica ou cultural” (SANTOS,
1996a: 260).
O Grupo de Capoeira Arte Negra, do Mestre Carlos, realiza suas atividades na sede do
Conselho Comunitário do conjunto, fruto da relação entre a presidente da tribo de índios com
a presidente do conselho. A rede submersa – tribo de índios/grupo de capoeira – encontra-se
imbricada com a rede local – tribo de índios/Conselho Comunitário – no interior do bairro,
possibilitando uma maior interação entre a agremiação carnavalesca e a capoeira.
Baseado no trabalho comunitário, a produção das fantasias e alegorias da GaviõesAmarelo é realizada na “quadra” da agremiação, com uma estrutura improvisada no quintal da
residência – sede e barracão da tribo de índios. É importante observar que se trata de uma
espacialidade fluida, fluxa e mutável, pois acompanha a residência da presidente,
confundindo-se com esta nos meses que antecedem o carnaval. O barracão da agremiação
estrutura-se nos moldes do “barracão de ala”198 (CAVALCANTI, 1984) de que fala o
geógrafo Carlos Maia (2003), conduzindo o universo do carnaval (rua, público) ao mundo
doméstico (casa, privado):
A estruturação do barracão de ala concilia improviso e racionalidade.
Comumente instalado no fundo do quintal, no terraço, ou no puxado feito
especialmente para esse fim, seus locais de trabalho são divididos para
melhor responder às etapas de produção das fantasias e adereços (corte e
198
“É o ‘barracão de ala’, localizado geralmente na casa dos chefes de ala, onde se confeccionam as fantasias
masculinas e femininas de uma escola de samba. [...] O nome desloca para o mundo doméstico um termo, este
sim, consagrado e dito seriamente, destinado a um outro universo: o barracão de escola de samba”
(CAVALCANTI, 1984: 176).
[148]
costura, bordado, colagem, sapataria etc.). Nada é desperdiçado, até mesmo
as paredes e o teto servem para armazenar material, ou as próprias roupas,
chapéus, adereços, etc. (MAIA, 2003: 202).
Inexistem horários determinados para o trabalho na agremiação; o tempo destinado à
confecção é dependente das atividades diárias das pessoas envolvidas, resultante de uma
combinação do tempo “racional” – trabalho, afazeres domésticos, filhos – e do tempo
“ocioso” – momento livre. Algumas jovens ajudavam após ir à escola, outras quando
terminavam as atividades diárias em suas residências, permanecendo na sede até às 23h00min
ou adentrando a madrugada. Observamos situações em que, por vezes, alguns integrantes
iniciavam o desempenho de tarefas após este horário, quando regressavam do trabalho.
As relações configuradas são, pois, perpassadas pelo modo de vida moderno e
racionalizado, mas que, dialeticamente, define territorialidades decorrentes da prática
cotidiana barrial e criadora de uma atmosfera familiar e vicinal nos espaços de preparação do
desfile – formas associadas à produção cênica (MAIA, 1999) – que “não só servem para
integrar os participantes do evento e cultivar-lhes um ‘espírito de mobilização’, como também
constituem-se em opção de lazer e turismo [...] e empregam contingente significativo de mãode-obra ociosa” (MAIA, 1999: 206).
Na tribo de índios Gaviões-Amarelo existe uma divisão de gênero do trabalho.
Identificamos que os homens trabalhavam construindo as alegorias e desfiando o agave,
enquanto que as mulheres faziam as fantasias. Subsistemas de solidariedade e cooperação são
promovidos no interior da agremiação, instalando na urbe divisões de trabalho típicas.
Trata-se de divisões proteiformes do trabalho, por serem “adaptáveis, instáveis,
plásticas, adaptam-se a si mesmas, mediante incitações externas e internas. Sua solidariedade
se cria e se recria ali mesmo” (SANTOS, 1996a: 260). Não há regramento específico e as
tarefas são coordenadas informalmente pela presidente da tribo. Também não existe a figura
do carnavalesco199 – fato comum nas outras tribos de índios –, possibilitando, aos integrantes,
a participação enquanto “carnavalesco” da tribo, isto é, no elemento criação, podendo opinar e
dar seu “toque”, todavia, sob a orientação e supervisão da presidente.
199
“O carnavalesco é assim a grande personagem dos bastidores do carnaval, a figura de proa na relação entre
escola de samba e desfile, sendo responsável não só pela concepção do tema como pela sua concretização
através da concepção e direção dos trabalhos de execução dos carros, alegorias e tripés no barracão e da
concepção e desenho dos figurinos das alas” (CAVALCANTI, 1984: 177).
[149]
Figura 10 – Homens construindo as alegorias da agremiação
Foto: Autor, 2012
Figura 11 – Mulheres confeccionando as fantasias da agremiação
Foto: Autor, 2012
[150]
Exemplo disto foi a escolha do “caçador”. Nos primeiros ensaios, Eudes Silvestre, que
exerce o papel de “feiticeiro” da tribo e é um dos principais organizadores do desfile,
percebeu que o caçador não estava realizando a contento seu papel. Diante disto, procedeu o
deslocamento dele à bateria e escolheu uma outra pessoa para assumir este importante papel
no desfile, causando um pequeno conflito no interior da tribo de índio, contudo, tal mudança
foi ratificada pela presidente Zeneide Diniz.
Identificamos, pois, na composição da tribo de índios Gaviões-Amarelo, a figura do
que convencionaremos denominar de “organizador do desfile”, realizado por Eudes Silvestre.
Ele sempre está à frente dos ensaios, mostrando como cada “ala” deve realizar seu trabalho no
interior da tribo. Porém, ao contrário do que ocorre nos grandes carnavais, cujos principais
papéis das escolas de samba – carnavalesco, figurinista, decorador, coreógrafo, especialista –
advêm do mundo exterior à agremiação com relações efêmeras, nas tribos, estes papéis são
desempenhados por aqueles que já construíram uma história no grupo e constituem-se como
“pessoas de confiança”, numa relação de interioridade com a tribo carnavalesca.
Em suma, observamos que a rede de relações superpostas no interior da tribo de índios
Gaviões-Amarelo possibilita o fazer-carnavalesco, por meio de táticas cotidianas, envolvendo
sociabilidades, vínculos vicinais, de parentesco e amizade, desenvolvendo “maneiras de lidar
com” (LEVI-STRAUSS, 1989), ou seja, inúmeras ações e formas utilizáveis e adaptáveis,
para realizar se o carnaval.
[151]
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscou-se no presente trabalho compreender a complexa rede de relações existentes
no contexto social das tribos de índios do carnaval natalense, resgatando os significados
impressos nas territorialidades, sobretudo no uso do território e nas intencionalidades a eles
inerentes, que esteiam táticas de cotidianidade.
Discutimos, ao longo do estudo, a participação de vários segmentos da sociedade,
delimitando as posições e papéis dos agentes nas ocasiões sociais geradas em torno do
carnaval das tribos, desde o surgimento, através de um resgate histórico da formação destas
agremiações, até o atual momento, revelando uma profusão de atividades que permitem uma
leitura cultural do espaço, englobando aspectos políticos, econômicos e simbólicos.
No primeiro capítulo não tivemos por objetivo proceder a uma arqueologia do
carnaval em Natal, mas identificar alguns princípios estruturadores desta diversão e lazer,
procurando elementos e caraterísticas ainda presentes, bem como as mudanças ocorridas no
decorrer do tempo, focando, também, os conflitos que sempre existiram na festa carnavalesca,
afastando-nos de uma perspectiva comunitas do carnaval.
Desde o início do século XX, os festejos carnavalescos encontravam-se envoltos numa
dialética socioespacial, seja com a repulsa às brincadeiras entrudísticas e os “ares de
civilização” do carnaval “moderno”, até as manifestações populares – como as tribos de
índios – e as soirées das elites locais. Argumentamos, pois, a ideia de “tudo junto e
misturado”: coexistentes e simultâneos, porém, espacialmente separados.
Não deixamos de considerar as condições estruturais da sociedade, refletindo sobre a
composição do mundo social, ressaltando as relações de poder que agrupam o Poder Público,
outros agentes e as agremiações indígenas, revelando a dependência destes para a feitura do
desfile, sob dois enfoques: político e econômico, conforme vimos no segundo capítulo.
Compreender certas marcas da “brasilidade” não é, ainda, o foco dos estudos das
ciências sociais brasileiras. Contudo, ao serem abordadas, os estudiosos voltam-se para o
ângulo político e ideológico, sobretudo as relações de poder e dominação do Estado e do
sistema capitalista, desconsiderando – ou simplesmente não abarcando – algumas dinâmicas
sociais, políticas e econômicas que, também, merecem estudos sob esta ótica, a exemplo do
carnaval.
[152]
Vários agentes engendram relações típicas do meio social, apontando para uma
formação hierarquizada, seja numa perspectiva macro de poder exercida pelo agente público
sobre as tribos de índios, seja no interior dos bairros, cujos mecanismos políticos relativizam e
propõe uma leitura de menor abrangência e de diálogo, mas que guarda o seu caráter de um
campo de forças bourdieusiano, com dominantes e dominados.
Do ponto de vista econômico, a tribo de índio é uma espécie de empresa, com certa
divisão do trabalho, deslocamentos e pesquisas mercadológicas. Apesar de determinada
informalidade, existe uma produção que sugere um estudo de sua infraestrutura e organização
com vistas à sua finalidade: produzir um espetáculo carnavalesco.
Para o desfile de carnaval, as tribos de índios recorrem a vários ajustes econômicos,
envolvendo agentes do circuito superior e inferior da economia urbana, bem como
mecanismos financeiros que permitem a confecção das alegorias e fantasias, estabelecendo
uma racionalidade específica para suas necessidades que dialoga, de forma complementar e
dialética, com a racionalidade hegemônica.
Da prática carnavalesca emerge o sentimento de pertencimento ao grupo, calcado na
vicinalidade e nas sociabilidades geradas, tecendo condições determinantes da vida social,
pois possibilita uma tríplice função enunciativa: é um processo de apropriação, é uma
realização espacial do lugar e implica relações culturais (sociais, políticas, econômicas e
simbólicas). Através das táticas cotidianas, as tribos de índios atualizam a ordem espacial, ao
transformarem o significante espacial, o que chamamos de refuncionalização dos objetos. Este
foi o objetivo do terceiro capítulo do presente trabalho.
A rua foi discutida como um local público que, para além do controle e normatização
das forças impessoais que dominam a nossa sociedade individualista, é prenhe de uma relação
com o cotidiano que a refuncionaliza, dotando de novos usos e significados, através das
territorialidades manifestadas pelos ensaios das tribos de índios, seja como dominação do
espaço – categoria material e concreta desta territorialidade – seja enquanto apropriação
simbólica.
A via pública funciona, também, como um lugar intermediário entre a “casa” e a
“rua”, através das privatizações pelo uso cotidiano do espaço público, a exemplo das pessoas
que assistem aos ensaios e colocam cadeiras nas calçadas ou mesmo na rua, demarcando um
território. Vimos que as tribos espraiam suas territorialidades, sobretudo nos ensaios gerais,
[153]
quando se apropriam, ainda que momentaneamente, de outros espaços – ruas –, simulando o
desfile na “avenida”.
Enxergando o desfile – pensado de modo abrangente – como um ritual dramático,
verificamos que as agremiações indígenas reforçam o bairrismo e os vínculos vicinais,
inscrevendo uma identidade territorial com o bairro ou o município, por meio dos discursos
que tendem a ser tratados com irrelevância nos estudos do mundo moderno, sobretudo quando
se tenta compreender o urbano. Mas é justamente nestes momentos de festividades da
sociedade brasileira que visualizamos o fenômeno de uma espécie de agrupamentos humanos
autênticos e espontâneos – as tribos de índios –, que dialogam com outros inúmeros agentes
que compõem o mundo social, estabelecendo relações intermediadas pela cultura e,
negocialmente, afirmando seus projetos.
Muito embora exista uma racionalidade que conduz as pessoas, inclusive aqueles
pertencentes às camadas populares, a outras formas de entretenimento e lazer no período
carnavalesco, o carnaval tradicional do desfile de tribos de índios e escolas de samba, de certa
forma, interessa a estes setores populares, pois, de algum modo, fala uma linguagem que eles
aceitam e compreendem.
Nos ensaios que ocorrem na rua ou no desfile carnavalesco em si, as pessoas estão se
relacionando com o espaço e a partir dele, exercendo sociabilidades mediadas por vínculos de
amizade, parentesco, vizinhança, produzindo e reforçando identidades sociais e, porque não
dizer, territoriais. A representação dramática da manifestação cultural ultrapassa a própria
performance corporal e nos conduz a um ritual mais amplo, que envolve inúmeros agentes
num sistema espacial que abarca várias territorialidades, num foco multiescalar e
multidimensional.
Nesta interrelação espacial com o espaço público ocorrem três fenômenos importantes,
que são propriedades espaciais: ordem, co-presença e visibilidade. Encontrar-se no espaço é
estabelecer uma ordem, conforme vimos na configuração espacial do desfile de carnaval:
trabalhadores informais, espectadores e consumidores, amigos e vizinhos, encontros,
namoros, alegria e lazer, e tudo isso ordena o território, conduzindo a territorialidades
múltiplas, que são, a um passo, concretas e simbólicas.
As várias significações dão as indicações de como os objetos e ações são organizados,
ordenando, qualificando e, sobretudo, propondo comportamentos. A rua é um espaço público
por excelência e nela podemos vislumbrar esta ordenação das coisas e das pessoas, como
[154]
ocorre no ensaio das tribos de índios; na fronteira estabelecida – porém transponível – entre o
grupo carnavalesco e os outros agentes que participam daquela cena pública; no universo da
casa (privado) e da rua (público), para ver e ser visto, permitidos pela co-presença.
Quando estamos tratando de relações e suas dimensões, estamos dizendo que elas são
culturais, pois permeiam a estrutura social e se inscrevem no espaço. Daí porque não podemos
dissociar as instâncias, tampouco o tempo e o espaço. Diríamos, pois, que podemos entender a
sociedade, sempre em processo e movimento, dotada de um espaço-tempo específico.
No interior desta formação socioespacial, sublinhamos que há uma existência social
escapando
da
racionalidade
hegemônica,
inscrevendo
outras
temporalidades
e
territorialidades, numa multiplicidade de situações, criadoras de uma riqueza material e
imaterial, isto é, de cultura. Presentes estão, portanto, os três componentes do espaço urbano:
sua morfologia (formas concretas), os comportamentos (maneiras de estar) e os significados
dados às ações.
Estas experiências vislumbradas nas tribos de índios carnavalescas permitem-nos
pensar que é necessária a continuidade destas formas de lazer popular, aproximando-se da
cultura que permeia os de baixo, e não propriamente das atividades racionais e do capital. As
instituições e os governos devem estimular esta produção, enquanto projeto político, unindo a
economia, a cultura e a sociedade, a partir dos hegemonizados.
A participação das tribos de índios no carnaval, enquanto grupos provenientes das
camadas menos abastadas, permite-nos compreender a passagem de uma resistência destes
grupos nos carnavais das primeiras décadas do século XX, para relações de negociação,
sobretudo com os agentes políticos – Poder Executivo, políticos locais e conselhos
comunitários, demonstrando um movimento dialético porque passaram estas agremiações,
sinalizando o reverso desta resistência para um momento, até mesmo, de cooptação social.
Também, como verificamos no decorrer do trabalho, é patente a cooptação destes
grupos de carnaval pelos agentes políticos, sobretudo em época de eleições, formando uma
espécie de “curral eleitoral”, justificada na contrapartida de ajuda e apoio às agremiações.
Este desenho atual das agremiações indígenas delimitou-se pelas modificações do
carnaval natalense, com uma crescente participação do Poder Público através da subvenção
aos grupos carnavalescos e a organização institucionalizada do desfile de escolas de samba e
tribos de índios.
[155]
Experienciar o cotidiano em torno do carnaval das tribos de índios é vislumbrar
procedimentos criativos que envolvem táticas do dia-a-dia, funcionando como uma verdadeira
bricolagem, ao produzir novas formas-conteúdos através de objetos passados e finitos
refuncionalizados. As bricolagens podem ser desde a apropriação das vias públicas, fazendo
delas sua quadra de ensaio, até a confecção das alegorias e fantasias, adquirindo produtos
usados a baixos preços que se somam aos artefatos utilizados no carnaval anterior para a
produção de novas fantasias e alegorias, elaborando, artesanalmente, objetos que são, a um só
tempo, materiais e de conhecimento, pelo que expõe o universo carnavalesco destas
agremiações, comunicando-se com a sociedade.
Por tais razões, entendemos que produzir o desfile carnavalesco para estas
agremiações remete a uma profusão de táticas e agenciamentos marcados pela negociação,
reciprocidade e solidariedade, mantendo o grupo coeso, sob uma base identitária que o conduz
ao lugar em que se encontra estabelecido, definindo aspectos territoriais, sociais e culturais.
Propusemo-nos compreender o carnaval das tribos de índios como um fato social, sob
a análise geográfica, sem a intenção de exaurir a temática, pela própria complexidade do
conteúdo e por não se tratar de algo estanque e facilmente esgotável. Preferimos dizer que o
estudo buscou lançar proposições e sugerir novas discussões, dentro de uma perspectiva que
une cotidiano, espaço e cultura e, caso ocorra de se suscitarem outros questionamentos, esta
dissertação já terá cumprido seu objetivo.
[156]
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