O Renascimento do Barroco Por Ricardo Arnt, Lucia Helena de Oliveira, de Ouro Preto, e Fernando Valeika de Barros, de Lisboa No ano em que Ouro Preto, a capital nacional do barroco, completa três séculos de existência, o estilo artístico e religioso que dominou o período colonial dá a volta por cima. Aqui você vai entender por que, para alguns, esse foi o gênero que formou e define, até hoje, a cultura brasileira. Há 300 anos, em junho de 1698, quando o acampamento de Ouro Preto foi fundado no alto de um morro perdido na Serra do Espinhaço, em Minas Gerais, nada prenunciava seu glorioso futuro. O clima era sombrio, esmagado por muralhas de montanhas, e o arraial equilibrava-se sobre solo escorregadio. "A primeira coisa que se fazia ao criar uma cidade", disse à SUPER o historiador português Vitor Serrão, professor de História da Arte na Universidade de Lisboa, "era construir uma capela. A maior preocupação era não faltar igreja para as festas santas como o Natal." E foi de capela em capela, cada vez mais próspero com a descoberta de vários depósitos de ouro nas imediações, que, em 1711, o povoado virou a Vila Rica do Ouro Preto, a capital do barroco — o estilo artístico exuberante que dominou a arquitetura, a pintura, a escultura, a literatura, a música, o mobilário, a ourivesaria e a mentalidade do país durante 100 anos. Tanto tempo que, para muitos historiadores, o barroco não só fundou a cultura brasileira, como continua a influenciá-la até hoje — apesar de ser o avesso das modas minimalistas pós-modernas. A idéia é apaixonante. E controversa, como você vai ver nesta reportagem. O certo é que o barroco brasileiro está em alta. Cento e vinte mil pessoas já visitaram em São Paulo a exposição O Universo Mágico do Barroco, que reúne, pela primeira vez, 400 peças deslumbrantes do período colonial. O sucesso é tanto que a mostra foi prorrogada até 18 de outubro. Em maio, a Christie’s de Londres, a mais famosa casa de leilões do mundo, vendeu, pelo preço recorde de 420 000 dólares, uma imagem de Nossa Senhora das Dores esculpida por Aleijadinho, o principal artista brasileiro do período. Quer dizer, se alguma vez o barroco esteve em declínio por aqui, ele agora está renascendo. Artistas brasileiros reelaboraram, a seu gosto, o barroco português. As cores deste teto da Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, pintado por Manoel da Costa Ataíde (1762-1830), são muito mais vivas e quentes do que as encontradas em Portugal. Ataíde desenhou as feições de sua companheira, a mulata Maria do Carmo Raimunda, no rosto de Nossa Senhora da Porciúncula. E, nos anjos, pôs os traços de seus filhos e de moleques de Vila Rica. Aos pés da Virgem, repare o desconcertante anjo mulato, feio e aleijado, empunhando um cajado que ergue a santa aos céus. É o artista Antonio Francisco Lisboa, o genial Aleijadinho (1730-1814), amigo do pintor. Os símbolos da fé revigorada Ofuscar os sentidos. Afirmar o esplendor divino. Conquistar a alma e a imaginação com a exuberância da fé. Maravilhar. Extasiar. Ao recomendar novas diretrizes estéticas à Arte, os cardeais reunidos na última sessão do 19º Concílio Ecumênico da Igreja Católica Romana, em 1563, na cidade de Trento, na Itália, não estavam brincando. O Vaticano precisava reagir à expansão da Reforma protestante na Europa, iniciada por Lutero, na Alemanha, em 1517. O barroco — termo derivado da palavra espanhola barueco, que significa pérola irregular — foi um dos principais instrumentos de propaganda do movimento da ContraReforma. Não por acaso, um dos primeiros edifícios com decoração nesse estilo foi a Igreja de Jesus, em Roma, de 1575, construída para sediar a Companhia de Jesus, a ordem dos jesuítas, fundada para combater o protestantismo. "A Igreja queria parecer moderna e não ultrapassada", explicou à SUPER o historiador Carlos José Aparecido, da Fundação do Museu de Arte Sacra de Ouro Preto, em Minas Gerais. "A pompa e a exuberância barrocas quebravam a linearidade e a rigidez dos estilos vigentes, o renascentista, harmônico e equilibrado, e o maneirista, superficial e artificioso. E impressionavam." Daí o seu apego à curva, ao movimento, ao drama, à decoração feérica e, paradoxalmente — em se tratando de uma arte religiosa —, à sensualidade. O barroco foi uma reafirmação do poder da fé. Diante do protestantismo, que pregava austeridade e rigidez, o catolicismo reagiu alardeando a exaltação mística e o delírio dos sentidos. A vitória da emoção sobre a razão. Anjinhos Os anjos meninos eram símbolos do amor divino Atlantes e cariátides Figuras míticas da Antigüidade, atlantes (homens) e cariátides (mulheres), serviam como suportes de colunas Flores São representações da beleza da alma e da fugacidade das coisas O pelicano Uma metáfora do amor materno. A ave bica a si própria para oferecer o sangue aos filhos Conchas Conchas de vieira e coquilles de saint-jacques, pregadas no peito, identificavam os peregrinos que iam ao santuário de Santiago de Compostela, na Espanha, no século XI Espinhos Os emaranhados ásperos lembravam a consciência da dor do pecado Palmas Os feixes de folhas sugeriam o triunfo de Jesus sobre o martírio Cachos de uva Ramos de videira e uvas evocavam o sangue de Cristo Os três ciclos do barroco colonial No Brasil, a ascensão do novo gênero artístico acompanhou a descoberta do ouro em Minas — a primeira corrida do ouro do Ocidente. Em cinqüenta anos, 600 000 portugueses emigraram para cá. Desses, calcula o historiador Jaelson Britan Trindade, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), de São Paulo, "pelo menos 800 eram artistas". No final do século XVII, descontados os índios, a população brasileira de origem européia contava 40 000 habitantes. No fim do século XVIII, pulou para 1,5 milhão. Nas cidades litorâneas, sob maior influência da metrópole, o barroco foi mais português. Já no interior de Minas, isolado pela distância e pela precariedade das comunicações, ganharia cada vez mais características próprias. Um século de evolução Quando surgiu, em Salvador e em Recife, o estilo mudou o interior das igrejas, não o exterior. Nesse período inaugural, chamado de nacional português, as fachadas e plantas continuam retilíneas, mas, por dentro, os templos viraram suntuosas "cavernas douradas", com paredes e tetos inteiramente revestidos de madeira esculpida em alto ou baixo-relevo (a talha), e pinturas encaixadas em molduras (os caixotões). Os painéis que ficam atrás e acima do altar (os retábulos) apresentam colunas torcidas e decoração profusa. É o caso da Capela Dourada (1695), em Recife, da Igreja de São Francisco de Assis (1703), em Salvador, e da capela de Nossa Senhora do Ó, em Sabará (1719), Minas Gerais. A partir de 1730, nota-se uma mudança. É o período joanino, marcado pela gosto italiano do rei português, d. João V. As estátuas se integram à madeira dos retábulos e os caixotões desaparecem, substituídos por pinturas ilusionistas (que provocam ilusão de óptica), recobrindo o teto. A arquitetura adota linhas curvas, naves alongadas e torres circulares, como nas igrejas de Nossa Senhora da Conceição da Praia (1758), em Salvador, Nossa Senhora do Pilar (1734) e Nossa Senhora do Rosário (1750), ambas em Ouro Preto. Outras mudanças cristalizam-se a partir de 1760, com o ciclo rococó. Aí, as fachadas tornam-se mais leves e audaciosas, com curvas e contra-curvas, elegantes torres redondas e portadas com relevo de pedra-sabão. Os ambientes são claros e arejados, e a luz natural enfatiza a ornamentação sobre fundos caiados de branco. Os templos projetados por Aleijadinho, como a Igreja de Nossa Senhora do Carmo (1766), em Ouro Preto, e a de São Francisco de Assis (1774), em São João del Rey, são obras-primas da época. "O interior dessas igrejas", diz Myriam Ribeiro de Oliveira, professora de História da Arte na Universidade Federal do Rio de Janeiro, "são verdadeiros poemas sinfônicos de luz e de cor". Período nacional português (1700 -1730) Todos os espaços disponíveis em paredes e tetos eram profusamente decorados. O retábulo do altar, esculpido em madeira, formava uma verdadeira caverna dourada A Igreja de Nossa Senhora do Ó, em Sabará (MG), construída em 1719 Pintura em caixotões no teto da Igreja de Nossa Senhora da Ordem Terceira do Carmo, em Salvador Período joanino (1730 -1760) O retábulo da Igreja de N. Senhora do Rosário, de Ouro Preto, ressalta a ornamentação das esculturas. Pintura ilusionista sugerindo o céu infinito no teto da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, em Salvador A fachada curva da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, em Ouro Preto Período rococó (1760 -1800) O estilo rococó aliviava o exagero ornamental e proporcionava maior moderação arquitetônica. O retábulo da Igreja de São Francisco, em São João Del Rey, sobre fundo branco A Igreja de São Francisco, em São João del Rey, com torres redondas e fachada trabalhada As primeiras marcas da identidade nacional O ímã do ouro tornou Minas a capitania mais populosa do Brasil. De 1711 a 1730, começando por Ouro Preto, brotaram nove vilas na Serra do Espinhaço — de São João Del Rey, no sul, a Sabará, no norte. No fim do século XVIII, a região já tinha 500 000 habitantes. Para se ter uma idéia, em 1762, o Rio tinha apenas 30 000 habitantes; Salvador, em 1797, 50 000; e Vila Rica, 100 000. O ouro criou um mercado interno para o gado do Sul, fumo e açúcar do Nordeste e escravos do Rio. Com a abertura do Caminho Novo das Gerais, em 1715, os tropeiros passaram a viajar entre o Rio e Vila Rica em "apenas" doze dias. A civilização que levou o barroco brasileiro ao apogeu era aventureira e precária. A Coroa confiscava um quinto do ouro extraído e, por isso, o contrabando era crônico. Os costumes eram promíscuos e as leis, pouco respeitadas. A falta de mulheres tornava a prostituição rendosa. Até os padres envolviam-se em escândalos sexuais. Para controlar a expansão da Igreja nessa região tão rica, a Coroa proibiu a instalação das Ordens Primeiras (de frades e monges) e Segundas (de freiras), em 1738. "Em conseqüência", explica Ana Maria Monteiro de Carvalho, professora de História da Arte na Universidade Católica do Rio, "proliferaram as Ordens Terceiras, as Irmandades e as Confrarias que congregavam leigos. Foi a devoção laica que encheu Minas de obras barrocas." Cada corporação de ofício tinha a sua Ordem. Havia irmandades de elite e populares. A Ordem Terceira de São Franciso de Assis de Vila Rica, por exemplo, proibia "mulatos, negros, judeus, mouros e heréticos ou seus descendentes até a quarta geração". A Ordem Terceira do Rosário dos Pretos congregava escravos. Cada uma tinha seu santo, suas festas e construía sua igreja exclusiva, competindo com as outras em prestígio. Para o devoto, o prêmio era ser enterrado pela confraria — garantindo o céu após a morte. Síntese original Impulsionado pelo ouro e pela multiplicação de igrejas, o barroco português aos poucos adquiriu traços brasileiros. O azulejo, que não suportava a subida da serra no lombo das mulas, foi trocado por painéis pintados. A pedra-sabão substituiu o mármore e a pedra de lioz. As igrejas e capelas tornaram-se menores, já que eram construídas para atender a uma só confraria. Aos poucos, na medida em que tiveram filhos com escravas, os artistas portugueses repassaram as técnicas a artesãos mestiços. Foi o mestre-de-obras Manuel Francisco Lisboa, branco e português, que formou Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, seu filho. Em 1790, os artistas mulatos e livres já predominavam nos cargos de "oficial" e de "mestre". A sintonia com a terra e a cultura artística local filtrava a reinterpretação dos modelos europeus. As paredes curvas se misturaram às retas. As cores avivaram-se com a luz dos trópicos. Os santos ganharam feições amulatadas. E os anjinhos morenos receberam viçosas perucas loiras. Conheça as características da Igreja de São Francisco de Assis. De 1766 a 1794, a Ordem Terceira de São Francisco de Assis da Penitência, que congregava muitos intelectuais de Vila Rica, pagou os melhores artistas para construir seu templo. O projeto arquitetônico, o altar-mór, o retábulo, os púlpitos e os frontões da fachada foram feitos por Aleijadinho. Sete entalhadores esculpiram a madeira. O mestrede-obras foi Domingos Moreira de Oliveira, o melhor da época. A pintura do teto é de autoria de Manoel da Costa Ataíde, um dos grandes artistas da região. Sotaque brasileiro, gramática portuguesa Formalmente, o barroco termina em 1816, com a chegada da Missão Artística Francesa e do estilo neoclássico, em voga na Europa, ao Rio. Mas, para muitos, a influência barroca não acabou aí. "O Brasil nasceu sob signo barroco", disse à SUPER o historiador Nicolau Sevcenko, da Universidade de São Paulo. "A fisionomia e alma brasileiras foram compostas por esse sopro místico. Ele não foi um estilo passageiro, mas a substância básica da síntese cultural do país." Para Sevcenko, há marcas "latentemente barrocas" na identidade brasileira, no catolicismo popular em especial, como "extremos de fé, ilusão de grandeza, exaltação dos sentidos, êxtase de festa, pendor pelo monumental, convivência com disparidades e compulsão de esperança". Essa associação do barroco à identidade nacional surgiu há cinqüenta anos com escritores como Olavo Bilac (1865-1918) e Mário de Andrade (1893-1945). Adotada pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico, fundado em 1937, a tese inspirou pesquisadores como Germain Bazin (1901-1990), Lúcio Costa (1902-1998) e o diretor da Pinacoteca Municipal de São Paulo, Emanoel Araújo, que defende "a existência de uma estética própria do barroco brasileiro, a despeito de raízes e mestres portugueses". Para Araújo, o barroco brasileiro carrega "a tropicalidade, a permissividade e a sensualidade da miscigenação das culturas. Aqui, as ordens religiosas incorporaram o negro e o índio", ressalta. "Era a Igreja que promovia a festa negra do Rei do Congo." (Revista Super Interessante – Edição 131 – agosto de 1998)