A CIÊNCIA E A TECNOLOGIA DO VÁCUO Resumo histórico e algumas aplicações Roberto A. Stempniak Sociedade Brasileira de Vácuo FACAP/CDT – Faculdade de Ciências Aplicadas de São José dos Campos, SP [email protected] SBV – SOCIEDADE BRASILEIRA DE VÁCUO 2002 APRESENTAÇÃO 1 Esta pequena apostila corresponde a um conjunto de palestras que vem sendo ministradas pela Sociedade Brasileira de Vácuo para pessoas não envolvidas diretamente com atividades relacionadas com a Ciência e a Tecnologia de Vácuo. Trata-se de um conjunto de informações sobre a maneira pela qual os conceitos físicos e tecnológicos do vácuo se desenvolveram no decurso da História e como as atividades relacionadas com o vácuo são importantes para a vida moderna, para as atividades de pesquisa e para a própria compreensão do Universo. No transcorrer dos tempos os conceitos sobre vácuo evoluíram e permitiram ao homem realizar aquilo que inicialmente parecia impossível: produzir um ambiente quase sem matéria. Os primeiros pesquisadores a começar pelos da Escola de Alexandria, passando por Torricelli, Pascal e tantos outros nunca imaginaram que de suas primeiras experiências viriam aplicações científicas notáveis como a compreensão do que é a atmosfera, das propriedades químicas dos materiais, da eletricidade e da própria estrutura mais íntima da matéria. Ainda hoje muitas pessoas ignoram que toda a eletrônica, sistemas de comunicações, computadores e até uma prosaica garrafa térmica dependem de sistemas de vácuo. O público a quem é dirigido este conjunto de palestras é composto primordialmente por professores de Ciências, de Física, de Química ou de qualquer outra matéria. Muitos alunos de cursos de graduação de nossas Faculdades poderão também achá-las úteis. É preciso que se diga que não se trata de um Curso de Tecnologia de Vácuo para pessoas que vão trabalhar com sistemas de vácuo. Trata-se tão somente de informações gerais, importantes para a formação do cidadão, dentro das orientações modernas do ensino de Ciências. Esperamos que dentro desse propósito o nosso trabalho seja bem recebido. A maneira de apresentar e o conteúdo deste opúsculo são considerados preliminares e podem ser aprimorados com sugestões e críticas dos leitores a quem agradecemos desde já a colaboração. O autor 2 1.INTRODUÇÃO A palavra vácuo é utilizada na linguagem diária com diferentes sentidos: vazio, vazio de poder, falta de alguma coisa...Um dicionário1 define vácuo como um lugar onde não contém nada. Num segundo sentido o dicionário acrescenta espaço imaginário ou real não ocupado por coisa alguma.Vácuo seria o perfeito vazio. A pergunta é: seria possível o vazio absoluto? Um lugar completamente desprovido de matéria? Vamos supor uma garrafa cheia de água. À medida que a água sai o espaço, dentro da garrafa, é ocupado pelo ar. Poderíamos pensar em retirar o ar e podemos fazê-lo mas nunca de modo completo. Não há equipamento capaz de reduzir a matéria, num certo volume, a zero. Ou seja, não é possível obter o vácuo perfeito: o vácuo absoluto. A idéia de um vácuo (perfeito), produzido por técnicas existentes é, aparentemente, uma idealização. E no espaço cósmico, longe de qualquer estrela, de qualquer planeta será que pode existir o vácuo ? E no interior da matéria ? Nessas aulas procuraremos discutir alguns desses aspectos de um tema fascinante. Durante séculos o conceito de vácuo foi muito discutido e debatido inicialmente no campo da Filosofia e, depois, no das Ciências Naturais. Na Grécia Antiga identificamos uma primeira tentativa sistemática de se dar uma interpretação racional aos fenômenos físicos e à natureza do mundo. No século V a.C. Parmênides de Eléia dizia ser o universo preenchido completamente pela presença do “ser” a que ele denominava eon. Essa palavra significa o que da sentido à existência das coisas materiais. O vazio absoluto seria uma contradição lógica ou o “não ser”. Logo o vácuo não poderia existir. Por volta do ano 420 a.C. dois outros gregos davam uma explicação completamente diferente e, aparentemente, até muito de acordo com as idéias modernas da Física. Eram eles Leucipo e seu aluno Demócrito que propunham uma explicação para a natureza das coisas a partir de uma teoria atômica. Tudo seria composto de átomos. Os átomos teriam existido sempre e sempre existiriam inalterados e diferindo por suas formas geométricas. Esses átomos se reuniriam ao acaso formando a matéria e entre os átomos não haveria nada. Entre esses átomos existiria o vácuo. Mais tarde, Aristóteles (384-322 a.C) viria considerar o problema do vácuo negando a possibilidade de sua existência. Aristóteles não aceitava a teoria atômica de Demócrito. O raciocínio de Aristóteles, para provar a não existência do vácuo, utilizava a experiência de queda dos corpos. Os corpos ao caírem sofrem uma resistência do meio em que caem: resistência do ar, da água, etc. Alguns meios oferecem maior resistência, outros menor resistência. Mas essa resistência está sempre presente, limitando a velocidade. Se houvesse vácuo, os corpos não encontrariam resistência alguma e sua velocidade cresceria indefinidamente chegando a uma velocidade infinita. Logo o vácuo não pode existir. Como sabemos, Aristóteles foi o filósofo que mais influenciou o pensamento científico dos séculos que se seguiram e essas idéias foram se propagando até a época do renascimento com uma frase repetida freqüentemente: “A natureza tem horror ao vácuo...”. E essa concepção era utilizada para interpretar determinados fenômenos como, por exemplo, quando mergulhamos um canudo em um copo de água. Ao chuparmos o ar contido no canudo a água sobe para preencher o espaço onde se retirou o ar para que não houvesse vácuo... Como explicar o movimento da Lua do Sol e dos planetas? Aristóteles supunha, de acordo com a teoria dos quatro elementos de Empédocles que tudo na terra seria composto de: terra, ar, água e fogo. Cada um desses elementos teria suas propriedades próprias: a tendência da água e da terra era se movimentar procurando o seu lugar no centro do Universo que seria no centro da Terra. A tendência natural do ar e do fogo era oposta. Mas isso era apenas para a chamada matéria do mundo abaixo da Lua: do mundo sub-lunar. Acima desse mundo terrestre a matéria seria diferente, com diferentes propriedades. Existiria um quinto elemento, a “quinta essência” que preencheria to3 do o universo e que não causaria resistência ao movimento circular e perfeito dos corpos celestes. O espaço entre os planetas e as esferas que os continham estava preenchido pela quinta essência. Não havia necessidade de vácuo. Essa discussão sobre a quinta essência voltou a ser importante quando se descobriu que a luz e as ondas eletromagnéticas se propagam no espaço entre os corpos celestes. De acordo com as primeiras teorias ondulatórias uma onda exige um meio que possa vibrar para que se propague. James Clerk Maxwell, o formulador da teoria eletromagnética, juntamente com os outros cientistas da época (século XIX) tiveram que introduzir o “’éter”, uma espécie de matéria que preencheria todo o universo. Somente no início do século XX a teoria da relatividade de Albert Einstein veio mostrar que a idéia de “éter” era desnecessária e que, novamente, poder-se-ia falar em vácuo. 4 2.AS PRIMEIRAS TENTATIVAS PARA PRODUZIR VÁCUO Foi somente no século XVII com o uso mais intenso da experiência como auxiliar do raciocínio científico que dois problemas começaram a serem devidamente equacionados: a natureza do ar e a possibilidade de produzir uma região do espaço sem ar ou, pelo menos, com uma quantidade muito pequena de ar. Podemos identificar aí o real início da Tecnologia do Vácuo. Em Florência, na Toscana (hoje Itália) por volta de 1640, Galileu teria sido convidado a considerar um fato muito interessante: as bombas aspirantes, que eram utilizadas para elevar a água em reservatórios, não eram capazes de elevar essa água a alturas maiores do que 10,3 m. Para melhor compreender esse fato Galileu fez pesar dois balões de vidro: um com ar e outro que fora aquecido reduzindo a quantidade de ar e notou que pesavam diferentemente: a ar tinha peso. Galileu não chegou a desenvolver um trabalho mais amplo nesse terreno e a sua conclusão era de que a coluna de água acabava por romper-se por seu próprio peso. Essas pesquisas foram continuadas de modo brilhante por um aluno de Galileu, Evangelista Torricelli que interpretou o fenômeno como relacionado com o “peso do ar” ou mais especificamente com a pressão atmosférica capaz de equilibrar uma coluna de 10,3 m de água. Os trabalhos de Torricelli levaram-no a estabelecer uma técnica metrológica para a medição da pressão atmosférica, construindo o primeiro barômetro. Mais tarde verificou que utilizando mercúrio no lugar da água a coluna era de cerca de 76 cm. Observou que a razão entre as alturas da coluna de água e de mercúrio era justamente a razão entre as densidades desses dois materiais. O mercúrio tem uma densidade relativa a água de 13,6 e, realmente, 10,3m÷0,76 = 13,6. O barômetro de Torricelli consiste de um tubo fechado em uma de suas extremidades o qual é cheio de mercúrio. A extremidade aberta é, então momentaneamente fechada e o tubo é emborcado com essa extremidade em uma vasilha de mercúrio. O nível de mercúrio desce, então, até chegar a 76 cm aproximadamente entre o nível de mercúrio da vasilha e o do tubo. A interpretação é que a pressão do ar atmosférico sobre a superfície livre equilibra a coluna de mercúrio. Se a pressão atmosférica for menor o tamanho da coluna será menor, conforme Blaise Pascal, na França verificou ao medir a pressão atmosférica na base e no pico de uma montanha, além de outras experiências importantes. É interessante perceber que a experiência de Torricelli, com o seu barômetro foi uma das primeiras técnicas para produzir vácuo artificialmente. Vejamos porque: o mercúrio desceu desde a extremidade fechada do tubo até chegar, no equilíbrio, a 76cm. Esse espaço entre a extremidade fechada do tubo e o nível superior de mercúrio é desprovido de matéria ou, pelo menos quase desprovido de matéria uma vez que sempre há uma certa quantidade, ainda que pequena, de vapor de mercúrio para criar uma pequena pressão. Em todo o caso a pressão nessa região é um vácuo parcial já de muito boa qualidade. Trata-se, pois, de uma técnica para se produzir um bom vácuo. Neste ponto estamos notando que quando falamos em tecnologia de vácuo não se trata de produzir um vácuo absoluto que é impossível mas de se reduzir a pressão a um valor menor que o da pressão atmosférica. Nesse sentido, as experiências feitas muito antes de Torricelli, por Heron, em Alexandria, no século III a.C., quando, ao aquecer água em um recipiente, e, fechando-o, em seguida, produziu pressões inferiores à pressão atmosférica. Hoje aplica-se essa técnica para vedar recipientes de alimentos feitos de vidro: requeijão, massa-de-tomate, etc. 5 Nos sistemas biológicos encontramos bombas de vácuo naturais, uma das quais é representada pelos nossos pulmões cujo volume aumenta, reduzindo a pressão e permitindo a entrada de ar. 6 3. BOMBAS DE VÁCUO As experiências de Torricelli e Pascal mostraram a importância da pressão atmosférica e a possibilidade de se controlar a pressão do ar em cada caso. O próximo pesquisador na área da tecnologia de vácuo de quem temos que falar é, sem dúvida, o prefeito da cidade de Magdeburgo, Otto Von Guericke (1602-1686). Não se tem certeza de que conhecia as experiências de Torricelli e Pascal mas a verdade é que ele se interessou não exatamente pelo ar atmosférico mas pelos efeitos que se poderia produzir retirando-se o ar de um ambiente. A idéia de Von Guericke era bombear toda a água de um recipiente fechado, com auxílio de uma bomba de água, supondo que aí não restaria mais nada. Não só a experiência foi muito difícil pela força necessária para mover o pistão, necessitando para tal da ajuda de três homens, como pelo fato de que logo percebeu que tão logo a água era retirada do recipiente o ar penetrava por qualquer pequena fresta. Percebeu que um dos problemas (até hoje) enfrentados por quem deseja fazer vácuo é a vedação que deve ser muito boa. Mais tarde notou que não era necessário encher de água o recipiente, bastava bombear o próprio ar com um pistão. O fato é que a partir de tais experiências foi produzida, finalmente a primeira bomba de vácuo (ou seria uma bomba de ar?). Tão logo foi possível produzir um vácuo, ainda que precário, espetaculares demonstrações foram possíveis: a chama de uma vela se extinguia na ausência de ar, o som não se propagava, etc. Mas a mais espetacular e conhecida experiência dessa fase foi certamente a dos “Hemisférios de Magdeburgo” onde dois hemisférios de metal com juntas de vedação de couro, eram justapostos e tornava-se muito difícil separá-los, quando o ar era retirado de dentro da esfera formada. Há uma antiga xilogravura mostrando uma das experiências onde oito cavalos puxando cada um dos hemisférios eram necessários para separá-los com um enorme estrondo. Essas importantes experiências foram publicadas em 1672 sob o título em latim Experimenta nova (ut vocantur) Magdeburgia de vácuo spacio que significa “Novos experimentos (também chamados) de Magdeburgo sobre o espaço evacuado”. Otto Von Guericke foi um grande experimentalista, tendo realizado muitos trabalhos, inclusive em eletricidade estática construindo as primeiras máquinas eletrostáticas. As suas idéias para produzir vácuo foram desenvolvidas e as bombas de vácuo a pistão eram comuns nos laboratórios de Física do século XVIII e XIX. Essas bombas de vácuo consistem de um pistão que é pressionado para dentro de um cilindro provido de uma válvula para a saída do ar à medida que o pistão penetra.Quando o pistão chega ao fim do seu curso tal válvula é fechada e o pistão é retirado, reduzindo a pressão dentro do cilindro. Outra forma é arrastar moléculas do ar por um fluxo de líquido (trompas) ou ainda utilizar a técnica original de Torricelli de se esvaziar um tubo de mercúrio para outro recipiente produzindo um bom vácuo. As chamadas máquinas pneumáticas logo começaram a aparecer. Um dos grandes pesquisadores sobre o assunto foi Robert Boyle, na Inglaterra, que construiu e aperfeiçoou um desses engenhos a pistão. Outras técnicas foram sendo desenvolvidas com o passar do tempo. Algumas dessas bombas funcionam baseadas num pistão rotativo que se move ciclicamente mantendo o processo de retirada do ar para compensar eventuais vazamentos. Num outro tipo as moléculas do ar residual na câmara em que se fez vácuo são arrastadas por um fluxo de vapor (difusoras), reduzindo ainda mais a pressão. Nas bombas criogênicas o ar é condensado pelo frio e as moléculas não circulam mais pelo volume onde se fez vácuo. Nas bombas turbo-moleculares as moléculas são arrastadas por palhetas como em uma turbina. 7 4. AS UNIDADES DE MEDIDA DE VÁCUO (MEDIDAS DE PRESSÃO) A pressão é definida como sendo a força exercida por unidade de área. No caso da pressão de um gás essa pressão é produzida pelo choque das moléculas do ar com as paredes do recipiente. A pressão depende do número de moléculas por unidade de volume e da agitação térmica dessas moléculas. Quanto maior a temperatura, maior é a agitação das moléculas e maior é o número de choques que essas moléculas têm com as paredes do recipiente. A unidade SI de pressão é o pascal, definido como sendo a pressão correspondente a um newton por metro quadrado que é denominada pascal ( 1 Pa) em homenagem ao físico Pascal. Esta é a unidade de pressão que deve ser utilizada. Historicamente, entretanto, os físicos e engenheiros se acostumaram com outras unidades, ainda utilizadas. Uma delas é a altura da coluna de mercúrio em um barômetro cuja origem remonta ao tempo de Torricelli. Mais tarde com o advento do Sistema Métrico Decimal a unidade foi definida como: um milímetro de mercúrio (mm Hg) que às vezes é denominado um Torricelli ( 1 Torr) em homenagem a Torricelli. Outras unidades ainda em uso são a atmosfera e o bar. Não há outra justificativa para o uso de unidades diferentes do pascal exceto pelo hábito e porque alguns instrumentos de medição ainda usam unidades estranhas ao SI. Tabela de conversão de unidades: 1 Torr = 1/760 atmosfera (atm) 133 pascals (Pa) 1 mm Hg 1,33 mbar Devido ao fato que muito da literatura ainda está em torricellis as nossas tabelas ainda mantêm esta unidade. Mas sempre que declarada uma unidade diferente do SI deve-se fornecer a unidade SI correspondente. 8 5. COMO O VÁCUO É CARACTERIZADO Já comentamos que não existe vácuo perfeito. Por mais eficiente que seja o sistema, por mais avançadas que sejam as bombas de vácuo utilizadas, por mais cuidadoso que seja o sistema de juntas e soldas sempre há um pequeno vazamento e a pressão chega a um valor mínimo que não pode ser mais reduzida. A tecnologia de vácuo progrediu muito nos últimos anos com novos tipos de bombas e novos materiais a serem utilizados como vedantes a, hoje, é possível atingir pressões da ordem de 10-12 Torr nos melhores sistemas. Nem sempre, porém é necessário produzir o melhor vácuo possível. Para cada processo procura-se obter o vácuo adequado ao que se quer. Para se especificar adequadamente o sistema de vácuo é necessário o estudo das propriedades dos gases a baixa pressão, cujos fundamentos foram estabelecidos nos meados do século XIX, por James Clerk Maxwell, na Teoria Cinética dos Gases. Essa teoria se baseia na aplicação das leis da Mecânica às moléculas em seu movimento e na sua interação com as paredes do recipiente do gás. Na Teoria Cinética dos Gases os parâmetros mais importantes são: a quantidade de moléculas por unidade de volume, a temperatura, a velocidade média e a distância média que as moléculas percorrem sem colidir umas com as outras (caminho livre médio). A equação que liga os vários parâmetros depende da chamada lei geral dos gases ideais: PV = nRT (1) Onde P é a pressão, V o volume, n o número de mols, R a constante universal dos gases que vale 8,3144 J/K mol e T a temperatura absoluta. Outra equação importante é a equação de distribuição de velocidades da Estatística de Maxwell-Boltzmann: N(v) = 4πN m 2πkT 3 2 2 e mv v 2 2kT (2) onde N(v)dv representa o número de moléculas cujas velocidades estão entre v e v+dv m a massa de cada molécula, v a velocidade e k é a constante de Boltzmann que vale 1,38 x 10-23 J/K. Dessas relações obtém-se que a energia cinética média das moléculas vale 3/2 kT. As equações apresentadas correspondem aos chamados gases perfeitos e valem muito bem no caso dos sistemas de vácuo onde a pressão e a massa específica são reduzidas. Por mais eficiente que seja o sistema, sempre sobram moléculas do gás originalmente existente no recipiente. A quantidade de moléculas que restam, por unidade de volume, pode ser utilizada para caracterizar o vácuo. À medida que o vácuo se torna mais perfeito, isto é, quanto menor a pressão, há um número cada vez menor de moléculas por unidade de volume. A pressão do gás está relacionada com os choques por unidade de tempo que essas moléculas têm com as paredes do recipiente. Quanto melhor o vácuo essas colisões se tornam menos freqüentes e, da mesma forma, as colisões entre as próprias moléculas acontecem menos. Estas colisões, entre duas moléculas, são caracterizadas pela distância que as moléculas podem percorrer, em média, entre duas colisões sucessivas, grandeza que os físicos chamam de “caminho livre médio”. À pressão atmosférica normal temos cerca de 2 x 1019 moléculas por centímetro cúbico. Se a pressão for aproximadamente um milionésimo da pressão atmosférica normal o número de moléculas ainda é bem grande: 3 x 1013 por cm3 e, mesmo na situação de um dos melhores vácuos que podem ser feitos tecnicamente ou seja 10-9 mm de Hg, ainda temos cerca de 30 milhões de moléculas em um centímetro cúbico 9 TABELA 1–Parâmetros para vários tipos de vácuo3 Pressão Médio Alto vácuo Ultra alto Atmosférica vácuo vácuo -3 -6 Pressão (Torr) 760 10 10 10-8 Número de moléculas por cm3 Número de moléculas por segundo que bombardeiam as paredes Caminho livre médio entre as colisões (cm) 2 x 1019 3 x 1013 3 x 1010 3 x 108 3 x 1023 4 x 1017 4 x 1014 4 x 1012 6,5 x 10-6 5 500 5 x 105 Ultra alto vácuo 10-9 3 x 107 4 x 1011 5 x 106 O caminho livre médio é a principal referência para os pesquisadores que precisam utilizar o vácuo em seus trabalhos porque, muitas vezes, a presença do ar pode representar um empecilho para o movimento de outras partículas em que o cientista está interessado. É o caso, por exemplo, de um tubo de televisão (“tubo de raios catódicos”) onde elétrons emitidos da parte de trás do tubo devem chegar até a tela. Se a pressão não for muito baixa, os elétrons não conseguem atingir diretamente a tela para formar a imagem devido à alta probabilidade de colisões com as moléculas presentes. Por isso é preciso reduzir a pressão de modo que o caminho livre médio seja muito maior do que o tamanho do tubo de imagem do televisor e assim os elétrons possam chegar sem problemas à tela. A tabela 1 mostra a relação entre a pressão e os parâmetros mencionados. Devemos levar em conta que o gás com que estamos trabalhando geralmente é o ar, cuja composição é: nitrogênio (78%), oxigênio (21%), argônio (0,9%) e, em menor proporção, gás carbônicos, neônio, hélio, metano, criptônio, hidrogênio, oxido nítrico e xenônio As pessoas que utilizam sistemas de vácuo precisam conhecer as bombas necessárias para atingir a pressão exigida, saber medir a pressão com bastante segurança e conhecer os materiais necessários para suportar os efeitos externos e os materiais necessários para vedar os recipientes a fim de que o ar externo não penetre. Os medidores de alto-vácuo são muitas vezes altamente sofisticados, com sistemas que tornam o gás residual condutor de eletricidade, e, assim, a pressão pode ser mensurada pelas pequeníssimas correntes elétricas entre dois eletrodos colocados a uma certa distância um do outro dentro do volume que se quer estudar. Os materiais que vedam as partes do recipiente são, muitas vezes, tipos especiais de lubrificantes, juntas com superfícies muito polidas, anéis de metal, borrachas especiais e muitos outros. Os equipamentos incluem, muitas vezes, certos sistemas de análise, chamados de espectrômetros de massa, para saber quais são os gases residuais e, principalmente, eventuais contaminantes que podem prejudicar os processos em andamento. 10 5.APLICAÇÕES CIENTÍFICAS E TECNOLÓGICAS DO VÁCUO As aplicações do vácuo são muitas. Na tecnologia moderna grande parte dos produtos tem de uma ou outra forma a influência de processos em que há necessidade de se fazer algum tipo de vácuo. Comecemos pelas embalagens “a vácuo” de café, carne, requeijão e geléias. Muitas vezes um ambiente com baixa pressão é necessário, para facilitar a abertura dessas embalagens, outras a conservação dos produtos depende de um menor teor de oxigênio para se reduzir as possibilidades de oxidação. A liofilização de produtos é feita por técnicas de vácuo. Garrafa térmica Uma das primeiras aplicações tecnológicas do vácuo foi a “garrafa térmica”, inventada no fim do século XIX por J. Dewar (e, por isso, conhecida como “vaso de Dewar”). Esse recipiente tão útil para preservar a temperatura alta ou baixa de líquidos, consiste essencialmente de um frasco de vidro de paredes duplas onde se faz um vácuo para reduzir a possibilidade de transferência de calor por condução. As paredes são, também espelhadas para reduzir as trocas de calor por irradiação e há, ainda, uma boa vedação da tampa. Lâmpada incandescente Em 1878, outra inovação tecnológica importante teve lugar: a lâmpada elétrica incandescente. Thomas Alva Edison, o grande inventor americano, desenvolveu esse tipo de lâmpada a partir da idéia de que um pedaço de fio condutor fino, a que damos o nome de filamento, se aquece e pode se tornar incandescente pela passagem de uma corrente elétrica4. Um dos problemas enfrentados por Edison em suas pesquisas foi o de descobrir um material que suportasse temperaturas muito elevadas, da ordem de 2000 oC sem que se fundisse. Tentou alguns tipos de metais como a platina, depois o carbono e ligas de metais. As primeiras lâmpadas com razoável eficiência acabaram tendo filamento de carbono. Hoje usa-se tungstênio ou ósmio, ou ligas desses metais, as quais podem atingir temperaturas muitos elevadas sem derreter. Mas existe um problema sério: um metal aquecido, na presença de oxigênio sofre um processo químico de oxidação, fazendo com que, no caso da lâmpada, o filamento se rompa. Por isso é necessário envolver a lâmpada num receptáculo de vidro e retirar uma boa quantidade de ar de dentro desse ambiente onde o filamento vai brilhar. E assim era feito com as primeiras lâmpadas. Ocorre, porém, que um material aquecido, quando se encontra num ambiente de baixa pressão, tem mais facilidade para sublimar, isto é, passar diretamente da fase sólida para a gasosa - fenômeno às vezes denominado, também, de “evaporação”. E isto é o que acontece com o filamento altamente aquecido que passa a se evaporar e os átomos evaporados aderem na parte interna do invólucro, reduzindo a eficiência luminosa da lâmpada. O filamento sendo reduzido de espessura tem uma vida mais curta. Uma solução é reduzir a temperatura do filamento isso, porém reduz a quantidade de luz que uma lâmpada incandescente pode emitir pois uma boa parte da energia elétrica absorvida pelo filamento é transformada em calor e, quanto maior for a temperatura, maior é a proporção de luz que ela pode emitir em relação ao calor dissipado - maior, portanto, a sua eficiência. A solução é retirar o ar com bombas de vácuo e, depois, introduzir um gás na lâmpada que não reaja quimicamente com o filamento, aumentando, pois a pressão e permitindo aumentar a temperatura do filamento sem que o mesmo evapore muito. 11 As lâmpadas atuais5 apresentam um vácuo reduzido pela presença de uma mistura de nitrogênio e argônio, o que faz com que a pressão no interior da lâmpada seja maior e a evaporação do filamento seja reduzida, mesmo com temperaturas de aproximadamente 2500oC. As lâmpadas incandescentes tiveram uma evolução muito interessante nos últimos tempos. Hoje existem, também, as lâmpadas do tipo “halógeno” nas quais é colocado, dentro da lâmpada, um gás que reage quimicamente com os átomos evaporados do filamento e fazem com que o metal volte a se depositar sobre o mesmo. Isso permite lâmpadas que funcionam com temperaturas ainda mais elevadas e produzem, portanto, mais luz com o mesmo consumo de energia elétrica que as lâmpadas incandescentes comuns. Não devemos confundir essas lâmpadas halógenas com as “lâmpadas fluorescentes”. Estas não produzem a luz por um filamento aquecido. Trata-se de um tubo de vidro onde existe vapor de mercúrio a baixa pressão e uma descarga elétrica nesse vapor de mercúrio produz uma certa quantidade de radiação ultravioleta que, atuando no revestimento interno do tubo, faz produzir luz por um fenômeno denominado de “fluorescência”. Neste caso, também a tecnologia de vácuo é importante, pois a descarga sobre o mercúrio deve ocorrer a baixa pressão e para isso elétrons e átomos carregados (íons) devem ser capazes de percorrer o tubo. Eletrônica As lâmpadas deram origem, no começo do século XX, às “válvulas eletrônicas”. Uma válvula “diodo” era um tubo onde havia, além do filamento, mais um outro eletrodo denominado placa. O filamento aquecido libera elétrons por um efeito denominado termoiônico. Esses elétrons podem ser recolhidos pelo outro eletrodo formando uma corrente elétrica no vácuo. Essa corrente unidirecional (daí o nome de válvula) e permite a conversão de corrente alternada em contínua e, conseqüentemente a construção de fontes de corrente contínua. O diodo era, também, utilizado para a detecção de ondas eletromagnéticas nos primeiros receptores de rádio. Mais tarde outros eletrodos (grades) foram colocados para controlar o fluxo de elétrons, possibilitando efeitos de amplificação, oscilação e chaveamento. Iniciava-se a era da eletrônica. Na época da 2a Guerra Mundial os computadores eletrônicos começaram a funcionar com válvulas. Por volta dos meados do século XX outro salto no desenvolvimento da eletrônica viria ocorrer com o aparecimento do transistor. Os transistores deram origem aos circuitos integrados e à microeletrônica onde todos os processos dependem fortemente da tecnologia do vácuo. A informática, tão importante na vida moderna, é, pois, também, o resultado do aprendizado do homem sobre o vácuo. Filmes Finos Comentamos acima que, no vácuo, os materiais evaporam com mais facilidade e isso representava um problema para o funcionamento das lâmpadas. Mas justamente a evaporação de materiais em alto vácuo pode ser útil para a produção dos “filmes finos” que são úteis nas mais variadas aplicações. Um filme fino é produzido quando se provoca a evaporação de um material, em altovácuo, e o vapor vai se condensar numa superfície mais fria, em camadas muito finas, com espessuras da ordem de nanometros. Essas camadas podem ser utilizadas para produzir micro-circuitos eletrônicos (“chips”), para proteger superfícies ou para alterar as propriedades ópticas de superfícies aumentando ou diminuindo a reflexão da luz numa superfície. Esses filmes finos têm aplicações muito interessantes no campo da óptica. Vejamos alguns exemplos: numa câmara fotográfica uma parte da luz que incide sobre a lente é refletida de volta para o meio e não vai impressionar o filme fotográfico. Colocando-se um filme fino que reduza essa reflexão, pode-se melhorar a eficiência da câmara por aproveitar melhor a luz que vem do objeto fotografado pois mais luz chega ao filme. Outra interessante aplicação des12 ses filmes anti-refletores é nos óculos onde o que se pretende é, principalmente, melhorar o aspecto estético pela redução de visibilidade das lentes de vidro ou resina. Outras vezes, pode ser necessário aumentar a reflexão de uma superfície tornando-a um bom espelho e pode-se para isso fabricar um filme fino que aumente a refletância. O processo pode ser aprimorado para produzir efeitos de aumento ou diminuição da transmissão de luz somente para determinadas cores (filtros). Em uma câmara de televisão em cores, por exemplo, três filtros desse tipo são utilizados: um vermelho, um verde e um azul, pois a combinação de imagens dessas cores primárias permite reproduzir no televisor todas as cores. Uma outra aplicação é representada pelos discos compactos (CD's) de música, computadores e DVD, onde, numa superfície tornada altamente refletora por filmes finos são gravadas informações na forma de pontos mais opacos. A leitura do disco é feita por um feixe de laser que se reflete com maior ou menor intensidade conforme a região do disco em que ele incide. Estrutura da Matéria No século XIX o uso de bombas de vácuo permitiu estudar correntes elétricas em gases a baixa pressão nos chamados tubos de raios catódicos. Isso veio permitir o aparecimento de fatos notáveis do ponto de vista científico e tecnológico: os raios-X, a descoberta do elétron e o próprio uso do tubo de raios catódicos para a produção de imagens de televisão ou monitores de computadores. O elétron foi a primeira partícula elementar descoberta em 1897 por J.J. Thomson a partir do estudo dos raios catódicos. Mais tarde, técnicas de vácuo permitiram estudar outras partículas e, já no século XX, a construção de aceleradores de partículas, como o “cíclotron”, “bétatron” e outros, veio trazer ao conhecimento fatos notáveis sobre a estrutura da matéria. E todos esses aceleradores somente funcionam graças ao vácuo que é produzido no seu interior e que permite o movimento dessas pequenas partículas sem que colidam com moléculas de ar. Lasers O mesmo estudo das descargas em gases rarefeitos permitiu a construção no início da década de 60 do século XX do primeiro laser. Os lasers a gás de baixa pressão que utilizam espelhos a filmes finos altamente refletores, ainda são os tipos mais importantes para várias aplicações industriais e médicas. Células Solares Completemos esta pequena lista de exemplos com uma perspectiva interessante numa época em que a produção de energia elétrica é uma exigência vital para os povos industrializados. Trata-se da busca de fontes alternativas de energia. Entre elas a energia solar. Esse tipo de energia pode melhor ser utilizado se for produzida energia elétrica diretamente da luz solar. Isto é feito com as células foto-voltaicas, também denominadas células solares que podem ser produzidas pela deposição de determinados filmes finos sobre silício, naturalmente em alto-vácuo. Muitos outros assuntos poderiam ser comentados, ainda: • o estudo do espaço cósmico onde um vácuo muito melhor que os melhores sistemas na Terra podem produzir existe entre os astros oferece uma possibilidade interessante de estudo do vácuo; • no nosso próprio corpo temos uma bomba de vácuo representada pelos pulmões; • a fabricação de medicamentos usa sistemas de vácuo no processamento e para garantir limpeza tão boa quanto possível. 13 6. CONCLUINDO E DEIXANDO ALGO PARA PENSAR Neste pequeno passeio pelas idéias sobre o “nada” a que chamamos de vácuo, vemos que embora o vácuo perfeito não exista, as aproximações que dele temos permite não só que compreendamos melhor a natureza mas que também tenhamos acesso a tecnologias cada vez mais importantes para a vida moderna. Apesar de conhecermos, sobre a matéria, um pouco mais que os gregos de 2500 anos atrás, certamente ainda muita especulação pode ser feita sobre o vácuo que é a ausência completa de matéria. Os físicos teóricos e os filósofos especulam a respeito de coisas do seguinte tipo: algumas grandezas físicas, relacionadas com propriedades dos corpos podem ser levadas como caso limite para situação em que não há matéria. Vejamos um exemplo: sabe-se que a força entre cargas elétricas depende do meio em que as cargas estão. A propriedade associada ao meio e que vai determinar a influência dele denomina-se “constante dielétrica”. Existe uma constante dielétrica para cada material e que pode ser determinado experimentalmente. A medida que o material se torna mais rarefeito a constante dielétrica vai diminuindo e podemos determinar a tendência dessa constante para a ausência completa de matéria, ou seja, o vácuo e obter assim o valor da “constante dielétrica do vácuo”. Este é um valor finito bem determinado e uma das propriedades físicas do vácuo. A pergunta que se faz é essa: como pode o “nada” ainda ter propriedades físicas? Uma outra indagação interessante surgiu com os desenvolvimentos da Física Quântica no século XX. De acordo com essa teoria em todos os processos físicos vale o chamado Princípio da Incerteza de Heisenberg, cuja interpretação leva os físicos a supor que a lei de conservação da energia pode ser violada num intervalo de tempo extremamente curto. E, de acordo com a teoria da relatividade como matéria e energia são conversíveis uma na outra, o espaço vazio poderia conter flutuações quânticas em que partículas de matéria são criadas e destruídas continuamente. Assim, ainda que um vácuo perfeito existisse poderia deixar de ser um vácuo, pois a matéria poderia nele aparecer de forma imprevisível... Essas indagações, certamente envolvem muito de Física e Filosofia e não podemos dizer que as compreendemos muito bem. Continuamos, pois, de certa forma, como os gregos antigos a especular sobre a natureza da matéria e do mundo, com a certeza que embora saibamos mais do que os antigos ainda falta muito por saber... Referências: 1) AURELIO BUARQUE HOLANDA FERREIRA – Novo Dicionário Aurélio, ed. Nova Fronteira, 1ª Ed, 14ªImpressão, Rio de Janeiro, sem data. 2) MORTON MOTT-SMITH – Principles of Mechanics Simply Explained, Revised Edition, Dover Publications, New York, 1963. 3) AMERICAN VACUUM SOCIETY – History of Vacuum Science and Technology, published in the 30th Anniversary of AVS, 1984. 4) MATTHEW JOSEPHSON – The Invention of the Electric Light, Scientific American, 201, 5, 98 (1959). 5) JOHN F. WAYMOUTH – Light Sources, publ. Encyclopedia of Lasers and Optical Technology, Robert A. Meyers, Ed., pg. 227, Academic Press, San Diego, 1991 Sugestão para leitura: verbete – Vácuo – Enciclopedia Mirador Internacional, vol.20, pg. 11273, Encyclopaedia Britannica do Brasil Ltda, São Paulo e Rio de Janeiro, 1979. 14