Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos QUESTOENS APOLOGETICAS31 Evanildo Bechara (UERJ, UFF, ABL e ABF) ROSÁRIO, Pe. Manuel da Penha do. Língua e inquisição no Brasil de Pombal – 1773. [1ª edição]. Introdução e notas do Prof. José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Eduerj, 1995, XXIII + 95 p. ([email protected]) Com o título de Língua e Inquisição no Brasil de Pombal o Prof. José Pereira da Silva oferece-nos pela terceira vez – sendo esta a primeira em livro – o texto Questoens Apologeticas, atribuídas ao Pe. Manuel da Penha do Rosário, presumivelmente datado de 1773, em que o sacerdote da Ordem de Nossa Senhora das Mercês, diante de críticas a ele dirigidas, protesta junto ao Tribunal da Inquisição seu zelo pela fé cristã, pela Santa Igreja e pelo fiel respeito ao serviço real português. A edição crítica do texto setecentista, códice 7,1,19 da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, apareceu inicialmente como dissertação de mestrado, apresentada na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e depois, em 1987, com “introdução crítica e sua leitura diplomática, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro” seguida, em 1994, de “versão atualizada do mesmo texto, nos Anais da Biblioteca Nacional”. Informa-nos o editor que Anteriormente a este texto, o autor havia escrito uma versão mais extensa e em latim, hoje perdida, que lhe serviu de defesa perante o Tribunal da Inquisição, diante do qual fora acusado e incriminado por ensinar a doutrina cristã aos índios em sua língua vulgar. Daquela versão resultaram as Questoens Apologeticas, o mais volumoso e consistente documento sobre a imposição da língua portuguesa aos indígenas brasileiros... (p. XVIII). 31 Resenha crítica transcrita de Confluência: Revista do Instituto de Língua Portuguesa. N° 11, 1° semestre de 1996. Rio de Janeiro: Liceu Literário Português, 1996, p. 115-118. 132 Revista Philologus, Ano 11, N° 33. Rio de Janeiro: CiFEFiL, set./dez.2005 Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos Infelizmente o editor não extraiu das fontes históricas o necessário fundamento para situar a essência da defesa do consciente e abnegado sacerdote. Não lhe foi possível ao Prof. José Pereira compulsar, por exemplo, a Colección de Documentos para la Historia de Formación Social de Hispanoamérica 1493-1910 do historiador alemão Richard Konetske, professor catedrático de história ibérica e latino-americana da Universidade de Colônia, obra publicada em três volumes, pelo C.S.I.C., Madrid, 1953-1962, de cujos dados fundamentais se aproveitou para escrever seu artigo clássico na literatura especializada Die Bedeutung der Sprachenfrage inder spanischen Kolonisation Amerikas (Jahrbuch für Geschichte von Staat, Wirtschaft und Gesellschaft Lateinamerikas, Bd. 1, Köln-Graz, 1963, S. 72-116). Os documentos pateteiam o permanente propósito das coroas espanhola e portuguesa de que fossem as línguas indígenas o veículo da missão evangelizadora. Assim é que Felipe II insistia nesta utilização, numa lei de 19 de setembro de 1580. Para atender a esse desideratum criaram-se cátedras nas universidades de Lima e do México, em que se habilitariam padres e missionários. Segundo o documento régio, ninguém podia ordenar-se sem a comprovação de que se havia suficientemente habilitado nesses cursos para pregar e proceder ao trabalho sacerdotal nesses idiomas indígenas que, em se tratando daquelas universidades, seriam o quíchua e o náuatle. Daí as contínuas obras gramaticais e dicionários sobre variados idiomas indígenas, elaboradas com especial freqüência pelos missionários franciscanos e jesuítas, como assinala Konetzke (p. 78). Mesmo antes de Felipe II, insistiam nessa tecla de utilização das línguas indígenas no trabalho de evangelização o 1° Concílio de Lima (1552), o 1° Concílio do México (1555) e o Sínodo de Quito (1570), alguns dos quais lembrados pelo Pe. Manuel nas Questoens, ainda que seu maior apoio venha do Sagrado Concílio Tridentino (terminado em 4 de dezembro de 1563): Os autores espanhóis julgam tão necessária em os párocos dos índios a inteligência da língua deles, para nela os instruírem, segundo, não só o Concílio Tridentino e um provincial de Lima e, se me não engano, também um sinodel (sic) de Quito (...) (p. 26). Abro aqui um parêntese para comentar a nota 34 que acompanha o trecho atrás citado. Diz a nota: “Esse Concílio foi realizado Revista Philologus, Ano 11, N° 33. Rio de Janeiro: CiFEFiL, set./dez.2005 133 Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos em cinco sessões nos anos de 1582 e 1583”. Se a nota faz alusão ao Tridentino, cabe esclarecer que esse maior acontecimento histórico do século XVI, convocado por Paulo III, ocorreu de 1545 a 1563, celebrado em dez sessões. Nas partes integrantes do temário da Questão 8 (p. 18 e ss.), insiste o Pe. Manuel em mostrar que o bispo D. Fr. Miguel de Bulhões, ...o que formulou o original do Diretório dos Índios, em que dispôs que a eles se introduzisse a língua portuguesa e, para isso, se-lhes (sic) erigissem também escolas, em os capítulos 21 e 22 da mesma pastoral, que, com sumo zelo, tratam da doutrina cristã, se esqueceu totalmente da dita língua portuguesa (o sublinhado é meu). E o fez sem dúvida, porque, se no Diretório referido quis houvessem (sic) providências para a civilidade temporal dos tais homens, nem por isso desejou embaraçar-lhes os meios de sua salvação, expondo-se as leis divinas e eclesiásticas e as da natureza e caridade, e não deixando de conhecer que o Sagrado Concílio de Trento, como se diz em a 1ª questão, não só aos párocos obriga, mas também a ele, como a bispo, entre os demais bispos, a instruírem para a recepção dos sacramentos e observância dos preceitos divinos aos seus diocesanos, em a língua vulgar que necessária for e proporcionada à capacidade deles (p. 21) Na Questão 9ª alude à hipótese de que se insurgem contra o rei o pároco que instrui aos índios na língua vulgar deles, hipótese daqueles diretores de que o sacerdote afirma que “lendo o Diretório, nele não refletem”. Deve-se o fato a que não fizeram esses diretores a importante distinção, que o Diretório estabelece, entre o trabalho de evangelização sob a responsabilidade intrínseca dos religiosos, e o trabalho de civilidade a cargo das escolas públicas, constituído do ensinar aos menos “a ler, escrever e contar, na forma que se pratica em todas as escolas das nações civilizadas” (p. 32) e às meninas “a ler, escrever, fiar, fazer renda, costura e todos os mais ministérios próprios daquele sexo” (ibid.). Nesse trabalho de evangelização realizado pelos sacerdotes sempre foi defendida pela Igreja e pela Majestade Real a utilização da língua vulgar “se dela tiverem necessidade [suas ovelhas], como de presente a têm os índios” (p. 30). Para o trabalho de civilidade se introduzirá a língua portuguesa. Todavia essa distinção foi mal interpretada pelos que leram o § 6 do Diretório dos Índios, onde “manda El-Rei nosso senhor, que os párocos não instruam aos tais homens senão pelo português”, mas, adianta o Pe. Manuel, “sem razão, por134 Revista Philologus, Ano 11, N° 33. Rio de Janeiro: CiFEFiL, set./dez.2005 Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos que o dito parágrafo não compreende ao párocos, mas como se prova com o mesmo parágrafo aqui expresso e refletido” (p. 30). Refletindo sobre a melhor interpretação do dito parágrafo, o sacerdote vai referir-se depois à introdução da língua portuguesa no trabalho de civilidade, ratificando a filosofia do Diretório, que declara: Sempre foi máxima inalterável, praticada em todas as nações que conquistaram novos domínios, introduzir logo nos povos conquistados o seu próprio idioma, por ser indisputável que este é um dos meios mais eficazes para desterrar dos povos rústicos a barbaridade dos seus antigos costumes e ter mostrado a experiência que, ao mesmo passo que se introduz neles a língua do príncipe que os conquistou se-lhes (sic) radica também o afeto e a veneração e obediência ao mesmo príncipe (p. 30-31). O Pe. Manuel, feita a distinção, sabe dar o devido valor a que se “introduza” a língua portuguesa entre os índios: 46. Este o parágrafo com que, refletivo, se prova não se compreenderem nele os párocos com as suas instruções espirituais. Porque, refletivo ele, circunspectamente, se convence não respeitar aos espiritual cristianismo dos índios, mas à temporal civilidade deles e, por isso, tende a introduzir entre eles a língua portuguesa, santa, útil e saudavelmente. Pois, louvável é o zelo do príncipe que quer sejam civilizados e polidos os seus vassalos e, para isto, lhes provê os meios conducentes. Útil é também que saibam a nossa língua, para a fácil e cômoda comunicação e amizade conosco. E santo, finalmente, é que entendam a mesma língua, para com ela se constituírem capazes das nossas artes, ciências, livros e das demais cousas que ao bem temporal e eterno deles pertencem, dos quais, certamente, se privam, não sabendo a nossa mesma língua (p. 31-32) Postas as coisas nos seus devidos termos, sinto discordar dos que vêem nas Questoens Apologeticas do Pe. Manuel da Penha do Rosário “documento (..) de extrema importância para a história da língua portuguesa”, e, muito menos, “o mais volumoso e consistente documento sobre a imposição da língua portuguesa aos índios brasileiras” (XVIII), como o é “para a história política e religiosa da Amazônia” (IX). Sabendo-se que o texto data de aproximadamente 1773, segundo os bons argumentos do Prof. José Pereira, pertence a época tardia para se falar em “imposição da língua portuguesa”, já que, nesse século XVIII, como bem nos ensina Serafim da Silva Neto, ao se referir ao período que vai da metade do século XVII até os meados do século seguinte: O idioma dos descobridores, com seu alto prestígio de língua escrita e rica literatura, foi absorvendo os focos não românicos: os episódios fa- Revista Philologus, Ano 11, N° 33. Rio de Janeiro: CiFEFiL, set./dez.2005 135 Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos lares africanos e a pertinaz língua geral, que só muito lentamente foi cedendo terreno (Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil, 4ª ed., p. 78). No que toca à reprodução do texto, o Prof. José Pereira se houve bem; só estranho o uso do hífen para marcar as seqüências pronominais se-lhe, se-vos, se-me, prática única na edição. Também nem sempre se explica a utilização dos colchetes quadrados para indicar os “acréscimos conjeturais do editor’, como passagens da natureza de “E para mais eficazmente aprender[em] e aproveitarem os frutos...” (p. 12); “(...) haverá em todas as povoações duas escolas [públicas] (...)” (p. 32); “Se peca o pároco [no caso] em que, aconselhadas dele as mantilhas brancas (...)” (p. 62); “...) por não ver sua mulher em mangas de camisa entre outras e [por] não ter bertanha (...)” (p. 63). No primeiro exemplo, trata-se de uso comum do autor que, na coordenação de dois infinitivos, só um leva a marca de flexão, consoante se pode ver em: “Sem um nem outro senhor me castigar nem repreenderem (...)” (p. 50); “(...) a certos índios descidos dos matos, por intérprete os instruísse em a sua língua, a fim de se batizar e cristianizarem”. (p. 52); “(...) necessitam os homens, extremamente, fazer com Deus amizade, viver e morrerem no amor divino...” (p. 60). Mais difícil é aceitar a conjetura, freqüente no texto, portugues[a]mente, contrariando a historia da língua. 136 Revista Philologus, Ano 11, N° 33. Rio de Janeiro: CiFEFiL, set./dez.2005