ISSN: 1984 -3615 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE I CONRESSO INTERNACIONAL DE RELIGIÃO MITO E MAGIA NO MUNDO ANTIGO & IX FÓRUM DE DEBATES EM HISTÓRIA ANTIGA 2010 O CRISTIANISMO COPTA: UMA FACE PARTICULAR DO MULTICULTURALISMO CRISTÃO Angela Cristina Sarvat de Figueiredo1 Quando nos deparamos com estudos da História da Igreja nos primeiros séculos do Cristianismo, devemos considerar, primordialmente, uma época em que a Igreja viveu no âmbito da cultura greco-romana. Do nascimento de Cristo até fins do século VII quando do sínodo de Trulano de Constantinopla, época denominada Antiguidade Cristã, o cristianismo havia se difundido por todo o Império Romano e já ganhava também novos espaços fora das fronteiras do Império. Se na África romana contavam-se muitas sedes episcopais no fim do século I, no Egito há referências importantes sobre a Igreja de Alexandria que teria sido fundada por São Marcos. O fato inegável é que Alexandria foi um pólo refletor importante de cultura cristã, tanto que se achavam em mais de 100 dioceses episcopais, no decorrer do século III na região, segundo o sínodo de Alexandria de 318. 2 O Império Romano que se estendia da Síria até a Espanha, do rio Nilo ao Danúbio, mesmo tendo criado uma vasta organização política enlaçada por um mesmo sistema jurídico e administrativo, nunca deixou de congregar culturas bastante distintas entre si. Mesmo na África, se Cartago foi um centro importante de fé cristã, impregnado de cultura e língua latina e que teve em Tertuliano (155-220) um timoneiro original porque deu à linguagem teológica uma ênfase latina bem diferente do estilo oriental, em Alexandria, centro do helenismo cristão, o universo cultural era bem diferente. Enquanto na África latina a fé se orientava para a ação, no Egito, e especialmente em Alexandria, florescia uma cultura refinada carregada de tradições mitológicas e religiosas, uma literatura especulativa que buscava unir pontos 1 Angela Cristina Sarvat de Figueiredo é doutoranda em história, pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob a orientação da Prof.ª Maria Teresa Toríbio B. Lemos. E-mail: [email protected] 2 BIHLMEYER, Karl e TUECHLE. Herman. História da Igreja. Vol. I Antiguidade Cristã. São Paulo: Edições Paulinas. p.74. 15 ISSN: 1984 -3615 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE I CONRESSO INTERNACIONAL DE RELIGIÃO MITO E MAGIA NO MUNDO ANTIGO & IX FÓRUM DE DEBATES EM HISTÓRIA ANTIGA 2010 distantes, e inclusive, tinha-se a preocupação de sintetizar a filosofia grega com o espírito evangélico. Assim, o Egito era permeado de deuses, sincretismos, antagonismos e até mesmo de aparentes contradições filosófico-religiosas. Daí ser um lugar tão interessante e merecedor de um olhar mais apurado. A religião tradicional dos egípcios foi uma das grandes expressões do mundo antigo. Os antigos egípcios criaram várias teorias sobre a criação da vida, assim como sobre o mundo dos deuses e sua influência no pensamento humano; modelaram os aspectos divinos da realeza e identificaram características humanas nas divindades; definiram o papel dos sacerdotes na comunidade e, acima de tudo, afirmaram outra dimensão dos homens ao crerem na eternidade e na vida além-túmulo. Essa profunda experiência do pensamento religioso no Egito Antigo foi tão importante que produziu uma identidade religiosa-cultural transportada por milênios, assim como influências e reconhecimento duradouros sobre o mundo exterior. Para a História Religiosa, é particularmente visível a influência religiosa egípcia sobre certos aspectos das religiões do mundo greco-romano, como se pode constatar através do prestígio e popularidade da deusa Ísis e do seu culto em diversas partes do mundo grego, como a antiga Mesopotâmia, e do Império Romano como em templos na Inglaterra. A religião foi um dos domínios, no mundo e na cultura helenística de Alexandria, em que a impregnação egípcia foi surpreendente. Nos últimos séculos antes da era cristã, por exemplo, havia se estabelecido uma certa fusão de deuses gregos e divindades egípcias, a ponto de existir uma tríade formada por Serápis como Deus-Pai, Ísis como Deusa-Mãe e Harpócrates como Deus-Filho. Em Alexandria, Serápis, antigo deus Osíris ou Osírapis, era representado por um velho barbudo similar a Zeus. Ísis, deusa primordial do Egito, era apresentada com uma túnica grega; e, Harpócrates, nome grego de Hórus, o filho de Isis, era posto como uma criança. Essa tríade era de tamanha importância que seu alcance se estendeu às ilhas do Egeu, como também a terras muitos distantes do mundo grego. Principalmente a figura de Ísis foi venerada em todo o mundo greco-romano, desde a Gália, Irlanda, Espanha, Alemanha até a Ásia Menor e parte do Oriente. Com o advento do cristianismo, já na era 16 ISSN: 1984 -3615 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE I CONRESSO INTERNACIONAL DE RELIGIÃO MITO E MAGIA NO MUNDO ANTIGO & IX FÓRUM DE DEBATES EM HISTÓRIA ANTIGA 2010 romana, podemos constatar a magnitude da influência egípcia com a sobrevivência de Ísis, identificada em estátuas que serviam como imagens da Madona. Se a preponderância da cultura egípcia, inclusive no âmbito religioso, já vinha declinando há algum tempo, a derrota de Cleópatra e Marco Antônio para César, na Batalha de Actium em 31 a.C., ao garantir a supremacia política da Roma Imperial também representou uma derrota dos deuses egípcios. Entretanto, se gradativamente o Egito viu-se infiltrado cada vez mais pela cultura romana, representou , também, um espaço privilegiado para a propagação de uma outra religião de salvação: o Cristianismo. Assim, a experiência religiosa tradicional egípcia posta na paixão de Osíris, o luto de Ísis e a ressurreição de seu esposo, aliados às preocupações com a vida além-túmulo, foram fatores preponderantes para disseminação do cristianismo, na medida em que, em alguns aspectos, as duas religiões uniamse, como no ideal de esperança para os sofredores e no reconhecimento de identidade dos seus deuses/deus com a natureza humana. A assimilação do Cristianismo em Alexandria, não foi um fenômeno do acaso. Nesta parte do Egito, desde a fundação da cidade, havia uma cultura multiétnica. Várias línguas eram faladas na cidade: o grego, em seus vários diletos, era a mais difundida; o egípcio era a língua falada nas comunidades nativas, enquanto que entre os judeus predominava o hebraico “clássico” e o aramaico, além de outras línguas semíticas. Além disso, importa lembrar que a forte presença judaica em Alexandria foi razão suficiente para a tradução grega do texto da Bíblia, conhecida como “Septuaginta” e elaborada entre os séculos III e I a.C. Essa tradução da Bíblia hebraica para o grego koiné foi tão importante que serviu de base para várias traduções bíblicas latinas, foi utilizada para versões para o eslavo eclesiástico e para Héxapla de Orígines, e como fonte direta para as versões para as línguas orientais como o armênio e copta do Antigo Testamento. Portanto, podemos facilmente explicar pelos fundamentos bíblicos dos habitantes alexandrinos as razões da rápida assimilação e difusão do cristianismo naquela cidade. 17 ISSN: 1984 -3615 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE I CONRESSO INTERNACIONAL DE RELIGIÃO MITO E MAGIA NO MUNDO ANTIGO & IX FÓRUM DE DEBATES EM HISTÓRIA ANTIGA 2010 Outros aspectos também precisam ser considerados para a expansão da nova religião cristã no Egito e em todo o mundo mediterrâneo. Temos que lembrar que havia uma crise religiosa em todo o mundo não cristão, cujas religiões tradicionais não respondiam e satisfaziam as necessidades espirituais dos povos da época. Na verdade, essa crise religiosa crescia tanto no Egito como em outras partes do Império Romano. Muitos historiadores explicam essa crise de identidade religiosa das populações com as várias religiões do Império em função das desigualdades sociais e crises econômicas. A “felicidade” proporcionada pelas riquezas materiais beneficiava, cada vez mais, uma minoria de privilegiados. Até no Egito, convivia-se com uma concentração maior da propriedade das terras e consequente direito de coletar impostos por esses proprietários. Essa tendência à formação de uma sociedade dominada e organizada em torno dos grandes proprietários de terras opunha-se um aumento de despossuídos que tendiam a se agrupar em torno desses potentados, acreditando na sua proteção e em troca da disponibilidade de suas pequenas propriedades. Ao mesmo tempo, inaugurava-se uma divisão maior no conjunto dos cidadãos entre humiliores e honestiores (os humildes e os notáveis), ou seja, entre duas categorias segundo a fortuna e o nível social, fato que conduzia a dois pesos e duas medidas em termos de justiça. Assim, podemos explicar a crescente adesão a uma nova proposta religiosa cuja promessa de felicidade acolhia todos os homens e, inclusive de forma inversa aos seus bens terrenos. Não podemos deixar de recordar que a difusão do Cristianismo aconteceu no conjunto da Bacia Mediterrânea onde vigorava uma economia fundamentada na escravidão. As mulheres e crianças não afortunadas também eram penalizadas com a exclusão social na sociedade greco-romana, marcadamente machista e brutal. Não era estranho, portanto, que o Evangelho respondesse a uma expectativa profunda dos homens nos primeiros séculos da nossa era. A aparição e difusão do Cristianismo, no Egito, merecem ser analisada de forma cuidadosa. Importa assinalar, sobretudo, que a adoção da língua copta pelo cristianismo foi essencial na proliferação das comunidades cristãs na região, ao mesmo tempo em que relegou 18 ISSN: 1984 -3615 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE I CONRESSO INTERNACIONAL DE RELIGIÃO MITO E MAGIA NO MUNDO ANTIGO & IX FÓRUM DE DEBATES EM HISTÓRIA ANTIGA 2010 a segundo plano as religiões romanas, principalmente àquela fundamentada no culto ao imperador. Na verdade, pouco ainda é conhecido por nós sobre a propagação do cristianismo em terras egípcias, mas com certeza o cristianismo copta desempenhou um papel histórico ativo, gerou inúmeros embates e exerceu notável influência sobre seus vizinhos. Paradoxalmente, constatamos que as épocas onde ocorreram perseguições religiosas mais duras aos cristãos foram também as épocas em que se afirmaram ou cresceram os números de fiéis. No Egito, particularmente, foi na época do imperador Diocleciano (303), quando o culto ao soberano atingiu o apogeu e quando as perseguições aos cristãos foram implacáveis, que marcamos o nascimento da era copta. Na instância seguinte, sob o governo de Constantino quando a tolerância religiosa foi instaurada, a história do cristianismo, no Egito, definiu-se por uma estreita aproximação entre Alexandria e Constantinopla. Se a paz da Igreja, estabelecida em 313 por Constantino, assinalou o início da “Igreja Constantiniana”, ou seja, um novo modo de relações entre Igreja e Estado que se considerava cristão, inaugurou-se ali, uma longa era de interdependências entre Estado e Igreja. A partir daquele momento, seguiram-se múltiplas interferências recíprocas, mas para a Igreja representou, especialmente, um aprisionamento a liames políticos governamentais e a permanente contrapartida de sustentáculo ideológico para esses sistemas. Assim, a partir do momento em que a religião cristã tornou-se oficialmente a religião imperial romana sob Teodósio, em 380, o imperador tentou regulamentar os conflitos doutrinais, de modo a sobrepor à unidade jurídica do Império uma uniformidade religiosa, entendida como ortodoxia. No Egito, a educação religiosa, milenarmente, exigia que a língua do país fosse utilizada como língua litúrgica. Assim, tanto o cristianismo como outras religiões na região, a partir da nossa era, adotaram o copta. A língua copta representou o último estado da antiga língua egípcia, acrescida de algumas palavras gregas e latinas. Era escrita não em signos hieroglíficos, mas em letras gregas. O alfabeto copta compreendia 24 letras gregas e sete 19 ISSN: 1984 -3615 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE I CONRESSO INTERNACIONAL DE RELIGIÃO MITO E MAGIA NO MUNDO ANTIGO & IX FÓRUM DE DEBATES EM HISTÓRIA ANTIGA 2010 signos derivados do Demótico (antiga escrita egípcia utilizada pelo povo) destinados a traduzir sons próprios da língua egípcia. Surgida no século III da era cristã e adotada como língua oficial do Cristianismo Copta, tanto ortodoxo como católico, a língua Copta ainda se mantém como língua litúrgica no Egito do século XXI. O fato é que ter sido veiculado em língua copta deu ao cristianismo espaços e status populares privilegiados. Isto porque presbíteros e diáconos ao falarem em copta às classes mais humildes da população, àquelas que não tinham acesso à cultura grega das classes dominantes e que também não gozavam pela Constituição Antoniniana ou Edito de Caracala, de 212, do status de cidadãos do Império, galvanizaram-nas para a fé cristã, como também, ao confrontarem o cristianismo às religiões romanas, transformaram-nas em sinônimo de pagãs e de conotação pejorativa. A partir do momento que o cristianismo ganhou status de religião oficial sob Teodósio, a história religiosa do Egito vinculou-se diretamente à Constantinopla, ficando a cristandade sob a égide dos imperadores que guardavam para si o direito de definir e validar os dogmas a serem difundidos no Império. Na verdade, o cristianismo havia se caracterizado, desde os primórdios de sua existência, por uma certa variedade de artigos de fé e que geraram, por sua vez, divergências entre os fiéis em função de concepções e interpretações locais. Contudo, enquanto o cristianismo mantinha-se como religião minoritária, nos quadros culturais do Império, essas querelas não tinham expressão significativa, mas, ao tornar-se religião expressiva senão majoritária, o cristianismo suscitou debates que se tornaram assuntos de Estado no Império. Se para os Imperadores, a discussão religiosa – a heresia – devia ceder lugar a uma concepção ordenada e definitivamente reconhecida do que era verdadeiro e, em última instância, legitimo, em Alexandria, essa determinação unificante deflagrou discussões e tensões entre Constantinopla e o bispado, cada qual se colocando como detentor do primado da verdadeira fé ou ortodoxia. Na verdade, em Alexandria, o cristianismo ganhou, desde os primeiros séculos, um colorido muito próprio e até bem diferente de outras regiões do Mediterrâneo. 20 ISSN: 1984 -3615 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE I CONRESSO INTERNACIONAL DE RELIGIÃO MITO E MAGIA NO MUNDO ANTIGO & IX FÓRUM DE DEBATES EM HISTÓRIA ANTIGA 2010 No Egito, se por um lado, foi modelada uma importante faceta do cristianismo nascente quando pensadores locais procuraram infiltrá-lo na tradição clássica que para muitos parecia incompatível com a doutrina cristã, por outro foi adotada uma concepção cristológica que se tornou a heresia religiosa mais poderosa e popular da antiguidade cristã. Assim, no Egito, difundiu-se uma importante tendência filosófica - teológica denominada Monofisismo. O Monofisismo nasceu em Constantinopla por iniciativa de Eutiques, arquimandrita da cidade. A tese defendida postulava que Jesus comportava originariamente duas naturezas: a humana e a divina. Mas afirmava, também, que Jesus não subsistiu distinto em duas naturezas; uma vez efetuada a Encarnação só se podia considerar uma natureza: a divina. Segundo os seguidores dessa teoria, portanto, Cristo não era possuidor de um corpo igual ao nosso, mas sim, divinizado. Apesar do Concílio de Calcedônia, em 451, ter rejeitado completamente o postulado e declarado, firmemente, a existência das duas naturezas na pessoa de Cristo de forma não confusa e não transformada, no Egito o monofisismo expandiu-se, trazendo no seu bojo tendências nacionalistas cada vez mais antibizantinas. No Egito, os monofisistas são precisamente os coptas. Adotaram e conservam ainda hoje o nome de coptas, este derivado das três consoantes da palavra grega Aigyptos (g / k, p, t) e se identificam como os cristãos da velha estirpe egípcia. Existem também na Etiópia, pela proximidade com o Egito. O Monofisismo, por sua vez, mantêm-se, também, na Armênia, Síria e outros países, totalizando cerca de 16 milhões de fiéis. Ao longo de sua história, os coptas sofreram inúmeras influências culturais. Nascido num universo greco-romano, mas tendo como berço o mundo egípcio, o cristianismo copta conserva até hoje viva sua especificidade que se manifesta na vida litúrgica, nas artes e práticas culturais. Se mesmo a dominação romana não chegou a impedir os egípcios de manifestarem suas devoções às divindades tradicionais, muitas vezes veneradas de forma velada sob o manto dos cultos dos deuses greco-romanos, o advento do cristianismo também absorveu muito das culturas e tradições anteriores. Alguns autores chegam a acreditar que as 21 ISSN: 1984 -3615 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE I CONRESSO INTERNACIONAL DE RELIGIÃO MITO E MAGIA NO MUNDO ANTIGO & IX FÓRUM DE DEBATES EM HISTÓRIA ANTIGA 2010 tendências influenciadas pelo neoplatonismo desenvolvido em Alexandria abriram caminho para o monoteísmo cristão. Ao mesmo tempo, devemos levar em consideração a permanente presença das divindades tradicionais egípcias seja na aparente identificação com a trindade cristã ou mesmo na arquitetura, artes e aspectos litúrgicos coptas. Até nas orações coptas podemos identificar as preocupações egípcias pela abundância da água do Nilo, com a fertilidade e com as colheitas. As esculturas e objetos ligados às tradições religiosas e funerárias trazem ainda a marca das tradições locais como a cruz Ansata ou “Chave do Nilo” que simbolizava a vida no Egito antigo. Durante 5.000 anos no Egito, mumificaram-se os homens à imitação da forma mumificada de Osíris. Os homens acreditavam que seus corpos venceriam o poder da morte, o túmulo e a decomposição, porque Osíris os vencera. Embora o cristianismo não aprovasse a mumificação dos corpos por ser prática pagã, o processo continuou a ser usado muitas vezes entre os cristão coptas. Ao mesmo tempo, uma certa identificação de Cristo com Osíris teve lugar entre os cristãos coptas e foi posta, principalmente, na vigorosa arte paleocristã. A mensagem de transcendência cristã à vida terrena havia sido prontamente assimilada pelas massas ao ligarem a idéia de ressurreição e de vida eterna ao culto tradicional egípcio de Osíris. Os inúmeros lugares santos coptas nos remetem, até hoje, a acontecimentos bíblicos locais. Assim, a Igreja de El Mouallaga sinaliza o lugar onde José e Maria descansaram quando da fuga para o Egito, empreendida pela perseguição de Herodes. A denominada “gruta do menino Jesus” marca, por sua vez, o local onde a sagrada família teria vivido no período do exílio. Do período romano, no Egito, o cristianismo copta absorveu não só a arte, mas inclusive, o registro de uma das repressões mais rigorosas que se abateu sobre os cristãos instaurada pelo imperador Diocleciano. Assim, o ano litúrgico é calculado de acordo com a “era dos mártires” e datado a partir de 29 de agosto de 284, quando do início do reinado desse imperador. 22 ISSN: 1984 -3615 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE I CONRESSO INTERNACIONAL DE RELIGIÃO MITO E MAGIA NO MUNDO ANTIGO & IX FÓRUM DE DEBATES EM HISTÓRIA ANTIGA 2010 Um aspecto fundamental do espírito e das práticas religiosas egípcias influenciou o cristianismo dos primeiros tempos e proporcionou uma experiência inovadora que se revelou fundamental para o desenvolvimento da Igreja: o monaquismo. Considerando a vida mundana como fonte e ocasião do pecado, os cristãos do Egito dos séculos III e IV cultivaram, de modo sistemático, a prática de isolar-se mundo, tanto sozinhos como em comunidades religiosas pequenas. A inspiração para essas experiências e comunidades parece ter sido encontrada em vivências religiosas no Egito pagão e entre alguns judeus da região. Mas o fato é que essas práticas passaram a ser o pilar de um novo movimento conhecido como monasticismo. Podemos distinguir muitas etapas e personagens na história do monasticismo. Embora não tenhamos como objetivo nos determos sobre elas, vale citarmos Paulo de Tebas (234-347) como um eremita importante que agrupou alguns anacoretas; Santo Antão (251-356) considerado o grande “patriarca” do monaquismo por ter fundado algumas comunidades vinculadas pelo prestígio de um líder; e Pacômio (276-349), tido como inaugurador do cenobitismo, movimento que submetia homens e mulheres a uma rigorosa disciplina, vida voltada ao trabalho e orações. Essas comunidades estavam organizadas em torno de uma figura central denominado abade, obedeciam a regras e executavam tarefas pré-determinadas. O monaquismo cristão, tendo suas raízes fincadas no próprio cristianismo egípcio ou copta, aos poucos se transformou no grande baluarte do monofisismo copta frente às decisões impostas por Constantinopla a um Egito relutante em aceitá-las. Poderíamos mesmo entender o monasticismo como o grande foco de resistência às pressões bizantinas, a ponto de garantir à Igreja monofisista o papel de única igreja oficial durante anos, no Egito.Ao longo do tempo, também, o monaquismo foi adquirindo outros coloridos nas várias regiões por onde se alastrou, como na Síria, Palestina e Ásia Menor, até a ponto de ganhar características bem marcantes como no sistema desenvolvido, posteriormente, na Europa medieval. 23 ISSN: 1984 -3615 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE I CONRESSO INTERNACIONAL DE RELIGIÃO MITO E MAGIA NO MUNDO ANTIGO & IX FÓRUM DE DEBATES EM HISTÓRIA ANTIGA 2010 Não é possível, no âmbito deste breve relato, desvendar inúmeros aspectos do cristianismo africano egípcio. O fato mais importante é que ali inúmeras culturas e correntes se encontraram: a egípcia, greco-romana, bizantina e até a muçulmana pelo estabelecimento dos árabes na África do Norte. Todas elas se interligaram, se misturaram e, até hoje, se confundem. O mais interessante é que o cristianismo copta deixou um legado de simbiose e de pluralidade cultural à cristandade de todos os tempos que é de uma riqueza muito pouco conhecida por nós. 24 ISSN: 1984 -3615 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE I CONRESSO INTERNACIONAL DE RELIGIÃO MITO E MAGIA NO MUNDO ANTIGO & IX FÓRUM DE DEBATES EM HISTÓRIA ANTIGA 2010 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMARAL, Emanuel d’Able do, Dom. Introdução à História Monástica. Salvador: Edições São Bento, 2006. AUBERT, Roger. Nova História da Igreja. Vol.I. São Paulo: Vozes, 1968. BIHLMEYER, Karl; TUECHLE, J. História da Igreja: A Antiguidade cristã. Vol. I. São Paulo: Paulinas, 1964. COMBY, Jean. Para ler a História da Igreja: das origens ao século XV. São Paulo: Loyola, 1993. GUILLAUMONT, A. Aux Origens du monaquisme chrétien. Belle-fontaine: Bégrolles, 1979. HAMMAN, A.G. 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