Trabalho escravo na produção pecuária: São Francisco de Paula de Cima da Serra (Rio Grande de São Pedro, 1850-1871). Luana Teixeira (PPGH-UFSC) A comunicação que será apresentada faz parte do projeto de mestrado que estamos desenvolvendo sobre as relações sociais nas fazendas pecuaristas do distrito de São Francisco de Paula de Cima da Serra, na província do Rio Grande de São Pedro, meados do século XIX1. O foco central da análise são as relações de trabalho que se desenvolveram nestas fazendas. Apresentaremos aqui os resultados parciais produzidos principalmente através da análise de inventários post mortem encontrados para o distrito entre os anos de 1850 e 18712. Quando o projeto foi iniciado, constatamos a inexistência de bibliografia suficiente sobre a região que pudesse nos dar aporte para seguir adiante a pesquisa. Embora soubéssemos que a produção de gado vacum era historicamente a principal atividade produtiva, nada mais podíamos afirmar sobre a organização econômica local e a inserção no mercado regional. Optamos por realizar um levantamento quantitativo nos inventários post mortem identificando padrão de posse escravo, tamanho das riquezas, estrutura de riqueza e produção. Além destes dados que serão apresentados adiante, a utilização qualitativa dos inventários, identificando relações de trabalho livre e escravo, estrutura das famílias 1 O projeto está sendo desenvolvido junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina, financiada pelo CNPq. Prévia deste texto foi apresentada no III Congresso de Pós-Graduação em História Econômica – USP. São Paulo, FFLCH-USP, dezembro de 2006. 2 São Francisco de Paula era distrito da vila de Santo Antônio da Patrulha durante o período em questão. No Arquivo do Estado do Rio Grande do Sul –APERS- os processos relativos a São Francisco estão juntos com os outros distritos de Santo Antônio e nem sempre ao longo do processo pôde-se averiguar a localização exata do inventariado. Utilizamos três caminhos para definir a inclusão dos processos em nossa amostra: 1. se na descrição das terras do inventariado havia referência à localização em São Francisco; 2. se nas procurações passadas o cônjuge do inventariado ou a maioria dos outros parentes fossem moradores do distrito. Foram no total passados em vista 324 inventários, dos quais identificou-se 84 relativos a São Francisco, sendo destes 76 passíveis de quantificação. 1 senhoriais e escravas, relações financeiras regionais (...) serão fundamentais para o prosseguimento da pesquisa. São Francisco de Paula localiza-se em um amplo planalto que acaba abruptamente nos ‘peraus’ (canyons) próximos ao litoral norte rio-grandense e sul catarinense. O relevo e acidez do solo do planalto tornam a maior parte do território do distrito imprópria para a agricultura e mais favorável à produção de gado3. Nas “beiradas” deste planalto existem algumas áreas férteis, organizando a produção pecuária e agrícola das unidades produtivas não necessariamente no interior de apenas um campo4. Ao contrário da sede da Villa de Santo Antônio da Patrulha e arredores, produtores de cana e derivados, o principal produto de São Francisco era o gado. Em 1862 estima-se que o número de cabeças de gado em todo o município de Santo Antônio era de 80.4005, um número muito pequeno, tendo em vista que nas principais áreas de produção pecuária da província, um grande produtor podia possuir rebanho semelhante. De fato, São Francisco era um distrito de amplo território e pouca povoação. O recenseamento de 1872 registra 5458 habitantes no distrito, sendo cerca de 20% escravos6. Esta população espalhava-se numa área de mais de 500 mil hectares, habitando no interior de grandes fazendas, geralmente com área muito superior à sua utilização produtiva. Em 1861 a câmara municipal de Santo Antônio declara ser São Francisco o mais produtivo de seus distritos, tendo sido colhidos naquele ano 4011 alqueires de feijão, 1019 de trigo e 2500 de milho, além de centeio7. A produção escoava principalmente para Porto Alegre e regiões próximas, como o litoral sul de Santa Catarina, inclusive a produção de gado, pois não temos constatado que São Francisco participasse das rotas de tropeiros que ligavam o Rio Grande a Sorocaba. Padrão de propriedade de escravos e estrutura de riqueza. 3 Sobre a formação geológica da região, ver: UMANN, Leandro Valiente, DELIMA, Evandro Fernandes, SOMMER, Carlos Augusto & LIZ, Joaquim Daniel de. Vulcanismo ácido na região de Cambará do Sul –RS: Litoquímica e discussão sobre a origem dos depósitos. Revista Brasileira de Geociências, vol. 31, no 3, pp. 357364, set/2001. 4 Sobre a concomitância de produção pecuária e agrícola nos campos do Rio Grande de São Pedro em período anterior, ver: OSÓRIO, Helen. Estancieiros que plantam, lavradores que criam e comerciantes que charqueiam : Rio Grande de São Pedro, 1760-1825. In: Capítulos de história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre : Ed. da UFRGS, 2004. 5 Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS) - Câmara municipal de Santo Antônio da Patrulha, maço 226, caixa 121, ano 1862. 6 Recenseamento feito pelo Império do Brasil em 1872. Ver: www.ibge.gov.br. 7 AHRS - Câmara municipal de Santo Antônio da Patrulha, maço 226, caixa 121, ano 1861. 2 Em trabalho anterior buscamos traçar um panorama geral da produção historiográfica acerca da história da escravidão em regiões pecuaristas brasileiras8. Neste levantamento tomamos conhecimento da pesquisa desenvolvida por Vergolino e Versiani sobre o Agreste e Sertão pernambucanos9. Àquele tempo tínhamos apenas iniciado o trabalho de pesquisa com os inventários post mortem e decidimos seguir adiante conforme a orientação metodológica utilizada pelos autores. Deste modo pretendemos interpretar nossos dados traçando comparações com o sertão pernambucano10. O primeiro resultado a ser notado é a alta incidência de inventários com escravos arrolados dentre os bens. Relembrando sempre que inventários são uma fonte que subrepresentam a população de baixa renda, encontramos escravos em 78% dos processos. Por tratarmos de um período entre o fim definitivo do tráfico trans-oceânico de escravos e a lei do ventre livre, algumas considerações podem ser feitas para que pensemos que este índice poderia ter sido maior em anos anteriores: 1. o fim do tráfico pode ter diminuído a posse de escravos, principalmente entre pequenos proprietários, devido aos movimentos do tráfico interno em direção ao sudeste11; 2. por outro lado, o fim do tráfico poderia ter provocado a retenção de escravos tendo em vista a extinção do mercado barato de mão de obra, porém, sem que haja aumento da ‘escravaria’12. Apenas uma continuidade desta pesquisa no sentido de trabalhar os inventários em períodos anteriores poderia responder melhor à questão do comportamento dos senhores em relação à propriedade escrava nos meados do XIX, mas o 8 TEIXEIRA, Luana. Abordagens atuais: escravidão e pecuária no Brasil do século XIX. In: Encontro Estadual de História (8.:Caxias/RS : 2006) História e Violência : anais [recurso eletrônico]/ Encontro Estadual de História. – Porto Alegre: ANPUH/RS, 2006. 9 VERGOLINO, José Raimundo Oliveira; VERSIANI, Flávio Rabelo. Posse de escravos e estrutura da riqueza no Agreste e Sertão de Pernambuco: 1777-1887. In: Estudos econômicos, São Paulo, v. 33, n. 2, p. 353-393, ABRIL-JUNHO, 2003. 10 Vergolino e Versiani propõem-se a analisar posse de escravos e estrutura de riqueza num amplo período de tempo, entre 1777 e 1887. Nossa proposta é muito mais modesta, mas na medida em que alguns padrões puderam ser observados pelos autores para a região e que em algumas quantificações eles analisam por períodos, acreditamos ser possível, através da utilização de seus dados, qualificar nossa pesquisa. Não pretendemos utilizarmos-nos de uma metodologia de história comparativa, mas sim, analisar os dados de nossa amostra a luz da pesquisa mais ampla realizada para o Sertão. 11 Faltam pesquisas sobre o tráfico interno do sul para o sudeste após 1850, embora este movimento seja bastante comentado na historiografia, por exemplo: MAESTRI, Mário. Pampa Negro – quilombos no Rio Grande do Sul. In: Liberdade por um fio: histórias dos quilombos no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1996. 12 Alguns outros aspectos também podem ser considerados, como é o caso da alforria de escravos em testamento, fazendo com que escravos que eram propriedade do inventariado na hora de sua morte não constem no arrolamento de bens. 3 que é importante demonstrar é a disseminação da propriedade escrava numa região periférica de produção pecuária no período de desagregação da escravidão13. Vergolino e Versiani encontraram para todo o período em estudo (1777-1887) um total de 83% de inventários com escravos. Menos que a diferença entre as percentagens encontradas, impossíveis de serem equiparadas pela desproporção da extensão do período em questão, importa notar a altíssima incidência da propriedade escrava dentre aqueles que possuíam bens, reforçando a idéia que hoje já é bastante difundida sobre a utilização do trabalho escravo em praticamente todas as atividades produtivas do Brasil Império, inclusive na pecuária. A afirmação dos autores pode sintetizar bem a questão: “Em particular, tudo indica que quem tinha terras, no Agreste e no Sertão – e era, portanto, com toda probabilidade, produtor agrícola – em geral era dono de escravos”14. O padrão de posse de escravos constatado na amostra em que trabalhamos resultou na média de 6,6 escravos por inventário. Em contraste com os elevados números encontrados para as regiões de produção monocultora para exportação, um baixo padrão de posse é recorrente em regiões voltadas para o mercado interno15. Este número também é muito próximo ao encontrado por Vergolino e Versiani para o sertão: 6,8. A questão se torna um pouco mais clara se analisarmos a distribuição entre os tamanhos das chamadas ‘escravarias’. Tabela I – Padrão de propriedade de escravos em inventários de São Francisco de Paula de Cima da Serra, 1850-1871. Tamanho da Inventários “escravaria” Número Proporção Proporção do total (%) acumulada (Inventários com escravos) Sem escravos 2a5 6-10 11-20 Mais de 20 Total Escravos Inventariados Número Proporção Proporção do total acumulada (%) 17 - - - - - 37 14 5 3 76 62,7 23,7 8,5 5,1 100,0 62,7 86,4 94,9 100,0 112 110 68 100 390 28,7 28,2 17,4 25,7 100,0 28,7 56,9 74,3 100,0 13 Cabe notar que a faixa de inventários sem escravos tem média patrimonial abaixo da metade da média de proprietários de um a cinco escravos, demonstrando que não possuir escravos estava intimamente ligado à incapacidade efetiva de adquiri-los. 14 VERGOLINO, op. cit., p. 363. 15 Ver: FLORENTINO, Manolo; FRAGOSO, João. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia, Rio de Janeiro,, c. 1790 – c. 1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p.152; BERGAD, Laird. Escravidão e história econômica: demografia de Minas Gerais, 1720-1880. Bauru: EDUSC, 2004. 4 Observamos que tal qual no Agreste e no Sertão “predominava um escravismo de pequenos proprietários”16. Mais da metade dos proprietários de escravos não possuíam mais que cinco escravos. Por outro lado a proporção de grandes proprietários é muito baixa, apenas 5% dos inventariados constituíam aquilo que se poderia chamar de grandes escravarias, com uma média de 33 escravos cada uma. Observa-se a pouca incidência de escravarias medianas. Ressaltando este fato, importa notar que, embora tenhamos utilizado a categoria “entre 11 e 20 escravos”, os 5 proprietários desta faixa não possuem mais de 15 cativos. A amostra de inventários apresenta 67% dos inventariados como proprietários de até 10 escravos, sendo que considerados dentro do grupo de ‘inventários com escravos’ esse índice sobe para 86%. Em contrapartida apenas 5% dos inventários com escravos possuíam grandes escravarias. Isto indica: a) predominância de pequenas escravarias; b) desigualdade no acesso á propriedade escrava. Um número pequeno de grandes proprietários, que ainda assim não tinham números expressivos de escravos (a maior concentração é de 41 cativos arrolados) gera outra característica desta sociedade: 57% dos escravos da amostra pertenciam a pequenos proprietários. Em outras regiões do Brasil nas quais a concentração de escravos em grandes escravarias, trazia como conseqüência o fato de que a maioria dos escravos estivessem inseridos em grandes grupos de cativos17. No caso de São Francisco de Paula, como também ocorre no Sertão, a maioria dos escravos encontra-se em pequenos grupos de escravos. Este dado é importante para estar-se pensando a experiência dos sujeitos cativos, inseridos em grupos pequenos e estabelecendo relações de trabalho diferenciadas do eito. Como veremos adiante, isto é decorrência principalmente de condições materiais precárias, tornando inacessíveis para a maior parte da população proprietária adquirir muitos escravos. Esta característica é reforçada se analisarmos a estrutura demográfica da população cativa apresentada na tabela II. Tabela II – Estrutura demográfica da população escrava em inventários de São Francisco de Paula de Cima da Serra, 1850-1871 (valores absolutos). 16 17 VERGOLINO, op. cit., p. 361. Ver os dados apresentados para o Rio de Janeiro: FLORENTINO, op. cit., p. 87. 5 0 a 14 15 a 40 mais de 41 Total* Mulheres 87 62 21 170 Homens 75 92 27 194 Total 162 154 48 364 *Sobre o total de 364, pois 22 escravos não tiveram suas idades declaradas e não identificou-se o sexo de 4 recém nascidos Tabela III – Estrutura demográfica da população escrava em inventários de São Francisco de Paula de Cima da Serra, 1850-1871 (porcentagens). 0 a 14 15 a 40 mais de 41 Total* Mulheres 23,90% 17,03% 5,77% Homens 20,60% 25,28% 7,42% Total 44,50% 42,31% 13,19% 100% O grande índice de crianças escravas é uma característica desta sociedade e coloca pra cima o número total de escravos. Se observarmos o arrolamento dos bens perceberemos que dentre os proprietários de até 10 escravos, em 9 casos o total de escravos arrolados representam um casal de idade aproximada e crianças, enquanto outros 5 compões-se de uma mulher adulta e crianças. No total estes dois casos representam 27% dos inventários desta faixa. Isto significa que dentre os pequenos proprietários, em uma escravaria que aparentemente é constituída por cinco escravos, muitas vezes apenas um ou dois encontravam-se em idade produtiva, sendo os outros muito provavelmente filhos destes. O número de crianças também é alto na faixa com mais de vinte escravos, representando 41 do total de 100 cativos arrolados, um índice que embora abaixo da média, é representativo da importância das crianças sobre o total de escravos. Estes dados serão futuramente cruzados com outras fontes para estarmos pensando as possibilidades de formação de famílias e reprodução natural de escravos numa economia para o mercado interno. Desenvolvemos atualmente como hipótese a idéia de que neste contexto de São Francisco de Paula as relações de trabalho específicas de uma sociedade pecuária não objetivam o uso exaustivo do trabalhador em idade produtiva para a rápida inversão do investimento. Com possibilidades restritas de acesso a mão de obra escrava a racionalidade econômica de seu uso prezaria a utilização a longo prazo do trabalho, o que dentre outros fatores possibilitaria um maior acesso à família escrava. Neste caso, seria a família o resultado dos esforços do escravo para estabelecer laços sociais mais sólidos, bem como dos 6 proprietários em investirem em futuros trabalhadores escravos, tendência que pode ter sido acentuada com o fim da importação de escravos18. Outro dado importante que a tabela apresenta é o índice de masculinidade entre a população com mais de 14 anos: 143. Este dado pode estar revelando o acesso facilitado ao mercado de escravos africanos antes da abolição do tráfico trans-oceânico, o que pode ser compreensível pelas redes comerciais que ligavam o distrito a Porto Alegre e a Laguna e a proximidade do litoral. Também certamente contribui para este índice as características do trabalho pecuário, tendo no campeiro, função predominantemente masculina, uma figura chave do trabalho escravo nesta sociedade. Infelizmente, apenas uma pequena parte dos inventários identificou a nacionalidade dos cativos, impedindo uma análise quantitativa sobre o número de africanos e de crioulos. Porém, dentre os que foram identificados existem muitos crioulos entre a população adulta, e como já foi notado em trabalho anterior, uma grande parte é natural da Província de São Pedro19. É necessário aguardar novos desenvolvimentos da pesquisa, mas a documentação até o momento utilizada parece indicar o incremento da população escrava em São Francisco mutuamente pelo acesso ao mercado de africanos e pelo crescimento natural da escravaria. Seguindo a metodologia de Versiani e Vergolino, identificamos a estrutura de riqueza em São Francisco de Paula no período em questão. Nosso objetivo é avaliar a importância da propriedade escrava e do rebanho no conjunto dos bens dos inventariados, percebendo a relação entre o acesso à propriedade escrava e o total de bens possuídos, bem como identificar o investimento na produção. Utilizamos as mesmas categorias que os autores acima citados20. Tabela IV- Estrutura da riqueza em inventários de São Francisco de Paula de Cima da Serra (1850-1871)21 18 Alguns trabalhos têm refletido sobre a reprodução natural de escravos. Dentre eles: LIMA, Carlos Alberto Medeiros. Sobre as posses de cativos e o mercado de escravos em Castro (1824-1835): perspectivas a partir da análise de listas nominativas. [on line] Disponível na Internet. URL: http://www.abphe.org.br/congresso2003/Textos/Abphe_2003_77.pdf. 14/mar/2006. O autor mapeia o debate sobre a concomitância entre aquisição de escravos pelo tráfico e reprodução natural. 19 Boletim Informativo NUER/ Núcleo de Estudos de Identidades e Relações Inter-étnicas – v. 3, n. 3 – Florianópolis, NUER/UFSC, 2006. 20 Para a construção da tabela utilizamos sempre os itens presentes no arrolamento de bens. Comparamos o total de bens arrolados com os montantes apresentados para partilha, verificando sempre que estes não eram correspondentes e identificando o motivo da diferença (morte de animais ou escravos, erro do escrivão). Objetos de pequeno valor cujo uso desconhecemos foram classificados como móveis. 21 SC & T: Sítios, Casa e Terras, incluindo benfeitorias. L & S: Lavras e Safras, incluído produtos de venda no caso de um inventariado possuidor de um pequeno mercado. 7 Estratos (número de escravos) Número de Inventários Estrutura de Riqueza (porcentagem) . . Dinheiro Nenhum De 1 a 5 De 6 a 10 De 11 a 20 Mais de 20 Total 17 37 14 5 3 76 2,92% 0,13% 0,46% 1,73% 6,41% 1,83% Metais 0,78% 0,75% 0,36% 0,92% 0,55% 0,66% Móveis Equipamentos 0,35% 0,40% 1,34% 0,68% 0,88% 0,75% 0,33% 0,21% 0,35% 0,19% 0,11% 0,23% Animais 57,20% 25,44% 31,03% 21,65% 18,79% 27,17% Escravos SC & T 0,00% 27,95% 37,61% 34,85% 30,72% 29,80% 37,62% 42,26% 28,39% 37,28% 42,48% 37,94% Div Ativas 0,76% 2,70% 0,46% 2,71% 0,00% 1,56% L&S 0,04% 0,15% 0,00% 0,00% 0,06% 0,07% Subtotal 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% Div Passivas 2,67% 6,51% 3,47% 6,24% 0,00% 4,31% Iniciemos comentando alguns elementos que chamam a atenção na composição dos ativos e que também foram observados para o Sertão22: a) Participação mínima de metais e mobiliários entre os bens (1,41% em São Francisco, 2,74% no Sertão). Este índice reforça a idéia da carência de recursos materiais nestas sociedades pecuárias interioranas, bem como da pouca aquisição de bens no mercado, sendo estes produzidos, sem valor de troca, no interior das unidades produtivas. No caso de São Francisco, a idéia de serem muito parcos os recursos é reforçada pela constante adjetivação negativa dos móveis (“mesa velha”, “cadeira em mau estado”...) e a quase ausência de adjetivações positivas; b) O índice muito baixo de equipamentos produtivos (0, 23% em São Francisco, 0,20% no Sertão) leva a conclusão sobre o baixo investimento em tecnologia nas atividades produtivas, o que é comum a outras áreas do Brasil Império. No caso da pecuária, Caio Prado já notava o baixíssimo nível técnico da pecuária nordestina e rio-grandense, gerando um baixo rendimento por animal23; c) Baixa monetarização desta sociedade; d) Valor insignificante de lavras e safras (0,07% em São Francisco, 0,10% no Sertão); Observa-se que a proporção de escravos na estrutura de riqueza é bastante considerável, correspondendo a cerca de 30% do total, não superando apenas a faixa relativa a bens imóveis. É neste ponto que se encontra a maior diferença entre os dados de São Francisco e do Sertão. No caso do Sertão, as proporções de animais, escravos e CS & T são respectivamente: 23,77%; 49,05% e 20,24%. Observamos que as diferença encontrada estão marcadas principalmente pela maior proporção em relação ao total que a faixa CS & T obtém em São Francisco. Aqui nos deparamos com um problema já apontado por Nogueról et. al. quando realizou um trabalho semelhante de comparação de estrutura de riqueza no Rio 22 Sempre que citarmos à estrutura de riqueza do Sertão estaremos nos referindo à tabela 15 do artigo de Vergolino e Versiani, referente ao período 1850-1888. 23 PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1948. 8 Grande do Sul e Sertão para períodos anteriores ao nosso24. A questão das diferenças de preços das terras, animais e escravos no nordeste e no sul são fundamentais para que se possa realizar uma análise comparativa definitiva da estrutura de riqueza entre as duas regiões. Mas para o momento, importa notar a hipótese apontada por Nogueról para explicar as diferenças entre a proporção das três principais faixas de riqueza: o maior valor das terras e um maior rebanho no Rio Grande do Sul em relação ao nordeste. Aventamos estar exatamente na relação entre o tamanho e valor das propriedades no sul e no nordeste a explicação desta diferença, pois embora desconhecemos os inventários pernambucanos, sabemos que as extensões de terra no Rio Grande do Sul são muito grandes e que a qualidade das terras onde se estabelecia a produção pecuária era de um modo geral melhor que a do nordeste. Porém, quaisquer considerações conclusivas a esse respeito aguardam futuros desenvolvimentos de pesquisa. De qualquer modo, percebe-se que São Francisco não destoava da lógica de propriedade da sociedade escravista Imperial: agricultura extensiva, baixo nível tecnológico e propriedade legal do produtor direto25. Concluindo: a) A utilização da mão de obra escrava em atividades pecuárias é uma realidade no século XIX tanto em Pernambuco quanto no Rio Grande de São Pedro. b) A propriedade escrava era disseminada entre a população proprietária, embora os recursos da maioria desta população impedissem a acumulação de grandes escravarias. c) O número elevado de crianças, bem como um considerável índice de masculinidade, sugere que a reprodução da mão de obra escrava em São Francisco poderia pautar-se tanto pela aquisição de escravos no mercado como pela reprodução natural. d) A realidade material de ambas as regiões aponta para uma precariedade de vida pautada pela escassez de bens de utilidade pessoal e de luxo, de uma desmonetarização da sociedade e de poucos investimentos produtivos. 24 NOGUEROL, Luis P. F.; RODRIGUEZ, Diego; GIACOMOLLI, Ezequiel; DIAS, Marcos Smith. Elementos comuns e diferenças entre os patrimônios registrados na pecuária gaúcha e na pernambucana no início do século XIX. [on line] Disponível na Internet. URL: http://www.ppge.ufrgs.br/anpecsul2005/artigos/area4-02.pdf. 14/mar/2006. 25 FRAGOSO, João. O império escravista e a república dos plantadores: Economia brasileira no século XIX: mais do que uma plantation escravista exportadora. In: Maria Yedda Leite Linhares. (Org.). História Geral do Brasil. 9 ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000, v. , p. 144-187. 9 e) A desigualdade de acesso a bens também é marcante, sendo que estamos considerando apenas a população proprietária. O quadro que se esboça para São Francisco não difere daquilo que sabemos ser característica da formação do Brasil: poucos têm acesso a maior parte da riqueza, enquanto a maioria nada possui. f) São muitas as semelhanças entre padrão de propriedade de escravos e estrutura de riqueza de São Francisco e do Sertão pernambucano, o que contribui para a possibilidade de estarmos pensando a existência de um contexto econômico e social comum às áreas de produção pecuária do Brasil Império. 10