A formação profissional em música: uma reflexão pensada sob o ponto de vista da construção social da profissão musical Cíntia Thais Morato Universidade Federal de Uberlândia - UFU [email protected] Resumo: Faço neste texto, uma revisão bibliográfica com o intuito de fomentar a compreensão da construção social da profissão em música. O objetivo de tal fomento é entender as circunstâncias socioculturais e históricas adjacentes à formação profissional buscada nos cursos superiores de música. Uma vez que os alunos matriculados nos cursos de graduação em música já atuam profissionalmente na área, o interesse em articular tal revisão surgiu do questionamento das normas socialmente instituídas que prevêem a necessidade de se estudar e titular para depois se trabalhar. Outrossim, o veto ao Artigo 2º da Lei nº 11.769 de 18 de agosto de 2008 (que dispõe sobre a obrigatoriedade do ensino da música na educação básica) também problematiza normas socialmente aceitas pelas quais a atuação profissional deve ser filtrada pela titulação acadêmica. No tocante à construção social da profissão musical, são abordados aspectos como a precocidade da formação e da profissionalização, a multiplicidade das atuações profissionais, além do modo diferenciado com que a profissão em música se faz reconhecida mediante outras profissões tidas como de maior prestígio social. A conclusão que cheguei sobre a relevância de tal discussão para a Educação Musical diz respeito à ampliação do modo de ver a formação profissional que acontece nos cursos de graduação em música, ou seja, a formação profissional precisa ser vista para além do tempo e espaço acadêmico e para além das disciplinas curriculares, pois o modo como a profissão é construída socialmente também norteia essa formação visto que deixa marcas nos alunos – marcas que lhes dão forma. As marcas dessa dimensão social e histórica da formação profissional em música repercutem, por sua vez, no modo com que os alunos-profissionais darão continuidade (ou não) a essa construção. Palavras-chave: Formação profissional, profissão em música, construção social. 1. Introdução No ano de 2009 defendi minha tese de doutorado cuja pesquisa versou sobre a formação profissional do músico e do professor de música de alunos universitários que já atuam profissionalmente enquanto estudam. Uma das perguntas que me instigou foi: se as normas socialmente instituídas prevêem que primeiro se deve estudar e se formar para depois se trabalhar, o que possibilita que o aluno já atue profissionalmente em música enquanto cursa a graduação na mesma área? De volta à docência superior em 2010, ao discutir a Lei nº 11.769 de 18 de agosto de 2008 (“altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, Lei de Diretrizes e Bases da Educação, para dispor sobre a obrigatoriedade do ensino da música na educação básica”) com meus alunos na disciplina Estágio Licenciatura do Curso de Licenciatura em Música da 220 UFU 1 , uma onda de revolta se abateu sobre os mesmos quanto ao veto do Artigo 2º da referida Lei, o qual legislava sobre o ensino de música a ser ministrado por professores com formação específica na área 2 . Refletindo sobre essas questões, uma das alunas questionou: “Mas, se todo mundo pode tocar, dar aulas, por que, ou, para que a gente tem que fazer faculdade?” (Mariana, aula de Estágio Licenciatura 1, 06/05/2010). Nas reflexões de Mariana havia ainda a inconformidade sobre a falta de compreensão dos colegas universitários de outras áreas a respeito do que os alunos estudam no curso superior de música. Todas essas problemáticas (o veto do Artigo 2º da Lei nº 11.769, a ambigüidade da necessidade de se cursar a graduação em música, o desconhecimento do que se estuda na graduação em música por parte de aspirantes à profissionalização em outras áreas) podem ser melhor compreendidas através da revisão bibliográfica que proponho a seguir e que se respalda na busca de um entendimento da profissão musical como uma construção social. Para compreender o modo com que a profissão em música é construída socialmente na contemporaneidade, é preciso conhecer os aspectos que lhe são peculiares: a precocidade da profissionalização – que se torna possível mediante a precocidade da formação musical – e a multiplicidade de atuação dos profissionais, particularidades da profissão sob as quais se inscrevem a valorização da rede social e a estruturação intermitente. Além disso, é preciso ainda entender como a profissão musical se difere do modo com que outras profissões legitimadas socialmente se constroem. 2. Sobre a precocidade da profissionalização e da formação musical A precocidade na profissionalização em música pode ser entendida de duas maneiras: trabalhar desde tenra idade e trabalhar antes de se diplomar academicamente. O trabalho precoce em música está vinculado ao modo com que a profissão musical é reconhecida socialmente, ou seja, pela valorização de competências que se baseiam nas habilidades pessoais do músico – o saber fazer –, e tem um trajeto histórico que remonta à origem dos ofícios artesanais. Segundo Elias (1995, p. 26), na “antiga tradição dos ofícios artesanais, era comum o pai assumir o papel de mestre e ensinar ao filho as artes do ofício, talvez até mesmo desejando que algum dia o filho excedesse sua própria perícia”. Para esse autor, o caráter de ofício da profissão de músico é marcado por uma “agudíssima desigualdade social entre produtor da arte e patrono” na sociedade aristocrática europeia dos 1 Universidade Federal de Uberlândia. As “razões do veto” podem ser conferidas no endereço eletrônico http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Msg/VEP-622-08.htm, acesso em 29 de maio de 2010. 2 221 séculos XVII e XVIII, onde os músicos tinham o mesmo status dos pasteleiros, cozinheiros e criados na hierarquia da corte (ELIAS, 1995, p. 26). A partir da modernidade, as sociedades complexas reservaram um tempo e um espaço especialmente dedicados à preparação e aprendizagem de uma profissão – os tempos da infância e juventude e os espaços escolares e acadêmicos. Chamado de educação, o sistema que integra esses tempos e espaços acabou sendo naturalizado como único apropriado para esse aspecto da formação humana. Ponderando-se, no entanto, o contexto da economia produtiva em que se pautou o desenvolvimento das sociedades ocidentais industrializadas, profissões consideradas não lesivas aos seres humanos, pouco produtivas e, portanto, com baixa participação na economia – como no caso das profissões artísticas, aqui em discussão a música – seguiram uma trajetória em que puderam ser praticadas e reconhecidas sem que seus profissionais frequentassem obrigatoriamente um espaço formal de educação ou se titulassem. Atualmente, afirma Pichoneri (2006): Ao contrário da maioria das profissões, onde a educação formal é o principal caminho a ser percorrido, para o profissional da música erudita esta é apenas uma das opções de formação possíveis, ou apenas uma das etapas que compõem essa formação (PICHONERI, 2006, p. 3). Pichoneri (2006) estudou a relação entre formação e profissionalização de músicos e musicistas da Orquestra do Theatro Municipal de São Paulo; no entanto, pesquisas como as de Coulangeon (2004), Ravet (2006), Recôva (2006) e Requião (2002) permitem afirmar que o mesmo ocorre com a formação e profissionalização de músicos intérpretes populares que, quando cursam a universidade, significam-na como uma complementação dos seus estudos, “uma vez que [a universidade] não garante um saber fazer relacionado ao seu cotidiano profissional ou ao perfil almejado” (REQUIÃO, 2002, p. 110). Esses pesquisadores atestam que os músicos profissionalizam-se cedo, pois iniciam a sua formação antes de ingressar na universidade – instituição socialmente reconhecida e legitimada como preparadora da profissionalização –, aprendendo música com familiares e/ou amigos (GOMES, 2009), participando de conjuntos instrumentais como bandas de baile, bandas de rock (RECÔVA, 2006), bandas municipais ou marciais (GONÇALVES, 2007) e fanfarras (BOZON, 2000), ou ainda, em escolas especializadas 3 e/ou com professores particulares – (GONÇALVES, 2007; PICHONERI, 2006). 3 A formação institucionalizada é mais comum dentre os músicos eruditos (COULANGEON, 2004; RAVET, 2006). 222 Segundo Ravet (2006), à profissionalização precoce subjazem heranças musicais recebidas: “Os músicos cujos pais, ou um deles, também são profissionais da música têm a facilidade de quem foi criado nesse meio e conhece implicitamente suas regras” (RAVET, 2006, p. 5). Implicado nessas “regras” está o saber fazer, modo com que a profissão musical é, e se faz, reconhecida socialmente. Como afirma Salgado e Silva (2005): [...] a primazia da técnica na realização musical coloca o músico na ordem mais ampla dos possuidores de um saber técnico; como esse saber não depende da certificação acadêmica, o músico tem mais de um caminho possível de formação, inclusive o de “autodidata” (embora o prefixo “auto” possa enganar), e o da “aprendizagem informal”. Ora, o saber do autodidata, e de fato o de qualquer técnico que presta um serviço, pode ser colocado à prova a qualquer momento, pois é na eficiência de realizar um trabalho que reside seu valor (SALGADO E SILVA, 2005, p. 225). Numa profissão valorizada e legitimada pelo saber fazer, o professor é reconhecido pelas habilidades que domina, as quais crê-se poder ser ensinadas. Segundo Requião (2002), que estudou a atividade docente do músico professor, a docência faculta reconhecimento social à profissionalização em música, pois confere legitimidade ao conjunto de saberes adquiridos durante a trajetória formativa musical, bem como à atividade artística, mesmo que essa última seja irregular e não remunerada no início. Por isso, ensinar é uma “atividade percebida como intrínseca à atividade profissional do músico”, o qual pode conseguir na docência uma atuação profissional mais regular e, portanto, remuneração mais segura (REQUIÃO, 2002, p. 46). Ensinando o que sabem, posterga-se a vitrine social da profissão através de quem sabe fazer e, por consequência, da construção do ensino profissionalizante em música (VASCONCELOS, 2002). 3. Sobre a multiplicidade de atuações profissionais em música O fenômeno atual da multiplicidade de atuações profissionais em música pode ser explicado através da literatura de sociologia da música, que nos ajuda a entender porque é possível trabalhar com música antes de se formar num curso universitário. Além de intervir no arquivamento da memória musical, a repercussão que a revolução tecnológica provocou no quadro geral da produção e da consequente organização do trabalho, gerando de certa forma um desaquecimento na oferta de empregos, afetou também a profissão em música no que diz respeito às múltiplas atuações profissionais exercidas por uma mesma pessoa. Na ausência de empregos, as pessoas que possuem algum domínio musical buscam trabalhar com música, ensinando ou interpretando. 223 Nesse sentido, Coulangeon (2004, p. 23) atesta que, na França, a expansão do emprego musical é “largamente imputável a um efeito de entretenimento, resultante, de uma parte, do desenvolvimento do ensino musical que encoraja as vocações no seio das jovens gerações oferecendo-lhes oportunidades de emprego e sustento aos músicos intérpretes e, de outra parte, do crescimento dos créditos públicos ao domínio musical” – crescimento que tem sido facultado pela subvenção pública das políticas culturais francesas. Esse contexto que “encoraja as vocações musicais nas jovens gerações” tem provocado uma expansão no mercado musical, expansão que se deve principalmente à progressão do número de músicos intérpretes da música popular, e dos empregos intermitentes (contratos temporários) em música 4 . Acompanha essa expansão, entretanto, uma jornada de trabalho que permanece modesta, pois, o acúmulo dos efetivos de professores e de intérpretes gera uma corrida por postos de trabalhos precarizando os contratos e exigindo das pessoas uma flexibilidade para atuar em várias atividades musicais (COULANGEON, 2004, p. 21). Para Salgado e Silva (2005), que estudou como os músicos estudantes do Instituto Villa-Lobos da UNIRIO gerenciam a construção da profissão musical em relação com a atividade universitária, a multiplicidade de atuações profissionais é caracterizada por contextos de trabalho “transitórios”, “instáveis” e “informais”, “com temporadas de duração mais ou menos curta, e compromissos muitas vezes não formalizados por contrato, mas, em vez disso, tenuemente formados por acordos verbais, promessas ou apostas na possibilidade de sucessos” (SALGADO E SILVA, 2005, p. 148). A flexibilidade exigida pelo mercado de trabalho musical atual se caracteriza, entretanto, pela complexidade, e não pode ser vista apenas pelas questões de empregabilidade. Assim, a diversidade de experiências e a necessidade de adaptação geradas por esses contextos “transitórios e instáveis” colocam os músicos-estudantes “em contato com valores e estéticas que tendem a alargar o horizonte” (SALGADO E SILVA, 2005, p. 239), proporcionando-lhes mais autonomia musical. Essa, porém, só poderá ser gozada dependendo do maior ou menor grau de institucionalização do vínculo de trabalho. De acordo com Coulangeon (2006), a multiatividade musical é capaz de instaurar um processo de “precarização identitária” que pode ameaçar as profissões artísticas, pois, devido à instabilidade em que vivem, os profissionais podem não conseguir se realizar musicalmente 4 Segundo Coulangeon (2004, p. 20), de meados da década de 1980 para cá, o efetivo dos intérpretes da música erudita, em especial dos músicos permanentes de orquestra, permaneceu estável na França. O mesmo não se pode afirmar do Brasil, cujos cargos efetivos das orquestras têm sido substituídos cada vez mais por contratos terceirizados e temporários (SEGNINI, 2007). 224 e, por isso, não se sentirem satisfeitos com sua profissão. Por outro lado, a segurança dos cargos estáveis em orquestras, por exemplo, pode gerar um efeito contrário, pois o modo de organização mais rigidamente estruturado dessas instituições faculta a rotinização do trabalho musical inviabilizando a autonomia artística dos profissionais. Tendo visto tratar-se a profissão em música de uma profissão não regulada pela titulação, mas por “rebaixadas barreiras de entrada” na mesma (COULANGEON, 2004), e cujo mercado de trabalho, restrito, estrutura-se por meio de cargos basicamente “transitórios, instáveis e informais” (SALGADO E SILVA, 2005), a multiatividade musical configura-se também como oportunidade de construção da rede de contatos, que se torna importante baliza para a inserção profissional. De acordo com Pichoneri (2006), a rede de contatos constitui-se desde a formação dos músicos, notadamente aquelas que se estabelecem entre professor e aluno – ou entre os sujeitos que ocupam esses papéis sociais –, com o primeiro repassando alunos ao segundo ou colocando-o para substituir-lhe em suas aulas, se for o caso da docência, ou convidando-o para tocar junto consigo, introduzindo-o no mundo das bandas já profissionalizadas (REQUIÃO, 2002); e estende-se durante toda a vida profissional, na qual músicos e professores sem contratos empregatícios estáveis devem permanentemente se fazer conhecidos para conseguirem se manter em atividade. “Este ainda é o método mais utilizado por estes profissionais para entrar [e se manter] no circuito do mercado de trabalho, já que este continua sendo restrito e, ao mesmo tempo, competitivo” (COLI, 2003, p. 230). 4. A profissão em música e outras profissões No que diz respeito à precocidade da atuação profissional antes de se diplomar, a principal diferença entre a profissão musical e outras profissões está no modo social com que a função reguladora da atuação profissional nessas últimas é construída. Pela necessidade de regular a atuação de quem exerce profissões que podem causar lesões à sociedade (por exemplo, direito, engenharia e as profissões na área da saúde), as sociedades complexas buscaram meios de organizar a formação preparatória para essas profissões. Assim, embora a formação profissional organizada por meio do ensino superior se preocupe em garantir a experiência através dos estágios, exige-se que o profissional conclua primeiro o curso superior para que, de posse da licença delegada pelo órgão regulador de sua profissão, comece a trabalhar. Mas essa é uma construção social e, parafraseando Franzoi (2006, p. 26), podemos dizer que “o caráter ‘mais’ ou ‘menos’ [lesivo pleiteado por cada profissão] não é dado”, mas 225 concebido e articulado como um argumento capaz de justificar a disputa pelo controle do mercado de prestação de serviços. Conforme informado por Vargas (2008, p. 83, 86), esse controle é exercido pelas associações profissionais que se responsabilizam, com o aval do Estado, pela regulação das profissões, estendendo-o também à reprodução dos seus quadros de profissionais – controle sobre o qual pesa a garantia e a conservação do poder e do prestígio social de cada profissão. Nesse contexto, junto à legislação reguladora, o diploma de nível superior funciona como o primeiro mecanismo de filtragem do acesso ao mercado de prestação de serviços profissionais (FRANZOI, 2006, p. 27). Na complexidade desse processo social de construção das profissões, o controle da reprodução dos quadros profissionais e a disputa pelo mercado de prestação de serviços, que resguardam o poder e o prestígio social, relacionam-se com a valorização da função produtiva desempenhada por cada profissão, bem como, com a sua participação na economia – critérios pelos quais as profissões são reconhecidas em nossa sociedade produtiva e industrializada. É assim que se faz comum a associação da profissão de músico com “o ócio, a não produção, ao não trabalho” (VIEIRA, 2009, p. 148), ou, conforme explica Coli (2003): Diferente da profissão de médico, engenheiro e advogado, as condições profissionais do músico não gozam do mesmo tipo de prestígio que a sociedade confere àqueles. Quando se fala de um médico, logo se manifesta um tipo de respeito. Para o público da sociedade de massas, quando se fala do músico, logo se pergunta que trabalho ele faz. As diferenças entre o “prestígio” obtido por essas profissões são evidentes, porque a atividade do médico e dos outros é reconhecidamente tratada como “serviço público e produtivo”, enquanto o entretenimento é comumente associado à “ociosidade” (COLI, 2003, p. 235 – 236). No Brasil, a associação profissional autorizada legalmente a exercer a regulação nacional das profissões musicais é a Ordem dos Músicos do Brasil (OMB). Como condição para o exercício profissional do músico, a Lei 3.857/1960 exige, além do registro na OMB, o registro também no Ministério da Educação (art. 16) 5 , autorizando somente a atuação dos músicos que comprovarem capacidade técnica tendo formado-se em cursos específicos ou submetido-se a exame “perante banca examinadora, constituída por três especialistas, no mínimo, indicados pela Ordem e pelos sindicatos de músicos do local e nomeados pela 5 Lei N° 3.857, 22 de dezembro de 1960: Cria a Ordem dos Músicos do Brasil e dispõe sobre a regulamentação do exercício da profissão do músico. art. 16. “Os músicos só poderão exercer a profissão depois de regularmente registrados no órgão competente do Ministério da Educação e Cultura e no Conselho Regional dos Músicos sob cuja jurisdição estiver compreendido o local de sua atividade”. Disponível em: <http://www.sindmusi.com.br/legislacao/lei_3857.asp>. Acesso em: 07/09/2006. 226 autoridade competente do Ministério do Trabalho e Previdência Social” (art. 28, Lei 3.857/60). A legitimação da referida lei não é, porém, conferida nem pelos respectivos músicos profissionais que, sem se sentirem representados pela OMB, impetram ações civis públicas contra a Ordem em diversos Estados do Brasil 6 ; nem pela Justiça brasileira, que, por exemplo, em 2004, através de ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal, condenou a OMB, pois “a exigência prevista na Lei 3.857/60, [...] não subsiste à Carta de 1988 e aos valores que elegeu ou resguardou” (Des. Fed. Eduardo Thompson Flores Lenz apud SILVA, 2004, s/p.). De acordo com argumentos presentes nas sentenças citadas pela juíza autora desse último processo (SILVA, 2004, s/p.), nem a sociedade legitima a regulação do exercício profissional em música por meio da OMB: O exercício da profissão de músico independe de inscrição junto ao Conselho, pois a Constituição assegura a livre manifestação do pensamento, de criação, de expressão e de informação, isentando-os de censura prévia. Como manifestação da arte, a música e o seu autor ou intérprete submetemse à fiscalização da opinião pública, nada justificando o policiamento administrativo realizado pelo Conselho (Des. Fed. Eduardo Thompson Flores Lenz /PR apud SILVA, 2004, s/p.). Juntam-se ainda a essa manifestação de indecisão gerada pelo conflito entre a lei, que regula o exercício profissional através da exigência de uma formação em espaços específicos, outros argumentos que, quando se compara a profissão do músico com o potencial lesivo de outras profissões, isentam o Estado de sua regulação: O exercício da profissão de músico prescinde de inscrição junto a conselho de classe, pois, além de assegurado o direito constitucional à livre manifestação do pensamento, isentando-o de censura prévia, inexiste um interesse público a justificar o policiamento da atividade, mercê da falta de potencialidade lesiva a terceiros (SILVA, 2004, s/p.). A ausência de potencial ofensivo retira o interesse do Estado em fiscalizar o mau exercício da profissão de músico (Des. Fed. Francisco Donizete Gomes/SC apud SILVA, 2004, s/p.). As argumentações acima são confirmadas pelo fenômeno dos alunos que atuam profissionalmente em música enquanto cursam a graduação na mesma área, ou seja, por 6 Disponíveis em: <http://www.apademp.org.br/juridico/saibamaisprocessos.asp#>, <http://p2.forumforfree.com/omb-ordem-dos-msicos-do-brasil-vt1386-violaoerudito.html/>, <http://www.ajufe.org.br/005/00502001.asp?ttCD_CHAVE=9412>, acesso em 07/09/2006; <http://www.juspodivm.com.br/novo/arquivos/jurisprudencias/informativo_406e405.doc>, acesso em 15/05/2009. 227 profissionais que são reconhecidos socialmente no mercado de prestação de serviços musicais sem terem passado pelo filtro regulador do diploma. Além disso, a não legitimação social da associação profissional, bem como da legislação por ela instituída para regular a profissão em música configura-a como uma profissão de pouco prestígio, com fraco poder de aglutinação e controle social. 5. Considerações finais Qual a importância, para a educação musical, de se saber como a profissão musical é construída sociamente? Os aspectos abordados nessa revisão bibliográfica dizem respeito às “paisagens” socioculturais, históricas e político-econômicas nas quais vivem os alunos que cursam a graduação em música, onde a quase maioria já atua como profissionais. Quais as marcas que esse trabalhar-estudar e que essa contingência sociocultural e história estão deixando em suas constituições como profissionais, sejam como professores, músicos, ou em outras demandas profissionais? A formação profissional não se dá somente no tempo e espaço acadêmico, orientada pelas disciplinas curriculares. O modo como a profissão é construída socialmente também norteia essa formação visto que deixa marcas nos alunos – marcas que lhes dão forma. Pela via de mão dupla, as marcas dessa dimensão social e histórica da formação profissional em música acabam repercutindo no modo com que os alunos-profissionais darão continuidade (ou não) a essa construção. 228 Referências BOZON, Michel. Práticas musicais e classes sociais: estrutura de um campo local. Em Pauta, Porto Alegre, v. 11, n. 16/17, p. 146 – 174, 2000. COLI, Juliana Marília. “Vissi D’Arte” Por Amor a uma Profissão: um estudo sobre as relações de trabalho e a atividade do cantor no teatro lírico. 2003. 359f. Tese (Doutorado), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas/UNICAMP, Campinas, 2003. COULANGEON, Philippe. Les musiciens interprètes em France: portrait d’une profession. Paris: La documentation Française, 2004. ELIAS, Norbert. Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. FRANZOI, Naira Lisboa. Entre a formação e o trabalho: trajetórias e identidades profissionais. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2006. GOMES, Celson Henrique. Educação musical na família: as lógicas do invisível. 2009. 209f. Tese (Doutorado), Programa de Pós-Graduação em Música, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. GONÇALVES, Lilia Neves. Educação musical e sociabilidade: um estudo em espaços de ensinar/aprender música em Uberlândia - MG nas décadas de 1940 a 1960. 2007. 333f. Tese (Doutorado), Programa de Pós-Graduação em Música, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007b. MORATO, Cíntia Thais. Estudar e trabalhar durante a graduação em música: construindo sentidos sobre a formação profissional do músico e do professor de música. 2009. 307f. Tese (Doutorado), Instituto de Artes, Programa de Pós-Graduação em Música, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2009. PICHONERI, Dilma Fabri Marão. Músicos de orquestra: um estudo sobre educação e trabalho no campo das artes. 2006, 120 f. Dissertação (Mestrado), Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas/UNICAMP, Campinas, 2006. RAVET, Hyacinthe. Carrières de musicien-nes: les résultats. Palestra apresentada no Seminário Internacional “Trabalho docente e artístico: força e fragilidade das profissões”. Unicamp, Campinas, 18 a 20 abril 2006. Disponível em <http://www.fe.unicamp.br/profarte> Acesso em 23/05/2006. RECÔVA, Simone Lacorte. Aprendizagem do músico popular: um processo de percepção através dos sentidos? 2006. 158 f. Dissertação (Mestrado), Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Católica de Brasília, 2006. REQUIÃO, Luciana. O músico-professor: saberes e competências no âmbito das escolas de música alternativas – a atividade docente do músico-professor na formação profissional do músico. Rio de Janeiro, Booklink, 2002. 229 SALGADO E SILVA, José Alberto. Construindo a profissão musical: uma etnografia entre estudantes universitários de música. 2005. 289f. Tese (Doutorado), Programa de PósGraduação em Música, UNIRIO, Rio de Janeiro, 2005. SEGNINI, Liliana Rolfsen Petrilli. Criação rima com precarização: análise do mercado de trabalho artístico no Brasil. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA, XIII, Recife, 2007. Anais... Disponível em <http://www.sbsociologia.com.br/congresso_v02/papers/GT29%20Trabalho,%20Precariza% C3%A7%C3%A3o%20e%20Pol%C3%ADticas%20P%C3%BAblicas/SBS_enviado.pdf> Acesso em 09/05/2009. SILVA, Daniela Souza de Andrade e. (Juíza Federal Substituta da 12.ª Vara/PE). Processo n.º 2003.83.00.013146-6 - 12.ª Vara. Classe 5024 - Ação Civil Pública. Partes: Autor: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Réu: ORDEM DOS MÚSICOS DO BRASIL CONSELHO FEDERAL E OUTRO. PODER JUDICIÁRIO. JUSTIÇA FEDERAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA. SEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DE PERNAMBUCO. 12ª VARA FEDERAL. Recife/PE, 20 de agosto de 2004. Resumo: Ação Civil Pública n.º 2003.83.00.013146-6 – Movida pelo MPF contra a Ordem dos Músicos do Brasil e a União, visando a desobrigar os músicos da inscrição obrigatória na OMB e do registro de diploma no Ministério da Educação, como condições ao exercício da profissão. Disponível em <http://www.ajufe.org.br/005/00502001.asp?ttCD_CHAVE=9412> Acesso em 07/09/2006. VARGAS, Hustana Maria. Represando e distribuindo distinção: a barragem do ensino superior. 2008. 230f. Tese (Doutorado em Educação), Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. VASCONCELOS, António Ângelo. O conservatório de música: organização, professores e políticas. Lisboa: Instituto de Inovação Educacional, 2002. 385p. VIEIRA, Alexandre. Professores de violão e seus modos de ser e agir na profissão: um estudo sobre culturas profissionais no campo da música. 2009. 178f. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Música, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. 230