UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO
SUL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM DESENVOLVIMENTO
LINHA DE PESQUISA: ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E GESTÃO SOCIAL
LEONARDO JORGE VICTOR NASCENTE FERREIRA
CONTROLE EXTERNO E AUDITORIA NO TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO
DO RIO GRANDE DO SUL: uma análise do trabalho realizado no âmbito municipal
IJUÍ
2014
1
LEONARDO JORGE VICTOR NASCENTE FERREIRA
CONTROLE EXTERNO E AUDITORIA NO TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO
DO RIO GRANDE DO SUL: uma análise do trabalho realizado no âmbito municipal
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
Stricto Sensu em Desenvolvimento, na linha de pesquisa
Administração Pública e Gestão Social, da Universidade
Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul,
como requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre em Desenvolvimento.
Orientador: Prof. Dr. Sérgio Luís Allebrandt
IJUÍ
2014
2
Catalogação na Publicação
F383c
Ferreira, Leonardo Jorge Victor Nascente.
Controle externo e auditoria no tribunal de contas do Estado do Rio
Grande do Sul: uma análise do trabalho realizado no âmbito municipal /
Leonardo Jorge Victor Nascente Ferreira. – Ijuí, 2014. –
185 f. : il. ; 29 cm.
Dissertação (mestrado) – Universidade Regional do Noroeste do Estado
do Rio Grande do Sul (Campus Ijuí). Desenvolvimento.
“Orientador: Sérgio Luís Allebrandt”.
1. Administração pública. 2. Corrupção. 3. Controle externo. 4.
Auditoria. 5. Efetividade. I. Allebrandt, Sérgio Luís. II. Título. III. Título:
Uma análise do trabalho realizado no âmbito municipal.
CDU: 35
35:657.6
Aline Morales dos Santos Theobald
CRB10/1879
3
UNIJUÍ - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento – Mestrado
A Banca Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertação
CONTROLE EXTERNO E AUDITORIA NO TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO
DO RIO GRANDE DO SUL: UMA ANÁLISE DO TRABALHO REALIZADO NO
ÂMBITO MUNICIPAL
elaborada por
LEONARDO JORGE VICTOR NASCENTE FERREIRA
como requisito parcial para a obtenção do grau de
Mestre em Desenvolvimento
Banca Examinadora:
Prof. Dr. Sérgio Luís Allebrandt (UNIJUÍ): ________________________________________
Prof. Dr. Fernando do Nascimento Lock (UFSM): __________________________________
Prof. Dr. Dieter Rugard Siedenberg (UNIJUÍ): _____________________________________
Ijuí (RS), 08 de dezembro de 2014.
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AGRADECIMENTOS
Primeiramente, agradeço a Deus por ter me oportunizado a vida com suas delícias e suas
vicissitudes. Uma verdadeira dádiva que me faz viver cada dia pensando na evolução e no
aprimoramento do ser. Com esse espírito, nada mais apropriado que um curso em
desenvolvimento.
Levar adiante este trabalho só foi possível com o auxílio de pessoas e instituições – no
primeiro plano as pessoas. Assim:
Agradeço aos meus pais, Irion José Varreira Ferreira e Deusinha Nascente Ferreira, por
entregarem um ambiente familiar aos seus filhos imensamente superior ao que receberam dos
seus pais, cumprindo assim com os ditames naturais do salutar caminhar da humanidade.
Aos meus tios Otávio Renato da Costa Varreira e Zenaide Nascente Varreira por tudo que
fizeram por mim desde os primeiros dias dessa rápida e singela passagem. Considero-os,
igualmente, meus pais.
Aos meus irmãos, Douglas Nascente Ferreira, Diego Nascente Ferreira e Tassiane Nascente
Varreira, por compartilharem comigo essa existência, deixando-a menos pobre e mais rica.
Também a Lucas, Laura, Maria Eduarda, Gabriel e Rafael, por representarem a luz do
amanhã.
Aos amigos Vilson Lussani, Celsiomar Moura, Gustavo Tarragô, Marlize Silveira de Souza
Ferreira, Elisabete Favero, Patrícia Paiva, Giovani Notari, Laura Vieira, Dênis Toca Raul,
Vanessa Gatteli, Gislaine Possa, Cristiane Jurkfitz, Aline Borin, Aline Dias e Lidiane
Colombelli pelas experiências trocadas nesse intenso período de mais de uma década e que
envolvem, dentre outros temas da vida ainda mais importantes, o tema desta dissertação.
Aos colegas e amigos do Serviço Regional de Auditoria de Santo Ângelo pelas lições diárias
passadas a mim desde o dia 13 de janeiro de 2009 até o momento atual. Tenho presente, com
carinho, o olhar, o sorriso e os trejeitos de cada um, incluindo os dos que por aquele
5
admirável braço do controle externo rapidamente tenham passado com sua vivacidade
peculiar.
Em especial, aos amigos Paulo Ricardo Ceni Barreto e Bernardino Furtado Flores que,
acreditando no retorno do investimento, laboraram diretamente na concessão de minha
licença, e aos amigos Daniel Scheck Sarate, Mario José Rockenbach e Adriano Santos dos
Santos, pelas incontáveis trocas de ideias nesses últimos anos sobre a administração pública e
o seu controle.
Aos colegas de mestrado pelos ricos momentos vividos nessa missão de pesquisar.
Aos competentes professores do Programa de Mestrado em Desenvolvimento da UNIJUÍ,
pelos sérios e ricos ensinamentos acadêmicos passados durante as aulas e pelos
agradabilíssimos momentos de convívio pessoal proporcionados pelo curso. Em especial ao
meu orientador, Prof. Dr. Sérgio Luís Allebrandt, cuja dedicação à causa pública e lucidez no
discernimento sobre as questões de destaque que envolvem essa esfera serviram de esteio para
que ideias ganhassem concretude.
E por fim:
Agradeço ao Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul pela licença concedida para
a realização do curso de mestrado. Seguindo essa linha agradeço igualmente à Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pela bolsa concedida, assim como
a cada um dos incontáveis contribuintes brasileiros. Essas instituições foram decisivas para
que um sonho virasse realidade.
6
“Embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo, qualquer um pode
começar agora e fazer um novo fim”.
Chico Xavier
“Seja você a mudança que quer ver no mundo”.
Mahatma Gandhi
“Mudar é a glória dos que ignoravam e sabem, dos que eram maus, e querem ser
justos, dos que se conheciam a si mesmos, e já melhor se conhecem, ou começam a conhecerse. O que no mudar se quer, é que se não mude para trás, nem do bem para o mal, ou do mal
para o pior”.
Rui Barbosa
“A diferença entre o que fazemos e aquilo que somos capazes de fazer bastaria
para solucionar a maioria dos problemas do mundo”.
Mahatma Gandhi
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RESUMO
Com o propósito primeiro de analisar a efetividade dos trabalhos de auditoria do TCERS no
cumprimento da sua missão, a pesquisa de natureza qualitativa teve os seguintes objetivos
derivados: a) contextualizar o controle externo da administração pública brasileira e a sua
relevância para o desenvolvimento socioeconômico e para o combate à corrupção, b)
demonstrar a estreita relação existente entre o controle externo, o controle social e o controle
judicial da administração pública brasileira, c) identificar e analisar os convênios firmados
pelo TCERS com parceiros institucionais, buscando subsídios às auditorias municipais e d)
identificar desafios, ameaças e oportunidades ao avanço dos trabalhos de auditoria no
TCERS. A metodologia empregada para tanto utilizou entrevistas semiestruturadas, aplicadas
a agentes públicos de controle, análise documental e revisão bibliográfica. Os achados
colacionados pelo esforço foram apreciados à luz da análise de conteúdo, por meio de três
categorias de análise: 1) trabalhos de auditoria e segurança jurídica, 2) trabalhos de auditoria e
o combate à corrupção na administração pública e 3) trabalhos de auditoria e o controle social
da administração pública. A primeira categoria foi desmembrada em duas subcategorias: 1.1)
da discussão da responsabilidade pelos atos e fatos da gestão auditada e 1.2) da qualidade das
provas angariadas pela técnica auditorial. A segunda categoria foi igualmente desmembrada
em duas subcategorias: 2.1) da interpretação acerca da missão constitucional do TCERS e o
seu desenrolar no mundo da vida e 2.2) dos trabalhos de auditoria e o combate à corrupção. A
análise dos dados e informações angariadas apurou que a efetividade dos trabalhos auditoriais
possui fragilidades em duas das categorias analisadas que implicam inadequado cumprimento
da missão constitucional da Corte de Contas. Os trabalhos de auditoria não discutem a
responsabilidade dos atos e fatos irregulares apontados em seus relatórios, objetivando na
figura do gestor hierárquico maior toda a culpa pelas inconformidades apuradas, condição
essa que resulta em frágil segurança jurídica e consequentemente retira efetividade dos
serviços prestados. Com relação à qualidade das provas angariadas pelos trabalhos de
auditoria, apurou-se que a mesma merece ser aprimorada para enfrentar os possíveis
processos judiciais de reforma, isso diante da moderna jurisprudência que aponta para a
revisão das decisões das Cortes de Contas pelo Poder Judiciário. Já no que diz respeito à
interpretação da missão constitucional do TCERS, a pesquisa verificou que a cultura existente
de dar contornos pedagógicos às atuações dos Tribunais de Contas retira efetividade da matriz
fiscalizatória que essas mesmas instituições possuem, na medida em a carga semântica do
controle externo plasmado na Carta Maior é relativizada em seu sentido exclusivo de
correição. Isso culmina nos resultados que demonstram a baixa efetividade das instituições de
controle externo nos casos de combate à corrupção em que a administração pública é, de
algum modo, envolvida. Por fim, identificou-se uma série de iniciativas do TCERS no
incentivo e no fomento ao controle social da administração pública, condição que caracteriza
um trabalho efetivo nessa importante temática para o desenvolvimento socioeconômico de
uma democracia como a brasileira.
Palavras-chave: administração pública; corrupção; controle externo; auditoria; efetividade.
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ABSTRACT
With the singular purpose of analyzing the efficacy of the TCERS auditing worksin
completing its mission, the qualitative study of nature derived the following objectives: a) to
contextualize the external control of the Brazilian public administration and its relevance for
the socioeconomic development and to combat corruption, b) to demonstrate the strict
existential relevance between external control, social control and judicial control of Brazilian
public administration, c) to identify and analyze the agreements signed by TCERS with
institutional partners, receiving subsidies from municipal auditors, and d) to identify
challenges, threats and opportunities for the advancement of the auditing worksof TCERS.
The methodology used for this utilized semi-structured interviews, applied to controlling
public agents, documental analysis and bibliographic summary. The collated findings were
analyzed by effort the light of the analysis of content through three categories of analysis: 1)
auditing works and legal safety, 2) auditing works and the fight against corruption in public
administration, and 3) auditing works and social control in public administration. The first
category was divided into two subcategories: 1.1) the discussion of responsibility for the acts
and facts auditing management and 1.2) the quality of the tests acquired by the auditing
techniques. The second category was likewise divided into two subcategories: 2.1) the
interpretation around the constitutional mission of TCERS and how it unfolds in the world
and in life, and 2.2) the auditing works and the fight against corruption. The analysis of data
and information acquired found that the efficacy of auditing works possesses weaknesses in
two analyzed categories that imply inadequate fulfillment of the constitutional mission of
Court. The auditing works don’t discuss the responsibility of irregular acts and facts pointed
in their reports, aiming at the higher figure of hierarchical manager all the blame for
noncompliance cleared, this condition which results in fragile legal security and removes
consequent effectiveness of services provided. About the quality of the evidence acquired by
the audit work, it was found that the same deserves to be enhanced to confront the possible
judicial reform processes, that before the modern jurisprudence that points to the revision of
decisions by judicial power. Regarding the interpretation of the constitutional mission of
TCERS, the survey found that the existing culture of giving pedagogical outlines the actions
of the court withdraws effectiveness from the fiscal matrix that these same institutions have to
the extent the semantics have shaped charge external control the largest and revitalized letter
in its unique sense of honesty. this culminates in results that demonstrate the ineffectiveness
of institutions of external control in cases that combat the corruption in the public
administration is somehow involved. Finally, the study identifies a series of TCERS
initiatives in encouraging and fostering the social control of public administration, a condition
featuring an effective work in this important thematic pair, the socioeconomic development of
a democracy like Brazil.
Keywords: public administration; corruption; external control; audit; efficacy.
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
§ – Parágrafo
AFCE – Auditor Federal de Controle Externo
AMARRIBO – Amigos Associados de Ribeirão Bonito
APE – Auditor Público Externo
Art. – Artigo
CAGE – Controladoria e Auditoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul
CF – Constituição Federal
CF/88 – Constituição Federal de 1988
CGEX – Centro de Gestão Estratégica de Informações para o Controle Externo
CGU – Controladoria-Geral da União
CNH – Carteira Nacional de Habilitação
CNJ – Conselho Nacional de Justiça
CNMP – Conselho Nacional do Ministério Público
CNPJ – Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas
COFEN – Conselho Federal de Enfermagem
CPC – Código de Processo Civil
CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito
Criscor – Movimento Cristãos contra a Corrupção
DAER – Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem do Rio Grande do Sul
DENASUS – Departamento Nacional de Auditoria do Sistema Único de Saúde
DETRAN – Departamento Estadual de Trânsito do Estado
DSD – Domínio Semântico de Determinação
IFAC – International Federation of Accountants
INTOSAI – International Organization of Supreme Audit Institutions
IPC – Índice de Percepção da Corrupção
10
IPE – Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul
IRB – Instituto Rui Barbosa
LAI – Lei de Acesso à Informação
LOTCERS – Lei Orgânica do TCERS
LRF – Lei de Responsabilidade Fiscal
MP – Ministério Público
MPC – Ministério Público de Contas
MPF – Ministério Público Federal
MPRS – Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul
NAGs - Normas de Auditoria Governamental
OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
OCE – Oficial de Controle Externo
OEA – Organização dos Estados Americanos
ONG – Organização Não Governamental
ONU – Organização das Nações Unidas
OSCIP – Organização da Sociedade Civil de Interesse Público
PCRS – Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul
PEC – Proposta de Emenda Constitucional
PF – Polícia Federal
PGERS – Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul
PROCERGS – Companhia de Processamento de Dados do Estado do Rio Grande do Sul
RFB – Receita Federal do Brasil
RI – Regimento Interno
SEFAZ – Secretaria da Fazenda do Estado do Rio Grande do Sul
SIAPC – Sistema de Informações para Auditoria e Prestação de Contas
SPB – Sistema de Pagamentos Brasileiro
STCs – Sistema Tribunais de Contas
11
STF – Supremo Tribunal Federal
STJ – Superior Tribunal de Justiça
SUS – Sistema Único de Saúde
TCU – Tribunal de Contas da União
TCERS – Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul
TI – Tecnologia da Informação
TI – Transparency International
TJRS – Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
UFSM – Universidade Federal de Santa Maria
UNCAC – United Nations Convention Agaisnt Corruption
USP – Universidade de São Paulo
12
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – Delimitação do tema e identificação do objeto proposto para estudo. .................... 27
Quadro 1 – Organizações relevantes para o objeto de estudo .................................................. 41
Quadro 2 – Categorias e subcategorias de análise (ou critérios de análise) ............................. 47
Quadro 3 – Principais atribuições do TCERS .......................................................................... 61
Quadro 4 – Domínio semântico de determinação do verbete corrupção .................................. 78
Quadro 5 – Alguns dos principais casos de corrupção. ............................................................ 87
Quadro 6 – Grandes escândalos de corrupção. ......................................................................... 89
Quadro 7 – Algumas das formas de se desviar dinheiro no Brasil. .......................................... 90
Quadro 8 – Operações da PF envolvendo corrupção e administração pública em 2013.......... 94
Quadro 9 – 20 processos de contas do TCERS e seus responsáveis chamados aos autos ..... 118
Quadro 10 – Processos do TCERS que afastaram sugestões de dano ao erário ..................... 131
Quadro 11 – Convênios firmados pelo TCERS para fortalecimento dos trabalhos de auditoria
................................................................................................................................................ 137
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LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Entidades da esfera municipal com atuação do TCERS ......................................... 63
Tabela 2 – Percepção da corrupção em 2013 ........................................................................... 82
Tabela 3 – Gastos do TCERS ................................................................................................. 109
Tabela 4 – Denúncias por enquadramento (TCERS, 2014e).................................................. 115
Tabela 5 – Denúncias por forma de recebimento (TCERS, 2014e) ....................................... 115
Tabela 6 – Denúncias por situação (TCERS, 2014e) ............................................................. 115
14
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 17
2 CONTEXTUALIZAÇÃO DO ESTUDO .......................................................................... 22
2.1 APRESENTAÇÃO DO TEMA ....................................................................................... 22
2.2 PROBLEMA ..................................................................................................................... 27
2.3 OBJETIVOS ..................................................................................................................... 31
2.3.1 OBJETIVO GERAL ..................................................................................................... 31
2.3.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS....................................................................................... 31
3 METODOLOGIA................................................................................................................ 33
3.1 PRESSUPOSTOS ONTOLÓGICOS E EPISTEMOLÓGICOS ................................. 33
3.2 CLASSIFICAÇÃO DA PESQUISA ............................................................................... 39
3.3 UNIVERSO E AMOSTRA DA PESQUISA .................................................................. 40
3.4 SUJEITOS DA PESQUISA ............................................................................................. 41
3.5 COLETA DE DADOS ...................................................................................................... 42
3.6 ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS .......................................................... 44
3.6.1 A EFETIVIDADE PARA FINS DESTA PESQUISA ................................................ 48
4 EVOLUÇÃO, INDEPENDÊNCIA E FUNÇÕES DO CONTROLE EXTERNO ......... 51
4.1 EVOLUÇÃO DO CONTROLE EXTERNO ................................................................. 51
4.1.1 INDEPENDÊNCIA ....................................................................................................... 55
4.1.2 FUNÇÕES DO CONTROLE EXTERNO .................................................................. 59
4.2 CONTROLE JUDICIAL DAS DECISÕES EXARADAS PELOS TRIBUNAIS DE
CONTAS ................................................................................................................................. 63
4.3 CORRUPÇÃO .................................................................................................................. 75
4.3.1 LINHAS GERAIS ......................................................................................................... 75
4.3.2 CASOS DE CORRUPÇÃO .......................................................................................... 85
4.3.3 A CONVENÇÃO DA ONU CONTRA A CORRUPÇÃO ......................................... 98
4.3.4 A CORRUPÇÃO E OS TRIBUNAIS DE CONTAS ................................................ 105
4.4 CONTROLE SOCIAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ..................................... 110
5 CONTROLE EXTERNO E AUDITORIA NO TCERS ................................................ 117
5.1 TRABALHOS DE AUDITORIA E SEGURANÇA JURÍDICA ................................ 117
5.1.1 DA DISCUSSÃO DA RESPONSABILIDADE PELOS ATOS E FATOS DA
GESTÃO AUDITADA ......................................................................................................... 117
15
5.1.2 DA QUALIDADE DAS PROVAS ANGARIADAS PELA TÉCNICA
AUDITORIAL ...................................................................................................................... 127
5.2 TRABALHOS DE AUDITORIA E O COMBATE À CORRUPÇÃO NA
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA .......................................................................................... 141
5.2.1 DA INTERPRETAÇÃO ACERCA DA MISSÃO CONSTITUCIONAL DO
TCERS E O SEU DESENROLAR NO MUNDO DA VIDA ............................................ 142
5.2.2 DOS TRABALHOS DE AUDITORIA E O COMBATE À CORRUPÇÃO .......... 149
5.2.3 CONTROLE SOCIAL E OS TRABALHOS AUDITORIAIS ................................ 161
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 166
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 170
ANEXO 1 – EXEMPLOS DE PERGUNTAS LANÇADAS NAS ENTREVISTAS
SEMIESTRUTURADAS REALIZADAS PARA ESTA PESQUISA ACADÊMICA ... 183
16
1 INTRODUÇÃO
Por que estudar os Tribunais de Contas?
Os avanços sociais no Brasil e no mundo têm trazido profundas alterações comportamentais
nas relações existentes entre o indivíduo e o Estado. Bom exemplo disso, em âmbito mundial,
são as recentes manifestações populares ocorridas no norte da África em busca de regimes
democráticos e sociedades abertas, revoltas civis denominadas de “Primavera Árabe”.
No Brasil, onde o regime de governo adotado já é o democrático, recentes manifestações
clamaram por maior qualidade e tarifas mais baixas no transporte público, tema que originou
uma onda de protestos em várias cidades brasileiras de porte médio e, em especial, nas
capitais, incluindo-se as regiões metropolitanas. As demandas dos manifestantes foram
difusas e reuniram uma série de motes: o inadequado uso de dinheiro público em obras da
Copa do Mundo, melhorias nas áreas de saúde, educação e segurança, combate à corrupção, a
não aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 37 – que tiraria o poder de
investigação do Ministério Público –, além de outras questões; demonstraram também,
indubitavelmente, uma insatisfação generalizada com o sistema político do País (TCERS,
2013a).
Mesmo assim, no Brasil podemos elencar bons e relevantes avanços acerca do fortalecimento
da efetiva participação dos cidadãos nos rumos do País e da administração pública.
Historicamente, o maior deles foi a promulgação da Constituição Federal de 1988, chamada
de “Carta Cidadã” (BRASIL, 2013b).
Ainda neste bojo, tivemos a edição da Lei Complementar nº 101 de 2000, a intitulada “Lei de
Responsabilidade Fiscal” (LRF), cujo teor foi aperfeiçoado por meio da Lei Complementar nº
131 de 2009 (BRASIL, 2013c); também a edição da Lei Ordinária nº 12.527 de 2011
(BRASIL, 2013d), ou “Lei de Acesso à Informação” (LAI). Todos dispositivos que fomentam
a participação e o controle do cidadão sobre a coisa pública.
Outro importante acontecimento da senda legislativa, após iniciativa popular, foi a sanção da
Lei Complementar nº 135 de 2010, a “Lei da Ficha Limpa”, que alterou a Lei Complementar
17
nº 64 de 1990, estabelecendo, de acordo com o §9º do art. 14 da Constituição Federal, casos
de inelegibilidade, prazos de cessação e incluindo hipóteses de inelegibilidade que visaram
proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato (BRASIL,
2013e).
Toda essa evolução que tende a aprimorar a administração pública e a incorporar a
participação social na gestão estatal não é estanque no tempo. Remonta a passados de luta por
direitos individuais e sociais que muito custaram a gerações de pessoas e que tinham em
comum o clamor por abertura estatal, inclusão cidadã e informação. A cada passo, a cada
conquista evolutiva nesta relação Estado-Cidadão, tem-se um degrau percorrido no sentido de
efetivamente entregar ao cidadão aquilo que é seu: a administração pública que retira recursos
do indivíduo para prestar serviços coletivos.
Nesse sentido, os movimentos sociais hodiernos têm indicado uma apropriação do Estado
pelo seu cidadão, num fluxo inverso aos tempos idos, onde os regimes políticos, e os Estados,
é que imperavam sobre os cidadãos (ditos administrados), como nas antigas monarquias e
ditaduras, especialmente as latinas.
Dito de outra forma, outrora o Estado é que se apropriava da vida e dos direitos dos seus
cidadãos, contrariamente aos fenômenos observados nos dias atuais em regimes democráticos
maduros e consolidados, onde é o cidadão que cada vez mais toma posse, diga-se
legitimamente, do Estado.
Para que as evoluções sociais tocantes a enrijecer a cultura cidadã em regimes democráticos
tomem o desejado curso, especialmente no Brasil, faz-se necessária a plena oferta de
informações econômico-financeiras oriundas das administrações públicas (accontability), ao
ponto de atender ao cidadão-contribuinte em suas necessidades e anseios por publicidade e
transparência (disclosure).
Com o espantoso desenvolvimento das Tecnologias de Informação (TI) e da rede mundial de
computadores1, o que até ontem era impensável hoje é plenamente viável. E o Brasil é
referência em algumas áreas quando se fala em empregos para as TIs, como o sistema de
1
Os estudos e pesquisas sobre governo eletrônico ganham envergadura (e-Government).
18
eleições, as notas fiscais eletrônicas, o sistema de Imposto de Renda, o Sistema de
Pagamentos Brasileiro (SPB), entre outros.
No entanto, é preciso observar que esse quadro evolutivo de amadurecimento socialdemocrata
passa necessariamente por instituições republicanas constituídas, especialmente as delineadas
pela Constituição, capazes de legitimar os anseios sociais do presente, sem as quais os
clamores por progresso, ética e desenvolvimento não ganham efetividade. De fato, tem-se que
o controle social somente se consubstancia por meio dessas instituições, dentre elas, os
Tribunais de Contas (LIMA, 2005).
Os Tribunais de Contas – ou Cortes de Contas – prestam relevantes funções de controle
externo da administração pública brasileira, sendo essas instituições constitucionais,
autônomas e desvinculadas dos poderes estatais. Detêm matriz constitucional nos arts. 31 e 70
a 75 e competências capazes de interagir e modificar o curso das gestões auditadas (BRASIL,
2013b).
Essas instituições públicas podem multar gestores, estabelecer devolução de valores ao erário,
assinar prazo para que o órgão ou entidade adote providências necessárias ao exato
cumprimento da lei, entre outras tantas medidas que as relacionam diretamente ao momento
social presente, ilustrado no introito deste trabalho, onde os clamores sociais buscam
lucidamente controlar o Estado e otimizar os serviços públicos por ele ofertados (BRASIL,
2013b).
Estudar o exercício do controle externo da administração pública é uma oportunidade de
mergulhar no complexo processo social, orgânico e em constante mutação. Tomada essa
assertiva, importa apurar se os trabalhos de auditoria de regularidade no TCERS, de âmbito
municipal, são efetivos no cumprimento da sua missão constitucional. Igualmente,
contextualizar o controle externo da administração pública brasileira e a sua relevância para o
desenvolvimento socioeconômico e para o combate à corrupção.
Em confluência, oportuno é demonstrar a estreita relação existente entre o controle externo, o
controle social e o controle judicial da administração pública brasileira. Identificar e analisar
19
os convênios firmados pelo TCERS com parceiros institucionais, buscando subsídios às
auditorias municipais.
Esses são os objetivos deste estudo.
Dessa importante temática para o desenvolvimento socioeconômico de uma democracia como
a brasileira, luzes para amanhã devem identificadas, tudo como decorrência da clara
intersecção existente entre as Cortes de Contas e as mais modernas concepções de cidadania.
É nesse contexto que esta pesquisa propugnou contribuir, na medida em que se buscou estudar
a efetividade dos trabalhos auditoriais de regularidade, de âmbito municipal, do TCERS,
destacando desafios, ameaças e oportunidades ligadas a sua importante missão constitucional.
Já a escolha pelo estudo da esfera municipal foi não só uma busca por aproveitar a
experiência do autor-auditor nos trabalhos rotineiros de campo, mas como também foi movida
pela inquestionável importância do município para o desenvolvimento socioeconômico e
político do país. Afinal,
É o município que hoje passa a assumir cada vez mais esse papel de welfare, não só
pelo crescente gasto nas áreas de saúde e educação, já que o município passa a
assumir cada vez mais as políticas sociais antes a cargo da União, mas também pelas
políticas voltadas para a geração de emprego e renda e de incentivo ao
desenvolvimento local, passando o município à condição de promotor do
desenvolvimento econômico com base em ações de âmbito local. (ALLEBRANDT,
2002, p. 24).
Uma democracia plena não é caracterizada pelo simples existir do direito de votar e ser
votado, mas por uma coexistência de fatores, incluindo a eliminação da pobreza e a difusão de
equidades entre os seus concidadãos; principalmente em áreas como saúde e educação.
Para isso, toma relevo a maturidade prospectiva das instituições de um País na busca por bem
entregar os seus serviços. Dessa feita, uma democracia madura só é possível com instituições
republicanas maduras. E é com fulcro nessa assertiva que se constrói a justificativa para esta
pesquisa.
O primeiro capítulo da dissertação foi destacado para contextualizar o estudo ao leitor e,
portanto, apresentar o tema pesquisado – o controle externo e a auditoria realizados pelo
20
TCERS –, lançando-se ainda nessa seção o problema de pesquisa e os objetivos traçados na
fase do projeto que deu origem a este relatório.
O segundo capítulo ocupa-se em apresentar a metodologia. Nesse sentido, é explicada
cientificamente a pesquisa realizada, conforme critérios metodológicos aceitos no meio
acadêmico. Ou seja, tratou-se da estratégia de investigação adotada que investiu
cientificamente sobre as auditorias do TCERS em busca de respostas para os objetivos e
indagações traçadas. Foram assim delineados os pressupostos ontológicos e epistemológicos,
classificada a pesquisa, identificados o universo e a amostra, os sujeitos e a forma de coleta,
análise e interpretação dos dados colacionados.
O terceiro capítulo concentra os esforços realizados no sentido de buscar e apresentar o
referencial teórico que fundamentou o estudo. Foram abordados, dessa feita, a evolução,
independência e funções do controle externo, o controle judicial das decisões exaradas pelos
Tribunais de Contas e as principais linhas acerca do fenômeno da corrupção. Ao final, foram
tecidas algumas considerações sobre o controle social da administração pública .
O quarto capítulo estrutura as categorias de análise destacadas na metodologia e analisa, já
com base no referencial teórico angariado, os dados e informações auferidas na pesquisa
acadêmica, passando-se ao final desse arranjo para as considerações finais do trabalho.
Essas são as premissas e bases introdutórias.
21
2 CONTEXTUALIZAÇÃO DO ESTUDO
Nesta parte do trabalho, expõe-se o tema da pesquisa, o problema abordado e os objetivos,
dentro dos pressupostos teóricos afetos.
2.1 APRESENTAÇÃO DO TEMA
Tratar-se-á do exercício do controle externo da administração pública.
As acepções da palavra controle são variadas e, de pronto, precisa-se estabelecer a melhor
adequação para o seu uso quando aplicada à res publica. Para fins de estudo do controle
incidente sobre a administração pública e os seus agentes, entende-se esse como sendo a
verificação da conformidade de uma atuação a determinados cânones (MEDAUAR, 2012).
Ou, complementarmente e ainda no campo da administração pública, entende-se controle
como a “faculdade de vigilância, orientação e correção que um poder, órgão ou autoridade
exerce sobre a conduta funcional de outro” (MEIRELLES, 2008, p. 672).
Já lida a palavra externo em seu sentido amplo, lato sensu, poder-se-ia entender o controle
externo da administração pública como quaisquer intervenções efetuadas por entidade alheia e
que visassem confrontar os fatos ocorridos no seio daquela com os sentidos éticos, morais e
legais apregoados pelo meio social no qual se está inserido; não necessariamente os fatos
contábeis, econômicos e financeiros, stricto sensu.
Nessa esteira, entender-se-ia o controle externo como aquele praticado pelo Poder Judiciário,
pelo Ministério Público, pelos partidos políticos, pelos parlamentos, pela própria sociedade –
controle social –, pela cidadania. Todos como sendo controles externos aplicados à
administração pública.
No entanto, para os fins desta pesquisa, controle externo “é o que se realiza por órgão
estranho à Administração responsável pelo ato controlado e visa a comprovar a probidade da
Administração e a regularidade da guarda e do emprego dos bens, valores e dinheiros
públicos, bem como a fiel execução do orçamento” (LIMA, 2011, p. 8). Ou, conforme
desenha Fernandes (2012, p. 120), controle externo “pode ser conceituado como o conjunto
22
de ações de controle desenvolvidas por uma estrutura organizacional, com procedimentos,
atividades e recursos próprios, não integrados na estrutura controlada, visando fiscalização,
verificação e correção de atos”. Portanto, tratar-se-á dos trabalhos realizados pelos Tribunais
de Contas do Brasil – sendo assim o controle externo dessas instituições uma espécie do
gênero controle da administração pública.
Na maioria dos países existe um órgão de controle autônomo e independente incumbido de
fiscalizar os atos e fatos de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e
patrimonial, muito embora eles possam deter atribuições e modelos de atuação distintos
(CITADINI, 1995). Chegar ao modelo presente de controle sobre a administração pública é
decorrência de longa evolução social.
Historicamente, há registro de controles sobre a administração pública desde os tempos mais
antigos, estando essa construção intimamente ligada à formação dos primeiros povoados e das
primeiras civilizações (SCHMIDT, 2000; COSTA, 2006). Saindo da antiguidade, encontra-se
no art. 15 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão – produto da revolução
francesa, 1789 – importante marco na relação de distinção público-privado, absolutamente
relevante para a importância do controle sobre o patrimônio público: “A sociedade tem o
direito de pedir contas a todo agente público pela sua administração” (USP, 2013).
No Brasil, a história do controle remonta ao período colonial, quando foram criadas as Juntas
das Fazendas das Capitanias e a Junta da Fazenda do Rio de Janeiro, em 1680, jurisdicionadas
a Portugal (TCU, 2013). No entanto, o atual modelo de controle externo teve o seu germe
lançado com a proclamação da República, em 1889. Foi por meio do Decreto nº 966-A, de
07-11-1890, que se criou o Tribunal de Contas da União (TCU), após exitosa iniciativa do
então Ministro da Fazenda, Rui Barbosa (AGUIAR; ALBUQUERQUE; MEDEIROS, 2011).
Com efeito, hoje são os Tribunais de Contas – ou Cortes de Contas – que prestam relevantes
funções de controle externo da administração pública brasileira, sendo essas instituições
constitucionais, autônomas e desvinculadas dos demais poderes estatais.
O controle externo da administração tem matriz constitucional nos arts. 31 e 70 a 75
(BRASIL, 2013b), assim como competências capazes de interagir e modificar o curso das
23
gestões auditadas. Pode multar gestores, estabelecer devolução de valores ao erário, assinar
prazo para que o órgão ou entidade adote providências necessárias ao exato cumprimento da
lei, entre outras tantas medidas. Para tanto, vale-se da técnica de auditoria para alcançar a sua
missão magna (CITADINI, 1995).
Assim, mais especificamente, o tema desenvolvido na pesquisa tratou de analisar
criticamente os trabalhos auditoriais realizados pelo Tribunal de Contas do Estado do Rio
Grande do Sul (TCERS).
Com o propósito de bem delimitar o tema de pesquisa, registra-se que o TCERS é o órgão
fiscalizador da administração pública estadual e municipal, no âmbito do Estado do Rio
Grande do Sul. Nesse sentido, foram focados os trabalhos atinentes às gestões municipais2,
realizados a partir do exercício de 2008, dada a necessidade de limitar-se o universo da
pesquisa projetada e adequadamente aproveitar a experiência do autor-auditor nas lidas diárias
com a administração municipal, deixando-se assim a administração pública estadual fora do
escopo.
Para Sá (1995, p. 38), auditoria é “um exame sistemático, racional, organizado
metodologicamente, para produzir opiniões sobre as situações patrimoniais, financeiras, de
resultados, de produtividade, de riscos, de economicidade, de legalidade, de eficácia, em
suma, de todos os aspectos da vida patrimonial”. Conceito esse bem aproximado do elaborado
pelo Instituto Rui Barbosa (IRB) (2011, p. 11): “exame independente, objetivo e sistemático
de dada matéria, baseado em normas técnicas e profissionais, no qual se confronta uma
condição com determinado critério com o fim de emitir uma opinião ou comentários”.
Muito embora o espectro conceitual de auditoria possa variar bastante – situação que decorre
na natureza da abordagem, do setor destinatário, da finalidade projetada, do usuário final dos
serviços, da doutrina selecionada e de outras tantas nuances –, para os fins deste trabalho
encontram-se elucidativas considerações lançadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU),
2
Allebrandt (2002) ensina que o município brasileiro é uma organização formal com limites e população
claramente definidos, representando a unidade de governo local do sistema político federativo do Brasil. Goza de
autonomia nos termos e limites da constituição federal e das constituições estaduais. Segundo o autor, a partir da
constituição de 1988 passou-se a seguir uma tendência mundial onde os níveis subnacionais de governo são
valorizados, respondendo por grande parte dos serviços básicos prestados à população, como nas áreas da saúde
e da educação fundamental.
24
baseadas em trabalhos da International Organization of Supreme Audit Institutions
(INTOSAI) e da International Federation of Accountants (IFAC):
Um conceito de auditoria geralmente aceito, devido à sua amplitude, é o que a
define como o exame independente e objetivo de uma situação ou condição, em
confronto com um critério ou padrão preestabelecido, para que se possa opinar ou
comentar a respeito para um destinatário predeterminado.
Todavia, existem diversos conceitos formulados sob a diversidade de perspectivas
da atividade de auditoria que, dada a sua importância histórica e legitimidade nos
contextos em que foram formulados, devem ser registrados, antes de se sintetizar um
conceito geral.
Menciona-se, primeiramente, o conceito da Intosai, inserido no seu glossário:
Auditoria é o exame das operações, atividades e sistemas de determinada entidade,
com vista a verificar se são executados ou funcionam em conformidade com
determinados objetivos, orçamentos, regras e normas.
A IFAC conceituou auditoria da seguinte maneira:
Auditoria é uma verificação ou exame feito por um auditor dos documentos de
prestação de contas com o objetivo de habilitá-lo a expressar uma opinião sobre os
referidos documentos de modo a dar a eles maior credibilidade.
Dada à natureza geral dessas normas e sem abandonar, mas considerando
incorporados os conceitos antes expostos, sintetiza-se o seguinte conceito geral de
auditoria:
Auditoria é o processo sistemático, documentado e independente de se avaliar
objetivamente uma situação ou condição para determinar a extensão na qual
critérios são atendidos, obter evidências quanto a esse atendimento e relatar os
resultados dessa avaliação a um destinatário predeterminado (grifo do autor)
(TCU, 2011, p. 13).
Destarte, auditoria é um procedimento analítico sobre a adequação das variadas operações
econômicas, financeiras e contábeis que ocorrem em ambos setores, público e privado 3. O
profissional responsável pelos trabalhos de auditoria recebe a qualificação de auditor.
Essa técnica examinatória é antiga e existia muito antes das expedições marítimas europeias,
principiadas no século XV, e da exploração mercantil em nosso continente. Embora parte da
bibliografia tenha atribuído à Inglaterra o nascedouro da prática, sabe-se que muitas
civilizações antigas já faziam uso da auditoria, anos antes de Cristo, para conferir sua
produção e resguardar o seu patrimônio (CRUZ, 2007). Como o termo tem origem no
3
As normas de auditoria governamental (NAGs), emitidas pelo Instituto Rui Barbosa (IRB, 2011), Lima e
Castro (2003), Cherman (2005), Carvalho (2006), Peter e Machado (2007) e Silva (2009) observam que existem
inúmeros procedimentos de auditoria governamental – estabelecidos pela técnica e consagrados pela experiência,
sendo eles aplicados caso a caso, atendendo às circunstâncias e à especificidade de cada trabalho. Contudo,
procedimentos básicos podem ser citados para fins didáticos e de exemplo (LIMA; CASTRO, 2003;
CHERMAN, 2005; CARVALHO, 2006; PETER; MACHADO, 2007; SILVA, 2009; IRB, 2011): análise
documental, avaliação dos controles internos, exame e comparação de livros e registros, conciliação, inspeção
física, contagem, observação, circularização (ou confirmação externa, ou ainda investigação), recálculo,
levantamentos estatísticos, rastreamento, correlação, indagações escritas ou orais (ou entrevistas, ou ainda
inquérito), etc. É bastante comum o emprego simultâneo de mais de um procedimento ou técnica. Para os
objetivos desta pesquisa não se torna necessária uma abordagem pormenorizada acerca de cada um dos
procedimentos básicos de auditoria.
25
vocábulo latino auditor – aquele que ouve –, Lima (2011) revela que os primeiros auditores
atuaram na República Romana.
Para o propósito de cumprir com a sua missão de controlar e fiscalizar a coisa pública, a Corte
de Contas gaúcha conta com um corpo técnico formado por Auditores Públicos Externos4
(APEs) e por Oficiais de Controle Externo5 (OCEs), cuja missão é efetuar fiscalizações na
gestão pública jurisdicionada e consequentemente instruir processos de contas, dos quais
resultarão as medidas corretivas previstas na base legal vigente.
Os auditores são recrutados por meio de concurso público dentre profissionais com nível
superior de variadas áreas da ciência, quais sejam: contabilidade, direito, administração,
economia, ciências atuariais, informática e engenharia civil6.
Como delimitador do tema, deixaram-se os trabalhos de engenharia civil e de informática fora
do escopo a ser pesquisado, dadas as peculiaridades e a distância dessas áreas com a formação
profissional deste pesquisador. Em outra banda, os esforços de pesquisa igualmente não
recaíram sobre a competência constitucional do TCERS lançada no art. 71, inciso III,
Constituição de 19887, muito embora os auditores destacados para a esfera municipal
detenham essa incumbência no presente, conforme arranjo administrativo da Corte de Contas
gaúcha.
Diante do exposto, o objeto pesquisado envolveu os trabalhos auditoriais – de regularidade –
para as áreas de atuação dos profissionais da contabilidade, do direito, da administração, da
4
Cargo de nível superior com atribuições complexas e de fiscalização, doravante chamado de auditor para fins
deste trabalho. Aqui, importa referir que a expressão “Externo” se refere ao controle externo constitucional ao
qual as administrações públicas estão sujeitas, exercido pelos parlamentos com o auxílio das Corte de Contas;
não denota necessariamente atividade externa de campo, muito embora grande parte dos auditores realize
fiscalizações in loco nos jurisdicionados.
5
Cargo de nível médio com atribuições administrativas e de apoio.
6
A Corte de Contas dispõe, ainda, de profissionais da biblioteconomia e da arquitetura. Os primeiros atuam em
serviços de apoio (muito embora com formação superior), já os segundos possuem atribuições semelhantes aos
engenheiros civis. Por essas razões, não serão parte da pesquisa proposta.
7
“Art. 71 O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas
da União, ao qual compete: (...) III - apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal,
a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder
Público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, bem como a das concessões de
aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do
ato concessório”.
26
economia e das ciências atuariais8, visto que todos os auditores com essas formações possuem
atuações correlatas.
A auditoria pública de regularidade, uma espécie do gênero auditoria, é o exame e a avaliação
da escrita contábil, dos atos a fatos da gestão fiscalizada, das operações que afetam o
patrimônio público. Apura o cumprimento das disposições legais e regulamentares, os
sistemas de controle interno, a probidade e a correção das decisões administrativas adotadas
pelo ente auditado (TCERS, 2014n). O Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul
mantém esses serviços autuados em processos administrativos.
A figura 1 ilustra a delimitação do tema e a identificação do objeto estudado.
Figura 1 – Delimitação do tema e identificação do objeto proposto para estudo.
Controle externo constitucional da administração pública brasileira (arts. 31 e 70 a 75)
Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul
Trabalhos auditoriais de regularidade, de âmbito
municipal, realizados por APEs contadores, advogados,
administradores, economistas e atuários – com exceção
dos trabalhos realizados em atendimento ao mandamento
constitucional insculpido no inciso III do art. 71 da
Constituição de 1988.
Fonte: o autor (2014).
2.2 PROBLEMA
[...] nada pode ser intelectualmente um problema se não tiver sido, em primeiro
lugar, um problema da vida prática (MINAYO, 2012, p. 16).
Na busca pela qualidade deste trabalho, relevante é apresentar o problema de pesquisa de
forma lúcida. Nesse esforço, cabe destacar, de plano, o nascedouro da inquietação que moveu
8
Os cargos de auditor com formação em ciências atuariais ainda não estão providos. Foram criados
recentemente por meio da Lei Estadual nº 13.377, de 30 de agosto de 2011.
27
esta proposta. Ele pode ser ilustrado, sinteticamente, pela seguinte indagação: os serviços de
auditoria de regularidade, entregues pelos Tribunais de Contas à sociedade, são efetivos no
cumprimento de sua missão constitucional?
Ou seja, o lugar onde nasceu a problemática a ser desnudada pela pesquisa, num olhar crítico
e naturalmente parcial (SANTOS, 1995), é a fração social do passado e do presente que,
legitimamente, desacredita os trabalhos auditoriais realizados pelas Cortes de Contas. Apenas
a título de exemplo, sem a pretensão de esgotar os numerosos representantes dessa parcela
social, elencam-se robustos pensadores:
Não serão CPIs nem códigos de ética que resolverão o problema da corrupção. O
Brasil não é um país corrupto. É apenas pouco auditado. (KANITZ, 1999).
Como foi observado no caso de Ribeirão Bonito, o Tribunal de Contas do Estado
tende a verificar somente os aspectos formais das despesas. O órgão fiscalizador não
entra no mérito se a nota fiscal contabilizada é “fria” ou não, se a empresa é
“fantasma” ou não, se o valor é compatível com o serviço ou não, e se o
procedimento licitatório foi montado e conduzido adequadamente ou não. O
Tribunal só examina tais questões quando estimulado especificamente. Contudo,
mesmo que os aspectos formais examinados sejam irrelevantes diante da grosseira
falsificação de documentos verificada em muitas prefeituras do país, os Tribunais de
Contas mantêm os seus procedimentos.
Como, na maioria das vezes, os aspectos formais são observados cuidadosamente
pelos fraudadores, o Tribunal, ao aprovar as contas do Município, passa atestado de
idoneidade a um grande número de corruptos e exime publicamente de culpa quem
desvia dinheiro público no país. Na forma como atua hoje, os Tribunais de Contas
não contribuem significativamente para o fim da corrupção. (TREVISAN et al.,
2003, p. 23).
[...] é flagrante que parcelas significativas dos desvios de recursos públicos
registrados no Brasil, seja por desperdício ou fraudes, podem ser atribuídas ainda à
ineficácia dos órgãos de controle existentes. [...] Os Tribunais de Contas, por
exemplo, responsáveis pelo Controle Externo, não obstante alguns esforços recentes,
não têm sido, através do tempo, uma grande referência enquanto órgãos capazes de
evitar ou minimizar o número de ocorrências de desvios. Esses, na maioria dos
casos, só chegam ao conhecimento da sociedade quando denunciados por indivíduos
alheios ao controle público (RIBEIRO, 2004, p. 120).
A corrupção transformou-se em verdadeira instituição, praticada de forma às vezes
acintosa, agravada com a impunidade que, paralelamente, se implantou no Brasil,
ou, da “falsa punição”, só atingindo vítimas de menor poder e até menos envolvidas
nos frutos das fraudes.
[...]
Em suma, no Brasil, o exercício da Auditoria Governamental, na atualidade,
encontra sérias barreiras à eficácia da mesma, mas nada disto invalida a necessidade
de conhecer o assunto, pois os defeitos de um sistema político e social não devem
atingir o dever de consciência do profissional que pratica sua tarefa.
[...]
28
Sabemos que esse sistema cruel, em que o Estado é usado pelos inescrupulosos, em
favor destes e com prejuízo notório dos contribuintes e do povo em geral, mostra a
falência moral de uma época, mas não deve o mesmo contaminar o profissional da
auditoria, pois este possui, acima de tudo, a prestação de contas diante do maior de
todos os Tribunais, que é a sua própria consciência (grifo do autor) (SÁ, 2007, p. 1415).
Aos habituais reclamos referentes a falhas na atuação dos Tribunais de Contas para
impedir o mau uso dos recursos públicos, o que responder? Pregar a abolição da
entidade? Transformá-la em órgão singular, como nos Estados Unidos e Inglaterra?
Como propiciar aprimoramento da sua atuação para melhor preservação dos
recursos públicos e para que a função de controle realmente se realize?
(MEDAUAR, 2012, p. 146).
Como esposado pelos excertos acima expostos, os relatos de insatisfação com as ações de
controle externo promovidas pelas Cortes de Contas têm a pena de robustos pensadores da
contabilidade e do direito9; isso, como já dito, apenas de forma exemplificativa, visto que
outros tantos são também detentores de críticas ao controle externo. Daí extrai-se que o
controle externo e a auditoria governamental carecem de aperfeiçoamentos para
adequadamente caminhar com a sociedade na resolução dos seus desafios.
A fidedignidade de tal assertiva não é recente, já que em 1981 Agustín Alberto Gordillo,
administrativista argentino, afirmou o seguinte a respeito dos Tribunais de Contas – após
estudar questões relativas ao controle da administração pública na América Latina:
Consideramos, com base na experiência de nossos países, que estes controles são
inaptos para produzir mudança de mentalidade, de atitudes, de comportamentos e
crenças; ao contrário, podem estar retroalimentando o sistema coadjuvando a
crescente regulamentação da atividade pública, realçando a formalidade em
detrimento da eficácia (GORDILLO, 1981 apud MEDAUAR, 2012, p. 115).
Segundo Vaz (2012), quando da apuração de fraudes com recursos do Sistema Único de
Saúde (SUS) no caso apelidado de “Sanguessugas”, não havia interligação entre os órgãos de
controle e de fiscalização. E essa ausência de ligação e compartilhamento entre órgãos e
agentes de controle em busca de serviços públicos efetivos também é um desafio presente a
ser encarado pelos Tribunais de Contas, conforme Bergue (2014).
Mesmo assim, o controle externo e a auditoria governamental se afiguram como instituições
absolutamente importantes para o desenvolvimento socioeconômico do País e para o combate
às manifestações deletérias do fenômeno da corrupção (RIBEIRO, 2002; ABRAMO, 2005;
9
Aqui, alerta-se, sem a pretensão de esgotar as áreas do conhecimento que já teceram críticas tocantes ao
sistema Tribunais de Contas, como a sociologia, a ciência política, a administração e a economia.
29
AGUIAR, 2005; MILESKI, 2011; ÉPOCA, 2012; FERNANDES, 2012; MOREL, 2012;
TCERS, 2013a).
A auditoria governamental é um elemento primordial para assegurar e promover o
cumprimento do dever de prestar contas que os administradores públicos têm para com a
sociedade. A Constituição atribuiu ao controle externo a missão explícita de examinar, com
instituições independentes de controle, as ações governamentais, cobrar explicações e impor
penalidades e limites aos agentes estatais e privados quando exercerem atividades impróprias
ou em desacordo com as leis e os princípios de administração pública.
Porém, muito embora os Tribunais de Contas detenham pomposa gênese constitucional,
Speck (2000a) informa que o jornalismo investigativo, as Comissões Parlamentares de
Inquérito (CPIs) e o Ministério Público (MP) transparecem maior efetividade no combate à
corrupção. O mesmo pesquisador, ao se preocupar com a maneira como o sistema político
enfrenta problemas de corrupção, malversação e desperdício de recursos públicos, desenhou o
estado da arte e ponderou que,
Constatamos, de início, que não somente a visibilidade pública da instituição do
Tribunal de Contas é reduzida, como também as informações e análises acadêmicas
a seu respeito são escassas. Nas ciências sociais, deparamo-nos quase com uma
tabula rasa no que se refere a estudos sobre os Tribunais de Contas. Um olhar sobre
a produção das ciências sociais em outros países revela uma situação não muito
diferente. Isso é um tanto surpreendente, tendo-se em vista, de um lado, a tradição
secular dessas instituições nos vários sistemas políticos, e, de outro lado, a
centralidade do tema do controle e da regulação nas ciências sociais (SPECK,
2000a, p. 12).
O desenvolvimento de um país é diretamente proporcional ao grau de maturidade e
efetividade das suas instituições – como as que promovem o controle das contas públicas e a
justiça, por exemplo (GALA, 2003; NORTH, 2003). Ao estudar o desenvolvimento de
diversas civilizações ao longo do tempo, o economista americano Douglass North – ganhador
do Prêmio Nobel de Economia em 1993 – assevera que a maturidade das instituições de uma
dada nação é mais importante que, por exemplo, as descobertas tecnológicas e os recursos
naturais. Dessa feita, acende-se a necessária preocupação com a efetividade dos trabalhos
auditoriais entregues pelas instituições de controle externo no Brasil, já que
Nenhum projeto de desenvolvimento prospera em um ambiente onde predomina a
corrupção. As administrações se corrompem e os cidadãos de bem se retiram,
30
deixando a área livre para a atuação de quadrilhas. É o círculo vicioso se iniciando.
Às vezes, é preciso uma crise de grandes proporções para quebrar o círculo vicioso e
a cidadania imperar novamente (AMARRIBO, 2012, p. 71).
Para que possam devidamente atuar em análises auditoriais e lançar opinião sobre atos e fatos
da gestão pública jurisdicionada, os auditores necessitam de acesso à informação. Precisam
ter acesso a dados, registros, sistemas, documentos, assentamentos. Seja essa informação
física ou digital. E é na identificação e na análise crítica do estágio de desenvolvimento dessas
fontes de informação que a pesquisa tenciona investir – assim, essa propositura se revestiu,
em essência, num diagnóstico crítico acerca dos trabalhos técnicos de auditoria de
regularidade realizados no TCERS.
Numa primeira conceituação, as fontes de informação podem ser classificadas em internas e
externas (AGUIAR, 2005). Fontes internas são aquelas informações já disponíveis nos bancos
de dados do TCERS. Por seu turno, fontes externas são aquelas informações captadas junto a
outras entidades, por meio de requisições e circularizações.
Dessa forma, a pesquisa se propôs a responder à seguinte problemática decorrente da
exposição do tema: os trabalhos de auditoria de regularidade do TCERS, de âmbito municipal,
são efetivos no cumprimento da sua missão constitucional?
2.3 OBJETIVOS
Para responder à questão formulada foram propostos um objetivo geral e objetivos
específicos.
2.3.1 OBJETIVO GERAL
Apurar se os trabalhos de auditoria de regularidade no TCERS, de âmbito municipal, são
efetivos no cumprimento da sua missão constitucional.
2.3.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS
Para alcançar o objetivo geral proposto foram estabelecidos quatro objetivos específicos:
31
a) Contextualizar o controle externo da administração pública brasileira e a sua
relevância para o desenvolvimento socioeconômico e para o combate à corrupção;
b) Demonstrar a estreita relação existente entre o controle externo, o controle social e o
controle judicial da administração pública brasileira;
c) Identificar e analisar os convênios firmados pelo TCERS com parceiros
institucionais, buscando subsídios às auditorias municipais;
d) Identificar desafios, ameaças e oportunidades ao avanço dos trabalhos de auditoria
no TCERS.
32
3 METODOLOGIA
Nesta seção da dissertação é explicada a pesquisa realizada, conforme critérios metodológicos
aceitos no meio acadêmico. Ou seja, desenha-se para o leitor a estratégia de investigação
adotada que investiu cientificamente sobre as auditorias do TCERS em busca de respostas
para os objetivos e indagações traçadas.
3.1 PRESSUPOSTOS ONTOLÓGICOS E EPISTEMOLÓGICOS
Entender o mundo, os regimes sociais, o processo evolutivo da humanidade, o
desenvolvimento, a vida. Essas são questões que ocupam e ocuparam a energia de inúmeros
pensadores ao redor do mundo (SANTOS, 1995). Desse esforço científico, este estudo
utilizou as contribuições do Novo Institucionalismo10 e da Teoria da Democracia de
Habermas11 – ambas metateorias críticas que empregam profundidade à compreensão lúcida
da evolução do conhecimento.
Conforme preceitua Andrews (2005), o Novo Institucionalismo é considerado pelas ciências
políticas uma das abordagens teóricas mais influentes do presente, especialmente nos estudos
que envolvem políticas públicas. Um dos mais destacados teóricos dessa vertente é o
economista norte-americano Douglass North, ganhador do prêmio Nobel de Economia em
1993.
North constrói sua análise econômica divergindo da vertente tradicional principiada com
Adam Smith, onde o egoísmo é o elemento central para compatibilizar interesses privados e
interesses públicos, entendendo-se que cada indivíduo, buscando seus próprios fins, contribui
para a máxima realização coletiva (AGUILAR FILHO; FONSECA, 2011).
Portanto, em sentido contrário aos estudos tradicionais, centrados no indivíduo, North funda a
sua análise econômica na compreensão de que sem instituições não há intercâmbio e demais
dinâmicas sociais propiciadoras do desenvolvimento (AGUILAR FILHO; FONSECA, 2011).
10
Principalmente o core teórico produzido por Douglass North.
O filósofo Jürgen Habermas teoriza sobre uma sociedade democrática baseada na razão e no agir
comunicativo.
11
33
Para não causar confusão na adequada interpretação do termo instituições, cabe observar que
North (1991, p. 97) as define como “the humanly devised constraints that structure political,
economic and social interaction. They consist of both informal constraints (sanctions, taboos,
customs, traditions, and codes of conduct), and formal rules (constitutions, laws, property
rights)”12.
Nessa esteira, vislumbrar a efetividade dos trabalhos de auditoria do setor público como
instituição de combate à corrupção, e esta como um fator de entrave ao desenvolvimento, na
medida em que aumenta os custos transacionais da economia, é pressuposto ontológico e
epistemológico desta pesquisa. Assim como entender os serviços auditoriais também como
instituições de melhoria e aperfeiçoamento do gasto público.
Um exemplo simples que ajuda a entender a relação existente entre a teoria de Douglass
North e os esforços realizados por esta pesquisa é dado por Silva (2000), ao escrever sobre o
fenômeno da corrupção e a sua relação com desempenho econômico13.
O autor exemplifica a dificuldade com que, há alguns anos, as pessoas tinham para regularizar
os documentos de licenciamento de um veículo. Segundo o pesquisador, os departamentos de
trânsito – instituições voltadas para esse tipo de atividade – eram imensamente atrasados e
corruptos, levando o indivíduo que não estivesse disposto a pagar propinas a perder inúmeros
dias para alcançar a sua licença. Com a modernização dessas instituições, os custos da
corrupção diminuíram (SILVA, 2000).
Ou seja, aquela estrutura institucional anterior implicava ineficiência e custos elevados, um
desperdício de dinheiro. Evidencia-se assim, conforme Silva (2000), que a corrupção
geralmente está acompanhada de estruturas institucionais ineficientes, que diminuem a
efetividade do investimento.
12
Em tradução livre, teríamos que instituições são “as restrições humanamente inventadas que estruturam a
interação política, econômica e social. Elas consistem em duas restrições: regras informais (sanções, tabus,
costumes, tradições e códigos de conduta) e regras formais (constituições, leis, direitos de propriedade)”. Ou
seja, instituições não significam, necessariamente, organizações, empresas ou entidades; são, em síntese, o
conjunto de regras formais e informais que regem dada sociedade.
13
O autor entende que a corrupção representaria uma espécie de custo que reduziria a eficácia do investimento –
um item de desperdício na criação da riqueza (SILVA, 2000).
34
Os contornos e pressupostos assumidos nesta pesquisa, igualmente como o paradigma de que
as cortes de contas têm papel de relevo no desenvolvimento socioeconômico do País, podem
ser ilustrados pela grafia de Ubiratan Diniz de Aguiar, ex-Presidente do Tribunal de Contas da
União (TCU):
São as cortes de contas que garantem ao cidadão comum que os recursos confiados
por ele ao Estado estão sendo utilizados dentro da lei, da forma mais eficiente e
eficaz possível e em benefício de toda a coletividade. Assim é que desempenho da
missão dessas instituições tem relação direta com a justiça social, a melhoria da
qualidade de vida da população, a redução das desigualdades e, por conseguinte,
com o desenvolvimento socioeconômico do País (AGUIAR, 2011, p. 15-16).
Fiscalizar, auditar, controlar, efetivar, sancionar e punir são ações que devem ser claramente
identificadas no escopo institucional de qualquer cultura que almeje a correição no trato da
coisa pública.
Conforme já apresentado nesta pesquisa, o desenvolvimento de um país é diretamente
proporcional ao grau de maturidade e efetividade das suas instituições – em último grau,
elege-se a justiça (NORTH, 2003). Ao estudar o desenvolvimento de diversas civilizações ao
longo do tempo, North assevera que a maturidade das instituições de uma dada nação é mais
importante do que, por exemplo, as descobertas tecnológicas e os recursos naturais.
A assertiva do economista americano tem ressonância nas propugnações do cientista político
e jurista gaúcho Darcy de Azambuja. Tendo-se o sistema de controle externo brasileiro como
uma instituição do Estado14, demandada a controlar o próprio Estado, e sendo o Estado uma
construção abstrata de dada sociedade para o atingimento de seus fins, cabe, portanto, a busca
pela compreensão adequada acerca da relevância de se ter instituições estatais plenamente
efetivas.
Aí a contribuição de Azambuja, quando afirma que:
O Estado, portanto, é uma sociedade, pois se constitui essencialmente de um grupo
de indivíduos unidos e organizados permanentemente para realizar um objetivo
comum. E se denomina sociedade política porque, tendo sua organização
determinada por normas de direito positivo, é hierarquizada na forma de governantes
e governados e tem uma finalidade própria, o bem público. E será uma sociedade
tanto mais perfeita quanto sua organização for mais adequada ao fim visado e
quanto mais nítida for, na consciência dos indivíduos, a representação desse
14
Segundo Hans Kelsen, o Estado é a ordem coativa normativa da conduta humana (DALLARI, 2003).
35
objetivo, a energia e a sinceridade com que a ele se dedicarem. (1992, apud DAL
POZZO, 2010, p. 18).
Em outra senda, a pesquisa não pode desconsiderar o ambiente democrático brasileiro no qual
estão inseridos os Tribunais de Contas, os seus auditores e o destinatário dos serviços
auditoriais prestados, a sociedade – mantenedora do controle externo.
Feita a constatação, sabe-se que um dos maiores e mais profícuos estudiosos contemporâneos
da democracia é o filósofo alemão Jürgen Habermas, teórico crítico da segunda geração de
Frankfurt (TENÓRIO, 2002). Aliás, um ponto congruente entre a teoria crítica frankfurtiana e
o institucionalismo de North é a idêntica forma de enxergar o agente não como algo isolado
do seu contexto social, dado o sujeito como
[...] um indivíduo determinado em seus relacionamentos efetivos com outros
indivíduos e grupos, em seu confronto com uma classe determinada e, por último,
mediado com esse entrelaçamento, em vinculação com o todo social e a natureza.
(HORKHEIMER, 1975 apud TENÓRIO, 2002, p. 37).
A busca teórica de Habermas perpassa um conjunto de construções paradigmáticas – cuja
substância pode ser identificada na sua obra “Teoria do Agir Comunicativo”15 –, permitindo
assim uma leitura fundada e robusta das sociedades democráticas (PINTO, 1995; TENÓRIO,
2002).
No intento de criar um referencial explicativo para os fenômenos sociais baseados em regimes
democráticos, Habermas (1984) estabelece um paradigma intersubjetivo onde a relação
existente é de um sujeito para outro. Ou seja, a conhecida relação científica desloca-se do
binômio sujeito-objeto para o binômio sujeito-sujeito, valendo a interação existente entre
pessoas. Veja-se:
The phenomena in need of explication are no longer, in and of themselves, the
knowledge and mastery of an objective nature, but the intersubjectivity of possible
under-standing and agreement – at both the interpersonal and intrapsychic levels.
The focus of investigation thereby shifts from cognitive-instrumental rationality to
communicative rationality. And what is paradigmatic for the latter is not the
relation of a solitary subject to something in the objective world that can be
represented and manipulated, but the intersubjective relation that speaking and
acting subjects take up when they come to an understanding with one another about
something. In doing so, communicative actors move in the medium of a natural
15
Teoria também conhecida como Razão Comunicativa. Para construir sua teoria, Habermas dialoga com
inúmeros pensadores: Kant, Hegel, Marx, Weber, Popper, Lukács, Horkheimer, Adorno, Durkheim, entre outros
(TENÓRIO, 2002).
36
language, draw upon culturally transmitted interpretations, and relate
simultaneously to something in the one objective world, something in their common
social world, and something in each’s own subjective world 16 (HABERMAS, 1984,
p. 392).
Destarte, construindo-se um pensamento sociofilosófico não só centrado no indivíduo, mas
também na interação do mesmo com o meio social, portanto partindo-se para uma relação
sujeito-sujeito na sociedade democrática, forja-se uma concepção de auditoria do setor
público intimamente associada ao consenso estabelecido entre todos os cidadãos de dado
território acerca da temática.
Essa dinâmica interacionista e fluida havida no seio social é adequadamente ilustrada pelo
jurista José Carlos Ataliba Nogueira, ao conceituar Estado em sua obra Teoria Geral do
Estado. Para ele, o conceito de Estado é
[...] eminentemente empírico, resultante do fato dos homens viverem agrupados em
sociedade de certo tipo, distinguida não por um só elemento, mas pela concomitante
presença de vários elementos, cujo conjunto dá a noção de Estado. É por isso que
não encontramos nenhum nexo lógico entre os vários elementos do Estado, nem
existe qualquer exigência racional para que, necessariamente, devam encontrar-se
reunidos. Pondo-se de lado exigências práticas, nada impede que amanhã os homens
vivam em sociedade de outro tipo (NOGUEIRA, s/d apud DAL POZZO, 2010, p.
18).
A racionalização da sociedade democrática passa pelo agir comunicativo intersubjetivo em
busca de entendimento (HABERMAS, 1984). Em decorrência, anui-se, por oportuno, que a
forma de enxergar a temática apresentada por este pesquisador não é a única existente no
tecido social. A adequada visão da temática depende de uma construção mutante derivada de
amplo debate na esfera pública para, só assim, ter-se efeito no mundo da vida.
Esfera pública e mundo da vida. Eis aqui dois conceitos caros para o adequado entendimento
das contribuições habermasianas sobre o regime democrático e para o desenrolar inteligível
da pesquisa que se propôs a analisar os trabalhos de auditoria do TCERS.
16
Em tradução livre, ter-se-ia: “Os fenômenos que necessitam de explicação já não são, em si mesmos, o
conhecimento e domínio de uma natureza objetiva, mas a intersubjetividade do possível entendimento e acordo tanto em nível interpessoal quanto no nível intrapsíquico. O foco da investigação muda assim da racionalidade
cognitiva-instrumental para racionalidade comunicativa. E o que é paradigmático para o último não é a relação
de um sujeito solitário com algo no mundo objetivo, que pode ser representado e manipulado, mas a relação
intersubjetiva, entre sujeitos que falam e agem, para chegar a um acordo um com o outro acerca de algo. Ao
fazê-lo, os atores comunicativos movem-se no meio de uma linguagem natural, recorrem a interpretações
culturalmente transmitidas e se relacionam simultaneamente para algo em um mundo objetivo, algo em seu
mundo social comum e algo no mundo subjetivo de cada um”.
37
Esfera pública, ou Öffentlichkeit, é para Habermas um componente indispensável nas
sociedades democráticas (DUPEYRIX, 2012). Situa-se na interação dinâmica entre a
sociedade civil e o Estado, consolidando esferas de discussões formais – no interior dos
parlamentos, tribunais, universidades – e informais – no seio das mídias, clubes, associações.
A esfera pública é um espaço de debate social e político, servindo para a formação da opinião
e da vontade dos cidadãos, o que permite a elaboração de uma crítica dos poderes e das
instituições em vigor, bem como a expressão de novas necessidades que surgem da sociedade
civil (DUPEYRIX, 2012). Conforme explica este autor, está diretamente ligada às estruturas
da atividade comunicativa e depende, consequentemente, do grau de racionalização do mundo
vivido e de liberação dos recursos comunicativos.
Já mundo da vida, ou Lebenswelt, é para Habermas o conjunto de saberes (certezas) em nós
arraigados e nos quais implicitamente escoramos todas as nossas ações cotidianas. Segundo
Dupeyrix (2012), coincide com os hábitos, as tradições, as crenças compartilhadas, enfim,
tudo o que parece evidente. Importa referir, contudo, que o mundo da vida é
fundamentalmente simbólico, sendo suscetível, assim, de crítica, de redefinição, de
reformulação (DUPEYRIX, 2012). O mundo da vida é a matéria, o conteúdo primeiro do agir
comunicativo habermasiano.
É importante observar que a teoria habermasiana da sociedade não se encerra no rico conceito
de mundo da vida. Habermas acrescenta à sua construção um conceito concorrente: o de
sistema. Para o filósofo, dois sistemas, o mercado e a administração – representados pelo
dinheiro e pelo poder, respectivamente –, desempenham efetivamente um papel na
estabilização e na reprodução da ação social. No entanto, o desafio é impedir que o
funcionalismo dos sistemas venha colonizar setores do mundo vivido (DUPEYRIX, 2012).
Os trabalhos auditoriais desenvolvidos pelos Tribunais de Contas têm matriz constitucional
no Brasil, sendo parte do conjunto de instituições formais desta nação, implicando no
desenvolvimento socioeconômico do País. De outra forma, estão inexoravelmente
mergulhados no regime democrático adotado pela mesma Carta Magna, compondo parte da
esfera pública, do mundo da vida dos brasileiros e dos sistemas de mercado e administração.
38
Essa construção também é a esposada por Souza (2011) quando do estudo do fenômeno da
corrupção. Veja-se:
Portanto, a democracia brasileira depende (não unicamente) da atuação dos
Tribunais de Contas (órgãos possuidores de ampla autonomia por mandamento
constitucional, em contínua busca pelo aprimoramento de suas atividades). Eles
devem ser preservados e valorizados para responderem ao cenário de desafios,
garantindo o bom funcionamento das demais instituições e o efetivo exercício do
Estado Democrático de Direito para o pleno atendimento aos anseios da sociedade
brasileira, mediante excelência no controle das contas públicas no combate à
improbidade e à corrupção. (SOUZA, 2011, p. 120).
A democracia, via processos intersubjetivos de comunicação, é o caminho para a
institucionalização – ou desinstitucionalização – das normas e costumes que guiam a
sociedade brasileira, tendo desdobramentos capazes de, por meio da razão, mudar a realidade
ao longo do tempo.
Partindo-se da realidade para entender a realidade, este estudo escorou-se nos pontos
complementares dessas duas metateorias – Novo Institucionalismo e Teoria da Democracia de
Habermas – no intento de dar sustentação aos achados da pesquisa realizada.
3.2 CLASSIFICAÇÃO DA PESQUISA
Inúmeras são as tipologias encontradas na literatura que trata de pesquisa (BEUREN, 2008).
Pela natureza e finalidade dos resultados esperados, tem-se aqui uma pesquisa aplicada (GIL,
2008), na medida em que se tem fundamental interesse na aplicação, utilização e
consequências práticas do conhecimento. Ou seja, a preocupação e os esforços não estão
voltados para as metateorias de aplicação universal, mas sim para a efetiva aplicação do
conhecimento numa realidade circunstancial (GIL, 2008).
Do ponto de vista da perspectiva adotada na abordagem da investigação realizada, adotou-se a
pesquisa qualitativa (BEUREN, 2008; GIL, 2008), tida como forma adequada para se
conhecer a natureza de um fenômeno social sem o emprego de instrumentos estatísticos,
atribuindo-se importante papel à interpretação. Debruçando-se sobre a perspectiva, Minayo
(2012) explica que a pesquisa qualitativa, nas ciências sociais, ocupa-se com um nível de
realidade que não pode ou não deveria ser quantificado. Sob esses prismas, tem-se
indubitavelmente uma proposta de investigação interpretativa de caráter qualitativo.
39
Quanto aos objetivos, tem-se uma pesquisa descritiva (GIL, 2008), visto que se buscou
descrever uma realidade social circunstancial, assumindo-se como base as percepções,
opiniões, atitudes, crenças, leis e instituições que estão imersas no meio investigado.
Tratando-se dos procedimentos técnicos – ou estratégias de pesquisa –,utilizaram-se a
pesquisa bibliográfica, a pesquisa documental e a pesquisa participante (BEUREN, 2008;
GIL, 2008).
3.3 UNIVERSO E AMOSTRA DA PESQUISA
Se o universo é definido como o conjunto de elementos – o todo –, neste tópico definiu-se o
tamanho da amostra – a parte –pesquisada no intento de alcançar os objetivos da pesquisa.
O modus operandi do Sistema Tribunais de Contas (STCs) é absolutamente heterogêneo no
Brasil. Daí resulta uma multiplicidade de interpretações e paradigmas da realidade auditada
adotados por cada Corte de Contas, dentro do espectro de sua autonomia constitucional. Tanto
é que não existe um diploma processual único para os julgamentos administrativos realizados
pelo STCs, assim como não existe um conselho nacional, ao espelho do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).
Dado que a pesquisa se preocupou com a efetividade do controle externo da administração
pública municipal gaúcha – portanto tratou dos trabalhos realizados pelo TCERS –, tem-se
que o universo de organizações envolvidas na pesquisa mantém relação direta ou indireta com
o serviço público auditorial prestado pela Corte de Contas pesquisada, sendo ela mesma um
componente essencial do universo.
Destarte, uma importante organização para o objetivo do estudo realizado é o TCU, na
medida em que a Corte de Contas da União possui outra forma de enxergar a auditoria do
setor público, muito embora possa se assemelhar à Corte de Contas gaúcha em várias
interpretações.
Outras organizações que foram relevantes para a pesquisa podem ser listadas, como: Supremo
Tribunal Federal (STF), Superior Tribunal de Justiça (STJ), Tribunal de Justiça do Estado do
40
Rio Grande do Sul (TJRS), Controladoria-Geral da União (CGU), Controladoria e AuditoriaGeral do Estado do Rio Grande do Sul (CAGE), Ministério Público do Estado do Rio Grande
do Sul (MPRS), Polícia Federal (PF), Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul (PCRS) e
Secretaria da Fazenda do Estado do Rio Grande do Sul (SEFAZ). No esforço de uma
adequada ilustração, lança-se o quadro 1:
Quadro 1 – Organizações relevantes para o objeto de estudo
Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul
Tribunal de Contas da União
Supremo Tribunal Federal
Superior Tribunal de Justiça
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
Controladoria-Geral da União
Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul
Polícia Federal
Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul
Secretaria da Fazenda do Estado do Rio Grande do Sul
Fonte: elaborado pelo autor.
Observa-se que nos estudos essencialmente qualitativos, de um modo geral, e na análise do
discurso em especial, a seleção de elementos não é realizada no sentido de representar a
população ou universo como um todo, uma vez que não há uma preocupação em si com a
representatividade (NOGUEIRA, 2001).
3.4 SUJEITOS DA PESQUISA
Interagiram na construção desta pesquisa agentes públicos que atuam de alguma forma com o
controle da administração pública, seja direta ou indiretamente, seja administrativa ou
judicialmente. A seleção dos agentes públicos considerou a relação da atividade profissional
dos mesmos com o tema pesquisado, assim como a acessibilidade e a aceitação dos partícipes.
Dessarte, apresentam-se os sujeitos que interagiram na pesquisa: 3 (três) Auditores Públicos
Externos (APEs) do TCERS, 1 (um) Auditor Federal de Controle Externo (AFCE) do TCU, 1
41
(um) Delegado de Polícia Civil, 2 (dois) Promotores de Justiça do MPRS e um Conselheiro –
Juiz de Contas – do TCERS.
As entrevistas foram realizadas no ambiente de trabalho dos selecionados, durante o primeiro
semestre do ano de 2014, e tiverem os áudios captados por meio de aparelhos gravadores
digitais. Posteriormente, o conteúdo das falas foi transcrito para construções textuais,
posteriormente analisadas nos termos do plano desenhado para este trabalho.
Exemplos não exaustivos das questões lançadas para os entrevistados estão no anexo 1 deste
relatório.
3.5 COLETA DE DADOS
Para atingir o propósito delineado por esta pesquisa, os trabalhos principiaram pela elaboração
de um histórico do controle externo da administração pública brasileira, a fim de dar um
contexto mais amplo do assunto onde se insere a pesquisa proposta. Como produto desse
levantamento, foram explicitadas as vigentes competências das Cortes de Contas.
A seguir, foi traçado um panorama acerca de dois outros relevantes controles da
administração pública brasileira, o controle social e o controle judicial17. O fim dessa incursão
procurou deixar clara a direta ligação entre estes três institutos de controle da gestão pública:
o controle externo, o controle social e o controle judicial. Como produto desse levantamento,
foram trabalhadas questões que permeiam o cotidiano da vida cidadã, como o combate à
corrupção, a responsabilização de agentes públicos e privados e a qualidade dos elementos
probatórios colacionados pelos trabalhos auditoriais – sempre com foco na efetividade das
atividades de controle externo, ou seja, na efetividade dos trabalhos de auditoria realizados
pelo TCERS. Esse esforço construiu o referencial teórico desta dissertação.
Dando continuidade ao estudo, a análise recaiu sobre agentes de controle direta ou
indiretamente envolvidos com os Tribunais de Contas. Foram entrevistados, por meio dos
questionários semiestruturados, operadores de controle do TCERS, do MPRS, do TCU e da
17
Existem outros controles sobre a administração pública brasileira, como o Controle Interno, o controle
exercido pelo Ministério Público (MP) e o Controle Político. Muito embora o relatório final de pesquisa – ou
Dissertação – possa vir a trazer os conceitos dessas instituições de controle, elas estarão fora do escopo da
pesquisa, dada a necessidade de limitar-se o objeto de estudo.
42
Polícia Civil do RS, sendo o diálogo voltado às três categorias de análise apresentadas na
seção “Análise e interpretação dos dados”.
A pesquisa utilizou-se, também, dos convênios firmados pelo TCERS junto a outros órgãos
tidos como parceiros (alguns jurisdicionados, outros não), buscando identificar cruzamentos
de dados e oportunidades de provas robustas e adequadas para a instrumentalização dos
trabalhos auditoriais.
Os esforços, neste ponto da pesquisa, foram centrados no Centro de Gestão Estratégica de
Informações para o Controle Externo (CGEX). É esse setor do TCERS que hoje congrega os
esforços mais destacados na busca por convênios, sistemas e informações externas à Corte de
Contas gaúcha, passíveis de utilização pelos serviços de auditoria.
Foi efetuado um inventário dos convênios firmados pelo TCERS com outras entidades, tidas
como parceiras institucionais, como a SEFAZ, o Instituto de Previdência do Estado (IPE),
Departamento Estadual de Trânsito do Estado (DETRAN), Junta Comercial, Companhia de
Processamento de Dados do RS (PROCERGS), entre outras.
Esse esforço de levantamento foi pontuado por uma entrevista semiestruturada a determinado
auditor lotado no CGEX, a fim de se efetuar um desenho temporal desse setor relativamente
novo dentro do organograma da instituição.
A pesquisa também deu cabo a um levantamento, evidentemente amostral – amostragem não
probabilística, por acessibilidade ou conveniência (BEUREN, 2008) –, na base de relatórios
de auditoria da área municipal. Foi no compulsar dos autos processuais da área municipal,
prospectados amostralmente, que a pesquisa intentou oportunidades de incrementos nos testes
auditoriais até então realizados, partindo dos achados decorrentes dos convênios firmados.
Contou, nesse aspecto, a experiência profissional do pesquisador nos seus trabalhos rotineiros
de auditoria do setor público municipal, realizados em municípios da região noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul – pesquisa participante (BEUREN, 2008; Gil, 2008).
43
A coleta de dados, como já mencionado, foi realizada através de uma pesquisa de campo com
a realização de entrevistas semiestruturadas com agentes públicos ligados ao controle da
administração pública. Optou-se por entrevistas semiestruturadas porque estas dão mais
liberdade e espontaneidade ao informante, criando um ambiente propício à interação
(BEUREN, 2008).
De acordo com Beuren (2008), pode-se considerar a entrevista semiestruturada como uma
entrevista por pautas, por ser flexível e apresentar certo grau de estruturação, guiada por uma
relação de pontos de interesse que o entrevistador vai explorando ao longo de seu curso. Além
disso, essa técnica apresenta um grande poder de retroalimentação, pois possibilita que seja
estimulado o seu desenvolvimento e a abordagem de assuntos e nuanças não previstos
inicialmente, permitindo uma participação efetiva do entrevistado sobre o conteúdo da
pesquisa.
Fechados os ciclos de análises, a pesquisa diagnosticou pormenorizadamente o estágio atual
dos trabalhos de auditoria no TCERS, em âmbito municipal, identificando desafios, ameaças e
oportunidades correlatas ao seu estágio evolutivo.
3.6 ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS
Nesta seção, passa-se a expor o conjunto de critérios adotados para bem analisar e interpretar
os dados colacionados ao longo de toda a pesquisa. Ou seja, está aqui a descrição do caminho
e da estratégia utilizada para alcançar os resultados almejados, partindo-se de critérios
cientificamente válidos e logicamente cadenciados.
Tratou-se de uma pesquisa essencialmente qualitativa, prospectada por meio de entrevistas
semiestruturadas, análise documental e revisão bibliográfica. As amostras selecionadas não
adotaram critérios probabilísticos, tendo sido praticados critérios de acessibilidade e/ou
conveniência, unicamente.
Dado que uma pesquisa qualitativa é analítica e interpretativa, sendo necessário atentar para o
conjunto de representações sociais que circundam o tema proposto, utilizou-se a análise de
conteúdo como plano de análise e interpretação dos dados coletados.
44
Segundo Minayo (2012), esse método nasceu no início do século XX, onde predominava o
behaviorismo – com forte influência positivista. Muito embora sua origem estivesse centrada
em aplicações positivistas com variáveis quantitativas, a evolução do método o tornou muito
adequado para pesquisas qualitativas, tanto que para Beuren (2008), no momento presente, a
análise de conteúdo privilegia dados qualitativos.
Uma das maiores pesquisadoras do método, Laurence Bardin, conceitua assim esse
instrumento18 de análise e interpretação dos dados coletados:
[...] conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por
procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens,
indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos
relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens
(grifo do autor) (BARDIN, 2011, p. 48).
A escolha dessa técnica não é, evidentemente, ocasional. Sendo a análise de conteúdo um
instrumental utilizado para analisar comunicações, tem-se a ligação direta de suas estruturas
com a metateoria habermasiana da democracia – lastreada, como visto, na Razão
Comunicativa.
A perfeita ideia do vocábulo comunicação não é nada restritiva em sua acepção para o método
escolhido. Segundo Bardin (2011), qualquer comunicação, ou qualquer veículo de
significados, de um emissor para um receptor pode ser decifrado pelas técnicas de análise de
conteúdo. Portanto, tudo que é dito ou escrito pode ser submetido a uma análise de conteúdo –
a língua, falada ou escrita, é a matriz do método19.
Isso tudo casa com o objetivo geral da pesquisa ora relatada, porquanto a verificação da
efetividade dos trabalhos de controle externo do TCERS perpassa o intenso grau de
comunicação social e transparência dos tempos modernos. Se os trabalhos entregues pelo
TCERS à sociedade são ou não são efetivos, assoma-se pertinente a aplicação da análise de
conteúdo para o alcance da resposta – ou seria das respostas?
18
Nas palavras da própria Bardin (2011), em essência não se trata de um instrumento, mas de um leque de
apetrechos.
19
Para esta pesquisa, por exemplo, a matéria-prima angariada estava em relatórios de auditoria, em decisões
administrativas das cortes de contas, nas decisões judiciais monocráticas e coletivas, na doutrina acadêmica
relacionada ao multifacetado controle externo, nas entrevistas semiestruturadas realizadas com agentes públicos
de controle em múltiplos órgãos públicos, etc. – tudo fruto da linguagem escrita ou falada originária de várias
fontes: de uma pessoa isoladamente, de um diálogo, de um grupo restrito ou mesmo de uma comunicação
pública de massa.
45
Do esforço para lucidamente analisar e interpretar os dados de uma realidade social
circunstancial, tendo a análise de conteúdo como esteio, importa destacar o forte traço
empírico dessa técnica. Nas palavras de Bardin (2011),
Não existe coisa pronta em análise de conteúdo, mas somente algumas regras de
base, por vezes dificilmente transponíveis. A técnica de análise de conteúdo
adequada ao domínio e ao objetivo pretendidos tem de ser reinventada a cada
momento, exceto para usos simples e generalizados [...] (BARDIN, 2011, p. 36).
Tudo isso porque a busca científica exige um rigor acentuado para as suas descobertas. Seus
achados e seus argumentos precisam estar, conforme Habermas (1984), sujeitos à validação.
A diferença entre o que aparenta ser e a realidade essencial deve ser suprimida pelo esforço
criterioso e racional, cujo compromisso único é para com a evolução.
A análise de conteúdo forjou-se, com o passar dos tempos, em uma séria tentativa de fugir das
aparências das simples intuições. Conforme Bardin (2011),
Apelar para esses instrumentos de investigação laboriosa de documentos é situar-se
ao lado daqueles que, de Durkheim a P. Bourdie passando por Bachelard, querem
dizer não “à ilusão da transparência” dos fatos sociais, recusando ou tentando afastar
os perigos da compreensão espontânea. É igualmente “tornar-se desconfiado”
relativamente aos pressupostos, lutar contra a evidência do saber subjetivo, destruir
a intuição em proveito do “construído”, rejeitar a tentação da sociologia ingênua,
que acredita poder apreender intuitivamente as significações dos protagonistas
sociais, mas que somente atinge a projeção da sua própria subjetividade (BARDIN,
2011, p. 34).
Com o auxílio da análise de conteúdo, portanto, descreveu-se analiticamente o objeto de
estudo apresentado nesta dissertação, dividindo-se o tema em categorias temáticas interrelacionadas e posteriormente inferiram-se proposições20 para as considerações finais desta
pesquisa – essa foi a estratégia de interpretação seguida na pesquisa. Tal qual o ofício de um
arqueólogo, buscou-se tirar partido das múltiplas mensagens auferidas para só aí inferir, de
maneira a mais lógica possível, conhecimentos sobre o tema pesquisado.
20
Para o linguajar da análise de conteúdo, em uma visão de Bardin (2011), inferência é uma operação lógica,
pela qual se admite uma proposição em virtude da sua ligação com outras proposições já aceitas como
verdadeiras – no sumo, inferências são deduções lógicas. Dessa feita, inferir deve ser lido como a extração de
consequências.
46
Diante do exposto, o quadro 2 apresenta as categorias e subcategorias (ou critérios de análise)
utilizadas neste estudo para apurar a efetividade dos trabalhos auditoriais de regularidade do
TCERS.
Quadro 2 – Categorias e subcategorias de análise (ou critérios de análise)
Categorias de análise
Subcategorias de análise
1- Trabalhos de auditoria e segurança jurídica
1.1- Da discussão da
responsabilidade pelos atos e fatos
da gestão auditada
1.2- Da qualidade das provas
angariadas pela técnica auditorial
2- Trabalhos de auditoria e o combate à corrupção na
administração pública
2.1- Da interpretação acerca da
missão constitucional do TCERS e
o seu desenrolar no mundo da vida
2.2- Dos trabalhos de auditoria e o
combate à corrupção
3- Trabalhos de auditoria e o controle social da
administração pública
3.1 - Trabalhos de auditoria e o
controle social da administração
pública
Fonte: elaborado pelo autor.
Explicando melhor o método e a sua concreta aplicação neste esforço acadêmico, tem-se que
o controle externo e a auditoria de regularidade, executados pelo TCERS em seus trabalhos de
âmbito municipal, e após identificadas as suas funções e a sua independência para com as
demais estruturas de Estado, foram abordados conjuntamente com temas relevantes e
umbilicalmente afetos à sua efetividade – conceituada na seção “A efetividade para fins desta
pesquisa” –, como o combate à corrupção na administração pública, o controle social da
mesma e o controle do Poder Judiciário sobre os trabalhos do próprio TCERS. Portanto, o
produto do método não será um número, mas sim um olhar qualitativo e limitado sobre a
realidade do controle externo e da auditoria de regularidade praticados pelo TCERS21.
No esteio do quadro 2, a análise foi realizada em 3 (três) categorias, subdivididas em 5 (cinco)
subcategorias – essas sim, unidades receptoras de análises. Ou seja, a subcategoria 1.1,
21
Para Bardin (2011), a abordagem quantitativa fundamenta-se na frequência de aparição de determinados
elementos da mensagem, enquanto a abordagem qualitativa recorre a indicadores não frequenciais suscetíveis de
permitir inferências.
47
intitulada “Da discussão da responsabilidade pelos atos e fatos da gestão auditada”,
condensou uma análise sobre como a auditoria de regularidade encarar a responsabilidade
pelos atos e fatos da gestão pública fiscalizada. Já a subcategoria 1.2, intitulada “Da qualidade
das provas angariadas pela técnica auditorial”, voltou o olhar da pesquisa para a qualidade das
provas colacionadas pelos trabalhos auditoriais do TCERS.
A subcategoria temática 2.1, intitulada “Da interpretação acerca da missão constitucional do
TCERS e o seu desenrolar no mundo da vida”, foi destacada para apurar se a missão
constitucional do TCERS e o seu desenrolar no mundo da vida – conceito habermasiano –
formam uma identidade, de tal modo a verificar se os trabalhos da Corte de Contas estão
efetivamente cumprindo com o seu dever lançado no ordenamento jurídico pátrio. Enquanto
que a subcategoria 2.2, “Dos trabalhos de auditoria e o combate à corrupção”, ocupou-se de
verificar se os trabalhos auditoriais do TCERS, de âmbito municipal, combatem a corrupção
que envolve, de alguma forma, a administração pública fiscalizada.
Por fim, a subcategoria 3.1, “Trabalhos de auditoria e o controle social da administração
pública”, lançou um olhar sobre a clara ligação existente entre a auditoria pública e o controle
social, cuja interface tem origem na Carta Magna, dado que qualquer cidadão, partido
político, associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar
irregularidades ou ilegalidades perante a Corte de Contas – §2º do art. 74 (BRASIL, 2013b).
É com esse caminho e com esse andar que se buscou saber mais sobre a efetividade dos
trabalhos de controle externo entregues pelo TCERS à sociedade.
3.6.1 A EFETIVIDADE PARA FINS DESTA PESQUISA
Aqui, repisa-se que a abordagem desta pesquisa é qualitativa, pois é essa a forma adequada
para se conhecer a natureza de um fenômeno social sem o emprego de instrumentos
estatísticos, atribuindo-se importante papel à interpretação. Como já consignado nesta
dissertação, a pesquisa qualitativa, nas ciências sociais, ocupa-se com um nível de realidade
que não pode ou não deveria ser quantificado.
48
O esforço empregado para apurar a efetividade dos trabalhos de auditoria de regularidade do
TCERS não apresentará um número, um percentual ou mesmo o singelo binômio sim-não.
Sequer afirmações do tipo “é efetivo” ou “não é efetivo”. O que se apresentará será fruto das
proposições extraídas das categorias e subcategorias de análise, no esteio do plano de análise
e interpretação dos dados construído especialmente para o atingimento dos objetivos
propostos. Tudo no plano qualitativo.
Para uma compreensão nítida dos propósitos, observa-se que efetividade pode ser lida como a
forma com a qual uma organização cumpre sua missão, alcança seus propósitos e se adapta às
mudanças do ambiente (BERTUCCI, 2005), muito embora o conceito de efetividade nos
estudos organizacionais seja temática antiga que apresenta perspectivas diversas e mesmo
contraditórias (BERTUCCI, 2005; HENRI, 2013; SANO; MONTENEGRO FILHO, 2013).
Figueiredo e Figueiredo (1986) chegam a identificar três tipos de efetividade em avaliações de
políticas públicas – efetividade objetiva, efetividade subjetiva e efetividade substantiva –,
visto que consideram a efetividade uma medida ampla dos efeitos de uma ação, incluindo aí a
necessidade de avaliações políticas.
Sano e Montenegro Filho (2013) estudam e apresentam vários modelos de avaliação de
desempenho na gestão pública, considerando, dentro outros, o prisma da efetividade. Para
eles, a efetividade é percebida mediante a avaliação das transformações ocorridas a partir da
ação.
Ao estudar a efetividade na administração pública, Castro (2006) e Ribeiro Filho et al. (2010)
entendem o conceito de efetividade como algo mais complexo do que os conceitos de
eficiência e eficácia. Para o Tribunal de Contas da União (2000, p. 15), efetividade é a
“relação ente os resultados alcançados e os objetivos que motivaram a atuação institucional,
entre o impacto previsto e o impacto real de uma atividade”. É a avaliação dos impactos
concernentes à atuação da organização. A busca da efetividade, representada pelo
cumprimento da missão institucional, deve nortear todas as ações da organização (TCU,
2010).
49
Para Oliveira (2008), a efetividade é uma medida muito mais qualitativa do que quantitativa e
desconsidera, à semelhança do Tribunal de Contas da União (2000), as variáveis econômicas
de custos. E esse entendimento confluiu para o desta pesquisa.
Já Albuquerque (2007) traz um quadro sintético com inúmeros conceitos de efetividade
aplicados por órgãos públicos de controle da administração pública, no Brasil e no mundo,
porém, todos se assemelham ao conceito do Tribunal de Contas da União (2000).
A carga semântica do verbete efetivo deve, para fins deste trabalho, ser tida como: “capaz de
produzir um efeito real” ou, ainda, “qualidade do que atinge os seus objetivos estratégicos,
institucionais, de formação de imagem etc.”. (HOUAISS, 2009) – ou seja, uma visão
puramente qualitativa.
Outra forma de entender efetividade para fins deste trabalho é a ensinada por Bergue (2014).
Para esse pesquisador, o controle externo efetivo é o que a sociedade precisa e quer – numa
expressão essencialmente política – e o que a administração pública demanda como
retroalimentação do ciclo de gestão (BERGUE, 2014). Assim, entende-se controle externo
efetivo como o que causa impacto transformador positivo e é de fato desejado pela sociedade
e pela administração pública (BERGUE, 2014).
Sem esgotar a significação desse verbete para este trabalho, ainda contribui para o perfeito
entendimento do que se busca o conceito esposado por Coelho (2010), segundo o qual
controle externo efetivo é, antes de tudo, aquele que cumpre sua principal missão: fiscalizar a
arrecadação e a aplicação dos recursos públicos.
Portanto, eis o desenho metodológico utilizado para responder à questão lançada no problema
de pesquisa.
50
4 EVOLUÇÃO, INDEPENDÊNCIA E FUNÇÕES DO CONTROLE EXTERNO
Nesta unidade do trabalho é feita uma revisão da literatura para então apresentar-se estudos já
realizados sobre o tema da pesquisa. Parte-se, assim, de uma abordagem histórica sobre o
controle externo da administração pública, atingindo-se temas como a sua independência e as
suas funções. São tratadas, igualmente, questões como o controle judicial das decisões
exaradas pelas Cortes de Contas e o fenômeno da corrupção. E ao final são abordados
aspectos do controle social da administração pública.
Esse trabalho ficou organizado nas seguintes seções: 4.1, evolução do controle externo, 4.2,
controle judicial das decisões exaradas pelos Tribunais de Contas, 4.3, corrupção e 4.4,
controle social da administração pública.
4.1 EVOLUÇÃO DO CONTROLE EXTERNO
Conforme já apresentado neste trabalho, há registro de controles atinentes à administração
pública desde os tempos mais antigos, estando essa construção intimamente ligada à formação
dos primeiros povoados e das primeiras civilizações (SCHMIDT, 2000; COSTA, 2006).
Relata Angélica Petian (2007, apud PELEGRINI, 2014) que já na Grécia antiga as contas dos
arcontes – administradores dos arcondados gregos – eram julgadas por um colegiado, cuja
finalidade era verificar o nível de satisfação da sociedade em relação às ações por eles
desenvolvidas. Segundo o aponte, concluído que os atos por eles praticados não atendiam às
expectativas da coletividade, a pena aplicada poderia ser a de decapitação, isso conforme o
juízo do colegiado. Ou seja, os controles ligados à administração pública são ínsitos às formas
mais tenras de Estado.
Datar com precisão as primeiras formas de governo e seus decorrentes controles patrimoniais
não é tarefa fácil, mas para Orens (1977) e Sá (1997) esse estágio da estrutura social situa-se
aproximadamente entre 5000 e 7000 a.C. – portanto, antes mesmo do surgimento da escrita,
marco convencional da história. Ribeiro (2002) relata registros de controle e fiscalização
mantidos pelo Estado já na unificação dos dois Egitos, em 3200 a.C, no reino de Menés I.
51
O controle é tão inerente a quaisquer formas de Estado que em nenhum regime – monarquia
absolutista ou democracia social – os detentores do poder admitem desvios, desperdícios ou
subtração dos recursos de que dispõem para atingir seus objetivos (LIMA, 2011). A partir
desse raciocínio, Mileski (2011) explica que o controle do Estado era efetuado por meios
diretamente relacionados às necessidades, à organização e à cultura de cada povo,
apresentando o instituto variadas formas de organização e funcionamento.
Consta na grafia de Schmidt (2000) que por volta do ano 2000 a. C. os controles e
documentos fiscais já eram complexos e obrigatórios no Estado egípcio, onde a administração
exercida era centralizada. Na ilha grega de Creta, ao experimentar o seu apogeu agrícola e
industrial, por volta de 2100 e 1580 a.C., o Estado controlava toda a produção por meio de
apurados registros contábeis. Um documento contábil da antiguidade grega, datando de 454 a
406 a. C. e oriundo do templo de Atenas, relacionava todos os contribuintes de impostos do
império grego (SCHMIDT, 2000).
Dada a exposição dos pesquisadores, percebe-se que os primeiros contornos dos incipientes
controles estatais dão conta de esforços arrecadatórios, de forma geral por meio de impostos
(PELEGRINI, 2014). Como qualquer produto do conjunto social detentor de milênios de
história, o grau de desenvolvimento do controle estatal também esteve intimamente associado
ao progresso científico e tecnológico de cada época.
No entanto, identificar as primeiras atividades associadas com o controle externo sobre as
atividades do Estado dissente historiadores, conforme pontua Lima (2011). O autor, em sua
obra, informa que Bruno Wilhelm Speck aponta como matriz do modelo a criação do Tribunal
de Contas espanhol no século XV, muito embora Helio Saul Mileski tenha destacado a
formação do Exchequer inglês ainda no século XII (LIMA, 2011).
Para Moraes (2007), a origem remota dos atuais Tribunais de Contas foi a criação em Berlim,
no ano de 1714, da Controladoria Geral de Contas – órgão colegiado de controle estatuído
pelo rei Frederico Guilherme I da Prússia22. Já para Ribeiro (2002) e Costa (2006), o embrião
dos atuais Tribunais de Contas esteve na Grécia e decorre dos então denominados
legisperitos. Aqui, cabe destaque à questão da publicidade dos gastos governamentais na
22
Segundo o autor, posteriormente, em 1818, a sede do órgão mudou para Potsdam e o mesmo passou a se
chamar Contadoria Geral de Contas (MORAES, 2007).
52
Grécia antiga. Constam, no Museu Britânico, tábuas escritas em pedra com a prestação de
contas dos administradores públicos (RIBEIRO, 2002). Esses instrumentos de transparência
ficavam expostos na polis, permitindo a sua conferência pelos cidadãos.
Para lá ou para cá, um acontecimento da história moderna da civilização – ocorrido entre os
anos 1789 e 1799 – indubitavelmente marcou a evolução do controle externo exercido sobre a
arrecadação e a aplicação coletiva dos impostos geridos pelo Estado: a Revolução Francesa.
Sob o lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, movimentos sociais derrubaram a
monarquia absolutista que tinha governado o País durante séculos (GALLO, 2009a; GALLO
2009b).
A sociedade francesa passou por uma grande transformação quando privilégios feudais,
aristocráticos e religiosos evaporaram-se sob um ataque sustentado por grupos políticos de
esquerda, pelas massas nas ruas e por camponeses da região rural do país. Antigos paradigmas
da tradição e da hierarquia de monarcas, aristocratas e da igreja católica foram abruptamente
derrubados (GALLO, 2009a; GALLO 2009b).
Na lição de Ribeiro (2002, p. 50)23,
O clamor revolucionário, as ideias iluministas de igualdade, liberdade e fraternidade,
e o consequente implemento dos ideais democráticos vêm trazer à cena um novo
componente à questão do controle do povo e seus representantes sobre os atos
administrativos de seus governantes.
A expansão dos ideais Revolucionários por Napoleão e as revoluções de 1848
levaram a estruturação de cortes de contas sob esse novo modelo em diversas partes
da Europa, que, além das tradicionais atribuições relativas aos atos dos agentes
administrativos, passavam a exercer um controle sobre os agentes políticos,
iniciando o rompimento com o passado patrimonialista histórico.
As Chambres de Comptes foram extintas pela Revolução, tendo suas funções
transferidas para a Assembleia Constituinte, sendo instituído em 1807 o Tribunal de
Contas da França (Cour de Comptes) durante o regime napoleônico, utilizando-se do
sistema de controle a posteriori dos gastos públicos.
Assim, como já referido na apresentação do tema desta pesquisa, encontra-se no art. 15 da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão – produto da revolução francesa, 1789 –
importante marco na relação de distinção lúcida entre o público e o privado, absolutamente
23
A Doutora em Direito do Estado Marcia Pelegrini (2014) traz as mesmas constatações de Ribeiro (2002) para
o momento histórico ora relatado.
53
relevante para a importância do controle sobre o patrimônio público: “A sociedade tem o
direito de pedir contas a todo agente público pela sua administração” (USP, 2013).
No Brasil, a história do controle remonta ainda ao período colonial, quando foram criadas as
Juntas das Fazendas das Capitanias e a Junta da Fazenda do Rio de Janeiro, em 1680,
jurisdicionadas a Portugal (TCU, 2013). Em 1808, com a vinda da família real para a colônia
sulista, foi instalado, na administração de Dom João VI, o Erário Régio e criado o Conselho
da Fazenda, que tinha como atribuição acompanhar a execução da despesa pública (TCU,
2013).
Em 1822, como decorrência da proclamação da independência do Brasil, o Erário Régio foi
transformado no Tesouro pela Constituição monárquica de 1824, prevendo-se, então, os
primeiros orçamentos e balanços gerais (BRASIL, 2013a):
CAPITULO III.
Da Fazenda Nacional.
Art. 170. A Receita, e despeza da Fazenda Nacional será encarregada a um Tribunal,
debaixo de nome de 'Thesouro Nacional" aonde em diversas Estações, devidamente
estabelecidas por Lei, se regulará a sua administração, arrecadação e contabilidade,
em reciproca correspondencia com as Thesourarias, e Autoridades das Provincias do
Imperio.
[...]
Art. 172. O Ministro de Estado da Fazenda, havendo recebido dos outros Ministros
os orçamentos relativos ás despezas das suas Repartições, apresentará na Camara
dos Deputados annualmente, logo que esta estiver reunida, um Balanço geral da
receita e despeza do Thesouro Nacional do anno antecedente, e igualmente o
orçamento geral de todas as despezas publicas do anno futuro, e da importancia de
todas as contribuições, e rendas publicas.
Já a ideia de criação de um Tribunal de Contas surgiu, pela primeira vez no Brasil, em 23-061826, com a iniciativa de Felisberto Caldeira Brandt – Visconde de Barbacena – e de José
Inácio Borges (RIBEIRO, 2002; TCU, 2013; PELEGRINI, 2014). Os dois apresentaram
projeto de lei nesse sentido ao Senado do Império.
No entanto, o atual modelo brasileiro de controle externo teve o seu germe lançado com a
proclamação da República, em 1889 (AGUIAR; ALBUQUERQUE; MEDEIROS, 2011). Foi
por meio do Decreto nº 966-A, de 07-11-1890, que se criou o Tribunal de Contas da União
(TCU), após exitosa iniciativa do então Ministro da Fazenda, Rui Barbosa. Portanto, Rui
54
Barbosa foi o reorganizador do sistema de controle das contas públicas do País; foi o
idealizador, criador e patrono do Tribunal de Contas brasileiro (ANDRIOLO, 2000; SILVA,
2000).
Conforme lição de Pelegrini (2014), a partir de 1946 as constituições brasileiras passaram a
tratar do Tribunal de Contas no capítulo destinado ao Poder Legislativo24. E, segundo Aguiar
(2010), o termo “controle externo” surgiu pela primeira vez na Carta de 1967, em seu art. 71.
Muito embora o germe do modelo atual tenha sido lançado em 1890, o Tribunal de Contas do
Estado do Rio Grande do Sul só veio a ser criado em 26-06-1935, após a firma do Decreto
Estadual nº 5.975, exarado pelo então Governador, General Flores da Cunha (TCERS,
2013b). O mesmo decreto fixou também as atribuições da Corte de Contas gaúcha, delegando
ao órgão colegiado o acompanhamento da execução orçamentária do Estado do Rio Grande
do Sul e dos seus Municípios, bem como o julgamento das contas dos responsáveis por
dinheiros e bens públicos (TCERS, 2013b).
4.1.1 INDEPENDÊNCIA
A independência do Tribunal de Contas é de tamanha magnitude que Aristóteles, em
A Política, três séculos antes de Cristo, já assim asseverava: “Mas como certas
magistraturas, para não dizer todas, têm o manejo dos dinheiros públicos, é forçoso
que haja uma outra autoridade para receber e verificar as contas sem que ela própria
seja encarregada de qualquer outro mister”. (grifos do autor) (COSTA, 2006, p. 71).
Para adequadamente principiar uma abordagem acerca das funções do controle externo da
administração pública, especificamente no caso brasileiro, torna-se preeminente apartá-lo do
modelo clássico de divisão das funções do Estado de Montesquieu – filósofo nascido no
século XVII, pensador iluminista (MONTESQUIEU, 2008). Da obra de Montesquieu,
intitulada “O Espírito das Leis”25, deriva a célebre tripartição do poder – ou da função –
estatal em Legislativo, Executivo e Judiciário.
24
Importa observar que o controle externo, desenhado pela Carta Magna nos artigos 31 e 70 a 75, compreende
dois aspectos: o político, atribuído aos órgãos do Poder Legislativo, e o técnico, exercido pelos Tribunais de
Contas. Evidentemente, como consta na apresentação do tema, este trabalho ocupa-se dos aspectos técnicos.
25
Para escrever este clássico, o francês Montesquieu se baseou na obra de Aristóteles – “Política” – e de John
Locke – “Segundo Tratado do Governo Civil”.
55
Segundo o clássico, para garantir a harmonia do sistema tripartite seria fundamental
estabelecer a autonomia e os limites de cada um dos poderes (MONTESQUIEU, 2008). É
desse raciocínio que advém o sistema de freios e contrapesos, o qual consiste na contenção do
poder pelo poder; ou seja, cada poder deve ser autônomo e exercer dada função, porém, o
exercício dessa função deve ser controlado pelos outros poderes. Dessa feita, estabelece-se
que os poderes são independentes e, simultaneamente, harmônicos entre si.
Essa divisão clássica inspirou o que foi consolidado pelo art. 16 da Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão – produto da revolução francesa, 1789: “A sociedade em que não
esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem
Constituição” (USP, 2013). Não somente, dado que em muitas constituições nacionais a
clássica modelagem montesquiana é seguida, inclusive na Constituição brasileira de 1988,
senão veja-se: “art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o
Legislativo, o Executivo e o Judiciário” (BRASIL, 2013b).
No entanto, o enquadramento constitucional do controle externo brasileiro não está inserido
no corpo orgânico de nenhum dos três poderes estatais (PELEGRINI, 2014). Conforme Neto
(2006):
Assim, o processo organizativo do poder, como não se esgotou no
constitucionalismo clássico, está longe de ter acabado no moderno
constitucionalismo, e prossegue a destacar novas funções específicas, que passam a
ser desempenhadas por órgãos independentes, que não mais se incluem nos três
complexos orgânicos que são denominados, por metonímia tradicional, de Poderes,
porque exerciam, como ainda o exercem, o que eram antes as únicas segmentações
do Poder do Estado (ou os “Poderes da União”, como está no art. 2º da Constituição
brasileira), mas que hoje se alinham apenas como as mais importantes, tanto pelas
funções que desempenham quanto pela especial investidura de seus exercentes.
Os Tribunais de Contas do Brasil são, assim, um nítido exemplo de órgãos
dotados de autonomia constitucional no contexto da ordem jurídica brasileira [...].
(grifos do autor) (NETO, 2006, p. 21).
Para bem exercer as suas funções – que têm matriz constitucional –, o controle externo é
autônomo e independente, tanto do legislativo – poder com o qual deve manter estreita
contribuição, conforme mandamento da Carta Magna – quanto mais do judiciário e do
56
executivo. Essa é a posição que claramente se sobressai da leitura da Constituição de 198826
(COSTA, 2006; MELLO, 2009; PELEGRINI, 2014), conforme a melhor doutrina.
Para tanto, leia-se a construção de Marcia Pelegrini (2014):
Trata-se de órgão auxiliar do Poder Legislativo, mas não subordinado, e que
tampouco integra sua estrutura. Foi criado posteriormente à teoria da separação dos
poderes e não se insere nas linhas rígidas da tripartição, a exemplo do que ocorre
com o Ministério Público. Todavia, não o concebemos como um dos poderes da
República, mas, adotando o entendimento do Ministro Celso de Mello e Odete
Medauar, o consideramos um conjunto orgânico autônomo. A subordinação
hierárquica a qualquer poder representaria limitação e até mesmo a inviabilidade da
efetivação da função de controle em sua plenitude. (grifo do autor) (PELEGRINI,
2014, p. 96).
A redação do art. 71 da Constituição de 1988, vigente, pode trazer certa confusão a esse
entendimento (MEDAUAR, 2012), já que sua construção, ipsis litteris, é na seguinte direção:
“O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal
de Contas [...]”(grifo do autor)(BRASIL, 2013b). Assim, a carga de significância jurídica do
verbete “auxílio” deve ser adequadamente explicitada, visto que se trata apenas de necessária
cooperação entre os Tribunais de Contas e os Poderes Legislativos, não de uma subordinação.
É com essa orientação que Neto (2006, p. 23) conclui:
[...] a Constituição instituiu uma distinção estrutural de cunho político entre o
Poder Legislativo e o Tribunal de Contas; e o fez não só por estar a mencioná-los
separadamente, o que seria um dado puramente formal, com, e principalmente,
porque quis estabelecer entre ambos uma relação, que não sendo paritária nem,
tampouco, de hierarquia ou de subordinação, só pode ser de cooperação, o que
claramente se expressa na voz auxílio (art. 71, caput). (grifos do autor).
Com idêntico norte é o magistério da professora da Universidade de São Paulo (USP), Odete
Medauar, e do professor de direito administrativo, Sérgio Ferraz:
Tendo em vista que a própria Constituição assegura, ao Tribunal de Contas, as
mesmas garantias de independência do Poder Judiciário, impossível considerá-lo
subordinado ao Legislativo ou inserido na estrutura do Legislativo. Se a sua função é
de atuar em auxílio ao Legislativo, sua natureza, em razão das próprias normas da
Constituição, é de instituição independente, desvinculada da estrutura de qualquer
dos três poderes. Por conseguinte, o Tribunal de Constas configura instituição
estatal independente. (grifo do autor) (MEDAUAR, 2012, p. 144).
26
Assim como o Ministério Público, o sistema Tribunal de Contas não está subordinado a nenhum dos três
poderes. É autônomo e independente no estrito cumprimento de sua missão constitucional.
57
Uma primeira tentação comodista apressemo-nos a desmanchar: a de situar o
Tribunal de Contas no Poder Legislativo, em vista de sua colocação no supra
referido Capítulo I do Título IV. Em realidade, o que se contém, na seção IX, é a
disciplina “da fiscalização contábil, financeira e orçamentária”, atribuição que é
“exercida pelo Congresso Nacional” (CF. artigo 70, caput), “com o auxílio do
Tribunal de Contas.” (CF. artigo 71).
Em momento algum, entretanto, a Constituição denomina o Tribunal de Contas
“órgão auxiliar” (de quem quer que seja). O que ele fez, repita-se, é afirmar que o
controle externo da execução financeiro-orçamentária, de atribuição do Congresso
Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas. Trata-se, a toda
evidência, de um mecanismo de cooperação integrada, fórmula essa, aliás,
encontrada ao longo do texto constitucional, unindo diversos Poderes Estatais na
consecução de um fim comum (o exemplo mais notável dessa cooperação
independente mas integrada é a que se dá entre Executivo, Legislativo e Judiciário e
a Ordem dos Advogados do Brasil, para a nomeação de magistrados a terem assento
nos tribunais superiores como representantes da advocacia).
Bem ao revés, aliás, o Texto Magno confere ao Tribunal de Contas competências
típicas de Poder (artigo 71), aplicando a seus membros “as mesmas garantias,
prerrogativa, vencimentos e vantagens” dos Ministros do Superior Tribunal de
Justiça. (CF. artigo 73, §3º).
Por tudo isso é que a mais autorizada doutrina jurídica brasileira tem qualificado os
Tribunais de Contas como “instituição estatal independente”. (FERRAZ, 2004 apud
MELLO, 2009, p. 67).
O ex-Ministro do STF Carlos Ayres Britto constrói lúcida defesa na mesma direção,
lecionando que os Tribunais de Contas não integram nenhum dos três Poderes e, mais, gozam
de autonomia27.
[...] começo por dizer que o Tribunal de Contas da União não é órgão do
Congresso Nacional, não é órgão do Poder Legislativo. Quem assim me autoriza
a falar é a Constituição Federal, com todas as letras do seu art. 44, litteris: “O Poder
Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos
Deputados e do Senado Federal” (negrito à parte). Logo, o Parlamento brasileiro
não se compõe do Tribunal de Contas da União. Da sua estrutura orgânica ou
formal deixa de fazer parte a Corte Federal de Contas e o mesmo é de se dizer para a
dualidade Poder Legislativo/Tribunal de Contas, no âmbito das demais pessoas
estatais de base territorial e natureza federada. [...]
[...] além de não ser órgão do Poder Legislativo, o Tribunal de Contas da União não
é órgão auxiliar do Parlamento Nacional, naquele sentido de inferioridade
hierárquica ou subalternidade funcional. Como salta à evidência, é preciso medir
com a trena da Constituição a estatura de certos órgãos públicos para se saber até
que ponto eles se põem como instituições autônomas e o fato é que o TCU desfruta
desse altaneiro status normativo da autonomia. Donde o acréscimo de idéia que
estou a fazer: quando a Constituição diz que o Congresso Nacional exercerá o
controle externo “com o auxílio do Tribunal de Contas da União” (art. 71), tenho
como certo que está a falar de “auxílio” do mesmo modo como a Constituição fala
do Ministério Público perante o Poder Judiciário. Quero dizer: não se pode exercer a
jurisdição senão com a participação do Ministério Público. Senão com a
obrigatória participação ou o compulsório auxílio do Ministério Público. Uma só
função (a jurisdicional), com dois diferenciados órgãos a servi-la. Sem que se possa
falar de superioridade de um perante o outro. [...]
27
Muito embora o jurista faça referência ao Tribunal de Contas da União (TCU), cabe aclarar que todos os
Tribunais de Contas do Brasil dispõem de idêntico tratamento constitucional por força do art. 75.
58
[...] O TCU se posta é como órgão da pessoa jurídica União, diretamente, sem
pertencer a nenhum dos três Poderes Federais. Exatamente como sucede com o
Ministério Público, na legenda do art. 128 da Constituição, incisos I e II. (grifos do
autor) (BRITTO, 2004, p. 176-178).
Solidificada a autonomia e a independência do controle externo – conforme o desenho
jurídico brasileiro –, cabe a seguinte indagação: quais seriam as funções estatais dessa
instituição de matriz constitucional?
4.1.2 FUNÇÕES DO CONTROLE EXTERNO
As funções atribuídas ao controle externo pela Constituição brasileira vigente são
indispensáveis ao funcionamento do Estado soberano, republicano e democrático,
representando bastiões dos direitos fundamentais (NETO, 2006; MELLO, 2009; MILESKI,
2011; FERNANDES, 2012; MEDAUAR, 2012). Tanto é que ao abordar a evolução da teoria
da tripartição dos poderes em tese sobre os Tribunais de Contas, Pelegrini (2014, p. 92)
asseverou que “poucas instituições possuem papel tão relevante e indispensável como aquela
criada com o objetivo primordial de fiscalizar e controlar os gastos públicos”.
A Constituição de 1988 talhou os Tribunais de Contas para serem efetivas instituições de
fiscalização atinentes à gestão administrativa integral do Estado (BRASIL, 2013b). De
fato, o controle externo foi forjado para atuar permanentemente – a priori,
concomitantemente ou a posteriori –, sem esquecer quaisquer tipos de atividades financeiras
da administração pública brasileira (CITADINI, 1995; COSTA, 2006; LIMA, 2011;
MILESKI, 2011; FERNANDES, 2012; MEDAUAR, 2012).
Os Tribunais de Contas podem agir por provocação ou de ofício, permeando todos os ângulos
e nuances ligados ao setor público. Estão encarregados da fiscalização contábil, financeira,
orçamentária, operacional e patrimonial, analisando, assim, critérios de legalidade,
legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas. Essa é a luz do
art. 70 da Constituição de 1988 (BRASIL, 2013b).
59
Ademais, conforme o mesmo dispositivo constitucional mencionado – art. 70, parágrafo único
–, prestará contas ao controle externo qualquer pessoa, física ou jurídica, pública ou privada,
que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou
pelos quais a administração pública responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de
natureza pecuniária (BRASIL, 2013b).
Desse liame constitucional, também restou aos Tribunais de Contas emitir parecer sobre as
contas dos Chefes dos Poderes Executivos – Presidente, Governadores e Prefeitos (art. 71,
inciso I) (BRASIL, 2013b). Ainda, julgar as contas dos administradores e demais
responsáveis por dinheiros, bens e valores oriundos da administração pública, assim como as
contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte
prejuízo ao erário público (art. 71, inciso II) (BRASIL, 2013b).
Compete também ao controle externo exercido pelos Tribunais de Contas apreciar, para fins
de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título, na administração
pública – excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão –, bem como a
legalidade das concessões de aposentadorias, reformas e pensões – ressalvadas as melhorias
posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório (art. 71, inciso III)
(BRASIL, 2013b).
Da grafia do inciso IV do art. 71 da Constituição de 1988, extrai-se que compete aos
Tribunais de Contas realizar, por iniciativa própria ou do Poder Legislativo – incluindo-se aí
CPIs –, inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e
patrimonial nas mais variadas unidades da administração pública, incluindo os Poderes
Legislativo, Executivo e Judiciário (BRASIL, 2013b).
Como desdobre do mandamento constitucional insculpido no inciso VIII do art. 71, cabe aos
Tribunais de Contas aplicar aos responsáveis as sanções previstas em lei – em caso de
ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas –, incluindo, entre outras cominações,
multa proporcional ao dano causado ao erário (BRASIL, 2013b). Aqui, importa referir que as
decisões dos Tribunais de Contas das quais resulte imputação de débito ou multa terão
eficácia de título executivo; assim determina expressamente o §3º do art. 71 (BRASIL,
2013b).
60
Ainda, verificada ilegalidade, é competência dos Tribunais de Contas assinar prazo para que o
órgão ou a entidade da administração pública fiscalizada adote as providências necessárias ao
exato cumprimento da lei – art. 71, inciso IX (BRASIL, 2013b). Após o devido processo
administrativo-fiscalizatório, e quando apurado abuso ou irregularidade, devem as Cortes de
Contas representar ao Poder competente – mandamento plasmado no inciso XI do art. 71
(BRASIL, 2013b).
Deve o sistema de controle interno de cada órgão da administração pública apoiar o controle
externo no exercício de sua missão institucional – inciso IV do art. 74 –, sendo que os
responsáveis pelo sistema, ao tomarem conhecimento de qualquer irregularidade ou
ilegalidade, devem dar ciência ao Tribunal de Contas competente, sob pena de
responsabilidade solidária – §1º do art. 74 (BRASIL, 2013b).
Por fim, qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na
forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante a Corte de Contas – §2º do art.
74 (BRASIL, 2013b).
Não bastassem as de per si robustas competências constitucionais das Cortes de Contas,
outros difusos atos normativos lançam funções para as mesmas (MILESKI, 2011;
FERNANDES, 2012). São exemplos, não exaustivos, as constituições estaduais, as leis
orgânicas de cada Tribunal de Contas, a Lei Federal nº 8666/1993 – regulamento para
licitações e contratos –, a Lei Federal nº 10.028/2000 – denominada Lei de Sanções Fiscais –,
a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e as Leis Federais nº 9637/1998 – art. 9º – e nº
9790/1999 – art. 12. Ou seja, a missão das Cortes de Contas é proteger o erário contra danos.
É defender a res publica contra sua apropriação pelos interesses privados
Tratando-se do TCERS, em seu site na rede mundial de computadores são relacionadas as
suas principais atribuições. Podem as mesmas serem arroladas no quadro 3:
Quadro 3 – Principais atribuições do TCERS
Atribuições do TCERS
Exercer, com a Assembleia Legislativa, na forma da Constituição, o controle externo das
contas dos Poderes do Estado e, com as Câmaras de Vereadores, o mesmo controle na área
municipal.
61
Atribuições do TCERS
Emitir Parecer Prévio sobre as contas do Governador e dos Prefeitos Municipais.
Realizar inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e
patrimonial e de gestão ambiental, acompanhando a execução de programas de trabalho e
avaliando a eficiência e eficácia dos sistemas de controle interno dos órgãos e entidades
fiscalizados.
Julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por bens, rendas e valores sujeitos
à sua jurisdição, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra
irregularidade de que resulte prejuízo ao erário.
Representar ao Governador e à Assembleia Legislativa, ao Prefeito e à Câmara Municipal,
sobre irregularidades ou abusos apurados no exercício de suas atividades fiscalizadoras.
Assinar prazo para o exato cumprimento de lei ou de disposição regulamentar.
Sustar, se não atendido, a execução de ato impugnado.
Comunicar, à Assembleia Legislativa ou à Câmara Municipal respectiva, a decisão referida no
inciso anterior, ou requerer a sustação, no caso de contratos, ou ainda promover as demais
medidas cabíveis para a cessação da ilegalidade.
Requisitar documentos.
Apreciar, para fins de registro, a legalidade das admissões de pessoal a qualquer título e das
concessões iniciais de aposentadorias, transferências para a reserva, reformas e pensões, bem
como das revisões, quando for alterada a fundamentação legal do respectivo ato concessor,
excetuadas as nomeações para cargos em comissão.
Exercer sua competência junto às autarquias, empresas públicas, sociedades de economia
mista, fundações instituídas ou mantidas pelo Poder Público e demais pessoas jurídicas
sujeitas à sua jurisdição.
Apreciar os contratos de locação de prédios e de serviços firmados entre quaisquer das
entidades referidas no inciso anterior e fundações privadas de caráter previdenciário e
assistencial de servidores.
Determinar providências acauteladoras do erário em qualquer expediente submetido à sua
apreciação.
Determinar, a qualquer momento, e quando houver fundados indícios de ilícito penal, remessa
de peças ao Procurador Geral de Justiça.
Aplicar multas e determinar ressarcimentos ao erário.
Processar, julgar e aplicar multa referente à infração administrativa prevista no artigo 5º da
Lei Federal nº 10.028, de 19 de outubro de 2000.
Fiscalizar a legalidade e a legitimidade da procedência dos bens e rendas acrescidos ao
patrimônio do agente público, bem como o cumprimento da obrigatoriedade da apresentação
de declaração de bens e rendas no exercício de cargo, função ou emprego público.
Fonte: elaborado pelo autor a partir do site do TCERS.
Conforme consta na sua identidade organizacional, a missão institucional do TCERS pode ser
sintetizada da seguinte maneira (TCERS, 2014d): “exercer o controle externo através da
fiscalização e acompanhamento da gestão dos recursos do Estado e dos municípios do
Rio Grande do Sul, em conformidade com os princípios que regem a administração
pública, tendo em vista a plena satisfação da sociedade”.
62
Em termos quantitativos da esfera municipal, foco deste estudo, o universo de atuação do
TCERS é composto por significativo número de órgãos e entidades, distribuídos pelas mais de
400 (quatrocentas) cidades gaúchas. Destarte, o universo de atuação da Corte de Contas
gaúcha está adequadamente apresentado na tabela 1.
Tabela 1 – Entidades da esfera municipal com atuação do TCERS
Administração Direta
Autarquia
Consórcio Administrativo
Empresa Pública
Fundação
Sociedade Anônima
Sociedade de Economia Mista
Sociedade Limitada
Total
994
65
44
4
41
16
2
3
1169
Fonte: elaborado pelo autor a partir do site do TCERS.
Para dar conta dessa numerosa gama de entidades municipais fiscalizadas, o TCERS possui
Serviços Regionais de Auditoria espalhados por 9 (nove) municípios gaúchos, mais a capital,
Porto Alegre. São eles: Caxias do Sul, Passo Fundo, Santa Cruz do Sul, Erechim, Santo
Ângelo, Frederico Westphalen, Santa Maria, Pelotas e Santa do Livramento.
Como exposto, a quantidade e a complexidade das funções atribuídas às Cortes de Contas
refletem diretamente a importância dessas instituições constitucionais para o desenvolvimento
da administração pública brasileira e, por conseguinte, do contexto socioeconômico do País.
4.2 CONTROLE JUDICIAL DAS DECISÕES EXARADAS PELOS TRIBUNAIS DE
CONTAS
Esta categoria de análise é relevante para os fins desta pesquisa na medida em que os serviços
de auditoria e controle externo prestados pelos Tribunais de Contas do Brasil devem deter
clara segurança jurídica, sob pena de ter-se afetada a almejada efetividade dos trabalhos.
Ou seja, prestar serviços de controle externo – auditoria e fiscalização da gestão pública –
com segurança jurídica (efetivos): eis o mister a ser entregue pelos Tribunais de Contas de
todo o País à sociedade brasileira.
63
Muito embora detenham inúmeras competências ligadas à fiscalização da correta aplicação
dos recursos públicos – partindo-se da Carta Cidadã –, assim como total independência
funcional para a persecução da sua relevante missão, a natureza das decisões dos Tribunais de
Contas é objeto de discussão no judiciário, condição que obsta, de forma preocupante, a
efetividade das mesmas.
Como exemplo prático anotado no Estado do Rio Grande do Sul, lança-se a ementa do
acórdão nº 70052113081 – apelação cível de relatoria do Desembargador Armínio José Abreu
Lima da Rosa –, proferido por desembargadores da vigésima primeira câmara cível do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS) em 30 de janeiro de 2013:
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. TRIBUNAL DE CONTAS.
CERTIDÃO E TÍTULO EXECUTIVO. ILEGALIDADE FORMAL. REEXAME
JURISDICIONAL. CABIMENTO.
A regra é descaber o reexame, pelo Poder Judiciário, quanto às decisões do Tribunal
de Contas de que emanam certidões configuradoras de título executivo (art. 71, § 3º,
CF/88), ressalvando-se, todavia, casos de manifesta ilegalidade, tal qual se dá
quanto a error in procedendo com graves repercussões substanciais, como
verificado no caso dos autos. (grifo do autor)(TJRS, 2014a).
A possibilidade de revisão das decisões das Cortes de Contas pelo Poder Judiciário, tanto da
forma processual quanto do mérito, é tese que se solidificou nos últimos anos na doutrina e na
jurisprudência pátrias (BRITTO, 2004; GRACIE, 2007; MELLO, 2009; CARVALHO
FILHO,
2012;
MEDAUAR,
2012;
PELEGRINI,
2014),
acarretando
importantes
desdobramentos a serem considerados, como a qualidade dos trabalhos auditoriais produzidos
pelos técnicos do TCERS – objeto desta pesquisa.
Outro exemplo da intervenção judiciária na efetividade dos trabalhos de auditoria é o contido
na ementa do acórdão nº 70041123399 – embargos infringentes –, proferido por
desembargadores do décimo primeiro grupo cível do TJRS em 15 de abril de 2011:
TRIBUNAL DE CONTAS. IMPUTAÇÃO DE DÉBITO.
CONTRATO ADMINISTRATIVO. PAGAMENTO INDEVIDO.
PREFEITO.
Não se pode imputar ao Prefeito, na qualidade de Chefe do Executivo, a
responsabilidade por danos ao erário praticados por outros agentes públicos.
Trata-se de responsabilidade subjetiva que exige prova da sua participação
dolosa ou culposa na ação ou omissão danosa. Hipótese em que não há prova da
participação do Prefeito na fiscalização do cumprimento de contrato de
prestação de serviços.
64
Embargos infringentes rejeitados. Relator e votos vencidos. (grifo do autor)(TJRS,
2014b).
Os ex-ministros do STF Carlos Ayres Britto (2004) e Ellen Gracie (2007) são diretos na
questão da não prestação jurisdicional pelas Casas de Contas, entendendo que das decisões
desses tribunais cabe revisão integral pelo Poder Judiciário. Veja-se:
Com esta separação conceitual, fica evidenciado que os Tribunais de Contas não
exercem a chamada função jurisdicional do Estado. A função jurisdicional do Estado
é exclusiva do Poder Judiciário [...]
Em síntese, pode-se dizer que a jurisdição é atividade-fim do Poder Judiciário,
porque, no âmbito desse Poder, julgar é tudo. Ele existe para prestar a jurisdição
estatal e para isso é que é forrado de competências e atribuições. Não assim com os
Tribunais de Contas, que fazem do julgamento um dos muitos meios ou das muitas
competências para servir à atividade-fim do controle externo. (grifo do autor)
(BRITTO, 2004, p. 184-186).
Ellen Gracie (2007) vai além e assevera que, sob pena de terem os descaminhos corrigidos
pelo judiciário, os processos mantidos pelas Cortes de Contas, tendentes a dar cabo à missão
constitucional de controle externo, devem observar os princípios e garantias naturais do
processo judicial, como o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa (com os
meios e recursos a ela inerentes), provas lícitas, duração razoável e adequada fundamentação.
Tudo isso em processo público, conforme fundamenta o inciso LX do art. 5º da CF de 1988.
Diante da defesa da Magistrada, que ocupou o mais alto posto do Poder Judiciário brasileiro,
ganha relevo o reprise dos exatos contornos da sua grafia:
De acordo com o artigo 5°, XXXV da Constituição, “a lei não excluirá da apreciação
do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” e esse princípio encerra o axioma
universal segundo o qual nenhuma questão envolvendo interesse ou direito pode ser
subtraída ao reexame do juízo natural competente. Em outros termos, qualquer
pretensão de qualquer pessoa relacionada a direito pode ser deduzida em juízo.
Nessa linha de entendimento, qualquer ação ou comportamento de pessoa privada ou
entidade pública capaz de ameaçar direito ou qualquer deliberação de entidade
pública ou privada com o mesmo intuito pode ser discutida em juízo pelo
interessado ainda quando tenha sido ou pudesse ser objeto de prévia discussão
administrativa ou extrajudicial. Vige assim, entre nós, em qualquer circunstância, o
princípio da inafastabilidade do reexame judicial.
Ante tal quadro, o controle externo da atividade contábil, financeira, orçamentária,
operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta
quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e
renúncia de receitas (art. 70 da Constituição), a cargo do Congresso Nacional e
exercido com o auxílio do tribunal de Contas (art. 71 da Constituição), sujeita-se
ordinariamente ao mesmo regime de controle judicial.
65
Desse modo, as competências do Tribunal de Contas da União (TCU) enumeradas
nos diversos incisos do art. 71 da Constituição que, aliás, o Supremo Tribunal
Federal (STF) tem por enumerativas (MS 24.510-7/DF, DJ 19.03.2004), enquanto
determinações ou deliberações que em tese podem produzir lesão ou ameaça a
direito de pessoa ou entidade (assim porque, na forma do parágrafo único do
referido art. 70, “prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou
privada que utilize arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens ou
valores públicos ou pelos quais a União responda ou que, em nome desta, assuma
obrigações de natureza pecuniária”), submetem-se ao controle do Poder Judiciário.
Corolário lógico é que, para esse efeito, devem ser observados os demais princípios
e garantias naturais do processo judicial, na maioria também enumerados no rol dos
direitos e garantias individuais e coletivos do art. 5° da Constituição.
Portanto, o reexame das deliberações do Congresso Nacional e em particular do
órgão auxiliar, o TCU, quando for o caso, não somente observará como levará em
conta na reapreciação a observância do devido processo legal (inciso LIV)
assegurado o contraditório e a ampla defesa com os meios e recursos a ela inerentes
(inciso LV), em processo público (inciso LX) com provas lícitas (inciso LVI) com
duração razoável (inciso LXXVIII), além de adequada fundamentação (art.93, IX c/c
art. 73, caput c/c art. 96, I, ‘a’ todos da Constituição). (GRACIE, 2007, p. 8).
No desenvolver de suas atividades, os Tribunais de Contas estão subordinados às regras
jurídicas emanada da constituição, devendo julgar – administrativamente – conforme todos os
princípios processuais cabíveis à natureza do fim, podendo ocorrer, desse modo, a
reapreciação pelo Poder Judiciário dos trabalhos entregues pelas Cortes de Contas brasileiras.
Veja-se, como exemplo, o contido na ementa do acórdão nº 70044038289 – apelação cível –,
proferido de forma unânime por desembargadores da primeira câmara cível do TJRS em 27
de junho de 2012:
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PÚBLICO. AÇÃO ANULATÓRIA. CERTIDÃO
DO TRIBUNAL DE CONTAS. REVISÃO PELO PODER JUDICIÁRIO
APENAS EM RAZÃO DE MANIFESTA ILEGALIDADE. PAGAMENTO DE
PRECATÓRIO EM VALOR MAIOR. PRESCRIÇÃO DE CRÉDITO
TRIBUTÁRIO. DECISÃO DO TCE QUE APRESENTA ILEGALIDADE
MANIFESTA. POSSIBILIDADE DE REVISÃO.
Apenas quando evidente e manifesta a ilegalidade do proceder, seja quanto ao
procedimento levado a efeito na Corte de Contas, seja, ainda, e inclusive,
quanto ao mérito administrativo, a decisão do TCE pode e deve ser revista por
este Tribunal.
Caso concreto em que as glosas questionadas apresentam ilegalidade manifesta
a justificar a revisão pelo Poder Judiciário.
Pagamento a maior, por meio de precatório, que não pode ser imputado ao
Administrador, que apenas cumpriu ordem judicial.
Renúncia de receita, quanto à prescrição de crédito tributário, que não se evidencia.
Não se pode responsabilizar o Prefeito por eventual omissão da Secretaria
Municipal da Fazenda que não efetuou o lançamento do crédito tributário no
prazo de lei e, também, a Procuradoria do Município que deixou transcorrer o
66
prazo para a cobrança da dívida. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (grifos
do autor) (TJRS, 2014d).
Com relação à processualística dos Tribunais de Contas, Amorim (2006) argumenta que o
sistema é, em muitas das vezes, inconstitucional, havendo a necessidade de uma lei nacional
capaz de aperfeiçoar os processos de contas28. Segundo o autor, “orça o absurdo” quatro
juízes de constas de quaisquer dos Tribunais de Contas estabelecerem normas processuais que
podem facilmente caírem em desalinho aos ditames constitucionais29 (AMORIM, 2006).
Um exemplo pertinente para este estudo, decorrente do controle judicial sobre os trabalhos de
controle externo e auditoria do TCERS, em âmbito municipal, ilustra como se desenrola a
prática de um caso concreto. O cidadão Álvaro Callegaro presidiu o Poder Legislativo do
Município de Horizontina em determinado período do exercício financeiro de 2004, quando o
TCERS executou auditoria ordinária em sua gestão e imputou-lhe o dever de ressarcir o erário
local em R$ 21.783,29 (vinte e um mil, setecentos e oitenta e três reais e vinte e nove
centavos), por inconformidades em diárias pagas sem finalidade pública a vereadores de então
– Processo de Contas TCERS nº 6141-0200/05-230.
Inconformado com a decisão, o responsabilizado ingressou com recurso na própria Corte de
Contas, cuja decisão reduziu o quantum a ser ressarcido ao erário pelo ex-gestor para o
montante de R$ 8.940,92 (oito mil, novecentos e quarenta reais e noventa e dois centavos) –
Processo de Contas TCERS nº 3856-0200/06-131.
No entanto, ainda irresignado com o saldo, o ex-Gestor buscou o Poder Judiciário.
28
As Cortes de Contas estaduais regulamentam o seu respectivo sistema processual, cada uma ao humor do seu
colegiado de julgadores. Como consequência, existe uma torrencial normatização processual que, não raras
vezes, ofende a Constituição da República.
29
O autor faz o seguinte raciocínio para afirmar que bastam 4 (quatro) juízes de contas – Conselheiros – para a
fixação de normas processuais no âmbito das Cortes de Contas: como os Tribunais de Contas estaduais são
formados por 7 (sete) Conselheiros – art. 75,parágrafo único, da CF/88 –, a maioria absoluta, necessária para a
aprovação dos respectivos Regimentos Internos e de suas alterações, é de apenas 4 (quatro) Conselheiros.
30
Nos autos, restou comprovado que ocorreu a participação de vereadores em seminários com os mesmos
conteúdos programáticos e palestrantes, tendo sido realizados pela mesma empresa promotora, em pequeno lapso
temporal.
31
A decisão de responsabilizar Álvaro Callegaro não pôde mais ser revertida dentro da processualística adotada
pelo TCERS – o chamado “trânsito em julgado administrativo”. Ou seja, o montante imputado virou título
executivo e foi encaminhado para o Executivo Municipal de Horizontina promover a cobrança – forte no §3º do
art. 71 da CF/88.
67
Na oportunidade em que o Executivo Municipal de Horizontina cobrava o valor estabelecido
pelo TCERS – muito embora o gasto rejeitado tenha ocorrido no Legislativo local, a
competência para a cobrança é da Procuradoria Municipal, órgão do Poder Executivo local –,
entrou com um processo denominado embargos à execução fiscal – Processo TJRS nº
104/1.10.0000206-8, comarca de Horizontina. Pediu para discutir o mérito da análise efetuado
pelo TCERS, entendendo como não verdadeiro ter havido o gozo de diárias sem finalidade
pública.
A decisão judicial, de primeira instância, julgou improcedentes os argumentos e provas
lançados por Álvaro Callegaro, determinando o prosseguimento da cobrança mantida pelo
Executivo Municipal.
Muito embora esgotadas já várias vias, o cidadão novamente recorreu ao Poder Judiciário,
entrando com recurso à decisão exarada pela primeira instância e alegando o cerceamento de
sua defesa, dado que a magistrada primeira não o intimou para a produção de provas –
Processo TJRS nº 70039024138. Como resultado, obteve dos Desembargadores o provimento
do seu apelo, tendo sida desconstituída a sentença da magistrada e anulado o processo judicial
desde a prolatação da mesma32.
O efeito disso foi o retorno da discussão de mérito para o processual judicial de primeira
instância, dessa vez com todos os meios de prova admitidos pelo direito, incluindo as provas
testemunhais, não praticadas pelo TCERS em seus procedimentos ordinários. Essa reanálise
do mérito – se havia ou não finalidade pública no gasto analisado – acabou por elidir
quaisquer responsabilidades de ressarcimento ao erário por parte do cidadão Álvaro
Callegaro, conforme juízo da magistrada Cátia Paula Saft.
Mais que isso foi o reflexo dessa ação judiciária. Derrotado no mérito o título executivo
exarado pelo TCERS, restou condenado o município de Horizontina a arcar com o pagamento
do ônus sucumbencial – custos financeiros das ações judiciárias. Mesmo recorrendo dessa
decisão onerosa de primeiro grau, o município recebeu o seguinte acórdão do TJRS –
Processo TJRS nº 70048921076, com trânsito em julgado em 25-09-2012:
32
A magistrada não intimou o autor para que o mesmo produzisse as provas cabíveis.
68
Não obstante o título executivo tenha se originado de decisão do Tribunal de Contas
do Estado, inequívoca a responsabilidade do Município no que atine a sua
regularidade, uma vez que a ele, na condição de titular do pretenso crédito,
compete averiguar a sua efetiva existência. Assim sendo, a meu sentir, cabível a
condenação do Município ao pagamento do ônus sucumbencial diante do
reconhecimento da inexistência do débito em questão. (grifo do autor) (TJRS,
2014e).
Pelo exposto, demonstra-se lúcida a possibilidade e os efeitos do controle judicial das
decisões exaradas pelos Tribunais de Contas. É com esse sentir que o STF tem conhecido
frequentemente mandados de segurança e apreciado imputações definidas pelo TCU. Cabe
invocar o Mandado de Segurança nº 25.880/DF, relator o Ministro Eros Grau, em que a Corte
Maior examinada a legalidade de decisão de restituição de vencimentos, exarada pelo TCU,
agindo este, no caso, em consonância com o art. 71, inciso II, da Constituição Federal de
1988, assim como dos arts. 5º e 57 da Lei Federal nº 8.443/92. O mesmo Supremo Tribunal
Federal que tem revisado decisões do Tribunal de Contas quando este, por exemplo, ao julgar
contas, termina por ofender a coisa julgada – MS nº 25.460/DF, relator o Ministro Carlos
Velloso. Ou seja, nos casos trazidos o STF examinou os fundamentos das decisões do TCU.
Aqui cabe uma indagação para bem elucidar o desenrolar da problemática ora tradada: como
seriam as decisões ou os entendimentos das Cortes de Contas que eventualmente
contrariassem posições de mérito do STF?
Dá-se como exemplo (1) a questão da responsabilidade do advogado pela manifestação em
parecer que orienta a administração e o respectivo gestor. Recentemente, no MS nº 24.631 o
STF editou precedente concluindo que a manifestação do consultor faz compartilhar a
responsabilidade quando adotado pelo administrador, tanto é que a Lei Federal nº 8.666/93 –
art. 38, parágrafo único – exige a manifestação do advogado.
Ou (2) sobre a realização de despesas em desacordo com o §1º do art. 37 da Constituição
Federal, segundo o qual toda publicidade institucional deve ter necessariamente “caráter
educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou
imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos”. A
Primeira Turma do STF, em julgamento ocorrido em 15-04-2008 – RE nº 191.668-1 –, lançou
entendimento quando negou provimento ao recurso interposto pelo Município de Porto
Alegre. Tratou-se do conhecido caso do slogan “Administração Popular”, criticado
69
amplamente por violar o §1º do art. 37 da Constituição Federal. No caso, entendeu-se que a
expressão “Administração Popular” estava vinculada ao Partido dos Trabalhadores,
caracterizando violação ao princípio da impessoalidade33.
Outro exemplo claro de análise da processualística, e mesmo do mérito, das decisões
administrativas das Cortes de Contas pelo Poder Judiciário é julgado do Superior Tribunal de
Justiça (STJ) nº 1.252.142/RJ – agravo regimental. Na oportunidade o judiciário analisou a
legalidade do processo administrativo mantido pelo TCU, cujo decisum exarado resultou em
obrigação de ressarcimento ao erário por parte da Sociedade de Ensino Superior de Nova
Iguaçu:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO
CPC. DEFICIÊNCIA NA FUNDAMENTAÇÃO. SÚMULA 284/STF. PRAZO
DECADENCIAL. ART. 54 DA LEI 9.784/1999. TERMO A QUO.
RESSARCIMENTO DETERMINADO PELO TRIBUNAL DE CONTAS.
PROCEDIMENTO REGULAR. REEXAME DOS ELEMENTOS FÁTICOPROBATÓRIOS. SÚMULA 7/STJ.
1. A instância ordinária julgou improcedente o pedido de anulação de decisão do
Tribunal de Contas da União que determinou o ressarcimento de valores transferidos
a título de subvenção social. Não se conhece do Recurso Especial em relação a
ofensa ao art. 535 do CPC quando a parte não aponta, de forma clara, o vício em que
teria incorrido o acórdão impugnado. Aplicação, por analogia, da Súmula 284/STF.
2. É pacífica no STJ a compreensão de que o prazo quinquenal dado à
Administração para revogar seus atos, previsto no art. 54 da Lei 9.784/1999, não se
aplica de forma retroativa, mas tão-somente após a vigência da citada norma.
3. O Tribunal a quo asseverou a legalidade do processo administrativo, diante
das graves irregularidades constatadas na prestação de contas e da observância
ao princípio do contraditório. A tese recursal contraria tal premissa fática, e sua
análise esbarra no óbice da Súmula 7/STJ.
4. Agravo Regimental não provido. (grifos do autor) (STJ, 2014a).
Um excerto do voto Ministro Relator nesse caso deixa clara a análise judicial do escorreito
procedimento administrativo realizado pelo TCU:
Em razão disso, afigura-se impregnada de notável relevância a argumentação
sustentada pela União no sentido de que, na realização de auditoria, apurou-se,
entre outras irregularidades, que a suposta prestação de contas da Autora não
possuía comprovação de utilização dos recursos públicos de acordo com as
33
Poder-se-ia aventar abordagens sobre muitas temáticas da administração pública onde judiciário e Corte de
Contas detêm atuação compartilhada, como as ações de saúde pública, a compra de medicamentos e os
incontáveis nuances dos processos licitatórios. Afinal, o controle da administração pública é competência dos
dois órgãos estatais. Inclusive, modernamente o judiciário tem aumentado o seu controle sobre a
discricionariedade administrativa, criando assim, inevitavelmente, um campo de maior contato com as
competências dos Tribunais de Contas (PIRES, 2013).
70
finalidades previstas no art. 66 §§ 1 e 2 do Decreto nº 93.871, de 23 de
dezembro de 1986, além de outras irregularidades.
Como se pode perceber, as irregularidades atribuídas à conduta das Autoras são
bastante graves, e ganha uma qualificação maior quando se trata de malversação ou
má gerência de verba destinada ao incremento de políticas de educação.
O dinheiro público não é, certamente, res nulius, coisa sem dono, mas, ao revés,
bem pertencente a toda sociedade, gerenciada, nos termos da lei e da Constituição
Federal, pelo administrador público. Por isso mesmo - e em razão de suas
destinações sempre necessárias ou essenciais para próprio desenvolvimento da
sociedade -, a sua utilização e a prestação de contas correlata merecem os cuidados
devidos com acentuado cuidado e extremo desvelo.
[...]
No mais, as Recorrentes asseveram, na inicial e no recurso de apelo, que
fizeram a prestação de contas em conformidade com a legislação de regência.
Entrementes, não obstante tal assertiva, não se desincumbiram de trazer aos
autos quaisquer documentos destinados à comprovação da regularidade quanto
à utilização da verba pública.
Em síntese: (1) o procedimento administrativo, por intermédio do qual foram
examinadas as contas relativas às subvenções transferidas para as Autoras, não
apresentou qualquer ilegalidade, ressaltando-se, ademais, que foram
observados os direitos do contraditório e da ampla defesa, corolários do devido
processo legal (Art. 5, LV, CR/88); (2) os fatos alegados pelas Autoras,
especificamente quanto à apresentação dos documentos comprobatórios dos
gastos das subvenções, não se encontram respaldados por qualquer meio de
prova idônea; (3) o ordenamento confere presunção de legalidade e
legitimidade aos atos administrativos, abarcando também as decisões
proferidas perante a Corte de Contas. (grifos do autor) (STJ, 2014a).
Dessa vez, o entendimento do judiciário, no mérito, foi o mesmo do formulado pela Corte de
Contas34. Aliás, decisão do então Ministro do STJ, hoje Ministro do STF, torna a tese da
revisibilidade das decisões administrativas das Cortes de Contas ainda mais robusta –
Ministro Luiz Fux. Veja-se a decisão construída pelo jurista nos autos do recurso especial nº
1.032.732/CE:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE IMPROBIDADE.
RECEBIMENTO DA INICIAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. APROVAÇÃO
DAS CONTAS PELO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. ART. 21, INC. II,
DA LEI Nº 8.429/92. NÃO VINCULAÇÃO FRENTE AO PODER
JUDICIÁRIO. POSSIBILIDADE DE IMPUGNAÇÃO VIA AÇÃO DE
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. FALTA DE PREQUESTIONAMENTO
(ARTS. 267, INCS. I e VI e 295, INC. I E PAR. ÚNICO, INCS. I e III, DO
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL). INOVAÇÃO EM SEDE DE EMBARGOS DE
DECLARAÇÃO.
1. O Controle exercido pelo Tribunal de Contas não é jurisdicional, por isso
que não há qualquer vinculação da decisão proferida pelo órgão de controle e a
possibilidade de ser o ato impugnado em sede de ação de improbidade
administrativa, sujeita ao controle do Poder Judiciário, consoante expressa
previsão do art. 21, inc. II, da Lei nº 8.429/92. Precedentes: REsp 285305/DF,
34
Para o leitor deste relatório de pesquisa, deixa-se outro exemplo semelhante ao exposto, não apresentado no
corpo do texto por motivos de objetividade e clareza. É a Apelação Cível nº 70038375440 do TJRS.
71
Primeira Turma, julgado em 20/11/2007, DJ 13/12/2007 p. 323; REsp 880662/MG,
Segunda Turma, julgado em 15/02/2007, DJ 01/03/2007 p. 255; REsp 1038762/RJ,
Segunda Turma, julgado em 18/08/2009, DJe 31/08/2009.
[...]
5. In casu, [...]. Acrescente-se que atuação do TCU, na qualidade de Corte
Administrativa não vincula a atuação do Poder Judiciário, nos exatos termos
art. 5º, inciso XXXV, CF.88, segundo o qual, nenhuma lesão ou ameaça de lesão
poderá ser subtraída da apreciação do Poder Judiciário.
6. A natureza do Tribunal de Contas de órgão de controle auxiliar do Poder
Legislativo, decorre que sua atividade é meramente fiscalizadora e suas
decisões têm caráter técnico-administrativo, não encerrando atividade
judicante, o que resulta na impossibilidade de suas decisões produzirem coisa
julgada e, por consequência não vincula a atuação do Poder Judiciário, sendo
passíveis de revisão por este Poder, máxime em face do Princípio
Constitucional da Inafastabilidade do Controle Jurisdicional, à luz do art. 5º,
inc. XXXV, da CF/88.
7. [...] Além disso, como o Tribunal de Contas não faz parte do Poder
Judiciário, as suas decisões não têm forma de coisa julgada, sendo sempre
passíveis de revisão pelo Poder Judiciário, com fundamento no artigo 5º, inciso
XXV, da Constituição. (Maria Sylvia Zanella Di Pietro in Direito Administrativo,
14ª edição, São Paulo: Atlas, 2002, pp. 687/688). (grifos do autor) (STJ, 2014b).
José dos Santos Carvalho Filho (2012) pontua bem a questão ao dar a lúcida carga semântica
do verbete “julgar”, enquanto insculpido no inciso II do art. 71 da constituição e formador de
celeumas. Segundo o doutrinar, o termo não tem o sentido normalmente atribuído aos juízes
no exercício de sua função jurisdicional. Tem, isso sim, o sentido de apreciar, examinar,
analisar as contas – tudo isso porque, segundo o autor, as funções exercidas pelos Tribunais
de Contas são eminentemente administrativas35 (CARVALHO FILHO, 2012).
Muito embora a moderna doutrina e jurisprudência apontem para a possibilidade de revisão
das decisões das Cortes de Contas pelo Poder Judiciário, nem sempre essa questão foi – ou é –
lúcida. O próprio TJRS mantém julgados em sentido contrário, a exemplo da ementa do
acórdão nº 70051256188 – apelação cível –, proferido por desembargadores da segunda
câmara cível em 7 de novembro de 2012:
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. EMBARGOS
À EXECUÇÃO. LEGITIMIDADE ATIVA DO MUNICÍPIO. CERTIDÃO DO
TRIBUNAL DE CONTAS. TÍTULO EXTRAJUDICIAL. IMPOSSIBILIDADE
DE DISCUSSÃO DO MÉRITO DAS DECISÕES DAQUELA CORTE.
35
Não é por outra razão que o título executivo a que se refere o art. 71, § 3º, da CF/88, é de natureza
extrajudicial, como reiteradamente tem sido afirmado pelo STJ (Recurso Especial nº 1.112.617-PB, Teori Albino
Zavascki).
72
PRELIMINAR: Hipótese em que, o Município tem legitimidade para executar o
crédito representado por Certidão de Dívida Ativa do Tribunal de Contas do Estado,
uma vez que restou prejudicado financeiramente pelas condutas do ora embargante e
assim decidiu o TCE/RS. Preliminar rejeitada.
Nos termos do artigo 71, § 3º, da Constituição Federal, não cabe ao Poder
Judiciário revisar as decisões do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande
do Sul, em razão de que foge à sua competência, uma vez que se restringe ao
exame da legalidade a fiscalização jurisdicional sobre os atos da Administração
Pública, sendo vedada a ingerência no campo da discricionariedade
administrativa.
Não se negou vigência a qualquer dispositivo constitucional ou infraconstitucional.
PRELIMINAR REJEITADA. APELAÇÃO DESPROVIDA. UNÂNIME. (grifo do
autor) (TJRS, 2014c).
Os defensores da impossibilidade de revisão das decisões dos Tribunais de Contas pelo
Judiciário citam uma antiga decisão da Suprema Corte – STF –, exarada nos autos do Recurso
Extraordinário nº 55.821, em 18-09-1967, tendo como relator o então Ministro Victor Nunes.
Nesse julgado restou assentado que salvo nulidade decorrente de irregularidade formal grave
ou manifesta ilegalidade, é do Tribunal de Contas a competência exclusiva para julgamento
das contas dos responsáveis por haveres públicos (STF, 2014).
A celeuma que dividiu os estudiosos da matéria – ou divide, isso porque ainda existem vozes
minoritárias dissidentes na questão (FAGUNDES, 1979; CITADINI, 1995; MILESKI, 2011;
FERNANDES, 2012) – partiu do monopólio de jurisdição entregue ao Poder Judiciário pela
constituição de 1988 em seu art. 5º, inciso XXXV.
Conforme o dispositivo retro, conhecido como princípio do acesso à justiça (ou princípio da
inafastabilidade do controle jurisdicional, ou ainda como princípio do direito de ação), a “lei
não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (BRASIL, 2013b).
Destaca-se que o princípio do acesso à justiça está enquadrado dentro dos direitos e garantias
fundamentais, mais especificamente nos direitos individuais e coletivos.
Fernandes (2012) rebate a interpretação de unicidade jurisdicional do inciso XXXV do art. 5º
examinando a produção do ex- Ministro do STF Victor Nunes – quando o Magistrado da
Suprema Corte interpretava dispositivo análogo ao atual, reconhecendo a função jurisdicional
dos Tribunais de Contas. Segundo o Magistrado evocado, a disposição constitucional de que
“a lei não poderá excluir da apreciação judicial do Poder Judiciário qualquer lesão de direito
individual” – diploma constitucional antigo, mas com redação bem aproximada à vigente –
73
não é obstáculo a esse entendimento divergente, isso porque, no caso, a redução de
competência do judiciário – em benefício das Cortes de Contas – resulta da Constituição, e
não da lei.
Ainda firme na defesa da impossibilidade de revisão das decisões das Cortes de Contas pelo
Poder Judiciário, Fernandes (2012, p. 150) consigna:
Se a doutrina guarda uniformidade, nesse sentido, por que motivo pretendem alguns
rever judicialmente as decisões dos julgamentos dos Tribunais de Contas? Julgar é
apreciar o mérito e, portanto, mesmo que a Constituição não utilizasse
expressamente o termo “julgar”, ainda assim, uma decisão dessa Corte seria
impenetrável para o Poder Judiciário. Se a maculasse manifesta ilegalidade, como
qualquer sentença, poderia até ser cassada por meio de mandado de segurança, mas
nunca, jamais, poderia se permitir ao magistrado substituir-se nesse julgamento de
mérito. O juiz também deve conter sua atuação nos limites da lei e, foi a Lei Maior
que deu a competência para julgar contas a uma Corte, devidamente
instrumentalizada e tecnicamente especializada.
Portanto, mesmo que o julgamento das Cortes de Contas não fosse um ato
jurisdicional típico, mas apenas um ato administrativo, seu mérito jamais poderia ser
revisto pelo Poder Judiciário. (FERNANDES, 2012, p. 150).
No entanto, ao prefaciar obra onde o ex-Presidente do TCU ex-Ministro Ubiratan Diniz de
Aguiar é coautor, o mesmo defensor da tese da impossibilidade de revisão judicial das
decisões das Cortes de Contas, Jorge Ulisses Jacoby Fernandes (2011, p. 25), reconhece a
prática atual e queda-se ao real. Veja-se:
Esta obra cumpre, assim, com o dever de formar operadores da função de controle
suficientemente esclarecidos que poderão compreender com precisão os intricados
mecanismos dos poderes instrumentais dos órgãos de controle; servindo como
instrumento para desenvolver nesses a aptidão para convencer pela persuasão
racional os que julgam no âmbito dos Tribunais, a partir da instrução dos autos.
Desse modo, lança uma excelente perspectiva para que as deliberações venham
a resistir ao crivo do Poder Judiciário. (grifo do autor) (FERNANDES, 2011, p.
25).
Dessa feita, as decisões dos Tribunais de Contas podem ser objeto de controle judicial não
apenas quanto à formalidade de que se revestem, mas inclusive quanto a sua legalidade –
incluindo-se aí o mérito –, considerando-se que tais decisões não fazem coisa julgada, sendo
essa qualidade exclusiva das decisões judiciais como decorrência direta da unicidade de
jurisdição de nosso sistema constitucional, conforme exposto.
74
O entendimento presente e majoritário do assunto considera meramente administrativas as
funções dos Tribunais de Contas brasileiros, permitindo a ampla revisão da validade desses
trabalhos auditoriais pelo Poder Judiciário, incluindo-se aí uma análise acerca da robustez
probatória colacionada pelos auditores em suas lidas.
Veja-se, nessa esteira, a luz de Marcia Pelegrini (2014), dado que esta autora grifa com
relevante inteligibilidade essa temática, consignando, para além de quaisquer sombras, que o
controle externo também é exercido pelo Poder Judiciário. Escreve a jurista ao debruçar-se
sobre os Tribunais de Contas e a revisão dos seus trabalhos pelo Judiciário:
O direito brasileiro adotou o sistema de jurisdição una, possuindo o Judiciário o
monopólio do controle jurisdicional, de forma que o controle externo também é
exercido pelo Poder Judiciário que por força do disposto no artigo 5º, XXXV é o
único Poder competente para apreciar com força de coisa julgada a lesão ou ameaça
a direitos individuais ou coletivos. (PELEGRINI, 2014, p. 95).
Deveras, importa apreciar a segurança jurídica dos trabalhos auditoriais entregues pelo
TCERS à sociedade, sendo necessária criteriosa investigação nessa seara para o êxito desta
pesquisa.
Trabalhos de auditoria e de controle externo, descolados da necessária segurança jurídica, não
atingem o propósito de assegurar o interesse público nas transações econômicas e financeiras
que envolvem a administração pública. Por tanto, é obrigação das Cortes de Contas nacionais
qualificar os trabalhos ao ponto de os mesmos vencerem os crivos em todas as instâncias –
inclusive as judiciárias –, dando efetividade à função de controle.
Sem isso, os volumosos recursos públicos investidos no sistema de controle externo acabam
por não atingir a efetividade constitucional projetada. Naufragam e entram na vala comum do
desperdício e da ineficácia.
4.3 CORRUPÇÃO
4.3.1 LINHAS GERAIS
Primeiramente, cabe pontuar que este trabalho focará a corrupção quando associada
intimamente ao setor público, muito embora seja oportuno e relevante perpassar a
75
significância lato sensu desse fenômeno social deletério e altamente prejudicial ao bem
comum.
O Banco Mundial tem a corrupção como o maior obstáculo para o desenvolvimento
socioeconômico dos povos (SPECK, 2000b; MACIEL, 2005). Em posição alinhada à
construção de Douglass North (1991), entende a instituição internacional – e multinacional –
que o fenômeno distorceria a autoridade das leis e enfraqueceria a base institucional
necessária ao crescimento econômico.
Já a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), igualmente,
afirma que a corrupção tem se tornado um assunto de suma importância política e econômica
nos últimos anos, sendo necessário combater os seus efeitos deletérios (MACIEL, 2005).
Referências à corrupção podem ser encontradas no Código de Hamurabi, no Reino da
Babilônia (XX a.C.), no Reino do Egito (XIV a.C.), na Roma Antiga e na Bíblia (RIBEIRO,
2004; NUNES, 2008). Indubitavelmente a história da corrupção é congênita à história da
humanidade. Mais do que isso, para Arendt (2007) a corrupção é um fenômeno da condição
humana e é nessa senda que Susini (2010) entende corrupção como o inimigo do interior,
estando dentro de cada incorruptível. Os estudos mantidos por Ribeiro (2004) e Souza (2011)
enveredam conclusivamente pela mesma linha de Arendt (2007) e Susini (2007), lançando na
condição humana o berço do fenômeno corrupção.
Evidenciando ser um fenômeno muito característico da natureza humana e que
permeia ideologias, esferas do governo e regimes políticos diversos ao longo do
tempo, a corrupção remonta aos tempos bíblicos e se faz presente em todas as
épocas, como atesta o estudo da história da humanidade. (RIBEIRO, 2004, p. 21).
Se a corrupção teve início na mais remota antiguidade; se nasceu ou se faz mais
intensa no sistema econômico do capitalismo, socialismo ou comunismo; se surgiu
mais vigorosa na França ou se encontra instalada em todos os continentes; se é
burocrática; se tomou grandes proporções através da desestruturação da família, é
menos importante do que constatar que ela faz parte da condição humana, que não
é perfeita. (grifo do autor) (SOUZA, 2011, p. 44).
O fenômeno da corrupção é, por consequência, mundial. Permeia países desenvolvidos e em
desenvolvimento, setores públicos e privados da economia, e existe desde a formação das
primeiras civilizações (RIBEIRO, 2004; CGU, 2008; FACCIONI, 2008; NUNES, 2008;
76
FAZZIO JÚNIOR, 2009; LOPES, 2009; TCMRJ, 2009; SOUZA, 2011; FACCIONI, 2012).
Reveste-se em custos transacionais e outras tantas manifestações deletérias que não podem ser
facilmente medidas.
Para Michael Sandel – filósofo político professor da Universidade de Harvard –, há um dano
causado pela corrupção maior que o dinheiro perdido e os fundos públicos mal direcionados:
o custo moral e cívico (apud ZERO HORA, 2014a). Ou seja, a corrupção corrói a confiança e
a democracia precisa de confiança para os cidadãos – posição igualmente alinhada à
construção de Douglass North (1991).
No entanto, ter a corrupção como malefício na construção de sociedades prósperas nem
sempre foi consenso (CARRARO, 2003; ABRAMO, 2005; MONTEBELLO, 2009). Segundo
Carraro (2003) e Abramo (2005), alguns economistas viam a corrupção como uma “graxa”
capaz de lubrificar e dar eficiência às transações, constituindo-se em uma acidentalidade de
pouca importância. Com esse entendimento, mas sem desconsiderar as externalidades
negativas da corrupção, analistas como Nathaniel H. Leff, J. Nye e Samuel P. Huntington
contribuíram para a formação de uma chamada teoria funcional da corrupção.
Já Montebello (2009) pontua que durante longos anos a corrupção foi tolerada pela sociedade
brasileira, sendo percebida como um mal intrínseco aos homens e à atividade política –
Montebello, em suas considerações, relembra o bordão “rouba, mas faz”, muito conhecido
pela população brasileira.
Em que pesem os parcos debates de outrora, essa visão muda e a temática passa a receber
volumosa atenção já a partir da segunda metade da década de 70, intensificando-se com o fim
da Guerra Fria (TANZI, 1998; TRUJILLO, 2002; NUNES, 2008). Segundo Carraro (2003), a
partir da década de 90 vastas referências à corrupção são identificadas em um grande número
de revistas internacionais, como: Corruption and reform36, Journal of Law and Society,
Journal of Public Economics, European Journal of Political Economy, Journal of
Comparative Economics, Quartely Journal of Economics, Journal of Economic Behavior &
Organization, International Review of Law and Economics, American Economic Review,
36
Esta, publicação dedica somente ao tema.
77
entre outras. Em 1995 o jornal norte-americano The Financial Times, em seu editorial de final
de ano, caracterizou aquele como o ano da corrupção (TANZI, 1998).
Mas afinal, o que é a corrupção? Para além disso, seria possível conceituar precisamente o
que é a corrupção? Seria possível medir o fenômeno?
Segundo Silva (1996) e Ribeiro (2004), a palavra corrupção tem origem no vocábulo latino
corruptione, significando decomposição, putrefação, depravação, desmoralização, sedução e
suborno. Para Tanzi (1998), o termo corrupção vem do verbo latino “rumpere” e significa a
quebra de algo, como um código de conduta moral, social ou ainda uma regra legal.
Do prisma semântico, Machado (2010), ao elaborar um estudo acerca do verbete corrupção
em dicionários e documentos governamentais, utilizando o Domínio Semântico de
Determinação (DSD)37, chegou aos resultados elencados no quadro 4.
Quadro 4 – Domínio semântico de determinação do verbete corrupção
Verbetes do Domínio Semântico de
Documento
Determinação (DSD) ligados à corrupção
Depravação, seduzir (para a não retidão),
Dicionário Larousse
degenerar, suborno.
Deterioração, decomposição, putrefação,
modificação,
adulteração,
depravação,
Dicionário eletrônico Houaiss da língua
prevaricação,
hábitos,
costumes,
portuguesa
prevaricação, dinheiro, suborno, benefício,
meios ilegais, crime.
Más condições, hospitais, postos de saúde,
escolas, estradas, não distribuição, livros
didáticos, remédios, merenda, obra, dinheiro
Cartilha “Integridade, ética e transparência
público,
eleitor,
fim
particular,
contra a corrupção”
beneficiamento,
carro
público,
irregularidade, desrespeito de ordem
classificatória em concursos.
Tendência natural, secreto, escassez de
Cartilha contra a corrupção do Movimento
recurso, oportunidade é boa, personagens,
Cristãos contra a Corrupção (Criscor)
irresponsável, conivente, corruptor, corrupto.
Convenção das Nações Unidas
Apropriação indébita, bens, encobrimento,
37
O DSD busca os sentidos de uma palavra a partir de sua relação com outras, tencionando compreender como
os sentidos dessas palavras – corpus – se constituem e são constituídos à medida que ganham visibilidade nos
cenários dos textos (MACHADO, 2010). Configura-se pela análise das relações de uma palavra com outras que
a determinam, ou seja, uma rede formada pelas relações estabelecidas entre as palavras em um acontecimento
enunciativo.
78
Documento
contra a corrupção
Código penal e sua interpretação
jurisprudencial
Verbetes do Domínio Semântico de
Determinação (DSD) ligados à corrupção
lavagem de dinheiro, produto de delito,
abuso de funções, enriquecimento ilícito,
obstrução da justiça, funcionários públicos,
suborno, participação, tentativa, setor
privado, tráfico de influência, peculato,
malversação, outras formas de delito.
Ativa, passiva, pena, reclusão, detenção,
funcionário público, razão da função,
solicitar, receber, direta, indiretamente,
vantagem indevida, ato de ofício, omissão,
retardamento, prática, promessa.
Fonte: elaborado pelo autor a partir do estudo de Machado (2010).
Já segundo Mendieta (2014), a aproximação ao fenômeno da corrupção leva à distinção de
três tipos do fenômeno: corrupção negra, corrupção cinza e corrupção branca. Senão vejamos:
La corrupción negra incluye todo el conjunto de acciones condenadas tanto por las
elites morales del país correspondiente como por la ciudadanía en general; en ella
suele existir una congruencia entre la ley y la opinión pública. La corrupción gris
corresponde a aquella ambígua situación donde no hay consenso, pero donde
sectores relevantes de la problación – elite – están a favor de la condena; puede
ocurrir que existam normas que sancionen tal tipo de acciones y, sin embargo, la
ciudadanía no rechace abiertamente tales conductas. Un ejemplo típico fue el
producido por la prohibición del consumo de alcohol en los Estados Unidos en los
años veinte. O la defraudación a hacienda en el pago de impuestos en determinados
países sin elevada cultura cívica. La corrupción blanca está libre de oposición fuerte
por parte del conjunto de la sociedad; ni la élite ni la ciudadanía en general la
condenan abiertamente, por el contrario, la toleran, aunque no totalmente, sí en
alguno de sus aspectos; en este supuesto no existen leyes condenatorias de tales
prácticas dada su falta de apoyo generalizado38. (MENDIETA, 2014, p. 676-677).
Mas, ao final desse conjunto de esforços por uma definição condizente do fenômeno, fica-se
com Tanzi (1998):
Corruption has been defined in many different ways, each lacking in some aspect. A
few years ago, the question of definition absorbed a large proportion of the time
spent on discussions of corruption at conferences and meetings. However, like an
elephant, even though it may be difficult to describe, it is generally not difficult to
38
Em tradução livre: “A corrupção negra inclui todo o conjunto de ações condenadas tanto pelas elites morais do
país correspondente como pela cidadania em geral; existe uma confluência entre a lei e a opinião pública. A
corrupção cinza corresponde àquela ambígua situação onde não há consenso, mas onde setores relevantes
tendem a condenar; podem existir normas que sancionem tais ações, porém a cidadania não rechaça abertamente
tais condutas. Um exemplo típico foi a proibição do consumo de álcool nos Estados Unidos nos anos 20. Ou a
fraude à fazenda pública no pagamento de impostos em determinados países sem elevada cultura cívica. A
corrupção branca está livre de oposição forte por parte do conjunto da sociedade; nem a elite e nem a cidadania
em geral a condenam abertamente. Pelo contrário, a toleram, mesmo que não totalmente, em alguns de seus
aspectos; neste caso não existem leis condenatórias para tais práticas dada a falta de apoio generalizado”.
79
recognize when observed. In most cases, though not all, different observers would
agree on whether a particular behavior connotes corruption. Unfortunately, the
behavior is often difficult to observe directly because, typically, acts of corruption
do not take place in broad daylight 39. (TANZI, 1998, p. 8).
De complexa definição (TANZI, 1998; CARRARO, 2003; MORAES, 2009; AVRITZER;
FILGUEIRAS, 2011), corrupção é vista hoje, seguramente, como uma prática
antidemocrática que foge aos padrões éticos e morais vigentes em dado território,
desacreditando e enfraquecendo instituições, impactando negativamente o desempenho
econômico das nações (ROSE-ACKERMAN, 1978; TANZI, 1998; TRUJILLO, 2002;
CARRARO, 2003; ABRAMO, 2005; ARAÚJO, 2005; CGU, 2008; FACCIONI, 2008;
NUNES, 2008; FACCIONI, 2012; MONTORO FILHO, 2012). Pode-se afirmar que essa
leitura negativa do fenômeno da corrupção é consenso mundial:
A partir da década de 90, desenvolveu-se na comunidade internacional o consenso
de que o avanço da corrupção contribui para o aumento da pobreza, além de causar
impacto negativo nas relações comerciais. Com a priorização do combate à
corrupção na agenda internacional e com a certeza de que sociedades justas e
democráticas não podem desenvolver-se com o avanço dessa prática, diversos
acordos multilaterais passaram a ser celebrados. Assim, governantes de todo o
mundo se mobilizaram no intuito de desenvolver instrumentos internacionais que
abrangessem a prevenção, a criminalização, a cooperação internacional e a
recuperação de ativos. (CGU, 2008, p. 7).
Segundo Avritzer e Filgueiras (2011), 73% dos brasileiros consideram a corrupção como
muito grave e 24% como grave – portanto, 97% consideram o fenômeno como algo a ser
corrigido. Os mesmos pesquisadores consideram a corrupção como um dos principais
problemas para a gestão pública e para a democracia. Para chegar a essa conclusão, enxergam
a organização do sistema político, a organização do Estado e a organização das formas de
controle sobre o sistema administrativo-estatal como as principais dimensões da corrupção.
Para Carraro (2003), corrupção é um problema de governo que causa fraco crescimento
econômico, empobrecimento relativo e mau funcionamento do sistema econômico, sendo para
Rose-Ackerman (1999) sintoma de que alguma coisa está errada na administração pública. Já
para Fazzio Júnior (2009), o conjunto das normas jurídicas produzidas, diga-se positivista,
39
Em tradução livre: “Corrupção tem sido definida de várias maneiras diferentes, cada qual com a falta de algum
aspecto. Há alguns anos, a questão da definição absorveu uma grande parte do tempo gasto em discussões sobre
o tema em conferências e reuniões. No entanto, como um elefante, embora possa ser difícil de descrevê-la, ela
geralmente não é difícil de ser reconhecida quando observada. Na maioria dos casos, embora não em todos,
diferentes observadores concordam sobre se um determinado comportamento denota a corrupção ou não.
Infelizmente, o comportamento é muitas vezes difícil de ser observado diretamente. Isso porque, normalmente,
atos de corrupção não acontecem à luz do dia”.
80
estará sempre atrás da realidade, numa ingênua pretensão de que esta se amolde àquelas. Ou
seja, a dissonância entre a evolução dos instrumentos e esquemas de corrupção, de um lado, e
a eficácia da afirmação jurídico-positiva, de outro, mostra-se insuperável segundo o estudioso.
Do ponto de vista econômico, ao atribuir enorme importância das leis e das instituições para o
bom funcionamento de uma economia de mercado, Montoro Filho (2012) entende que os atos
corruptos geram desequilíbrios de concorrência, uma vez que beneficiam infratores e
prejudicam quem cumpre suas obrigações. Acrescenta, ainda, que o prejuízo ocasionado não
se esgota nesse viés, estendendo-se para toda a sociedade e solapando a economia40.
Já para Nunes (2008), o fenômeno da corrupção nas sociedades mais desenvolvidas tende a
ser raro e isolado, enquanto nas sociedades menos desenvolvidas passa a ser sistêmico e
recorrente. E ao estudar a corrupção em sociedades em desenvolvimento, Araújo (2005)
identifica a fraqueza institucional como base dos atos de corrupção, propondo reforço na
educação da sociedade e na transparência como principal vertente de combate ao fenômeno.
O professor da Universidade de Harvard Steven Kelman (2014) entende que o ambiente
institucional é decisivo para o futuro econômico e moral de um país e afirma que a corrupção
atrasa o desenvolvimento das nações assim como diminui a capacidade de as mesmas
entregarem bons serviços públicos – infraestrutura adequada, por exemplo. Mais que isso,
Kelman (2014) assenta:
Numa sociedade com muita corrupção, é provável que as autoridades estejam mais
preocupadas em ficar ricas e em usar seu poder mais para controlar as pessoas que
em servi-las. Nesses casos, é pouco provável que o governo consiga entregar bons
serviços. Você pode ter um país sem corrupção, em que vigore o império da lei, que
não consiga entregar bons serviços. Mas não o contrário. É uma condição necessária
para a entrega de bons serviços, mas não suficiente. (KELMAN, 2014, p. 66).
40
Como se observa, a visão apresentada por André Franco Montoro Filho (2012) converge com a apresentada
por Douglass North (1991; 2003) em seus longos trabalhos econômicos.
81
Ao tratar do caso brasileiro, o pesquisador diz que a herança da escravidão ainda está no
ambiente institucional, condição que contribui negativamente para o fenômeno da corrupção41
(KELMAN, 2014).
Muitas dessas construções, é importante observar, relacionam-se claramente com a metateoria
do prêmio Nobel Douglass North, na medida em que colocam a corrupção como algo
deletério, um desvirtuamento no caminho das instituições de dada sociedade, prejudicando a
eficácia da interação política, econômica e social.
Para encerrar essa parte de considerações iniciais, cabe ainda outra questão importante: as
formas de mensuração do fenômeno da corrupção. Com fulcro nesse esquadrinho, Tanzi
assenta que “It is not possible to measure corruption, but it is possible measure perceptions of
corruption42” (1998, p. 3).
E é com base na percepção da corrupção pelos vários povos espelhados ao redor do mundo
que a Transparency International43 (TI) elabora, lastreada em pesquisas de opinião, o mais
difundido índice anual de corrupção, cuja apresentação escalona 177 países. Chamado de
Índice de Percepção da Corrupção (IPC), e criado em 1995, o ranking de 2013 ficou conforme
a Tabela 2:
Tabela 2 – Percepção da corrupção em 2013
Posição
País
Pontuação
1
Dinamarca
91
1
Nova Zelândia
91
3
Finlândia
89
3
Suécia
89
5
Noruega
86
5
Cingapura
86
7
Suíça
85
41
O Professor cita como exemplo o caso norte-americano. Em entrevista concedida à revista Época o estudioso
informou que a parte dos Estados Unidos que teve escravidão se desenvolveu mais devagar. Isso porque onde
não houve corrupção as pessoas não podiam ficar sem se esforça (KELMAN, 2014).
42
Em tradução livre: “Não é possível medir a corrupção, mas é possível medir a sua percepção”.
43
Com sede em Berlim, Alemanha, a organização tem a finalidade de combater a corrupção em nível
internacional e nacional. Está presente em mais de 100 países ao redor do mundo (TI, 2014).
82
Posição
País
Pontuação
8
Holanda
83
9
Austrália
81
9
Canadá
81
19
Uruguai
73
22
Chile
71
49
Costa Rica
53
63
Cuba
46
72
Brasil
42
83
El Salvador
38
83
Peru
38
94
Colômbia
36
102
Equador
35
102
Panamá
35
106
Argentina
34
106
Bolívia
34
106
México
34
123
República Dominicana
29
123
Guatemala
29
127
Nicarágua
28
140
Honduras
26
150
Paraguai
24
160
Venezuela
20
163
Haiti
19
168
Síria
17
168
Turcomenistão
17
168
Uzbequistão
17
171
Iraque
16
172
Líbia
15
173
Sudão do Sul
14
174
Sudão
11
175
Afeganistão
8
83
Posição
País
Pontuação
175
Coreia do Norte
8
175
Somália
8
Fonte: elaborada pelo autor a partir do site da IT
(http://www.transparency.org/cpi2013/results#myAnchor1).
Nota: quanto maior a pontuação, menor a percepção do fenômeno
da corrupção. Dos 177 países pesquisados pelo IT, foram
selecionados os 10 onde a corrupção é menos percebida, os 10 onde
a corrupção é mais percebida e os países da América Latina.
Importante ainda registrar que essa produção da Transparency International tem críticos
(ÉPOCA, 2012). Apenas para ilustrar, Abramo (2005) explica que se trata de um indicador
compilado a partir de outros indicadores, todos estes referentes a opiniões de pessoas ligadas a
corporações transnacionais a respeito do nível de corrupção que elas imaginam vigorar em um
país. Abramo vai além e assevera que não há nenhuma garantia de que as opiniões colhidas
para o índice sejam independentes entre si. Ilustra o argumento consignando que uma pessoa a
quem se pede para comparar a integridade de Brasil e Chile pode muito bem não ter tido
nenhuma experiência com um desses países – ou mesmo com qualquer dos dois (ABRAMO,
2005).
Ainda, pontua o possível efeito de inclinações ideológicas. Cita o caso do Chile como
exemplo. Conforme Abramo (2005), a partir do momento em que esse país passou a adotar
uma política comercial alinhada com os Estados Unidos da América, ascendeu no Índice de
Percepção da Corrupção da Transparency International (ABRAMO, 2005).
Lança ainda uma objeção a esse tipo de ranking que ao mesmo tempo se liga com a
metateoria de Douglass North estudada nesta pesquisa: não há nenhuma ideia a respeito da
integridade das instituições dos países e, muito menos, de sua evolução ao longo do tempo
(ABRAMO, 2005).
Conforme Abramo (2005), o que o índice da Transparency International informa é que as
instituições brasileiras são provavelmente menos íntegras do que as norueguesas – por
exemplo – e mais íntegras do que as da República do Togo, mas estão mais ou menos na
mesma faixa das instituições do Peru ou do México.
84
Já a revista Época (2012), entende que quem estuda o tema corrupção sem recalque moralista
ou interesse partidário costuma dizer que é impossível medir com precisão o tamanho da
roubalheira existente em cada unidade da federação brasileira. Segundo a revista de grande
circulação nacional, o que alguns rankings internacionais costumam mostrar nada mais é que
a percepção da corrupção, ou seja, uma ideia tão imprecisa quanto a percepção do medo, da
saudade ou do amor. E, de fato, tudo o que se conhece não é o que foi efetivamente roubado e
desviado, mas apenas aquilo que foi denunciado, flagrado ou investigado.
Tratando-se dos aspectos conceituais e socioeconômicos do fenômeno, essas são as linhas
gerais.
4.3.2 CASOS DE CORRUPÇÃO
Os casos de desvio moral nas relações com a administração pública – diga-se corrupção –
partem da gorjeta para o guarda de trânsito ou da declaração falsa de negro-indígena na
conquista de uma bolsa de estudos44, passam pelos inúmeros sonegadores fiscais e chegam até
a construção de verdadeiras quadrilhas, organizadas por pessoas do mais alto nível cultural e
social, que têm o intuito de abocanhar grandes somas de recursos públicos.
São tantos os casos de corrupção envolvendo a administração pública brasileira que é
impossível quantificar e desenhar a totalidade dos modos de operação nos múltiplos e
facetados esquemas45 (BEZERRA, 1995; RIBEIRO, 2004; MACIEL, 2005; TEIXEIRA,
2006; BRITTO, 2008; ÉPOCA, 2012; FACCIONI, 2012; RIBEIRO JUNIOR, 2012;
MOREL, 2012; VAZ, 2012).
44
Vaz (2012) apresentou reportagem, publicada no jornal Correio Braziliense em 3 de agosto de 2008,
demonstrando fortes indícios de fraudes praticadas por estudantes universitários no afã de conquistar uma bolsa
de estudos. A questão problemática veio embutida com a política de quotas e consistia em declarar, falsamente, a
origem indígena. Sem quaisquer mecanismos de efetiva fiscalização governamental, os beneficiados gozavam
dos auxílios financeiros concedidos pelo Estado impunemente, com a ciência dos órgãos públicos concedentes.
45
O fenômeno da corrupção pertence à condição humana e de longe não é exclusivo da cultura brasileira
(ARENDT, 2007; SUSINI, 2010; SOUZA, 2011). No entanto, centrar-se-á no caso brasileiro para atingir os fins
desta pesquisa.
85
Com o processo de redemocratização vivido no Brasil, os exemplos estão no cotidiano da
esfera pública e do mundo da vida do brasileiro – conceitos habermasianos apresentados no
referencial metateórico –, principalmente após o definhamento do regime militar em 198546.
Isso porque o volume expressivo de casos de corrupção apresentados aos brasileiros, a partir
de então, decorreu da queda da censura imposta e da liberdade à informação advinda com a
constituição de 1988 – contexto esse que propiciou uma imprensa livre e a possibilidade de
reflexão e debate sobre tudo que suscite o interesse público (CARRARO, 2003; RIBEIRO,
2004; BRITTO, 2008).
Aliás, Ribeiro (2004) lembra que as ameaças plasmadas pelo Decreto-Lei nº 898, editado pela
junta militar em 29 de setembro de 1969, consideravam crime contra a ordem nacional
“notícia falsa ou fato verdadeiro truncado ou deturpado que pudesse indispor o povo contra as
autoridades constituídas”. Portanto essa disposição dificultava, sobremodo, qualquer denúncia
a respeito de irregularidades praticadas por autoridades vinculadas ao regime. Isso resultou,
nas palavras de Morais Filho (1987), no vicejo de uma fagueira e deslavada corrupção:
[...] debaixo desse manto protetor, vicejou fagueira a mais deslavada corrupção, que
acabou por se tornar rotineira e institucionalizada, à semelhança do que na mesma
época ocorria com a tortura, infligida também sistematicamente aos presos políticos.
Enquanto a resistência democrática era violentada nos porões da ditadura, alguns
apaniguados enricavam com despudor. (MORAES FILHO, 1987, p. 24).
Voltando aos tempos presentes, Teixeira (2006) ventila que as estatísticas da Transparência
Brasil contabilizam 3,62 casos novos de corrupção divulgados por dia, tomados 60 (sessenta)
jornais brasileiros como base. Isso indica um significativo número de casos noticiados
anualmente nesses mesmos veículos. Lançadas as bases democráticas para a persecução de
uma cidadania madura, não tardaram a surgir os grandes escândalos.
Eleito pelo voto direto o primeiro presidente após o período ditatorial, Fernando Collor de
Mello veio a cair do poder em um processo de impeachment deflagrado após o escândalo de
corrupção alcunhado de “esquema PC Farias”. Segundo Maciel (2005), as formas de
corrupção identificadas na gestão do ex-Presidente foram: superfaturamento, agilização de
46
Para leitura de relatos de casos de corrupção no Brasil do período de 1980 a 1988, ver Bezerra (1995).
86
pagamentos, facilitação de contratos com a administração pública, fraudes em licitações,
manipulação de regras, venda de informação e arrecadação ilegal de fundos.
A partir do estudo de Avritzer e Filgueiras (2011), é possível montar uma breve síntese dos
casos de corrupção com grande repercussão após o impeachment de Fernando Collor. Veja-se:
Quadro 5 – Alguns dos principais casos de corrupção.
Caso de corrupção
Ano
Caso Antônio Magri
1992
Anões do orçamento
1993
Escândalo dos precatórios
1996
Paulo Maluf/Celso Pitta/Máfia das
propinas
1999
Escândalo do Banco Central – caso
Marka/FonteCindam
1999
Denúncia
Recebimento de US$ 30.000,00 para
liberar recursos do FGTS.
Desvios de recursos do orçamento da
União.
Governos estaduais e municipais
desviavam recursos obtidos com a
emissão de títulos públicos.
Esquema de corrupção na administração
pública paulistana.
O banqueiro Salvatore Cacciola, ítalobrasileiro, ex-proprietário do falido Banco
Marka, foi condenado em primeira
instância no Brasil por crimes contra o
sistema financeiro, juntamente com
diretores e funcionários do Banco Central
do Brasil, após seu banco ter sido
socorrido em 1999 por ocasião da
flutuação cambial.
Desvio de R$ 169 milhões destinado à
construção do TRT paulista.
Caso Tribunal Regional do Trabalho
(TRT) de São Paulo
Caso Jader Barbalho da
Superintendência do Desenvolvimento
da Amazônia (Sudam)
2000
2001
Desvio de recursos da Sudam.
Vampiros
2004
Mensalão
2005
Operação Sanguessugas
2006
Fraudes nas licitações para compra de
hemoderivados.
Desvio de recursos públicos, tráfico de
influência e formação de quadrilha.
Compra superfaturadas de ambulâncias.
Fonte: elaborado pelo autor a partir do trabalho de Avritzer e Filgueiras (2011).
Recentemente, o caso intitulado “escândalo do mensalão” ganhou espaço midiático alongado
na imprensa. Baseado na ação penal nº 470, movida pelo MP no STF, demonstrou-se que o
esquema de corrupção captou ilegalmente recursos públicos para dar sustentação ao grupo
político que governava o País (VAZ, 2012; G1, 2014).
87
O esquema envolveu altas autoridades da República, empresários bem-sucedidos, um
conjunto de partidos políticos, a compra de votos de parlamentares no Congresso Nacional e
grandes somas de recursos retirados da população brasileira indo parar no bolso de
particulares – uma verdadeira mesada (VAZ, 2012; G1, 2014). Entre os crimes apurados:
formação de quadrilha, corrupção ativa, corrupção passiva, lavagem de dinheiro, evasão de
divisas, gestão fraudulenta e peculato (G1, 2014).
Outro esquema, apelidado de “máfia das sanguessugas” e capitaneado pelo Deputado Federal
Nilton Capixaba, envolveu a compra de ambulâncias, através de recursos da União –
especificamente do Fundo Nacional de Saúde –, montadas em uma única fábrica, a Planam,
de Cuiabá/MT (VAZ, 2012). Os processos licitatórios eram executados pelas prefeituras
contempladas com os recursos, onde participavam empresas laranjas ligadas à Planam – os
quadros societários detinham ligação com os donos da montadora (VAZ, 2012).
Ambulâncias eram alteradas, de baixa qualidade e com documentos falsos, vendidas em
licitações dirigidas, ou mesmo forjadas, com preços superfaturados (VAZ, 2012; VEJA,
2014). No início de maio de 2006, a Polícia Federal desbaratou a quadrilha – cuja estimativa
do roubo alcançou 110 milhões de reais.
Segundo a revista Veja (2014), as propinas eram garantidas com o superfaturamento dos
veículos, que chegava a 260% do seu efetivo valor. Foram presas 44 pessoas, entre elas
empresários, assessores parlamentares, servidores do Ministério da Justiça e deputados que
perderam o mandato (VAZ, 2012; VEJA, 2014). O Ministério Público Federal no Estado do
Mato Grosso denunciou 81 pessoas por envolvimentos. No final de junho de 2006 foi criada a
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos sanguessugas (VAZ, 2012; VEJA, 2014).
Em 18 de maio de 2007, uma ação deflagrada pela Polícia Federal (PF), nomeada de
“operação navalha”, demonstrou um esquema de fraudes em licitações ocorridas em nove
estados e no Distrito Federal. Mais uma vez montado para sugar recursos públicos, o esquema
era liderado pelo dono da empresa Gautama, o empresário Zuleido Veras, mas envolveu
agentes políticos e servidores públicos, num total de 46 (quarenta e seis) presos (VAZ, 2012;
MUCO, 2014).
88
Para complementar, é possível ainda apresentar alguns casos relevantes de corrupção
constantes no trabalho de Ribeiro (2004) – elaborados a partir de publicações da revista
VEJA.
Quadro 6 – Grandes escândalos de corrupção.
Caso de corrupção
Ano
Cestas da LBA
1991
Máfia da Previdência
1992
Compra de votos da reeleição
1997
Hildebrando Pascoal
1999
A máfia dos bingos
2000
Denúncia
A ex-primeira-dama Rosane Collor foi
acusada de desvios de verbas públicas no
período em que presidiu a Legião
Brasileira de Assistência (LBA), entre
1990 e 1991.
Desvios de recursos do INSS.
Compra de votos no Congresso Nacional
para a aprovação da Emenda
Constitucional que passou a permitir a
reeleição de presidente, governadores e
prefeitos.
Segundo deputado federal mais votado do
Acre cometeu sonegação fiscal e crime
eleitoral. Também foi condenado por
integrar um grupo de extermínio
responsável pela morte de 30 pessoas em
Rio Branco.
Sonegação de impostos e lavagem de
dinheiro por meio de casas de bingo.
Fonte: elaborado pelo autor a partir do trabalho de Ribeiro (2004).
Um interessante caso de corrupção contra a administração pública – e que forjou a atuação da
Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) nomeada de Amigos
Associados de Ribeirão Bonito (AMARRIBO) – foi o ocorrido no município de Ribeirão
Bonito/SP. Da experiência resultou a cartilha amplamente difundida “O combate à corrupção
nas prefeituras do Brasil”.
Na ocasião, uma OSCIP se deparou com várias práticas corruptas institucionalizadas na
administração pública local (AMARRIBO, 2012). As investigações, empreendidas para
afastar e punir o Prefeito corrupto trouxeram a informação de que a maioria dos esquemas
fraudulentos havia sido criada ainda na administração anterior (AMARRIBO, 2012).
Dentre várias ações corruptas, comprovou-se que pelo menos um empreiteiro fornecia notas
frias para todas as administrações recentes que haviam passado pelo Executivo Municipal de
89
Ribeirão Bonito. A sensação de impunidade era tão acentuada que a empresa utilizada pelo
empresário e pelos agentes políticos corruptos não estava inscrita nem no Cadastro Nacional
de Pessoas Jurídicas (CNPJ) da Receita Federal do Brasil, tampouco no cadastro do Estado de
São Paulo. Mesmo assim a Prefeitura liquidava e pagava todas as notas fiscais frias
(AMARRIBO, 2012).
Visto que a situação envolvia mais de uma gestão e incluía até mesmo adversários políticos, a
AMARRIBO consignou experiência no seguinte sentido:
Independente de partido os políticos corruptos apresentam quase sempre as mesmas
características; só uma vigilância muito forte da comunidade pode mudar esse
estado de coisas. Os Prefeitos corruptos transmitem os esquemas de corrupção aos
seus sucessores. Parece que há um pacto não escrito, uma espécie de código de
honra entre os corruptos sobre esse assunto, e eles cumprem os seus termos, mesmo
quando são inimigos políticos. (AMARRIBO, 2012, p. 18).
Em sua cartilha, a AMARRIBO (2012) elencou como sinais de irregularidades na
administração pública municipal: (1) o histórico comprometedor da autoridade eleita e de seus
auxiliares, (2) a falta de transparência nos atos administrativos do governante, (3) a ausência
de controles administrativos e financeiros efetivos, (4) o apoio de grupos suspeitos de práticas
de crimes e irregularidades à administração, (5) a subserviência do Legislativo e dos
Conselhos Municipais, (6) o baixo nível de capacitação técnica dos colaboradores somada à
ausência de treinamento para os funcionários públicos e (7) o alheamento da comunidade do
processo orçamentário.
A revista Época traçou o que chamou de “anatomia da corrupção”, com base em alguns casos
concretos de corrupção, desenhando assim o funcionamento e o modus operandi dessas
situações. Com o auxílio da reportagem, é possível desenhar o quadro 7:
Quadro 7 – Algumas das formas de se desviar dinheiro no Brasil.
Modalidade
Modo de operação
Dos que furtam por
meio de obras
(1) Com a conveniência de agentes
públicos, empresas se unem e
fraudam licitações para escolher
quem vai executar uma determinada
obra. (2) A firma escolhida para
vencer apresenta projeto básico barato
para garantir vitória na licitação. (3)
Com o contrato garantido, ela começa
Caso de exemplo
Construção da ferrovia
Oeste-Leste. Descobriu-se
que os valores orçados
estavam muito acima do que
seria necessário.
90
Modalidade
Dos que furtam por
meio de eventos
Dos que furtam por
meio de serviços de
qualificação
profissional
Dos que furtam por
meio de emendas
parlamentares
Modo de operação
a pedir aditivos. Agentes públicos
envolvidos ajudam a inchar o valor da
obra. (4) O governo paga mais caro
ou por serviços não executados. A
fartura é dividida entre políticos e
empresários.
(1) A prefeitura firma um convênio e
recebe dinheiro do governo federal
para fazer uma festa ou evento. (2)
Essa prefeitura contrata empresas
para o evento, sempre por valores que
dispensam concorrência. Ou ainda
firma outro convênio com uma
entidade associativa para que esta
execute o evento, isso tudo para
dispensar as licitações e dificultar a
fiscalização dos órgãos de controle
externo. (3) Ligadas a políticos, as
empresas contratadas superfaturam os
preços dos serviços prestados. (4) As
empresas passam parte do dinheiro
recebido para os políticos envolvidos.
(1) ONGs ou outras entidades sem
fins lucrativos ligadas a políticos se
habilitam no governo federal para
oferecer cursos profissionalizantes.
(2) O governo paga as entidades de
acordo com o número de cursos,
professores e alunos propostos. (3) As
entidades corruptas inventam cursos,
aumentam o número de alunos e
simulam a contratação de professores.
(4) Depois, enviam ao governo
relatório com dados fajutos para
acobertar os desvios.
(1) Deputados e senadores incluem no
Orçamento da União propostas para
direcionar gastos do governo federal.
(2) Os parlamentares negociam com o
Palácio do Planalto a liberação, que
normalmente beneficia seus redutos
eleitorais. (3) O parlamentar
influencia na contratação de quem vai
executar o serviço bancado com os
recursos de sua emenda. (4) Com a
contratação de empresas aliadas,
falsificação de notas e simulação de
serviços, parte do dinheiro é desviada.
Caso de exemplo
Festa junina em São João da
Barra, Rio de Janeiro, um
dos municípios com contas
reprovadas. Critérios
políticos prevaleceram na
escolha de fornecedores.
O ex-secretário executivo do
Turismo Frederico Silva
Costa foi preso pela Polícia
Federal acusado de compor
uma quadrilha que fraudava
os convênios com a pasta.
O caso das sanguessugas.
Para o estudo, uma
ambulância em Sorocaba/SP.
91
Modalidade
Dos que furtam por
meio de ONGs
Dos que furtam por
meio dos contratos de
publicidade
Dos que furtam por
meio de consultorias
Modo de operação
(1) Com a ajuda de políticos, a ONG
firma convênios com o governo. (2)
O governo paga a ONG por
determinado serviço. (3) A ONG
contrata empresas para executar os
serviços. As empresas devolvem o
dinheiro para os participantes do
esquema. (4) Os responsáveis pela
ONG forjam documentos e notas
fiscais e enviam ao governo, como se
o dinheiro tivesse sido investido.
(1) Os editais são direcionados para
escolher determinadas empresas. (2)
As concorrentes apresentam preços
fictícios na proposta. (3) Depois de
vencer, a agência corrupta
subcontrata empresas ligadas a seu
padrinho político. (4) Também pode
superfaturar na compra de materiais e
serviços previstos no contrato.
(1) Órgãos do governo usam o critério
subjetivo da “notória especialização”
para contratar empresas de
consultoria sem fazer licitação. (2) A
consultoria pertence a pessoas ligadas
ao político. (3) O serviço nem é
executado ou é feito sem nenhum
rigor. (4) A empresa de consultoria
recebe o pagamento e repassa o
dinheiro aos políticos ou agentes
públicos envolvidos.
Caso de exemplo
O policial João Dias, dono
de ONGs, é cobrado pelo
Ministério Público a
devolver mais de R$ 3
milhões de reais.
O publicitário Marcos
Valério é acusado de
viabilizar o esquema
“mensalão” por meio de suas
agências.
Investigações da
Controladoria-Geral da
União (CGU) sobre a
contratação de serviços de
consultoria pela Fundação
Nacional de Saúde (Funasa)
no Amapá.
Fonte: elaborado pelo autor a partir do trabalho da revista Época (2012).
O tratamento sugerido pela revista para diminuir a corrupção, baseado em experiências
internacionais, listou quadro medidas (ÉPOCA, 2012): (1) tornar a justiça mais ágil para punir
os corruptos, (2) aumentar o poder e a especialização dos órgãos fiscalizadores, (3)
diminuir o número de nomeações comissionadas47 e (4) garantir o funcionamento efetivo da
lei de acesso à informação.
No dia 28 de maio de 2012, o jornal gaúcho Zero Hora (2012) publicou opinião na seção
“Página 10” sobre a impunidade. A nota tratou da falta de punição aos agentes públicos
envolvidos nas irregularidades do Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem do Rio
47
Essa medida também é sugerida por Kelman (2014).
92
Grande do Sul (DAER). Segundo o jornalista, passados quase 15 (quinze) meses dos
escândalos envolvendo a contratação de pardais, nenhum servidor público havia sido
sancionado. Mais que isso:
Soa como deboche saber que, além de não terem sido punidos, alguns dos servidores
suspeitos foram premiados. Após as denúncias, acompanhadas por fartos indícios de
ilegalidades, Emir Masiero, acusado de ter participado da fraude dos pardais, ganhou
função gratificada (FG) para ser assessor do presidente do Daer, Francisco
Thormann. Fábio Ballejo, suspeito de ter colaborado com irregularidades no pedágio
de Portão, foi agraciado com FG de superintendente na Diretoria de Infraestrutura
Rodoviária. Os dois somente perderam as benesses após reportagem de ZH. (ZERO
HORA, 2012).
Para além desse caso, alguns outros ocorridos no Estado do Rio Grande do Sul podem ser
trazidos como exemplo. Deflagrada em 2007 pelo Ministério Público Federal (MPF) no Rio
Grande do Sul, a operação “Rodin” investigou irregularidades nos serviços de exames
teóricos e práticos para expedição da Carteira Nacional de Habilitação (CNH). Segundo a
investigação, fundações ligadas à Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) foram
contratadas sem licitação pelo DETRAN para a realização do serviço, mas subcontrataram
empresas que cobrariam valores superfaturados. Em 2008, o MPF ofereceu denúncia contra
44 suspeitos e a Justiça Federal acatou contra 40, tendo os mesmos, com a aceitação da
justiça, assumido a figura processual de réus (RÁDIO GAÚCHA, 2014).
Em 12 de novembro de 2008, o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MPRS)
apresentou denúncia de 60 páginas, fruto da operação “Espelho D’Água”. Diálogos gravados
revelaram esquema de fraudes em licitações para serviços de coleta e destinação final de lixo
(ZERO HORA, 2014b).
Em 2 de julho de 2012, uma operação do MPRS, com o apoio da Polícia Militar do Estado,
prendeu três pessoas suspeitas de favorecer uma empresa em licitação para privatização de
serviços de água e esgoto em São Luiz Gonzaga/RS, na Região das Missões. Entre os presos
estava o ex-prefeito da cidade Vicente Diel (O SUL, 2014).
O ex-prefeito já estava com o mandato cassado pelos vereadores devido a uma condenação
criminal em outro processo judicial, esse por fraudar licitação para o transporte escolar –
conforme afirmou em entrevista coletiva o diretor da Promotoria Especializada Criminal,
93
houve troca de vantagens entre os presos e os empresários, assim como retorno financeiro
indevido (O SUL, 2014).
Em 9 de janeiro de 2014, a Polícia Civil (PC) gaúcha deflagrou uma operação que
desarticulou uma quadrilha responsável por superfaturar obras e cometer crimes contra a
administração pública fraudando licitações – operação “Killowatt”. Foram cumpridos oito
mandados de prisão e 34 mandados de busca e apreensão em órgãos públicos, empresas e
residências no Rio grande do Sul e São Paulo. As obras envolvidas no esquema montavam a
quantia de R$ 12 milhões (ZERO HORA, 2014c).
Ainda nos contornos dos inúmeros casos de corrupção que tocam e corroem a administração
pública brasileira diariamente, cabe lançar o quadro 8 com as operações da Polícia Federal
(PF) realizadas em 2013 e que envolveram corrupção e administração pública.
Quadro 8 – Operações da PF envolvendo corrupção e administração pública em 2013
Nome
Total
UF Descrição do esquema
Operação
Prisões
Desarticular um esquema de lavagem de dinheiro,
sonegação fiscal e falsidade documental existente no
Abdalônimo
AL
4
estado de Alagoas e liderado por um empresário que se
notabilizou pela incrível evolução patrimonial.
Adamanto
PA Inserção de dados falsos e corrupção.
4
Desarticular uma organização criminosa especializada em
Agenda
SP fraudes contra o Instituto Nacional de Seguridade Social 5
INSS, no estado de São Paulo.
Combater um grande esquema de desvio de recursos
públicos, oriundos de um dos programas do “Fome Zero”,
do Governo Federal, denominado PAA - Programa de
Agro-Fantasma PR Aquisição de Alimentos, da ação de Compra Direta da
14
Agricultura Familiar com Doação Simultânea –,
repassados pela Companhia Nacional de Abastecimento
(CONAB) a associações e cooperativas rurais.
Redenção/PA – apurar crimes de peculato, lavagem de
dinheiro, comunicação falsa de crime e falsidade
ideológica em desfavor a dois empresários, proprietários
Aposta Zero
PA de três lotéricas permissionárias da Caixa Econômica
1
Federal –CEF, na cidade de Redenção. Os empresários
teriam se apropriado indevidamente de valores
arrecadados pelas lotéricas e não repassados à CEF.
Desbaratar uma organização criminosa que, com a
Astringere
PB participação de um magistrado, atuava mediante os mais
10
diversos tipos de fraude. Foi constatada a existência de
94
Nome
Operação
UF
Ave de Fogo
RJ
Blokk
CE
Caduceu
MG
Ceres
SP
Citrus
AP
Compensa
AM
Concutare
RS
Cotação
MA
Desfalco
DF
Encamação
SP
Esopo
MG
Estado
Terminal
PB
Fake Work
PE
Falso Chico
PB
Descrição do esquema
uma verdadeira usina de astreintes, uma multa processual
que tem a finalidade de incentivar o cumprimento de
decisão judicial.
A PF deflagrou a Operação Ave de Fogo, com o objetivo
de combater fraudes em licitações no âmbito da Prefeitura
Municipal de Conceição de Macabu/RJ.
Desarticular organização criminosa especializada em
fraudar processos de concessão de benefícios da
Previdência Social.
Investigar o desvio de medicamentos adquiridos pelo
Sistema Único de Saúde (SUS).
Desarticular uma quadrilha que atuava na cidade de
Capivari/SP, dedicada à intermediação fraudulenta de
benefícios de salário-maternidade.
Combater um esquema criminoso responsável pelo desvio
de recursos públicos na Fundação Nacional de Saúde
(FUNASA). A operação, que contou com o apoio do
Ministério Público Federal, foi deflagrada em cinco
estados brasileiros.
Apurar desvio de verba da Previdência Social.
Desbaratar grupo criminoso formado por servidores
públicos, consultores ambientais e empresários. Os
investigados atuavam na obtenção e na expedição de
concessões ilegais de licenças ambientais e autorizações
minerais por meio dos órgãos de controle ambiental.
São Luís/MA - Desarticular uma quadrilha que realizava
atividade de câmbio, sem a devida autorização do Banco
Central e qualquer tipo de fiscalização, movimentando
grandes quantias em moeda nacional e estrangeira.
O objetivo da ação policial é combater desvios de recursos
da folha de pagamento do ICMBio.
Combate ao descaminho, à sonegação fiscal e à evasão de
divisas praticados por grupos empresariais da capital
paulista e por despachantes aduaneiros e agentes de carga
da Baixada Santista.
Desarticular organização criminosa que desviava recursos
públicos a partir de fraudes em processos licitatórios, em
dez estados e no Distrito Federal.
Combater desvio de verba pública no Hospital
Universitário Lauro Wanderley.
Desarticular organização criminosa responsável por desvio
de recursos federais destinados ao pagamento de segurodesemprego e Bolsa Família.
Desarticular uma quadrilha especializada na obtenção
fraudulenta de benefícios previdenciários, mediante a
Total
Prisões
2
3
5
2
12
5
18
10
3
5
25
9
8
4
95
Nome
Operação
UF
Fio de Ariadne
RJ
Flor de Lis
AP
Fratelli
SP
G-7
AC
Grade de Papel
Descrição do esquema
utilização de documentos falsos.
Combater esquema criminoso de desvio de recursos
públicos liberados pela Fundação Nacional de Saúde
(FUNASA) para a execução de obras de melhorias
sanitárias.
Crimes contra a Administração Pública, entre outros.
Desarticular uma organização criminosa que desviava
recursos públicos por meio de fraudes em licitações.
Desbaratar organização criminosa e apurar o envolvimento
do Secretário de Obras do Estado, do Secretário Municipal
de Desenvolvimento e Gestão Urbana de Rio Branco, do
ex-secretário de Estado da Habitação, de servidores
públicos e de empreiteiros.
Total
Prisões
15
1
15
7
BA
Fraude na obtenção de auxílio-reclusão praticada em Feira
de Santana/BA.
2
Guarda Livros
CE
1
Hidra
AM
Manirroto
PA
Martelo
AM
Metástase 57
MG
Miquéias
DF
II
Paralelo 31-S
RS
Pau-Brasil
RO
Perfil
AC
Combater esquemas de fraude em declarações do Imposto
de Renda de Pessoa Física.
Desarticular organização criminosa que operava no
Amazonas, voltada para as mais diversas práticas
criminosas, especialmente crimes de estelionato,
falsificação de documentos públicos e privados, falsidade
ideológica e sonegação fiscal.
Combater esquema perpetrado por organização criminosa
suspeita de utilizar empresas de factoring para o
cometimento de crimes contra a ordem tributária, contra o
sistema financeiro nacional, além de lavagem de dinheiro,
em Belém.
Afastamento de servidores públicos de suas funções.
A PF deflagrou a OPERAÇÃO METÁSTASE 57, no
combate a rede de corrupção e desvio de verbas públicas
no âmbito da Prefeitura de Três Corações/MG.
Desarticular duas organizações criminosas com atuações
distintas: uma de lavagem de dinheiro e outra de má gestão
de recursos de entidades previdenciárias públicas.
Combate a fraudes em licitações públicas, lavagem de
dinheiro e peculato- desvio de verbas públicas destinadas a
convênios, com o objetivo de construção de rede de água,
esgoto e drenagem.
Desarticular um esquema de desvio de recursos em obras
públicas.
Combate ao desvio de recursos públicos por meio de
fraudes em licitações.
Combater fraude contra o INSS.
Pronto
SP
Apurar desvios de recursos públicos do Ministério do
Novos
Caminhos
MG
12
7
7
37
20
10
1
19
2
7
96
Nome
Operação
Emprego
UF
Descrição do esquema
Total
Prisões
Trabalho e Emprego (MTE).
PA
Combater fraudes na obtenção e concessão de seguro
desemprego destinado ao pescador artesanal.
19
SP
Reprimir fraudes tributárias que poderiam ter gerado
prejuízo de até R$ 1 bilhão aos cofres da União.
11
Publicano
SP
4
Quilombos
AC
Schistosoma
SP
Desarticular quadrilha que agia fraudando declarações de
Imposto de Renda da Pessoa Física.
Combater fraudes e desvios de recursos públicos na área
de educação (Funeb e Pnate), na Prefeitura de União dos
Palmares.
Investigar denúncias de acumulação ilícita de patrimônio
por parte de um vereador, em Araraquara.
Combater crime contra o sistema previdenciário.
2
Proteu
Protocolo
Fantasma
Segunda
Instância
MA
Sertão-Veredas
MG
Sinapse
PR
Teçá
BA
Temis
BA
Tétis
PA
Teto de Vidro
MS
TR-01
RS
Trairão
PA
Violência
Invisível
Vulcano
MG
BA
Desarticular organização criminosa que desviava recursos
públicos de municípios do norte mineiro. A quadrilha,
formada por empresários, servidores públicos e agentes
políticos, atuantes, principalmente, nos municípios de
Januária e Itacarambi.
Combater uma quadrilha especializada em desviar
recursos públicos destinados à educação técnica do Paraná.
Desarticular quadrilha especializada em fraudes em
restituição de imposto de renda de pessoa física.
Desarticular grupo criminoso que agia na região oeste do
estado da Bahia praticando fraudes na obtenção de
benefícios previdenciários.
Belém/PA - Combater fraudes na obtenção e concessão de
seguro desemprego destinado ao pescador artesanal.
Fraudes em licitações, desvio de recursos públicos e
corrupção em prefeituras no interior do Estado do Mato
Grosso do Sul.
Foram apurados crimes de corrupção eleitoral, falsidade
ideológica e documental para fins eleitorais, formação de
quadrilha e fraude em licitação.
Combate a crimes ambientais e fraudes na utilização de
créditos florestais.
Desarticular organização criminosa que desviava recursos
públicos de mais de uma centena de cidades dos estados de
Minas Gerais, Espírito Santo, São Paulo, Pará, Sergipe,
Santa Catarina, Rio de Janeiro, Pernambuco, Paraíba,
Maranhão e Bahia.
Desarticular organização criminosa responsável por
praticar fraudes contra o programa federal denominado
Campanha do Desarmamento, em Feira de Santana.
8
5
14
18
2
1
19
1
5
1
9
6
97
Nome
Operação
UF
W
RS
Workaholic
RJ
Descrição do esquema
Desarticular um grupo criminoso que agia na
Superintendência Regional do Trabalho e Emprego no Rio
Grande do Sul.
Grupo investigado, formado por auditores-fiscais do
Trabalho, contadores e empresários, arrecadou mais de R$
7 milhões em propinas.
Total
Prisões
3
9
Fonte: elaborado pelo autor a partir do site da PF (http://www.dpf.gov.br/agencia/estatisticas/2013).
Dado um premido panorama dos incontáveis casos de corrupção que sugaram volumosos
recursos públicos nas últimas duas décadas, consta-se que os Tribunais de Contas não
ocuparam, de fato, um lugar de destaque no esvaziamento desses esquemas tão deletérios para
o desenvolvimento do Brasil – mesmo com a sua robusta matriz constitucional que impõe um
papel de controle, de fiscalização, de auditagem e de correição da administração pública
brasileira.
4.3.3 A CONVENÇÃO DA ONU CONTRA A CORRUPÇÃO
Em 31 de outubro de 2003, a Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou a convenção
contra a corrupção – United Nations Convention Agaisnt Corruption (UNCAC)48 –, assinada
pelo governo brasileiro em 9 de dezembro do mesmo ano e promulgada em 31 de janeiro de
2006 por meio do Decreto nº 5.687 (CGU, 2008)49.
A UNCAC, muito embora não tenha estabelecido um conceito para o fenômeno, trouxe uma
série de medidas a serem seguidas pelos países signatários no sentido de garantir estrutura
institucional adequada no trato da corrupção, entre elas ações de prevenção, implementação
da criminalização e efetiva aplicação da lei, cooperação internacional, recuperação de ativos e
incentivo à participação da sociedade (CGU, 2008).
É finalidade da UNCAC, dentre seus principais pontos, promover e fortalecer as medidas para
prevenir e combater mais eficaz e eficientemente a corrupção, assim como promover a
48
Firmada no dia 9-12-2003 na cidade de Mérida, México, a UNCAC entrou em vigência em 14-12-2005, após
atingir o número mínimo de ratificações (NUNES, 2008). O dia 9-12 passou a ser o dia internacional de combate
à corrupção.
49
Além da convenção da ONU contra a corrupção, o Brasil também é signatário da convenção interamericana
contra a corrupção, promovida pela Organização dos Estados Americanos (OEA)(CGU, 2008).
98
integridade, a obrigação de prestar contas e a devida gestão dos assuntos e dos bens públicos
(CGU, 2008).
Do conjunto de medidas e ações estatuídas pelo documento internacional, algumas tomam
relevo quando o assunto é associado ao controle externo da administração pública brasileira,
objeto deste trabalho.
No art. 5º da UNCAC foram cadenciadas políticas e práticas de prevenção à corrupção a
serem seguidas pelos Estados signatários. Segundo o dispositivo, cada Estado parte, de
conformidade com os princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico, formulará e
aplicará políticas coordenadas e eficazes contra a corrupção que promovam a participação da
sociedade e reflitam os princípios do Estado de Direito, a devida gestão dos assuntos e bens
públicos, a integridade, a transparência e a obrigação de prestar contas (CGU, 2008).
Mais que isso, cada signatário procurará estabelecer e fomentar práticas eficazes no sentido de
prevenir a corrupção, avaliando periodicamente os instrumentos jurídicos e as medidas
administrativas pertinentes a fim de determinar se são adequadas para combater o fenômeno50
(CGU, 2008).
Já no art. 6º, a UNCAC lançou luzes sobre os órgãos de prevenção à corrupção, determinando
que cada Estado garanta a existência de um ou mais órgãos encarregados de prevenir o
fenômeno (CGU, 2008). Assim, na esteira do normativo internacional, cada Estado outorgará
ao órgão ou aos órgãos de prevenção à corrupção a independência necessária para que possam
desempenhar suas funções de maneira eficaz e sem nenhuma influência indevida. Como
consequência, devem proporcionar-lhes os recursos materiais e o pessoal especializado que
sejam necessários, assim como a capacitação que os profissionais possam requerer para o
desempenho de suas funções (CGU, 2008).
No art. 7º a UNCAC, ao tratar do setor público, assevera que cada Estado signatário procurará
adotar sistemas de convocação, contratação, retenção, promoção e aposentadoria de
funcionários públicos e, quando proceder, de outros funcionários públicos não empossados,
50
Mandamento insculpido ainda no art. 5º da UNCAC.
99
ou manter e fortalecer tais sistemas. Segundo o mesmo dispositivo do diploma multinacional,
esses sistemas:
a) Estarão baseados em princípios de eficiência e transparência e em critérios
objetivos como o mérito, a equidade e a aptidão;
b) Incluirão procedimentos adequados de seleção e formação dos titulares de cargos
públicos que se considerem especialmente vulneráveis à corrupção, assim como,
quando proceder, a rotação dessas pessoas em outros cargos;
c) Fomentarão uma remuneração adequada e escalas de soldo equitativas, tendo em
conta o nível de desenvolvimento econômico do Estado Parte;
d) Promoverão programas de formação e capacitação que lhes permitam cumprir os
requisitos de desempenho correto, honroso e devido de suas funções e lhes
proporcionem capacitação especializada e apropriada para que sejam mais
conscientes dos riscos da corrupção inerentes ao desempenho de suas funções. Tais
programas poderão fazer referência a códigos ou normas de conduta nas esferas
pertinentes. (CGU, 2008, p. 27).
Ainda no art. 7º, a UNCAC estabelece que cada Estado signatário considerará também a
possibilidade de adotar medidas legislativas e administrativas apropriadas, em consonância
com os objetivos da Convenção e de conformidade com os princípios fundamentais de cada
legislação interna, a fim de estabelecer critérios para a candidatura e eleição a cargos públicos
– trata-se dos requisitos para ser votado, como o diploma legal brasileiro “Lei da Ficha
Limpa” (CGU, 2008).
Tocando o financiamento de candidaturas e à manutenção dos partidos políticos, a UNCAC
acordou que cada Estado signatário considerará a possibilidade de adotar medidas legislativas
e administrativas apropriadas para aumentar a transparência relativa ao financiamento de
candidaturas a cargos públicos eletivos e, quando proceder, relativa ao financiamento de
partidos políticos (CGU, 2008).
E, findando o art. 7º, registrou a necessidade de cada Estado signatário adotar sistemas
destinados a promover a transparência e a prevenir conflitos de interesses, assim como manter
e fortalecer tais sistemas (CGU, 2008).
No art. 8º, a UNCAC passa a tratar da necessidade de um código de conduta para os
funcionários públicos (CGU, 2008). Na linha da Convenção, cada Estado signatário
promoverá, entre outras coisas, a integridade, a honestidade e a responsabilidade entre seus
funcionários públicos. Em particular, cada Estado signatário procurará aplicar, em seus
100
próprios ordenamentos institucionais e jurídicos, códigos ou normas de conduta para o
correto, honroso e devido cumprimento das funções públicas. Mais que isso, cada Estado deve
considerar a possibilidade de estabelecer medidas e sistemas para facilitar que os funcionários
públicos denunciem todo ato de corrupção às autoridades competentes quando tenham
conhecimento deles no exercício de suas funções.
Seguindo o mesmo norte, disciplina a UNCAC, ainda no art. 8º, que cada Estado signatário
procurará estabelecer medidas e sistemas para exigir aos funcionários públicos que tenham
declarações às autoridades competentes em relação, entre outras coisas, com suas atividades
externas e com empregos, inversões, ativos e presentes ou benefícios importantes que possam
dar lugar a um conflito de interesses relativo a suas atribuições como funcionários públicos
(CGU, 2008).
Na grafia da UNCAC, cada Estado considerará a possibilidade de adotar medidas
disciplinares ou de outra índole contra todo funcionário público que transgrida os códigos ou
as normas de conduta (CGU, 2008).
Denota-se, assim, que a Convenção almeja um Estado promotor dos valores éticos, tais como
integridade, honestidade e transparência, cujo modelo cobre dos servidores públicos alto nível
de profissionalismo, capacidade técnica e independência (NUNES, 2008).
No art. 9º a Convenção trata das contrações com a administração pública e da gestão
fazendária (CGU, 2008). Estabelece que cada Estado signatário adotará as medidas
necessárias para estabelecer sistemas apropriados de contratação pública, baseados na
transparência, na competência e em critérios objetivos de adoção de decisões, que sejam
eficazes, entre outras coisas, para prevenir a corrupção.
Esses sistemas deverão abordar, segundo a UNCAC, entre outras coisas:
a) A difusão pública de informação relativa a procedimentos de contratação pública
e contratos, incluída informação sobre licitações e informação pertinente ou
oportuna sobre a adjudicação de contratos, a fim de que os licitadores potenciais
disponham de tempo suficiente para preparar e apresentar suas ofertas;
b) A formulação prévia das condições de participação, incluídos critérios de seleção
e adjudicação e regras de licitação, assim como sua publicação;
101
c) A aplicação de critérios objetivos e predeterminados para a adoção de decisões
sobre a contratação pública a fim de facilitar a posterior verificação da aplicação
correta das regras ou procedimentos;
d) Um mecanismo eficaz de exame interno, incluindo um sistema eficaz de
apelação, para garantir recursos e soluções legais no caso de não se respeitarem as
regras ou os procedimentos estabelecidos conforme o presente parágrafo;
e) Quando proceda, a adoção de medidas para regulamentar as questões relativas ao
pessoal encarregado da contratação pública, em particular declarações de interesse
relativo de determinadas contratações públicas, procedimentos de pré-seleção e
requisitos de capacitação. (CGU, 2008, p. 29).
Ademais, cada Estado signatário adotará medidas apropriadas para promover a transparência
e a obrigação de prestar contas na gestão da fazenda pública (CGU, 2008). Essas medidas
abarcarão, entre outras coisas: a apresentação oportuna de informação sobre gastos e
ingressos; um sistema de normas de contabilidade e auditoria, assim como a supervisão
correspondente; sistemas eficazes e eficientes de gestão de riscos e controle interno; e a
adoção de medidas corretivas em caso de não cumprimento dos requisitos estabelecidos
(CGU, 2008).
Ainda no art. 9º, a Convenção estatui que cada Estado signatário adotará as medidas que
sejam necessárias, nos âmbitos civil e administrativo, para preservar a integridade dos livros e
registros contábeis, financeiros ou outros documentos relacionados com os gastos e ingressos
públicos e para prevenir a falsificação desses documentos (CGU, 2008).
Já no art. 10, a UNCAC passa a lançar critérios acerca da oferta e disponibilização das
informações públicas (CGU, 2008). Assim, tendo em conta a necessidade de combater a
corrupção, plasma que cada Estado signatário adotará medidas que sejam necessárias para
aumentar a transparência em sua administração pública, inclusive no relativo a sua
organização, funcionamento e processos de adoção de decisões.
Essas medidas contemplarão, entre outras coisas: a instauração de procedimentos ou
regulamentações que permitam ao público em geral obter informação sobre a organização, o
funcionamento e os processos de adoção de decisões de sua administração pública, com o
devido respeito à proteção da intimidade e dos documentos pessoais, sobre as decisões e atos
jurídicos que incumbam ao público; a simplificação dos procedimentos administrativos,
quando proceder, a fim de facilitar o acesso do público às autoridades encarregadas da adoção
102
de decisões; e a publicação de informação, o que poderá incluir informes periódicos sobre os
riscos de corrupção na administração pública (CGU, 2008).
A UNCAC trabalhou também a necessária participação da sociedade no trato da coisa
pública, conforme consta no seu art. 13 (CGU, 2008). Estabeleceu que cada Estado signatário
deverá adotar medidas adequadas para fomentar a participação ativa de pessoas e grupos que
não pertençam ao setor público, como a sociedade civil, as Organizações Não
Governamentais (ONGs) e as organizações com base na comunidade, na prevenção e na luta
contra a corrupção, e para sensibilizar a opinião pública a respeito da existência, das causas e
da gravidade da corrupção, assim como a ameaça que esta representa.
Indica a UNCAC que essa participação deve abarcar medidas como as seguintes (CGU,
2008): aumentar a transparência e promover a contribuição da cidadania aos processos de
adoção de decisões; garantir o acesso eficaz do público à informação; realizar atividade de
informação pública para fomentar a intransigência à corrupção, assim como programas de
educação pública, incluídos programas escolares e universitários; respeitar, promover e
proteger a liberdade de buscar, receber, publicar e difundir informação relativa à corrupção.
Ainda, a UNCAC, no mesmo art. 13, registra que cada Estado signatário adotará medidas
apropriadas para garantir que o público tenha conhecimento dos órgãos de luta contra a
corrupção, assim como facilitará o acesso a tais órgãos para denúncias, inclusive anônimas, de
quaisquer incidentes que possam ser considerados constitutivos de um delito qualificado de
corrupção.
Como não poderia ser diferente, não foi apenas o setor público que recebeu atenção da
UNCAC. Ao longo dos seus 71 (setenta e um) artigos, a UNCAC tratou de uma longa série de
ações a serem implementadas pelos Estados signatários no lúcido propósito de fazer valer o
combate à corrupção, envolvendo múltiplas temáticas, tais como (CGU, 2008):

normas contábeis, auditoria e sanções no setor privado;

suborno no setor privado;

malversação ou peculato de bens no setor privado;

medidas relativas ao poder judiciário e ao ministério público;
103

medidas para prevenir a lavagem de dinheiro;

medidas de combate ao suborno de funcionários públicos nacionais, funcionários
públicos estrangeiros e de funcionários de organizações internacionais públicas;

malversação ou peculato, apropriação indébita ou outras formas de desvio de bens
por um funcionário público;

tráfico de influências;

abuso de funções;

enriquecimento ilícito;

lavagem de produto de delito;

encobrimento, obstrução da justiça;

responsabilidade das pessoas jurídicas;

participação ou tentativa em delitos de corrupção;

elementos de um delito, prescrição, processo, sentença e sanções;

embargo preventivo;

apreensão e confisco;

proteção a testemunhas, peritos e vítimas;

proteção aos denunciantes;

eliminação das consequências dos atos de corrupção;

autoridades especializadas;

cooperação com as autoridades encarregadas de fazer cumprir a lei, cooperação entre
organismos nacionais, cooperação entre os organismos nacionais e o setor
privado,cooperação internacional;

sigilo bancário;

extradição, traslado de pessoas condenadas a cumprir uma pena;

cooperação em matéria de cumprimento da lei, investigações conjuntas, técnicas
especiais de investigação, recuperação de ativos, prevenção e detecção de
transferências de produto de delito, medidas para a recuperação direta de bens,
mecanismos de recuperação de bens mediante a cooperação internacional para fins de
confisco, cooperação internacional para fins de confisco, cooperação especial,
restituição e disposição de ativos;

departamento de inteligência financeira, acordos e tratados bilaterais e multilaterais,
assistência técnica e intercâmbio de informações, capacitação e assistência técnica;
104

recompilação, intercâmbio e análise de informações sobre a corrupção.
A corrupção está presente na condição humana e, portanto, tem-se o fenômeno como um mal
da sociedade que deve ser combatido pela mesma sociedade (CGU, 2008). Essa ação precisa
ser entendida por todos para o bem e todos, sendo necessário que as instituições de um País
passem a demonstrar que a medida entre o ganho advindo da corrupção não vale o risco
corrido.
4.3.4 A CORRUPÇÃO E OS TRIBUNAIS DE CONTAS
Os tribunais de contas do Brasil são entidades de assessoria e consultoria, melhoria do gasto
público, ensino e aprendizagem de administração pública? São entidades de apoio aos
gestores públicos em suas deficiências? Ou revestem-se em entidades verdadeiramente
focadas no controle, fiscalização, auditagem e correição das transações econômicas e
financeiras ocorridas na seara pública?
Uma e outra linha são absolutamente distintas e não se confundem. Como facilmente
depreende-se da leitura constitucional tocante às funções dos tribunais de contas, essas
entidades devem cumprir com um papel de controle, de fiscalização, de auditagem e de
correição da administração pública brasileira, ligando-as, assim, umbilicalmente ao combate
às manifestações deletérias da corrupção.
Nesta seção reside um dos pontos nevrálgicos do estudo empreendido pela pesquisa em tela,
levada adiante no seio do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Desenvolvimento,
linha de pesquisa Administração Pública e Gestão Social, da Universidade Regional do
Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ): estabelecer a relação existente entre os
Tribunais de Contas e o complexo fenômeno social da corrupção. Relação essa que se
entrelaça no setor público por força da missão controladora atribuída às Cortes de Contas pela
Constituição de 1988.
Na medida em que Países têm dificuldade em obter recursos externos e veem sua taxa de
tributação interna limitada, passam a preocupar-se com a qualidade do gasto público no
105
intento de melhor atender a suas atividades e programas. Enxergar-se, assim, a necessidade de
o Estado utilizar os recursos existentes da melhor forma possível (SPECK, 2000a).
É nessa linha conjuntural que se identifica uma recém-surgida capacidade de indignação
social com os múltiplos facetados escândalos de corrupção que surrupiam os recursos
públicos auferidos da sociedade para aplicação em prol da mesma sociedade.
Bruno Wilhelm Speck (2000a) afirma que o movimento de indignação com os atos de
corrupção tem ganhado atenção no mundo todo, e cita a criação da organização não
governamental Transparency International51 (TI) em 1993 como exemplo de seu
entendimento. Poder-se-ia apontar, igualmente, a própria UNCAC como lúcido exemplo da
consistência da assertiva lançada por Speck – firmada, como visto neste trabalho, no final do
ano de 2003.
Fato é que a sensibilidade pública para os casos de corrupção, especialmente os que envolvem
o setor público, tem aumentado sensivelmente nos últimos anos, haja vista, para além das
comprovações já trazidas por este estudo, a notoriedade das numerosas produções
jornalísticas do dia-a-dia.
Para o propósito deste estudo, um achado relevante do mesmo estudioso Speck – e que já foi
consignado na exposição do problema de pesquisa desta dissertação – precisa ser resgatado:
muito embora os Tribunais de Contas detenham pomposa gênese constitucional, o jornalismo
investigativo, as Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) e o Ministério Público (MP)
transparecem maior efetividade no combate à corrupção (SPECK, 2000a).
A visão de Speck (2000a), elaborada no ano 2000, encontra abrigo em um editorial do jornal
gaúcho Zero Hora, publicado em 9 de julho de 2008 e intitulado “Tribunais de faz-de-conta”.
Na oportunidade, o jornal lançou opinião ilustrando a ausência de efetividade dos serviços
públicos de combate à corrupção – serviços prestados pelas Cortes de Contas. Veja-se excerto
do manifesto:
51
Com sede em Berlim, Alemanha, a organização tem a finalidade de combater a corrupção em nível
internacional e nacional. Está presente em mais de 100 países ao redor do mundo (TI, 2014).
106
Legalmente incluídos ente os principais órgãos de combate à corrupção no país, os
tribunais de contas estão longe de justificar sua razão de ser, que é zelar pelo bom
uso do dinheiro público.
[...]
Se o país quer mesmo assegurar mais ética na política e na administração pública,
precisa fazer com que órgãos como o Tribunal de Contas da União (TCU) e os
equivalentes em diferentes Estados e municípios, assim como a Controladoria-Geral
da União (CGU), possam assumir integralmente suas atribuições constitucionais.
[...]
Como destacou o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Carlos
Ayres Britto, no último Painel RBS, “os Tribunais de Contas não alcançaram aquele
grau de efetividade que o Ministério Público alcançou, mas há um alento: cada vez
mais a chamada Corte de Contas ganha credibilidade como instituição e assume
responsabilidades institucionais. Os atos mais visíveis são aqueles em que, apesar
das deficiências estruturais, essas instituições embargam obras com indícios de
irregularidades, preservando o dinheiro público”.
Ainda assim, o avanço é lento nos mais de 30 Tribunais de Contas em
funcionamento no país.
[...]
O viés político desses órgãos, porém, faz com que dificilmente algum agente público
acabe multado ou seja pedida a sua declaração de inidoneidade, levando-os a agir,
em muitos casos, como verdadeiros tribunais de faz-de-conta.
Seja qual for a instância da federação nas quais atuam, essas instituições deveriam se
espelhar nas que realmente se mostram eficazes no cumprimento de seus papéis. É o
caso – além do Ministério Público, citado pelo presidente do TSE – da Polícia
Federal, entre outros órgãos, para os quais costumam pesar os fatos e não uma visão
que se possa ter deles de acordo com as conveniências. (ZERO HORA, 2008).
Essa questão é reforçada em desfavor das Cortes de Contas quando é observado que as
instituições de controle externo atuam de forma exclusiva e permanente no zelo pelo bom uso
dos recursos públicos, enquanto a imprensa, as CPIs e o MP detêm atividades outras.
A partir de seu texto “Corrupção e controles democráticos no Brasil”, Avritzer e Filgueiras
(2011) colocam uma posição igualmente desconcertante para os Tribunais de Contas: muito
embora essas instituições estejam entre os principais mecanismos estatais de controle do
fenômeno da corrupção – ao lado da CGU, da PF e do Judiciário –, poucas foram as
condenações de atos ilícitos relacionados à corrupção.
O trecho transcrito explica a ideia trazida pelos autores:
Desde 1988, a legislação de controle da corrupção concentra-se, sobretudo, na
produção de instrumentos burocráticos que resultam na ampliação da vigilância
sobre os servidores e sobre os políticos, bem como a expansão das agências
especializadas de controle. A criação da CGU, a mudança no estatuto do TCU, a
criação de controladorias e auditorias na dimensão dos órgãos do governo federal e
107
nos estados produziram uma burocratização excessiva do controle da
corrupção, resultando em barreiras para a cooperação interinstitucional, em
uma posição defensiva das gerências, em lentidão de procedimentos e processos
administrativos, em pouca criatividade na inovação gerencial e em maior
conflitualidade entre os órgãos da máquina administrativa. Estipulou-se, desde
1988, que o fim da corrupção e o desenvolvimento político, econômico e social
decorreriam do aprimoramento da máquina administrativa. Ao contrário do que
intuitivamente se postulava na década de 1990, a reforma administrativa e o
fortalecimento dos mecanismos burocráticos de controle resultaram em maior
burocratização e na recorrência da corrupção na opinião pública. (grifo do autor)
(AVRITZER; FILGUEIRAS, 2011, p. 25).
Em contrapartida, ao analisarem a evolução histórica e organizacional do Tribunal de Contas
da União (TCU), utilizando-se essencialmente de sua matriz constitucional – o que permite
uma boa analogia para o sistema Tribunais de Contas do Brasil –, Teixeira e Alves (2011)
identificaram uma significativa mudança da origem da Corte de Contas até a promulgação da
constituição de 1988, quando o órgão de controle externo teve as suas atribuições ampliadas e
passou a ser um importante instrumento de controle da corrupção no setor púbico.
Para validar os argumentos de seus achados, Teixeira e Alves (2011) apontaram algumas
mudanças que deram essa nova roupagem ao TCU, como: (1) um recrutamento do corpo de
julgadores mais plural, sem o monopólio da escolha pelo Executivo, e com uma composição
mais técnica, na medida em que agentes públicos de carreira teriam acesso a pelo menos duas
vagas em um colegiado de 9 (nove) integrantes, (2) a manutenção das mesmas garantias dos
magistrados das cortes superiores aos julgadores de contas, (3) a fixação da idade máxima de
65 (sessenta e cinco) anos para assunção ao cargo de julgador, (4) a exigência de pelo menos
10 (dez) anos em atividade profissional ligada a notórios conhecimentos de administração
pública, (5) a total autonomia e independência da Corte de Contas para com os demais
poderes da República e órgãos fiscalizados, (6) um forte corpo técnico renovado, (7) a
abertura de franco e direto diálogo entre a Corte de Contas e a sociedade, (8) a
responsabilização daqueles que provocaram danos ao erário e (9) a realização de auditorias
operacionais.
O conjunto dessas mudanças institucionais permitiu, segundo os autores citados, a forja de um
ethos organizacional aos tribunais de contas capaz de lançá-los ao desempenho de um papel
primordial no controle da corrupção (TEIXEIRA; ALVES, 2011). Com isso, apruma-se aqui
a visão indubitável de que os Tribunais de Contas são constitucionalmente forjados para tanto.
108
Os Tribunais de Contas são aparelhos estatais desenhados pela constituição para controlar,
auditar e fiscalizar a administração pública brasileira, combatendo atos de corrupção
ocorridos no seio do aparelho estatal (BRANCO, 1997; AGUIAR, 2005; FACCIONI, 2008;
ZERO HORA, 2008; AGUIAR, 2010; MILESKI, 2011; SOUZA, 2011; TEIXEIRA; ALVES,
2011; FACCIONI, 2012; FERNANDES, 2012; TCERS, 2013a).
A origem dos Tribunais de Contas no Brasil se dá a partir do surgimento da República e do
momento em que se detecta a necessidade de um controle, externo e independente, sobre as
finanças dos entes da Administração Pública. Portanto, tem-se a necessidade de um
mecanismo de combate à corrupção quando esta se associa à coisa pública.
Hodiernamente, o ordenamento jurídico pátrio disciplina, a partir da Carta Magna, a questão
do controle dos gastos públicos brasileiros. Lá, verifica-se que o Poder Constituinte
Originário concedeu ao Poder Legislativo a competência para controlar a gestão dos recursos
públicos e que, para o melhor desempenho dessa atividade, o Poder Legislativo será auxiliado
pelos Tribunais de Contas. Nesse sentido, as Cortes de Contas são consideradas órgãos
técnicos de controle enquanto que o Poder Legislativo é órgão político (PELEGRINI, 2014).
Só no período de 2009 a 2013, conforme tabela 3, o TCERS consumiu R$ 1.516.848.623,23
(um bilhão, quinhentos e dezesseis milhões, oitocentos e quarenta e oito mil, seiscentos e
vinte e três reais e vinte e três centavos) para dar cumprimento (efetividade) à sua missão
constitucional. Dessa feita, grande soma de recursos públicos foi destinada às funções de
controle externo apresentadas neste trabalho.
Tabela 3 – Gastos do TCERS
Período: 2009 a 2013
Exercício financeiro
Gastos liquidados
2009
R$ 237.655.972,28
2010
R$ 256.877.231,54
2011
R$ 296.547.215,10
2012
R$ 340.832.290,58
2013
R$ 384.935.913,73
Total
R$ 1.516.848.623,23
Fonte: elaborado pelo autor a partir do site do TCERS.
109
Os resultados desse investimento social em controle da administração pública devem ser
conjugados com os trabalhos competentes ao Ministério Público, à Polícia e aos demais
órgãos de controle, resultando em provocações ao Poder Judiciário, em instauração de
procedimentos administrativos de reconhecida segurança jurídica, inquéritos civis e inquéritos
policiais (BOMPET, 2009; PEREIRA, 2009; ÉPOCA, 2012; PERRET, 2012).
Tal assertiva decorre das inúmeras possibilidades de identificação de desvios éticos de
conduta de agentes, públicos ou não, intrínsecas aos procedimentos de apuração mantidos
pelas Corte de Contas – trabalhos de auditoria. O conjunto probatório reunido pelos trabalhos
auditoriais pode, após o devido trâmite legal, vir a comprovar crimes de corrupção ativa ou
passiva, ou ainda atos de improbidade administrativa.
4.4 CONTROLE SOCIAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
[...] our discussion is the recurrence of a mistake that has been made frequently in
the history of public management reform: private sector “solutions” are slathered
over public sector wounds as if they are a magic salve. Too often, the fundamental
differences between the public and private sectors are minimized or ignored52.
(HAYS; PLAGENS, 2002, p.327).
O controle social é forma com a qual o cidadão pode intervir na gestão pública, corrigindo
seus desvios e otimizando a aplicação dos recursos auferidos pelo Estado junto à sociedade
civil. É a personificação da cidadania.
Muito embora essa seja uma visão claramente otimista de controle social, seria ingenuidade
esconder os problemas e os desafios ainda enfrentados pela sociedade brasileira na busca pelo
controle efetivo de seu Estado – ou também poder-se-ia ler: controle efetivo da sua
administração pública.
O controle social é um processo histórico falho, dinâmico e, ao mesmo tempo, evolutivo,
caracterizado por estar intrinsecamente ligado à transparência dos atos e fatos da
administração pública. Frisar-se que muito embora a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão – em 1789 – tenha estatuído a possibilidade de a sociedade exigir a prestação de
52
Em tradução livre: “...nossa discussão é a repetição de um erro que tem sido frequente na história da reforma
da administração pública: ’soluções‘ do setor privado são lançadas sobre as feridas do setor público como se
fossem uma pomada mágica. Muitas vezes, as diferenças fundamentais entre os setores público e privado são
minimizadas ou ignoradas”.
110
contas dos agentes públicos administradores, no Brasil essa forma de controle só ganhou
relevo a partir da constituição de 198853 (PÍTSICA, 2011).
Com idêntico viés, Lima (2005) aponta:
O controle social surge no início do processo de redemocratização do Brasil, no final
do governo militar. Seu foco central é garantir a eficiência e eficácia em qualquer
programa de governo, qualidade dos serviços, e assegurar que a Administração atue
de acordo com os princípios constitucionais da legalidade, moralidade,
impessoalidade, publicidade e eficiência, avançando para uma gestão pública mais
justa e transparente. (LIMA, 2005, p.34-35).
Allebrandt e Siedenberg (2010) entendem que a cidadania não é dada, mas sim construída e
conquistada a partir da capacidade de organização, participação e intervenção social de todos
os cidadãos. Adotando olhar análogo, autores ligados ao controle externo defendem que a
participação do cidadão no contexto sociopolítico é um bom indicador do desenvolvimento de
um povo (AGUIAR; ALBUQUERQUE; MEDEIROS, 2011).
Na concepção desses autores, os países mais desenvolvidos tendem a ter um forte controle
social, pois os cidadãos preocupam-se amiúde com a aplicação dos recursos públicos. Nesse
sentido, importa lembrar a intensa mobilização político-social vivida no Brasil ao final do
período ditatorial, especialmente na década de 80. Mobilização essa que resultou em um
processo de reorganização institucional e na edição de uma nova Carta Magna.
Keinert (1994) ajuda a entender esse processo que fortaleceu o atual paradigma de controle
social:
A partir da mobilização social referida no período anterior, consolida-se o conceito
de cidadania, a noção de direitos e ocorre, consequentemente, o fortalecimento da
cultura democrática. A noção de cidadania contrapõe-se à ideia de corrupção,
entendida como o favorecimento do interesse privado em detrimento ao público.
Emerge a proposta de participação da sociedade civil na gestão pública,
especialmente no sentido de se ampliar o controle da primeira sobre a segunda.
(KEINERT, 1994, p.45-46).
Indiscutivelmente a atual constituição brasileira é o diploma legal mais favorável ao controle
social já editado na história desta Nação. Tanto que desde a sua promulgação recebeu a
53
Conforme os arts. 34 e 35 da CF/88, a prestação de contas da administração pública, direta e indireta, é
princípio constitucional. Se algum ente federativo deixar de segui-lo, torna-se passível a intervenção no mesmo –
intervenção federal ou estadual, dependendo.
111
conjugação adjetiva de “constituição cidadã”. De pronto, vale lembrar, no parágrafo único do
seu art. 1º tem-se a base interpretativa para tanto: “Todo o poder emana do povo, que o exerce
por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (BRASIL,
2013b). Allebrandt (2012) também contribui no entendimento do atual momento do controle
social, fortalecido pela constituição brasileira vigente:
A sociedade, dividida em três grandes segmentos – Estado, mercado e sociedade
civil – é desafiada constantemente a construir alternativas de forma articulada que
conduzam ao desenvolvimento sustentável, com equidade, liberdade e cidadania
plena. Ao longo da História, no entanto, convive-se com períodos em que era
hegemônica a visão mercadocêntrica, outros em que era predominante a visão
estadocêntrica. Mais recentemente movimentos pretendem viabilizar uma visão
sociocêntrica nas relações entre Estado, mercado e sociedade civil, garantindo
assim um protagonismo mais efetivo da sociedade na articulação entre os três
segmentos. (ALLEBRANDT, 2012, p.140)(grifo do autor).
E essa evolução é traduzida na crescente oferta da matéria-prima para o exercício do efetivo
controle social, qual seja: dados e informações inteligíveis sobre o âmago da administração
pública brasileira. Em uma abordagem histórica sobre a democracia no Brasil e a sua
influência na transparência sobre os negócios públicos, Jardim (1999) assevera que:
A busca pela transparência do Estado brasileiro foi inserida na agenda política de
democratização do País após 21 anos de ditadura militar. A democratização do
Estado tinha como um dos seus pressupostos o controle do seu aparelho pela
sociedade civil. Para tal, a transparência do Estado, expressa na possibilidade de
acesso do cidadão à informação governamental, constituída um requisito
fundamental. Configurada como um direito e, simultaneamente, projeto de
igualdade, o acesso à informação governamental somou-se a outras perspectivas
democratizantes. (JARDIM, 1999, p. 197).
Exemplos claros revelam o contexto de abertura das informações estatais para a sociedade
brasileira. A edição da Lei Complementar nº 101 de 2000 – a intitulada “Lei de
Responsabilidade Fiscal” (LRF) –, cujo teor foi aperfeiçoado por meio da Lei Complementar
nº 131 de 2009, e a edição da Lei Ordinária nº 12.527 de 2011 – ou “Lei de Acesso à
Informação” (LAI) –, propiciaram dispositivos robustos que fomentam a participação e o
controle do cidadão sobre a coisa pública. Para um governo ser responsável na gestão dos
recursos públicos, é pressuposto a ação transparente (art. 1º da LRF). Veja-se excertos da LRF
e da LAI:
CAPÍTULO IX
DA TRANSPARÊNCIA, CONTROLE E FISCALIZAÇÃO
112
Seção I
Da Transparência da Gestão Fiscal
Art. 48. São instrumentos de transparência da gestão fiscal, aos quais será dada
ampla divulgação, inclusive em meios eletrônicos de acesso público: os planos,
orçamentos e leis de diretrizes orçamentárias; as prestações de contas e o respectivo
parecer prévio; o Relatório Resumido da Execução Orçamentária e o Relatório de
Gestão Fiscal; e as versões simplificadas desses documentos.
Parágrafo único. A transparência será assegurada também mediante:
I – incentivo à participação popular e realização de audiências públicas, durante os
processos de elaboração e discussão dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e
orçamentos;
II – liberação ao pleno conhecimento e acompanhamento da sociedade, em tempo
real, de informações pormenorizadas sobre a execução orçamentária e financeira, em
meios eletrônicos de acesso público;
III – adoção de sistema integrado de administração financeira e controle, que atenda
a padrão mínimo de qualidade estabelecido pelo Poder Executivo da União e ao
disposto no art. 48-A.
Art. 48-A. Para os fins a que se refere o inciso II do parágrafo único do art. 48, os
entes da Federação disponibilizarão a qualquer pessoa física ou jurídica o acesso a
informações referentes a:
I – quanto à despesa: todos os atos praticados pelas unidades gestoras no decorrer da
execução da despesa, no momento de sua realização, com a disponibilização mínima
dos dados referentes ao número do correspondente processo, ao bem fornecido ou ao
serviço prestado, à pessoa física ou jurídica beneficiária do pagamento e, quando for
o caso, ao procedimento licitatório realizado;
II – quanto à receita: o lançamento e o recebimento de toda a receita das unidades
gestoras, inclusive referente a recursos extraordinários.
Art. 49. As contas apresentadas pelo Chefe do Poder Executivo ficarão disponíveis,
durante todo o exercício, no respectivo Poder Legislativo e no órgão técnico
responsável pela sua elaboração, para consulta e apreciação pelos cidadãos e
instituições da sociedade. (BRASIL, 2013c).
Art. 3º Os procedimentos previstos nesta Lei destinam-se a assegurar o direito
fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade com
os princípios básicos da administração pública e com as seguintes diretrizes:
I - observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção;
II - divulgação de informações de interesse público, independentemente de
solicitações;
III - utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da informação;
IV - fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência na administração
pública;
V - desenvolvimento do controle social da administração pública.
[...]
Art. 5º É dever do Estado garantir o direito de acesso à informação, que será
franqueada, mediante procedimentos objetivos e ágeis, de forma transparente, clara e
em linguagem de fácil compreensão. (grifo do autor) (BRASIL, 2013d).
113
Discutir as auditorias realizadas pelos Tribunais de Contas está umbilicalmente ligado à
discussão do processo de democratização e modernização da administração pública. E esta
última, como visto, ligada diretamente ao controle da sociedade sobre o Estado – à
participação popular na administração pública.
A participação popular na gestão e no controle da administração pública corresponde, na
verdade, à aspiração do indivíduo de participar, quer pela via administrativa, quer pela via
judicial, da defesa da imensa gama de interesses públicos que o Estado, sozinho, não pode
proteger.
O controle que o cidadão pode exercer sobre a Administração Pública está expressamente
consagrado e instrumentalizado no mundo jurídico presente (BRASIL, 2013b). É possível
destacar, mesmo que rapidamente, o direito de petição aos poderes públicos (inciso XXXIV,
alínea “a”, do art. 5º da CF/88) – que tanto foi estabelecido em favor do peticionário quanto
generalizado para evitar ilegalidade ou abuso de poder –, o direito de receber dos órgãos
públicos informações de interesse coletivo ou geral (inciso XXXIII do mesmo art. 5º da
CF/88) e a ação popular para anular ato lesivo ao patrimônio público, ou ao patrimônio de
entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao
patrimônio histórico e cultural – com isenção de custas judiciais e ônus de sucumbência
(inciso LXXIII do art. 5º da CF/88).
Mais que isso, o casamento do controle social com o controle externo também está plasmado
na Constituição da República – §2º do art. 74: “Qualquer cidadão, partido político, associação
ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades
perante o Tribunal de Contas da União”54 (BRASIL, 2013b).
Em decorrência dessa disposição constitucional, aplicada às cortes de contas estaduais por
simetria, a Ouvidoria do TCERS tem trabalhado bastante. Só no ano de 2013 foram recebidas
mais de 8.000 (oito mil) denúncias. As tabelas 4, 5 e 6 ajudam a quantificar a comunicação da
sociedade com o TCERS por meio da sua Ouvidoria, em 2013.
54
Outro exemplo é o constante no §1º do art. 113 da Lei de Licitações – Lei Federal nº 8.666/93. Segundo o
dispositivo, qualquer licitante, contratado ou pessoa física ou jurídica poderá representar ao Tribunal de Contas
contra irregularidades nas licitações.
114
Tabela 4 – Denúncias por enquadramento (TCERS, 2014e)
Enquadramento
Total
%
Desvio de função
621
7,70
Contratação de pessoal
518
6,40
Cumprimento de lei
498
6,20
Concurso público
494
6,10
Cumprimento de horário
427
5,30
Controle interno
407
5,00
Nepotismo
371
4,60
Procedimento licitatório
362
4,50
Uso de bens/materiais públicos
261
3,20
Outros enquadramentos
4.052
50,50
Total
8.011
100
Fonte: elaborado pelo autor a partir do site do TCERS.
Tabela 5 – Denúncias por forma de recebimento (TCERS, 2014e)
Forma de recebimento
Total
%
Internet
7.227
90,21
Telefone
214
2,67
Pessoalmente
189
2,35
E-mail
140
1,74
Correio
124
1,54
Serviços Regionais
117
1,46
8.011
100
Total
Fonte: elaborado pelo autor a partir do site do TCERS.
Tabela 6 – Denúncias por situação (TCERS, 2014e)
Forma de recebimento
Total
%
Arquivada – faltam informações complementares
1.031
12,86
Arquivada – matéria já cadastrada
801
9,99
Arquivada – apontada em relatório de auditoria
284
3,54
Arquivada – não é competência do TCE
239
2,98
Aguardando manifestação do controle interno
235
2,93
115
Forma de recebimento
Total
%
183
2,28
Outras situações
5.238
65,38
Total
8.011
100
Arquivada – documento não aproveitado
Fonte: elaborado pelo autor a partir do site do TCERS.
Com o advento da Lei de Acesso à Informação (LAI), o processo evolutivo de controle social
ganhou ainda mais proximidade com os trabalhos de fiscalização produzidos pelos auditores
em suas lidas diárias, senão vejamos:
Art. 7º O acesso à informação de que trata esta Lei compreende, entre outros, os
direitos de obter:
[...]
VII - informação relativa:
[...]
b) ao resultado de inspeções, auditorias, prestações e tomadas de contas realizadas
pelos órgãos de controle interno e externo, incluindo prestações de contas relativas a
exercícios anteriores. (BRASIL, 2013d).
Dessa feita, o imbricamento do controle externo com o controle social é, além de desejável,
necessário para o desenvolvimento profícuo das políticas públicas e das ações de combate à
corrupção (PÍTSICA, 2011). Com o mesmo espírito, Allebrandt (2002) assevera que o
envolvimento da população garante um caráter mais democrático à gestão pública, além de
possuir potencial para interferir no modus operandi da máquina e dos governos.
Ou seja, a apropriação desses trabalhos técnico-empíricos, por parte da sociedade,
indubitavelmente contribuirá para o fortalecimento legítimo da participação cidadã na gestão
da coisa pública, incrementando os processos de formulação, implementação e avaliação de
políticas. Também influirá positivamente no desenvolvimento dos mecanismos de
responsabilização, de combate à corrupção, de eficiência do gasto público e de governança. E
é sobre o relevo, sobre a efetividade desses trabalhos de auditoria que a pesquisa investiu.
116
5 CONTROLE EXTERNO E AUDITORIA NO TCERS
Como visto na apresentação do tema de pesquisa e do referencial teórico utilizado, o Tribunal
de Contas do Rio Grande do Sul (TCERS) realiza o controle externo da administração pública
municipal, objeto deste estudo, valendo-se, para tanto, das múltiplas técnicas e procedimentos
de auditoria governamental para concretizar a sua missão constitucional.
A auditoria governamental é uma atividade de controle e avaliação que deve ser executada de
forma independente e autônoma nos jurisdicionados do TCERS que compõem a
administração pública gaúcha, ou mesmo junto àqueles que de alguma forma sejam
responsáveis por arrecadar, guardar ou aplicar recursos públicos (IRB, 2011).
É nesta unidade do trabalho que se passa a analisar o conteúdo das informações angariadas
pela pesquisa, seguindo-se para tanto as 3 (três) categorias temáticas de análises estabelecidas
na seção “Metodologia”, subdivididas em 5 (cinco) subcategorias, num esforço de verificação
qualitativa acerca da efetividade dos trabalhos auditoriais do TCERS – isso tudo, por certo, no
esteio do referencial teórico apresentado.
A efetividade dos trabalhos de auditoria e controle externo do TCERS, de âmbito municipal,
passa a ser apreciada sob três prismas distintos, portanto: o da segurança jurídica, o do
combate à corrupção e do controle social.
5.1 TRABALHOS DE AUDITORIA E SEGURANÇA JURÍDICA
Entendendo-se o controle judicial sobre as decisões das Cortes de Contas como a tese mais
validada no denso debate existente acerca da temática, alguns pontos achados na pesquisa e
que interferem na segurança jurídica dos trabalhos de auditoria do TCERS devem ganhar luz.
5.1.1 DA DISCUSSÃO DA RESPONSABILIDADE PELOS ATOS E FATOS DA GESTÃO
AUDITADA
Primeiramente, importa referir que os processos de contas de âmbito municipal não discutem
a responsabilidade pelos atos e fatos da gestão auditada – não a tem como responsabilidade
117
civil subjetiva, quando abordam o dano ao erário, ou mesmo como responsabilidade
administrativa, contrariando o consignado no §6º do art. 37 da CF/88. De forma incorreta, a
quase totalidade dos processos objetiva a responsabilidade na figura do prefeito ou da prefeita
municipal – ou do presidente(a) do Poder Legislativo, conforme o caso –, ação que concorre
para a baixa efetividade das consequências jurídicas-sancionatórias das inconformidades
encontradas pelos auditores55. A responsabilização, com base em critério puramente objetivo,
quanto a toda e qualquer irregularidade, a cujo respeito não se possa ver dolo ou culpa do
gestor público, contraria a norma constitucional.
Essa prática equivocada tem origem no próprio Regimento Interno (RI) da Corte de Contas –
Resolução TCERS nº 544/2000 –, em seu art. 93, onde conta que “é pessoal a
responsabilidade do administrador relativamente aos atos e fatos de sua gestão” (TCERS,
2014j).
O quadro 9, contendo vinte trabalhos de auditoria – produzidos no período de 2008 a 2012 –,
ilustrar com precisão o equívoco do TCERS como sendo a prática em seus processos de
contas:
Quadro 9 – 20 processos de contas do TCERS e seus responsáveis chamados aos autos
Exe
Órgão
Nº Processo
rcíci
Responsável
Cargo
Auditado
o
5869-0200/08-2
2008
5430-0200/08-0
2008
6029-0200/08-7
2008
3496-0200/09-0
2008
1958-0200/09-5
2009
1597-0200/09-7
2009
Fioravante Batista Ballin e
Valdir Heck
EM de Santo
Adolar Rodrigues Queiroz e
Ângelo
Eduardo Debacco Loureiro
Alcides Vicini, Mário Afonso
EM de Santa
Bauken e João Altamiro
Rosa
Martins Primo
Pedro Henrique Bertolucci e
EM de Gramado
Nestor Tissot
EM de Santa
Neiva Teresinha Marques
Cruz do Sul
Adolfo Antonio Fetter Junior
EM de Pelotas
e Fabrício Ckless Tavares da
EM de Ijuí
Prefeito(a)
Prefeito(a)
Prefeito(a)
Prefeito(a)
Prefeito(a)
Prefeito(a)
55
Uma demonstração pertinente é o contido na ementa do acórdão nº 70041123399 – embargos infringentes –,
proferido por desembargadores do décimo primeiro grupo cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande
do Sul (TJRS) em 15 de abril de 2011, colacionado na seção “Controle judicial das decisões exaradas pelos
Tribunais de Contas” deste relatório de pesquisa.
118
Exe
Nº Processo
rcíci
o
Órgão
Auditado
4849-0200/09-0
2009
EM de Caxias
do Sul
1160-0200/09-0
2009
EM de Novo
Hamburgo
478-0200/10-4
2010
LM de Santa
Maria
251-0200/10-5
2010
LM de Passo
Fundo
1286-0200/10-1
2010
EM de Santiago
168-0200/10-8
2010
368-0200/11-2
2011
921-0200/11-5
2011
622-0200/11-3
2011
1398-0200/11-5
2011
8044-0200/12-0
2012
EM de Torres
3681-0200/12-1
2012
LM de Canguçu
8642-0200/12-3
2012
EM de Dom
Pedrito
8331-0200/12-4
2012
EM de São
Francisco de
Paula
EM de
Charqueadas
LM de Triunfo
EM de Rio
Grande
EM de Santo
Cristo
LM de Santo
Cristo
Responsável
Silva
José Ivo Sartori e Alceu
Barbosa Velho
Tarcísio João Zimmermann,
Maria Lorena Mayer e
Antonio Carlos Lucas
Paulo Airton Denardin e
Admar Eugenio Pozzobom
Juliano Roso, Luiz Miguel
Scheis, Diógenes Luiz
Basegio e Rafael Bortoluzzi
Julio Cesar Viero Ruivo e
Antônio Carlos Cardoso
Gomes
Andre da Fonseca Sippel e
Carlos Gilvan Garcia Pinheiro
João Batista dos Reis Cunha
Adinelson Troca e Fabio de
Oliveira Branco
Aloisio João Reis e José Luis
Seger
Paulo Cesar Lugoch
João Alberto Machado
Cardoso e Valmir Daitx
Alexandre
Gilberto Doring Degar
Francisco Alves Dias e
Gilberto Zambonato
Raguzzoni
Décio Antônio Colla
Cargo
Prefeito(a)
Prefeito(a)
Presidente(a)
Presidente(a)
Prefeito(a)
Prefeito(a)
Presidente(a)
Prefeito(a)
Prefeito(a)
Presidente(a)
Prefeito(a)
Presidente(a)
Prefeito(a)
Prefeito(a)
Fonte: elaborado pelo autor com base em alguns dos processos de contas examinados para esta pesquisa.
O modelo processual que o TCERS adota responsabiliza exclusivamente o administrador
máximo da entidade e aqueles que o substituíram durante seu mandato. Destaca-se que todos
os responsáveis levados aos processos foram prefeitos ou presidentes de Câmaras de
Vereadores em pelo menos parte do exercício examinado. Ou seja, nenhum agente público de
outra hierarquia foi chamado a responder por suas ações ou omissões nos atos e fatos de
gestão apontados como irregulares pelos auditores do TCERS.
119
Cabe, ainda, apresentar as informações obtidas por meio das entrevistas realizadas com os
agentes de controle do TCERS, quando perguntados se os trabalhos discutem a
responsabilidade.
É, nós temos aqui uma tradição diria até antiga de concentrar responsabilidade no
dirigente maior daquela estrutura, no caso o prefeito ou o presidente da câmara,
dirigente da autarquia, da economia mista, da fundação, e assim por diante. Temos
debatido muito isso aqui internamente inclusive com a Assembleia quando foi
encaminhado o projeto de Lei lá em 2012 que alterava o valor das multas, também
contemplando expressamente a possibilidade de responsabilização dos chamados
“agentes subordinados”. (JUIZ DE CONTAS).
Não, em maneira alguma e de forma alguma e em momento algum. A
responsabilidade é do gestor independente do que ocorra. No caso das prefeituras o
prefeito, o presidente da câmara, o presidente ou o diretor geral executivo do órgão.
Pesquisador – Então quer dizer que outros agentes não são responsabilizados pelos
processos de fiscalização das equipes de campo?
Dentro do processo não, nunca. Apenas o gestor. (AUDITOR PÚBLICO
EXTERNO UM).
Pesquisador – Agora uma questão um pouco mais técnica de cunho jurídico o
tribunal aqui nos trabalhos de auditoria ele individualiza a responsabilidade dos
agentes fiscalizados, sejam públicos ou privados, como se dá esse processo de
discussão da responsabilidade?
Eu até dou um exemplo recente agora, ontem saiu a notícia de que o TCU absolveu
alguns gestores da administração da Petrobrás, responsabilizou outro em virtude de
uma decisão administrativa equivocada que gerou ainda um eventual prejuízo. Lá
eles discutiram a responsabilidade, por exemplo, claro, como se dá aqui no tribunal
de Contas do Rio Grande do Sul no âmbito municipal especificadamente.
Entrevistado – A responsabilidade é atribuída especificamente ao gestor, então na
verdade isso tem, na minha opinião, dois aspectos que, primeiro que fragiliza o
processo principalmente se for recorrer ao judiciário, o processo fico fragilizado e o
segundo aspecto que é somente responsabilizar somente o gestor abre espaço no dia
a dia na atuação da gestão pública pra que os terceiros agentes possam
despreocupadamente promover atos de corrupção, ou certo [...] eles imaginam, bom
só vai pesar pro gestor, aí ele pediu eu vou fazer isso. Então acho uma mudança
fundamental em todo esse contexto do controle da administração pública é essa
questão de penalizar ou responsabilizar todos os agentes que concorreram pra aquele
ato. No momento que eu como servidor público, lá do escalão mais baixo da
prefeitura saber que eu vou ser responsabilizado por determinado ato e não somente
o gestor, quando eu for chamado a fazer isso, eu vou dizer não, para aí, eu não vou
participar disso, eu não vou concorrer pra isso. Eu acho que nesse aspecto ele é
fundamental pra mudar o contexto geral da gestão pública.
Pesquisador – Então do tribunal deveria no âmbito municipal repensar essa questão
processual da responsabilidade.
Entrevistado – Com certeza. (AUDITOR PÚBLICO EXTERNO DOIS).
É, e esse processo está mudando. A nova, com os novos normativos que o TCE está
editando, haverá responsabilização do agente público, não só do agente político. Não
só do mandatário, não só do presidente da câmara ou do, ou do prefeito no caso da
esfera municipal. (AUDITOR PÚBLICO EXTERNO TRÊS).
120
A análise do conteúdo da fala do Juiz de Contas entrevistado demonstra, em certo grau,
preocupação com a questão, referindo que o assunto é “debatido muito” internamente, dentro
da estrutura deliberativa do TCERS. Já o conteúdo da fala dos 3 (três) auditores entrevistados
demonstra que a questão precisa ser revista, muito embora seja a prática dos trabalhos de
auditoria de regularidade.
Quando um agente do Ministério Público entrevistado para esta pesquisa tomou
conhecimento da pergunta no mesmo sentido, emitiu a seguinte manifestação que pode ser
captada pelo diálogo abaixo:
Pesquisador – Beleza. Uma fragilidade, por exemplo, que nós temos lá no Tribunal
de Contas, também do ponto de vista da efetividade das decisões, o Tribunal ele não
discute a responsabilidade com relação a um ato[...] Com relação a dano erário, por
exemplo, porque o Tribunal tem a competência constitucional de apurar dano erário,
superfaturamento, por exemplo, é um exemplo. O Tribunal apura e diz que houve
um dano erário. Bom, isso é responsabilidade civil que, aliás, não está claro pra
muitos auditores também. Bom, só que o Tribunal ele abre seus processos
administrativos de uma forma muito objetiva, então, por exemplo, aqui em Santo
Ângelo, qualquer irregularidade que os auditores encontrarem aqui, que tenha dano
erário, portando deva ser apurado esse dano pra responsabilizar, eles vão colocar na
figura do prefeito, mas eles não discutem essa responsabilidade, muitas vezes nem
passa pelo processo.
Entrevistado – Sim. A isso sim, perfeito. Isso eu sei. Na verdade pode ser um
problema do secretário, um problema de outro servidor lá sim, aí claro, acho que
isso aí. Como a título de aprimoramento né, deveria, é quase uma espécie se a gente
fizer uma analogia de responsabilidade objetiva né, e é né, porque, por exemplo,
qualquer servidor, que pratique um ato que lesione, por exemplo, o servidor do
município tá dirigindo um carro e bate num particular, o município responde né, é
uma responsabilidade objetiva do município.
Pesquisador – Só que aí na justiça ele consegue desmontar o trabalho demonstrando
que não se trata de uma responsabilidade objetiva, mas sim uma responsabilidade
pública objetiva.
Entrevistado – Exato.
Pesquisador – E o dano erário cai no caso né, então nós temos situações que é
apurado determinados valores, mas não há uma preocupação em discutir
responsabilidade, porque essa responsabilidade para o auditor de controle externo é
do prefeito. Então eu pergunto, por exemplo, o senhor tem experiência nessa questão
de apurar dano erário. Essa ação do agente lá que se ela resultasse, bom, tudo bem,
foi superfaturado, o Ministério Público, o seu representante, busca esse valor?
Entrevistado – Essa ação faz tempo que eu propus. Ela é grande pelo que eu me
recordo. Assim, eu vou buscar a condenação solidária de todos, tu entende, pelas
circunstâncias, porque ali é um caso onde faltam trinta dias pra[...] pelas
peculiaridades do caso, todos os envolvidos tinham ciência daquela situação, então
eu vou buscar, essa ação acho que foi proposta acho que em 2009, mas eu vou
buscar a condenação solidária, entendeu? Aí se o cara tiver, o primeiro cara que tiver
bens pra ressarcir o erário eu vou pegar, e eles que se entendam entre eles depois, tu
compreende?
Pesquisador – É porque no caso do Tribunal de Contas isso não acontece, os
processos são montados dessa forma, então tu identifica um dano ao erário[...] Vou
121
dar um exemplo que é bastante consistente do ponto de vista probatório. Uma
compra dirigida de uma máquina pesada, então tu comprova por A mais B que
administração dirigiu a compra de uma determinada empresa. Então só a empresa
poderia participar. Os auditores, por meio de suas competências constitucionais,
“quebram o sigilo fiscal”, quebram o sigilo “da empresa”, e vão na receita estadual,
pegam o faturamento da empresa e verificam que no mesmo período, nas mesmas
condições, o mesmo objeto, a mesma máquina, foi vendida pro setor privado por,
por exemplo, 70 mil reais a menos. Bom, então tá de forma consistente comprovado
o dano erário e até da pra fazer uma ligação na nossa conversa[...] Bom, mas se tem
uma decisão administrativa aí, tudo bem, a câmara pode até fazer, mas o auditor
colacionou elementos probatórios consistentes que demonstram o dano erário. Esse
auditor vai dizer no seu processo administrativo que é o prefeito o responsável.
Entrevistado – É o prefeito, ele não vai ver lá se foi o secretário, quem foi o[...]? Né,
se foi o secretário, se foi o presidente da comissão de licitação, né? É, na verdade
isso é um detalhe que, digamos assim, sabia, mas nunca tinha, bom pra tu ver agora,
realmente eu sabia disso, mas nunca sabe[...] Sabia mas nunca prestei atenção. É[...]
Tudo que acontece lá é o prefeito que tem que devolver. Agora, se é lá o servidor do
segundo, terceiro escalão, secretário, não se apura? Claro, acho que aí até do ponto
de vista de justiça, né? Mas é que na verdade, na nossa esfera não né, eu só vou atrás
dos responsáveis pelo ato, eu busco individualizar, não existe isso aí, eu jamais
posso entrar num ação, não eu não vou, tanto que, o que acontece, óbvio, olha só,
acontece um problema na prefeitura, eu processo os responsáveis por aquele fato.
Tem vários fatos que pode acontecer numa prefeitura, como conhece, tu entende, eu
processo, às vezes, eu posso processar um CC, eu posso processar um secretário, eu
processo um auxiliar administrativo, tu entende? Eu quero saber, eu vou atrás dos
responsáveis de fato pelo ato, aqueles que praticaram o ato. Simples, se foi o
prefeito é o prefeito, se for o secretário de administração é o secretário de
administração. Não existe isso aí de[...]
Pesquisador – Qual é a técnica que o senhor utiliza pra buscar essa
responsabilidade?
Entrevistado – Eu afiro pelos elementos que eu tenho ali. O conjunto probatório.
Prova testemunhal, prova documental. Eventualmente podem emprestar provas do
crime, se tem intercepção telefônica. Quem é que praticou o fato, quem é que tinha o
domínio? Quem é que comandava aquilo, entende? Quem era o responsável pela[...]
(PROMOTOR DE JUSTIÇA UM).
Analisando-se o conteúdo da fala do Promotor de Justiça entrevistado, vislumbra-se clara
surpresa com a prática equivocada dos trabalhos de auditoria do TCERS, quando objetivam a
responsabilidade na figura do prefeito. O agente de controle entrevistado registra que sabia
dessa forma de atuação do TCERS, mas que nunca tinha atentado para tanto.
O próprio TCERS, muito embora não pratique em seus trabalhos de auditoria a discussão da
responsabilidade sobre os atos e fatos da gestão, já reconheceu, em parte, a necessidade de
assim proceder por meio do Parecer Coletivo TCERS nº 08/2008. Veja-se a ementa:
Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem - DAER. Responsabilidade dos
Administradores. Não é este Tribunal que escolhe quem é o administrador
responsável, mas a lei, o estatuto ou o regulamento dos órgãos jurisdicionados. Lei
Estadual nº 11.090/1998 e Decreto nº 41.640/2002. Todos os Diretores do DAER
estão sujeitos à tomada de contas desta Corte: pelos atos praticados quando reunidos
122
em nome da Direção Executiva, terão responsabilidade solidária; pelos atos
praticados no exercício do respectivo cargo, terão responsabilidade pessoal.
Unidade do processo de exame das contas. A existência de mais de um
administrador responsável não descaracteriza a unidade do processo de exame das
contas. Precedentes. (TCERS, 2014l).
Mais que isso, a própria Lei Orgânica do TCERS (LOTCERS) – Lei Estadual nº 11.424/2000
–, estabelece, em seus arts. 34 e 43, que todos os responsáveis, pessoas físicas ou jurídicas,
públicas ou privadas, que utilizem, arrecadem, guardem, gerenciem ou administrem dinheiro,
bens e valores públicos são jurisdicionados do TCERS e estão sujeitas à tomada de contas de
exercício ou gestão (TCERS, 2014m).
Para tanto, a LOTCERS escora-se no parágrafo único do art. 70 da CF/88, quando o
dispositivo assevera que prestará contas “qualquer pessoa, física ou jurídica, pública ou
privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores
públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de
natureza pecuniária”.
Equivoca-se o TCERS em objetivar a responsabilidade. Basta ver o seguinte acórdão do
TJRS:
AÇÃO DECLARATÓRIA. DECISÃO DO TRIBUNAL DE CONTAS. PREFEITO
MUNICIPAL. LEGITIMIDADE. CONTRATAÇÃO DE SEGURO DE VIDA
PARA OS SERVIDORES. PAGAMENTO DE ALIMENTAÇÃO PARA OS
BOMBEIROS. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO LEGAL. GLOSA.
ILEGALIDADE. RESPONSABILIDADE. PREFEITO. SUBJETIVA. DOLO
OU CULPA. PRÁTICA REITERADA. APARÊNCIA DE LICITUDE. ERRO
INVENCIVEL.
1. É de ser conhecido o recurso que ataca os fundamentos da sentença.
2. Os Tribunais de Contas têm competência para imputar débitos aos
administradores de dinheiro público, que têm eficácia de título extrajudicial. Art. 71,
§ 3º, da Constituição da República.
3. O Prefeito que, a par da função de governo, assume a função de ordenador de
despesas, está sujeito à fiscalização a que se refere o inciso II do artigo 71 da
Constituição da República, podendo, em razão disto, responder pelos danos
causados ao erário. Precedentes do STJ.
4. A responsabilidade pessoal dos agentes públicos pelos danos ao erário, na
administração de dinheiro público, é de natureza subjetiva, o que exige, além
da ilegalidade da conduta, o dolo ou a culpa do agente. Art. 37, § 6º, da
Constituição da República.
5. A mera renovação, no primeiro ano de mandato, de contrato seguro em favor de
servidores públicos, com contribuição dos beneficiários, e o pagamento de
alimentação para os bombeiros (servidores e voluntários), iniciado pelo menos há
mais de quinze e sete anos, respectivamente, no primeiro ano do mandato do
123
Prefeito, ainda que sem previsão legal, não configura ato passível de
responsabilização do agente administrativo ordenador da despesa prevista no artigo
71, inciso II, da Constituição da República.
6. A prática reiterada de realização das despesas pelas gestões anteriores sem glosa
pelo Tribunal de Contas e da finalidade pública dos gastos (seguro de saúde para os
servidores e alimentação para os bombeiros) induziram o Prefeito a erro de
proibição, que se tornou invencível em face da falta de experiência administrativa e
de formação jurídica do agente. Erro de proibição que exclui a antijuridicidade da
conduta do agente público.
Recurso provido. (grifo do autor) (TJRS, 2014f).
Já o TCU, por exemplo, tem a responsabilidade pelos atos e fatos como subjetiva em seus
expedientes, discutindo os casos concretos por meio de uma matriz de responsabilidades.
Veja-se o seguinte trecho da entrevista concedida por um Auditor Federal de Controle
Externo do TCU para esta pesquisa:
Entrevistado - [...] preciso que você vá fazer um trabalho, ahn, numa universidade.
Tá, aí tem uma matriz de planejamento que vai descrever quais são as perguntas, né,
as questões de auditoria o que a gente está procurando, vai descrever os
procedimentos, os objetos, ahn, e possíveis achados, por exemplo, na Universidade
Federal de Santa Maria. Temos uma matriz lá, questão de auditoria, ahn, as
licitações, as dispensas de licitações da universidade estão, estão bem enquadradas,
tem fundamento legal pra ocorrer por dispensa de licitação, aí tem lá o
procedimento, que aí, a ideia é que o procedimento seja bem descritivo, assim:
olhar, pegar o processo, selecionar uma amostra, examinar o fundamento, examinar,
tal[...] E os possíveis achados que são realmente as impropriedades, né? Tem ali
uma lista de possíveis achados dentro dessa questão. Então isso é matriz de
planejamento que o pessoal faz na etapa de planejamento, né, nossas auditorias têm
três etapas, né: planejamento, execução e relatório. Do planejamento se faz isso lá, e
lá na execução se aplica aquela matriz de, de planejamento. A partir dela, já na, nos
possíveis achados, é gerada uma matriz de achados, né, então, apliquei o, a matriz de
planejamento, ter os possíveis achados daí que se tem aquele achado já tem uma
matriz de achado, que aí a matriz de achado vai descrever, em que objeto, em que
processo, em que contrato que foi fei[...] foi localizado aquele achado, qual é a
evidência, né, qual é a prova, documental, e o critério, né, o artigo lá da lei de
licitações ou outras normas enfim. E a partir daí tem uma matriz de
responsabilização, também, que é construída daí junto também. Quem é que foi
responsável por aquele ato irregular? Foi o reitor, foi o presidente da comissão,
todos os membros da comissão, ahn, a pessoa que fez o edital, né[...] o pregoeiro
enfim aí pela matriz de achado descreve a conduta[...]
Pesquisador - Vocês, vocês discu[...] vocês auditores federais discutem a conduta
então do agente?
Entrevistado - Se discutimos a conduta? Discutimos a conduta[...] ah, não sei se eu
entendi tua pergunta, mas a gente discute o que levou àquela impropriedade, né,
quais as razões, causa-efeito, e quem é responsável por aquela conduta. A gente
discute. (AUDITOR FEDERAL DE CONTROLE EXTERNO).
Ou seja, o conteúdo da fala atesta que o TCU discute a conduta e a responsabilidade de outros
agentes públicos, não só acerca do dirigente maior do órgão fiscalizado, envolvidos no ato ou
fato de gestão fiscalizado.
124
Para a apuração da responsabilidade civil, em qualquer âmbito das relações jurídicas, é
indispensável a configuração clara de três elementos distintos: dano, conduta culposa ou
dolosa em ato ilícito e nexo de causalidade entre o ato e o dano causado. Tal regra não pode
ser diferente, mesmo no âmbito da responsabilidade civil dos administradores incumbidos da
execução orçamentária. Ou seja, não existe nenhum fator de discriminação que justifique a
sua não aplicação para identificar a responsabilidade de agentes públicos – ou privados –
perante o erário.
Um trabalho do TCU serve como exemplo interessante para essa questão da responsabilidade
civil subjetiva – inadequadamente objetivada no TCERS. Trata-se da Tomada de Contas
Especial nº 025.733/2006-9, realizada no Conselho Federal de Enfermagem (COFEN). Vejase o extenso rol de responsáveis trazidos ao processo, cuja lista envolveu não só agentes
públicos, mas também empresas:
Responsáveis: Afford Distribuidora Ltda., CNPJ n. 01.373.924/0001-04; Alba
Regina Capozzi, CPF n. 267.162.597-91; Alexandre Costa Valente, CPF n.
856.260.317-15; Amaury Luz Netto, CPF n. 014.255.057-40; Ampliar Engenharia
Planejamento Construções e Reformas Ltda., CNPJ n. 40.388.753/0001-30; An
Papelaria Ltda., CNPJ n. 68.622.638/0001-06; Associação Federal de Polícia,
CNPJ n. 27.150.945/0001-46; Casarão Lustres Ltda., CNPJ n. 27.946.177/000131; Compuexport Informatica do Brasil Ltda., CNPJ n. 36.098.473/0001-10;
Compumeier Equipamentos Ltda. – EPP, CNPJ n. 02.052.417/0001-23; Data O
ffice Suprimentos Ltda. CNPJ n. 68.606.540/0001-57; Demir Pinto de Castro,
CPF n. 405.019.577-15; Editora Beto Brito Som, Dados e Imagem Ltda.,
CNPJ n. 01.477.813/0001-03; Enterprise do Meier Eletronico Ltda. – ME, CNPJ
n. 00.173.505/0001-58; Ernesto Alejandro Zabotinsky, CPF n. 440.442.167-20;
Fernando Antonio de Lima Cananea, CPF n.
219.335.024-87; Flag Line
Industria e Comercio Ltda., CNPJ n. 32.586.950/0001-36; Germano Luis
Delgado de Vasconcelos, CPF n. 098.360.804-06; Gilberto Linhares Teixeira,
CPF n. 323.817.867-91; Gráfica e Editora RegisAló Ltda. – ME, CNPJ n.
33.325.226/0001-11; Hegel Editora Ltda., CNPJ n. 40.181.042/0001-90; Helena
Moreira, CPF n. 614.314.007-34; Helio Artes Gráficas Ltda. – ME, CNPJ n.
29.518.230/0001-29; Helio Ventura de Assunção, CPF n. 372.678.177-34;
Hercilia Jorgete Lopes de Souza, CPF n. 549.163.057-87; High Level Serviços
Ltda. – EPP, CNPJ n. 03.488.323/0001-64; Hildeberto Trindade de Brito, CPF
n. 636.538.187-53; Hildebrando Trindade de Brito, CPF n. 335.231.937-53;
Hildecley Trindade de Brito, CPF n. 042.904.077-65); Hiperativa Comunicações e
Artes Gráficas Ltda. – ME, CNPJ n. 02.995.811/0001-03; Hortência Maria Santana
Linhares, CPF n. 217.091.305-04; Infoplan Informática e Planejamento Ltda. – ME
CNPJ n. 31.511.975/0001-08; Iva Maria Barros Ferreira, CPF n. 066.284.27315; Jorge Eduardo de Freitas Teixeira, CPF n. 902.935.847-53; José Manoel
Pazos Antelo, CPF n. 664.981.987-53; José Ronaldo Silva de Souza, CPF n.
958.398.797-20, Josetonio Pedro da Silva, CPF n. 411.052.147-53; João
Baptista Vieira, CPF n. 046.870.007-20; KBK Serviços Técnicos Ltda. –ME,
CNPJ n. 01.400.066/0001-31; K irios Gráfica Editora Ltda. – ME, CNPJ n.
68.831.551/0001-30; Lauro Caldeira Constantino, CPF n. 325.869.147-91;
Louise Maria Holtz Santos CPF n. 169.862.025-04; Manoel Alves Correa,
CPF n. 026.443.277-09; Maria Lúcia Martins Tavares, CPF n. 006.195.742-91;
125
Marilanda Lopes de Lima, CPF n. 401.930.987-68; Mario Reis Xavier Junior, CPF
n. 343.534.297-87; Murilo Kubrusly Aranha, CPF n. 435.279.577-15; Neomísia
Silva de Souza de Carvalho, CPF n. 026.490.577-69; New Pel Papelaria Ltda.
– EPP, CNPJ n. 72.491.905/0001-12; O & C Distribuidora Ltda., CNPJ n.
40.383.895/0001-05; Panther Comercio, Importação e ExportaçãoLtda. – ME,
CNPJ n. 39.081.971/0001-49; Papelaria Bom Astral Ltda. – ME, CNPJ n.
72.373.210/0001-36; Van Mex Comercial e Serviços Ltda. – ME., CNPJ n.
00.055.671/0001-50; Papelaria Vilca Ltda., CNPJ n. 00.171.059/0001-42; Paulo
Roberto Costa Rosa, CPF n. 435.890.737-72; Politec Revestimentos e Polimentos
Ltda., CNPJ n. 32.083.727/0001-76; R.S. Brito Gráfica Ltda. – ME, CNPJ n.
29.366.325/0001-74; Renato Lopes, CPF n. 109.124.527-49; Roberto Carlos de
Freitas Teixeira, CPF n. 860.263.057-34; Roberto José Carneiro Mattos, CPF
n. 032.777.807-59; Robson Pinheiro Leitão, CPF n. 785.626.947-20; Romo
Data Suprimentos e Papelaria Ltda. – ME, CNPJ n. 01.116.905/0001-94; Rosa
Maria Rodrigues Pereira, CPF n. 012.403.717-80; Rosangela Alo Pinto CPF n.
661.605.297-49; S.M.R. 25 Informática Ltda. – ME, CNPJ n. 04.613.110/0001-80;
Salomão Jacob Roffe Levy, CPF n. 382.359.607-10; Samuel Alves da Silva Neto,
CPF n. 892.958.467-53; Samuel de Oliveira Goulart, CPF n. 003.578.727-97;
Selma Aquino Lins Antelo, CPF n. 269.871.397-68; Sercon Bazar e Papelaria
Ltda. – ME, CNPJ n. 00.875.063/0001-91; Sergio Antonio Kubrusly Aranha,
CPF n. 598.794.917-34; Silvana Conceição de Lima, CPF n. 021.390.017-37; Skilo
Artes Gráficas Ltda. – Me, CNPJ n. 02.244.322/0001-01; Sonia Lebeis Pires, CPF
n. 607.637.017-34; Supricomp Distribuidora de Produtos Eletrônicos Ltda. –
ME, CNPJ n. 86.932.167/0001-06; Sylditour Viagens e Turismo Ltda. – ME,
CNPJ n. 32.225.799/0001-00; Ubirajara Pereira de Souza, CPF n. 892.098.18768; Valter Leal Teixeira, CPF n. 429.419.387-53; Walter Rangel de Souza,
CPF n. 012.370.047-72; Zelio Medeiros dos Santos, CPF n. 043.736.427-53.
SUMÁRIO: TOMADA DE CONTAS ESPECIAL. COFEN. PAGAMENTOS POR
SERVIÇOS NÃO REALIZADOS, SIMULAÇÃO DE PROCEDIMENTOS
LICITATÓRIOS, SUPERFATURAMENTO E REALIZAÇÃO DE DESPESAS
INCOMPATÍVEIS COM AS FINALIDADES DA ENTIDADE. REJEIÇÃO DAS
ALEGAÇÕES DE DEFESA. NÃO ACOLHIMENTO DAS RAZÕES DE
JUSTIFICATIVA. IRREGULARIDADE DAS CONTAS DOS RESPONSÁVEIS.
DÉBITO E MULTA. INABILITAÇÃO PARA EXERCÍCIO DE CARGOS
PÚBLICOS E DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE PARA LICITAR COM A
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA FEDERAL.
1. Pelo princípio da independência das instâncias, não procede a alegação de
ofensa à coisa julgada em caso de discrepância do julgamento do Tribunal de
Contas da União em relação a sentença judicial, de natureza civil ou penal,
exarada sobre o mesmo caso concreto, especialmente se, na esfera penal, não
ocorreu a negativa de autoria ou a desconstituição do próprio fato.
2. O débito decorrente da existência de licitações fraudadas e de pagamentos
indevidos, superfaturados ou sem amparo documental deve ser imputado aos
gestores responsáveis pelo dano e às empresas pessoas físicas envolvidas na
ilicitude.
3. Julgam-se irregulares as contas dos responsáveis pela prática de atos de gestão
contrários à norma regulamentar de natureza operacional, com fundamento no art.
16, inciso III, alínea b, da Lei n. 8.443/1992, e dos responsáveis pelo desfalque de
recursos da entidade, com base na alínea d do referido inciso.
4. O Tribunal declarará a inidoneidade do licitante fraudador para participar, por até
cinco anos, de licitação na Administração Pública Federal, quando verificada a
ocorrência de fraude comprovada à licitação.
5. A participação em fraude a processo licitatório caracteriza grave irregularidade e
enseja a declaração de inabilitação dos agentes públicos para o exercício de cargo
em comissão ou função de confiança no âmbito da Administração Pública Federal.
(TCU, 2014).
126
No ordenamento jurídico brasileiro, a única responsabilidade objetiva é a do Estado pelos
danos causados a terceiros, conforme o §6º do art. 37 da CF/88. Segundo a doutrina e a
jurisprudência dominantes, e conforme já demonstrado nesta dissertação, a responsabilidade
dos agentes, públicos ou privados, por danos causados ao erário é de natureza subjetiva, o que
exige, para além da ilegalidade da conduta, o dolo ou a culpa dos responsáveis56.
5.1.2 DA QUALIDADE DAS PROVAS ANGARIADAS PELA TÉCNICA
AUDITORIAL
Do ponto de vista estritamente jurídico, ainda cabe atentar-se para a qualidade das provas
colacionadas pelos trabalhos auditoriais do TCERS. E adentrando-se nessa seara, a
Constituição de 1988 consigna que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e
aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios a ela
inerentes” – assertiva do inciso LV do art. 5º (BRASIL, 2013b).
No âmbito do processo judicial as provas constam a partir do art. 332 do Código de Processo
Civil (CPC), o qual diz que todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda
que não especificados pela lei, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a
ação ou a defesa. Tem-se, assim, como corolário, que apenas as provas obtidas ilegalmente
não podem ser aceitas no mundo do processo – seja administrativo, seja judicial.
Ocorre que as provas angariadas pelos auditores do TCERS são apenas documentais, por
regra – notas de empenho, contratos, processos licitatórios, processos de liquidação de
despesas, contracheques, folhas de pagamento –, não constando nos processos da Corte de
Contas depoimentos pessoais, provas testemunhais, captações de áudio – como a escuta
telefônica57 e a de conversas –, gravações em vídeo, entre outras encontradas nos processos
judiciais, condição que fragiliza sobremodo a segurança jurídica dos trabalhos58.
56
A leitura do inciso VIII do art. 71 da CF/88 deve ser casada com a do §6º do art. 37 para o adequado
entendimento da matéria.
57
A escuta telefônica só pode ser realizada em investigações criminais, sendo possível apenas o empréstimo
dessa prova para o processo administrativo, após legalmente obtida no expediente criminal.
58
Como exemplo, o Processo TJRS nº 104/1.10.0000206-8, comarca de Horizontina, já trabalhado por este
relatório de pesquisa na seção “Controle judicial das decisões exaradas pelos Tribunais de Contas”.
127
Dois auditores, sendo um dirigente de equipe e outro coordenador regional de auditoria,
ambos do TCERS, ao serem entrevistados para esta pesquisa responderam, de forma
elucidativa, o seguinte:
Pesquisador – Quais são os meios de provas que vocês admitem nos trabalhos de
auditoria? Por exemplo, vocês fazem filmagem?
Entrevistado – Eu nunca fiz e não vi ninguém fazer também.
Pesquisador – Não?
Entrevistado – Não.
Pesquisador – Ok.
Entrevistado – As provas são basicamente documentais, existe algumas fotografias,
algum arquivo de som relativo a algum tipo de programa.
Pesquisador – Arquivo de som?
Entrevistado – É algum[...]
Pesquisador – Vocês fazem oitiva de agentes públicos ou mesmo agentes privados
fazem a gravação de entrevistas?
Entrevistado – Não. Também não vi essa prática.
Pesquisador – Nunca viu essa prática?
Entrevistado – Não vi essa prática. E acho que se houver algum tipo de[...] acho que
não existe nenhum obstáculo contudo não existe uma cultura pra isso e também não
existe nenhum tipo de treinamento ou indicação de quais são os cuidados.
Pesquisador – Como que você foi treinado pra obter prova?
Entrevistado – Treinado pra obter prova? Não fui treinado pra obter prova. As
nossas provas são basicamente documentais. A gente chega em auditoria e recolhe
papeis.
Pesquisador – Se você, por exemplo, sabe que existem, vou dar um exemplo assim:
que existem vereadores que estão recebendo diárias pra realizar cursos só que eles
não participam desses cursos, tá? Você já viu ou já fez algum tipo de filmagem pra
provar que eles não participam desses cursos e estabelecer um dano erário, por
exemplo?
Entrevistado – Não, nunca fiz. (AUDITOR PÚBLICO EXTERNO UM).
Pesquisador – Então assim, muito embora o processo do tribunal seja um processo
administrativo, o tribunal tem uma série de competências constitucionais inclusive
na constituição do Estado do Rio Grande do Sul que dão poderes investigatórios e
não há nada que impeça que um processo administrativo, assim como um inquérito
da polícia obtenha todos os meios de prova cabíveis no direito. Por exemplo, claro, a
escuta só no processo criminal, mas outros tantos meios de prova inclusive o sigilo
fiscal e bancário, por exemplo, porque o Tribunal tem acesso a dados fiscais.
Então, questão da prova, você entende que o tribunal de contas está num patamar
adequado ou na questão de obtenção das provas do ponto de vista técnico devem
evoluir?
Entrevistado – Eu acho que a gente pode evoluir e evoluir muito. Claro que não dá
pra desconsiderar essa questão de ouvir o testemunho e coisa parecida que isso vai
interferir diretamente em termos de prazo, de processo e tudo mais, mas são
questões que vão ter que conviver pra digamos assim tornar a peça mais robusta,
mais adequada, eu acho que tem que evoluir. (AUDITOR PÚBLICO EXTERNO
DOIS).
128
O conteúdo das falas dos auditores são elucidativas. Não há um preparo lúcido para a
obtenção de provas nos trabalhos auditoriais de regularidade. Não são efetuadas oitivas de
testemunhas, não são captados sons ambientais ou realizadas filmagens – por regra. Ademais,
fica registrada a necessidade de evolução sobre essa questão.
Já um juiz de contas do TCERS, entrevistado para esta pesquisa, quando consultado sobre a
mesma hipótese, emitiu o seguinte entendimento:
Pesquisador – [...] por exemplo, vereadores que se inscrevem em determinados
cursos, mas que não frequentassem esses cursos, né, passam absolutamente ao largo
deles fazendo compras ou outros interesses de cunho particular, né, o senhor entende
que um auditor poderia verificar essa irregularidade por meio de uma filmagem?
Entrevistado – Em tese me parece possível, eu acho que ele não deve fazer parte
da nossa rotina de fiscalização, né, não deve ser uma prática essa porque ela
parece ser muito mais haver com uma prática policial ou do próprio Ministério
Público, ela não me parece que seja típica da nossa função. Mas uma vez
utilizada eu não a descaracterizaria eu não a fulminaria, só penso que não deve ser a
forma principal de atuação essa nossa. (grifo do autor) (JUIZ DE CONTAS).
O conteúdo da fala do Juiz de Contas condensa importantes achados para esta pesquisa. O
agente de controle entrevistado até aceita a importante prova hipotética proposta, mas,
observe-se, acha que a prática é “muito mais” policial do que ligada à atividade de controle
externo do TCERS. Ou seja, revela-se uma certa resistência ao implemento de técnicas e
testes de auditoria capazes de colacionar provas diferentes das atualmente auferidas pelos
auditores do TCERS.
Como se vê, apenas prova documental, obtida junto aos arquivos do órgão auditado, compõe
a rotina probatória dos trabalhos de auditoria do TCERS. A utilização de filmagens – apenas
como um exemplo das múltiplas fontes de provas – não está na práxis da Corte de Contas
gaúcha.
O diálogo abaixo, travado com um auditor do TCERS que dirige equipe de auditoria, traz
interessantes considerações sobre a instrumentalização dos trabalhos de auditoria, quando é
tratada a obtenção dos elementos probantes.
Pesquisador – Eu queria retomar um pouquinho aqueles instrumentos que os
auditores dispõem pra fazer auditoria, você acabou de me falar que vocês não têm
acesso direto às contas bancárias, ou seja, as instituições financeiras não liberam
129
senha pros auditores de controle externo, vocês não tem acesso instantâneo a essa
movimentação, só lá com os documentos auditados e também me disse que não
existe um sistema de licitação ali no Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do
Sul que permita aos auditores ter essa documentação que me parece bastante rica pro
cumprimento da sua missão. O Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul ele tem
competência tanto pra fiscalizar a esfera estadual quanto as mais de quatrocentas
quase quinhentas esferas municipais do Estado. A administração direta, indireta,
poderes executivos, legislativos, autarquias, empresas e mesmo sociedades de
economia mista. Portanto o Tribunal de Contas tem acesso a muitos dados, por
exemplo, dados do Detran, dados da Junta Comercial, que são todos órgãos
estaduais que passam pela fiscalização do Tribunal de Contas, esses são dois
pequenos exemplos, eu poderia dar o IP Saúde por exemplo, o próprio Banrisul. A
minha pergunta é o seguinte, essas informações são úteis pra fiscalização dos
auditores quando há possibilidade de cruzamento entre elas?
Entrevistado – Essas informações são muito úteis na verdade, elas têm a capacidade
de fazer com que o teu trabalho se torne mais inteligente, mas apenas quando elas
são processadas, o trabalho manual também é muito importante de garimpar essas
informações, de ir atrás de dados específicos, mas se houvesse o cruzamento dessas
informações elas possibilitariam a diminuição do risco de auditoria, possibilitariam
uma atuação mais eficiente que atua naquilo em que efetivamente tem um perigo,
efetivamente tem indícios de inconformidade então essas dados eles são
fundamentais, esses dados como tu disseste o Tribunal tem tido acesso, pelo menos
institucionalmente ele tem esse acesso, agora o cruzamento desses dados é que é a
grande chave dessa questão.
Pesquisador – Vocês ali na Regional de Santo Ângelo tem acesso direto, por
exemplo, aos dados a Receita Estadual que é uma fonte riquíssima de informações
até pra verificação de sobre preço?
Entrevistado – Não, no máximo de uma maneira, às vezes informal, mas,
principalmente se você poderia pedir de dados específicos acredito que fosse
possível o fornecimento dessas informações, mas de uma forma maciça assim não
temos acesso à informação. (AUDITOR PÚBLICO EXTERNO UM).
Do conteúdo do diálogo, depreende-se que os auditores do TCERS não contam com um
acesso informatizado e ágil às contas bancárias dos órgãos auditados, assim como não dispõe
de um sistema informatizado de licitações – o que ajudaria sobremodo a função de controle
externo. Outra extração relevante permitida pela entrevista é a não disponibilização de dados
da Receita Estadual gaúcha, também de maneira informatizada e ágil, aos operadores do
controle externo.
Ora, a Receita Estadual gaúcha também é órgão público estadual jurisdicionado ao TCERS,
devendo ser possível a utilização das suas informações para a fiscalização da administração
pública. Por meio dessa estrutura fazendária, seria possível enriquecer a fiscalização dos
recursos públicos, por exemplo, verificando-se quais empresas, e em quais circunstâncias,
praticam um preço maior para a administração pública do que quando em operações com a
iniciativa privada. Ou seja, ter-se-ia um forte instrumental para a adequada comparação de
preços, possibilitando-se a justa e segura apuração de eventuais danos causados ao erário.
130
Apurar dano ao erário sem esse instrumental afeta sobremodo a efetividade dos trabalhos de
auditoria, em virtude da necessidade de definição clara dos parâmetros, da metodologia
utilizada, da comprovação da igualdade de objetos e condições. Vide como exemplo o
Processo de Contas TCERS nº 5423-0200/09-4, relativo às contas do Executivo Municipal de
Barão do Cotegipe no exercício de 2009, fruto do acervo angariado para esta pesquisa –
disponível no site do TCERS:
A propósito, tenho que questões como a presente, que versa acerca da prática de
preços superiores aos vigentes no mercado, devem ser examinadas com parcimônia,
de modo minudente, haja vista que, além da necessidade de se considerar um lapso
de tempo relativamente curto entre uma compra e outra, deve haver uma perfeita
especificação dos bens ou serviços adquiridos, bem como a metodologia utilizada
para a evidenciação do prejuízo.
No tocante à aquisição de óleo lubrificante (subitem nº 4.2.1), verifico que, para a
demonstração da ocorrência de sobrepreço, a equipe de auditoria se valeu de
licitações – modalidade convite – realizadas nos Municípios de Itatiba do Sul e
Erebango. Entretanto, os documentos comprobatórios anexados aos autos (fls. 120
e 121), relativos àqueles certames, não trazem elementos para a perfeita
caracterização dos bens adquiridos naquelas ocasiões (como marca, especificação,
etc.), com o que fica inviabilizada a comparação de preços em igualdade de
condições e, conseqüentemente, a fixação de glosa. (grifos do autor).
É possível ainda apresentar o quadro 10 com outras decisões do TCERS no mesmo sentido.
Quadro 10 – Processos do TCERS que afastaram sugestões de dano ao erário
Nº do processo
Decisão
Atinente à aquisição de pneus, de forma fracionada, cujos preços foram
superiores aos praticados no mercado (item 2.5), considero não ser
parâmetro suficiente para comprovar superfaturamento a comparação
5486-0200/09-3 de preços trazida no aponte – somente uma cotação em aquisição de
pneus no Município de Trindade do Sul. Ademais, não vieram aos
autos outros aspetos, tais como: prazos e condições de pagamento; que
têm influência direta no preço final dos produtos adquiridos.
Relativamente ao provável prejuízo ocasionado quando da aquisição de
óleo lubrificante (item 3.3), concordo com as razões do Embargante,
no sentido de que o levantamento de dados apresentados pela auditoria
2304-0200/10-7 não considerou aspectos como marca, quantidade, prazos e condições
de pagamentos, e que esses fatos influenciam no preço final dos
produtos adquiridos. Neste caso, considerando, ainda, que a
contratação resultou de prévia licitação, afasto a glosa imposta pelo
juízo a quo.
131
Item 2.2 – Aquisição de medicamentos por preços superiores aos
praticados pelas empresas que participaram de certame licitatório
realizado no Município de Trindade do Sul. Sugestão de débito de R$
10.753,50.
A respeito, refere o Administrador que as compras decorreram de
processos licitatórios os quais contaram com publicidade necessária,
não sendo possível efetuar comparações com aquisições efetuadas por
outros órgãos auditados, em face que se tratam de realidades diferentes
com variáveis que devem ser ponderadas, tais como: urgência da
aquisição, prazo de entrega dos produtos, forma de pagamento, épocas
distintas, fornecedores diversos, preços de produtos importados cuja
variação depende da cotação do dólar, transporte e disponibilidades
nos estoques dos fornecedores.
8706-0200/08-7 São plausíveis as razões de defesa. Ademais, compulsando os autos
(fls. 71 a 87) constatei que o município de Ibiaçá adquiriu
medicamentos de fornecedores, em sua quase absoluta maioria,
distintos em relação aos que venderam para o município de Trindade
do Sul.
Ao primeiro comercializaram: Centermedi – Comércio de Produtos
Hospitalares Ltda., Comercial Candimédica Medicamentos Humanos
Ltda., Prhodent – Comércio e Representação de Produtos Hospitalares
Ltda. e Promed – Produtos Médicos e Hospitalares.
Ao segundo venderam: Dalmedsul Medicamentos Ltda., Centermedi –
Comércio de Produtos Hospitalares Ltda. (três medicamentos apenas),
Cristália – Produtos Químicos e Farmacêuticos Ltda. e Marcofarma
Ltda.
Diante disso, entendo que o comparativo de preços resta prejudicado.
No tocante ao item 3.5 – aceitação de preços superiores aos praticados
no mercado – verifico que a aquisição dos pneus ocorreu através de
procedimento licitatório, do qual participaram quatro empresas, sendo
vencedora a licitante de menor preço.
Ademais, é de se acolher as razões aduzidas pelo Embargante dizentes
com, não só a verificação prévia de preços de mercado, que afirma ter
feito (documento de fls. 345 da Prestação de Contas), mas também a
1826-0200/08-8 incidência de inúmeras variantes na composição de preços, inclusive
quanto à distância do local de entrega, a quantidade, a forma de
pagamento, dentre outras.
Quanto às deficiências na caracterização do objeto licitatório, em
observância à Lei Federal nº 8.666/93, trata-se de infringência à
legislação que está subsumida na multa aplicada ao Administrador.
Neste sentido, não se tem como afirmar de forma segura tenha ocorrido
superfaturamento na aquisição de pneus.
132
Quanto ao débito referente ao descrito no item 3.5, o qual diz respeito a
“superavaliação de preços na execução de obras do convênio com a
Sociedade Hospital Nossa Senhora de Pompéia”, constato que o
conjunto probatório carreado aos autos não permite afirmar com
segurança a existência de pagamentos efetuados com superfaturamento
no presente caso, pois não há prova nos autos capaz de demonstrar as
diferenças técnicas de custos de engenharia, de materiais e execução da
obra.
Saliento que para determinar e estipular os valores de mercado a
Auditoria realizada deveria demonstrar cabalmente as diferenças,
igualdades e capacidades de custos operacionais entre empresas ou
mesmo de planilhas de orçamento, não podendo, portanto, balizar o
indicativo de glosa apenas pelo valor nominal pago aos diversos
prestadores deste tipo de serviço existentes no mercado, pois existem
outras variáveis a serem consideradas, como a qualidade dos materiais
necessários à realização da obra em comento, o que não ficou
demonstrado nos autos.
Ademais, para estabelecer a existência de superfaturamento é
11321-0200/03-9 inadequada a utilização de um único parâmetro de comparação para os
preços praticados, mormente quando foi realizado processo licitatório,
sem que tenha sido apontada ilegalidade na conduta do Administrador
na realização do certame.
Verifico, ainda, pela documentação comprobatória juntada às fls.
33/84, entre as quais a Informação firmada pelo Engenheiro Civil
Leandro Malysz, CREA 88.183, listagem de composições de materiais,
planilha de orçamento, descrição física das metragens realizadas na
obra e a Lei Municipal nº 1504/97 (autorizou o Poder Executivo a
conceder auxílio à sociedade Hospitalar Nossa Senhora de Pompéia),
recibos demonstrando os valores repassados ao hospital, que o
Recorrente adotou os procedimentos administrativos à efetivação da
obra, a qual foi executada dentro dos padrões de custos admitidos
como razoáveis.
Censurável ao Embargante, como bem aponta a instrução técnica, é a
fiscalização deficiente da aplicação dos recursos públicos, mas tal fato
é passível de advertência ou mesmo aplicação de penalidade
pecuniária, medida já imposta ao Recorrente.
Portanto, por esses motivos, afasto a referida glosa imposta.
Fonte: elaborado pelo autor (2014) a partir do site do TCERS.
Como se vê, é dificultosa e complexa a apuração do dano causado ao erário. No entanto,
encontram-se exemplos de trabalhos auditoriais diferentes no próprio TCERS, onde, a
despeito da dificuldade em se obter dados fiscais, a fonte para a fixação do sobrepreço
praticado contra a administração pública, e portanto do consequente dano ao erário, foram
dados obtidos pelos auditores junto à Receita Estadual, estabelecendo-se assim o mesmo
produto comercializado, em iguais condições e na mesma época, vendidos para o setor
privado, como parâmetro de preço. Nesses casos, a sustentação da proposição auditorial
133
ocorreu pelo corpo deliberativo do TCERS, resultando o trabalho em fixação de débito ao
prefeito. Veja-se trecho do Relatório de Auditoria Ordinária Tradicional, tocante aos exames
procedidos no exercício de 2011, elaborado para o Executivo Municipal de Independência e
contido no Processo de Contas TCERS nº 603-0200/11-2:
2.2. Compra de uma Motoniveladora
O Executivo Municipal de Independência realizou a compra de uma máquina
Motoniveladora (patrola) por meio do Pregão nº 22/2011, exigindo as seguintes
características e especificações do produto a ser ofertado (item 1 do Anexo 1 ao
Edital – Termo de Referência): (fls. 76 a 96)
Motoniveladora nova, com as seguintes especificações e características mínimas:
Fabricação nacional, ano e modelo 2011, articulação atrás da cabine de operação,
equipada com motor diesel de 06 (seis) cilindros, turbo alimentado com potência
líquida no volante de 140hp, transmissão com 02 (dois) modos de operação,
equipada com conversor de toque e integrada com bloqueio e desbloqueio para
transmissão direta, com 08 (oito) marchas a frente e 04 (quatro) a ré, lâmina com
deslizamento lateral e comprimento mínimo de 3,70 metros, pneus 1400x24 – 12
lonas, cabine fechada com ar condicionado montado sob chassi dianteiro, freios a
disco em banho de óleo com atuação totalmente hidráulica, com embreagem de giro
no círculo da lâmina, círculo da lâmina forjado com dentes na parte interna do
círculo, escarificador traseiro com 03 (três) dentes, peso operacional no mínimo
15.500 (quinze mil e quinhentos) kg, sistema de monitoramento e gerenciamento de
dados do equipamento por satélite standart do fabricante.
2.2.1. DA RESTRIÇÃO AO COMPETITÓRIO
As especificações exigidas no Edital foram objeto de impugnação por parte da
empresa Linck S.A. Equipamentos Rodoviários e Industriais. Em sua manifestação,
a empresa alegou direcionamento do Edital para o equipamento da marca Komatsu,
indicando que nenhuma marca concorrente poderia atender a íntegra das exigências
estabelecidas pelo Executivo Municipal. (fls. 97 a 106)
Para tanto, a Linck protocolou uma série de três quesitos a serem respondidos pelo
Executivo Municipal, no intuito de buscar respostas técnicas às exigências contidas
para o certame em tela. No primeiro momento, o Pregoeiro recebeu a impugnação
mas repassou a mesma para a autoridade superior por entender ser incapaz de se
pronunciar acerca das exigências técnicas. Neste sentido, o Sr. Prefeito encaminhou
o trâmite para a Consultoria Jurídica, onde recebeu orientação de encaminhar o feito
para a Secretaria de Obras e Viação (demandante da máquina). (fls. 97 a 106, 107,
frente e verso, e 108 a 110)
Em Comunicação Interna o Sr. Secretário de Obras respondeu aos quesitos
formulados pela empresa Linck, em sua totalidade (três). Respondeu sobre a
necessidade de transmissão com dois modos de operação (quesito 1), sobre a
necessidade de embreagem de giro com atuação hidráulica e dentes na parte interna
do círculo (quesito 2) e sobre a necessidade de sistema de monitoramento via satélite
standart do fabricante (quesito 3). (fls. 107, frente e verso, e 108 a 110)
Diante dos argumentos esposados pelo Sr. Secretário, o Sr. Prefeito rejeitou o
pedido de impugnação apresentado pela empresa Linck e o certame manteve o curso
inicialmente programado.(fls. 107, frente e verso, e 108 a 110)
A Equipe de Auditoria, no intuito de apurar a formação técnica do Sr. Secretário,
emissor das respostas formuladas para o questionário, verificou que o mesmo não
possui formação específica atinente aos quesitos formulados, possuindo somente o
ensino médio. (fls. 111 e 112)
134
Realizando pesquisas junto ao mercado de motoniveladoras, constatou-se que
equipamentos comumentemente utilizados no mercado (inclusive por prefeituras) e
capazes de atender satisfatoriamente as demandas de um dado município não
poderiam participar do certame diante das exigências estatuídas pelo edital. Dos
testes resultou a tabela abaixo: (fls. 113 a 149)
Marca
Impeditivo
Observação
XCMG
Fabricação Chinesa
Comprada pelos
municípios de Coronel
Barros e Antônio Prado
Case (845B, 865B e
885B)
Transmissão automática
para todas da linha e sem
GPS do fabricante
Amplamente conhecida e
utilizada pelo mercado
Volvo (modelo da
empresa Linck)
Transmissão automática
para todas da linha, dentes
na parte externa do círculo
e sem GPS do fabricante
Amplamente conhecida e
utilizada pelo mercado
New Holland
Sem GPS do fabricante
Amplamente conhecida e
utilizada pelo mercado
Nota: esta tabela não é exaustiva e advém dos testes amostrais realizados pela
Equipe de Auditoria. A Equipe não consultou os representantes das marcas para
saber se os seus equipamentos dispunham de embreagem de giro no círculo da
lâmina e círculo da lâmina forjado com dentes na parte interna do círculo, sendo esta
outra condição editalícia capaz de barrar dado participante.
Como se demonstra, o Executivo Municipal inobservou o art. 3º da Lei 8.666/93,
dispondo exigências em edital capazes de serem atendidas por uma única marca
(Komatsu, cujo representante é a empresa Mantomac). (fls. 150 a 154)
2.2.2 Do sobrepreço decorrente da ausência de competição
Em decorrência do Pregão nº 22/2011, o Executivo Municipal de Independência
pagou R$ 560.000,00 por uma motoniveladora Komatsu GD555-3, adquirida junto à
empresa Mantomac Comércio de Peças e Serviços Ltda., única participante da
licitação em função das exigências contidas no respectivo edital. (fls. 150 a 154)
No Executivo Municipal de Júlio de Castilhos, uma motoniveladora Volvo G930 foi
comprada em dezembro de 2010 por R$ 516.180,00, após pregão eletrônico onde
quatro empresas participaram, duas com lances efetivos e sucessivos. Assim se
demonstra que o equipamento (Volvo G930) é condizente com as necessidades de
um Executivo Municipal, sendo adquirido por R$ 43.820,00 a menos que os R$
560.000,00 pagos pelo Executivo de Independência. (fls. 129 a 144)
No intuito de aprofundar a análise e apurar dano ao Erário, a Equipe de
Auditoria constatou, junto à Receita Estadual do RS, que a empresa Mantomac
Comércio de Peças e Serviços Ltda., vencedora da licitação sob crivo auditorial
(Pregão nº 22/2011), efetuou venda do mesmo produto (motoniveladora
Komatsu modelo GD555-3) para uma determinada empresa por R$ 535.000,00,
R$ 25.000,00 a menos que o valor cobrado do Executivo Municipal de
Independência. Além disto, os testes auditoriais constataram que as vendas
para as partes mencionadas ocorreram no mesmo mês, abril de 2011, ambas
com pagamento à prazo. (fls. 155 a 157)
Neste sentido, o montante de R$ 25.000,00 é passível de ressarcimento ao
Erário. (grifos do autor).
135
Esse trabalho auditorial obteve desfecho diferente do exemplo anterior – onde a dificuldade
em estabelecerem-se parâmetros seguros de comparação levou ao esvaziamento da ação
fiscalizatória –, tendo sida exarada decisão no seguinte sentido59:
A Primeira Câmara, por unanimidade, acolhendo o voto do Conselheiro-Relator, por
seus jurídicos fundamentos, decide:
a) pela imposição de multa ao Senhor João Edécio Graef, no valor de R$ 1.000,00
(um mil reais), por infração de normas de administração financeira e orçamentária,
conforme previsto no artigo 67 da Lei Estadual n. 11.424/2000;
b) pela fixação de débito ao Senhor João Edécio Graef, referente ao contido nos
itens 2.2.2 (sobrepreço na aquisição de uma motoniveladora, decorrente da
ausência de competição) e 3.1 (pagamento de contas de água e energia elétrica em
unidade desativada municipal e em benefício de servidor municipal), do relatório de
auditoria; (grifo do autor) (FONTE).
Poder-se-ia até entender como um embate jurídico ainda não pacificado essa questão do
TCERS ter amplo e irrestrito acesso ao sigilo fiscal das pessoas e empresas que mantêm
informações junto à Receita Estadual. No entanto, para os fins desta pesquisa, lança-se o
conteúdo do Parecer nº 15.467 da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul
(PGERS, 2014), onde resta clara a possibilidade de intercâmbio de informações sigilosas no
âmbito da administração pública:
Tribunal de Contas do Estado. Auditoria na Secretaria de Estado da Fazenda. Acesso
a dados protegidos por sigilo fiscal. Possibilidade. Sigilo fiscal e proteção
constitucional à intimidade. Direito de caráter não-absoluto. Supremacia do interesse
público sobre o privado. Intercâmbio de informações sigilosas no âmbito da
Administração Pública. Transferência do dever de sigilo. Requisitos. Inteligência do
§ 2º do art. 198 do CTN.
Continuando a análise na seara da qualidade probatória dos trabalhos de auditoria do TCERS,
lança-se outro exemplo, onde o uso da prova testemunhal, aceita na esfera judicial, foi capaz
de anular o trabalho auditorial exarado pelo TCERS. Veja-se excerto da apelação cível nº
70052113081:
59
Com o faturamento da empresa beneficiada fornecido pela Receita Estadual, os auditores do TCERS ainda
puderam comprovar, com o mesmo material fiscal, sobrepreços em situações análogas no Executivo Municipal
de Esmeralda (Processo de Contas TCERS nº 529-0200/11-4), no Executivo Municipal de Maximiliano de
Almeida (Processo de Contas TCERS nº 717-0200/11-3) e no Executivo Municipal de Pejuçara (Processo de
Contas TCERS nº 611-0200/11-9). Em todos os processos os prefeitos foram responsabilizados e condenados à
devolução do gasto a maior, muito embora estejam pendentes de recurso de embargos – no momento os recursos
já estão instruídos por auditores e com parecer jurídico do Ministério Público de Contas, ambos entendendo
cabível a devolução dos valores.
136
As duas testemunhas inquiridas às fls. 1382/1386 confirmaram que, em virtude de o
arroz se constituir em moeda usada pelos produtores em suas transações dando em
pagamento arroz estocado nos armazéns do IRGA, era comum ocorrerem diferenças
entre a quantidade de produto efetivamente estocado e o negociado, diferenças que
sempre eram repostas na safra seguinte.
Não se quer aqui reexaminar a prova de ocorrência ou não de prejuízo à Autarquia,
mas apenas ressaltar a obrigatoriedade jurídica do enfrentamento desta questão pela
decisão administrativa que determinou o ressarcimento.
Ora, a decisão impugnada, em nenhum momento, se ocupou dessa alegação da parte,
deixando, assim, de prestar fundamentação jurídica adequada à imposição de
ressarcimento ao erário, em ofensa ao direito de ampla defesa e violação do devido
processo legal, garantias asseguradas pelo art. 5º, LIV e LV, da Constituição
Federal.
Por essa razão, decreto a nulidade do julgado administrativo nessa parte.
Em consequência, fica desconstituído o correspondente título executivo nº
0391/2007 que embasou a ação de execução apensa (proc. nº 001/1.08.0070520-7), a
qual resta, assim, extinta. (TJRS, 2014a).
Essas fragilidades na instrumentalização dos trabalhos auditoriais, com a inutilização de
meios e técnicas legalmente viáveis para a ação fiscalizatória, deixam vulneráveis as decisões
das Cortes de Contas à revisão do Poder Judiciário, isso porque se deixa de angariar provas
tecnicamente robustas, como a filmagem dos agentes políticos em “farras” – enquanto
deveriam estar frequentando cursos de aprimoramento –, as narrativas testemunhais e as notas
fiscais de empresas para as quais ocorreram direcionamentos em processos licitatórios.
A despeito dessas fragilidades que afetam a efetividade dos trabalhos de auditoria nessa
categoria de análise, importa referir que o TCERS vem lançando esforços no sentido de
instrumentalizar-se adequadamente para a obtenção de provas. Um movimento nesse sentido
é a assinatura de inúmeros convênios com outros órgãos e entidades que podem, direta ou
indiretamente, contribuir para o aperfeiçoamento do controle externo. O quadro 11 elenca
alguns desses convênios60.
Quadro 11 – Convênios firmados pelo TCERS para fortalecimento dos trabalhos de auditoria
Nº do processo
Descrição
Cooperação técnica que celebram o Tribunal de Contas do Estado do
006057-0200/14-1
Rio Grande do Sul e o Ministério Público do Estado do Rio Grande
do Sul, visando ao acesso a dados informatizados.
Termo de Cooperação Técnica entre o Tribunal de Contas da União e
o Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, com o objetivo
003918-0200/14-9
de estabelecer cooperação na área de fiscalização e treinamento, entre
outras atividades.
60
Cópias dos termos de convênios podem ser obtidas em formato “PDF” no site do TCERS.
137
Nº do processo
003884-0200/14-2
001366-0200/14-9
012800-0200/13-8
009218-0200/13-7
009950-0200/12-1
009864-0200/12-6
004146-0200/12-4
003237-0200/12-6
002467-0200/12-0
001986-0200/12-5
003667-0200/11-6
009195-0200/08-9
Descrição
Acordo de Cooperação Técnica que entre si celebram o Tribunal de
Contas do Estado do Rio Grande do Sul e o Banco do Brasil S.A. para
disponibilização do módulo de repasse de Recursos de Projetos de
Governo – RPG.
Cooperação Técnica que entre si celebram o Tribunal de Contas do
Estado do Rio Grande do Sul e o Tribunal de Justiça do Estado do Rio
Grande do Sul, visando ao acesso a dados informatizados.
Cooperação Técnica que celebram o Tribunal de Contas do Estado do
Rio Grande do Sul, o Ministério Público do Estado do Rio Grande do
Sul e a Secretaria da Fazenda do Estado do Rio Grande do Sul,
visando ao acesso aos dados informatizados das notas fiscais
eletrônicas.
Convênio que entre si celebram o Departamento Estadual de Trânsito
- DETRAN/RS e o Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do
Sul, para acesso ao Sistema Informatizado GID Consultas e ao
Sistema de Controle de Acesso.
Acordo de Cooperação celebrado entre a União, por intermédio do
Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, e o
Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, visando ao
acesso a dados informatizados.
Termo de Cooperação Técnica que celebram o Tribunal de Contas do
Estado do Rio Grande do Sul e o Instituto de Previdência do Estado
do Rio Grande do Sul, visando ao acesso a dados informatizados.
Termo de Cooperação Técnica que entre si celebram o Tribunal de
Contas do Estado do Rio Grande do Sul - TCE/RS e a Assembleia
Legislativa do Rio Grande do Sul - AL/RS, visando ao acesso a dados
informatizados.
Termo de Cooperação que entre si celebram o Tribunal de Contas do
Estado do Rio Grande do Sul e a Cia de Processamento de Dados do
Estado do Rio Grande do Sul - PROCERGS, visando ao acesso a
dados informatizados.
Termo de Cooperação Técnica celebrado entre o Tribunal de Contas
do Estado do Rio Grande do Sul e a Secretaria da Fazenda do Estado
do Rio Grande do Sul (SEFAZ-RS), visando ao acesso a dados
informatizados.
Termo de Cooperação Técnica celebrado entre a Secretaria da
Segurança Pública (SSP-RS), com a interveniência do Instituto-Geral
de Perícias (IGP-RS), e o TCE-RS, visando ao intercâmbio de
informações de interesse recíproco.
Acordo de Cooperação que entre si celebram a União, por meio da
Controladoria-Geral da União, e o Estado do Rio Grande do Sul, por
meio do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul.
Convênio que entre si celebram a União, por intermédio da Secretária
da Receita Federal do Brasil, e o Estado do Rio Grande do Sul, por
intermédio do TCE/RS, objetivando o intercambio de informações de
interesse recíproco.
Fonte: elaborado pelo autor (2014) a partir do site do TCERS.
138
Com base no Quadro 11, verifica-se que o TCERS firmou convênio com o (1) Ministério
Público do RS, com a (2) Assembleia Legislativa do RS, com o (3) Tribunal de Justiça do RS,
com o (4) Tribunal de Contas da União, com a (5) Controladoria-Geral da União, com a (6)
Receita Federal do Brasil, com a (7) Receita Estadual, com o (8) Banco do Brasil, com o (9)
Departamento de Trânsito do RS, com o (10) Ministério do Desenvolvimento, Indústria e
Comércio Exterior, com a (11) Companhia de Processamento de Dados do RS, com o (12)
Instituto de Previdência do RS e com o (13) Instituto-Geral de Perícias do RS.
Esse trabalho vem sendo desenvolvido por meio do Centro de Gestão Estratégica de
Informações para o Controle Externo (CGEX) do TCERS, criado em dezembro de 2010 por
meio da Resolução nº 899 e implantado a partir de maio de 2011. A explanação concedida por
um auditor do TCERS relata com precisão um pouco mais dessa história:
Pesquisador - Perfeito. Ah, eu queria só que tu narrasse um pouquinho da história do
CEGEX [...], por que motivo, qual era o clima organizacional que propiciou a
formação do CEGEX. Qual era ou qual é a missão do CEGEX.
Entrevistado - Sim, CEGEX é o, ele foi criado na estrutura organizacional do
tribunal através da resolução 899 de dezembro de dois mil e dez e começou a ser, a
ter sua implantação efetivada, a partir de maio de dois mil e onze, ou seja, em maio
de dois mil e quatorze completaremos três anos. O CEGEX tem como finalidade
precípua subsidiar a tomada de decisão da auditoria, né, por meio da coleta de dados
de informações, né, do cruzamento a partir de enes bases de dados, diversos temas,
internos e externos. Procura fomentar, então, a tomada de decisão do plano
operativo do tribunal. Essencialmente nas auditorias da estadual e da área municipal.
A ideia foi a partir de visitas que o corpo diretivo da gestão anterior fez ao Tribunal
de Contas da União, em outubro de dois mil e dez e já se pensava em, há muito
tempo, na verdade o tribunal há muito tempo vem pensando em atuar de maneira
seletiva calcada em critérios técnicos. Poder, né, fazer melhorar a sua forma de
atuação. E se vislumbrou que esse tipo de trabalho que está sendo estruturado no
CEGEX possa, enfim, ajudar nessa sistemática. É, só pra tu teres uma ideia, é o
CEGEX a terceira unidade formal criada no País, porque alguns tribunais atuam
com a atividade, mas não tem estrutura formal, uma caixinha, etc. Outros têm e não
atuam, na área. Então o CEGEX é a terceira estrutura com essa concepção. A
primeira foi em Pernambuco e a segunda foi o TCU. A primeira é Pernambuco em
dois mil e dois, a segunda é TCU em dois mil e cinco e a nossa em dois mil e onze.
Aí, de lá pra cá outros, outros se somaram, se juntaram. Eu tenho a notícia, notícia
de que há oito estruturas formais. (AUDITOR PÚBLICO EXTERNO TRÊS).
Portanto, analisado o conteúdo da fala, percebe-se que o TCERS busca avançar na necessária
coleta de informações, em variadas bases de dados, para subsidiar os trabalhos de auditoria de
regularidade. Também observa-se que o TCERS pertence a um parco grupo de Tribunais de
Contas que, de forma inovadora, lançam esforços para aperfeiçoar a inteligência na realização
das auditorias.
139
Mesmo assim, a efetivação desses esforços não alcançou na plenitude a auditoria da área
municipal – ao menos no momento presente. Isso com base nas entrevistas que foram obtidas
por esta pesquisa. Quando um dirigente de equipe de auditoria se deparou com a seguinte
questão:
O TCERS mantém convênio com inúmeros órgãos visando obter dados e
informações. Como exemplo, a Receita Estadual, a Receita Federal, o DETRAN, o
IPE, a JUCERGS, o Banco do Brasil, a CGU, o TCU, entre outros. Esses convênios
são efetivados para o auditor de campo? Ou seja, na prática esses convênios têm
agregado valor aos trabalhos e ajudado na produção de provas e no trabalho
investigativo? O auditor de campo tem acesso aos dados e informações da Receita
Estadual para comparar preços, por exemplo?
Lançou a seguinte resposta:
Os auditores de campo, para o exercício de suas atividades, têm acesso ao banco de
dados do DETRAN e da Junta Comercial através de um colega no serviço regional
que tem a senha de acesso. Os demais convênios são acessados de forma ainda mais
indireta, através de solicitações ao CEGEX. Ademais, as pesquisas são pontuais,
caso a caso, não existe nenhum trabalho de consolidação e cruzamento das
informações disponibilizadas através dos convênios. Quanto à Receita Estadual, não
tenho conhecimento a que dados temos acesso por nunca ter solicitado informação
tendo em vista ser mais fácil obter as informações através de outros meios. Mesma
situação quanto aos convênios do Banco do Brasil, Banrisul, CGU, TCU e Receita
Federal. Ademais, não foi fornecido nenhum tipo de treinamento quanto aos
convênios e informações disponíveis através deles. Assim, não se sabe exatamente
que tipo de informação temos, como solicitá-las, o prazo para obtenção. (AUDITOR
PÚBLICO EXTERNO UM).
Ou seja, conforme o conteúdo da fala angariada e os trabalhos apresentados nesta dissertação,
a interação entre o CEGEX – cujo propósito é instrumentalizar os trabalhos de auditoria,
incluindo-se aí a possibilidade de novos meios de provas, dados e informações – e os
auditores ainda carece de aperfeiçoamentos e laços mais estreitos. Um excerto da fala revela
um certo (1) desconhecimento e um certo (2) “acesso indireto” como obstáculo aos trabalhos
de campo, além da (3) falta de treinamento para o uso adequado das bases de dados
disponíveis no CEGEX.
Essa falta de efetividade na utilização otimizada e adequada dos convênios, firmados com as
múltiplas instituições, não agrega a desejada qualidade probatória às incursões auditoriais
realizadas, cotidianamente, pela Corte de Contas gaúcha. Caso a implementação desses
instrumentos fosse efetivada, os auditores teriam acesso irrestrito a uma série de informações
140
e documentos, capazes de, em conjugação, demonstrar cabalmente irregularidades praticadas
contra a administração pública fiscalizada.
Essa medida tornaria os trabalhos ofertados à sociedade mais robustos e seguros, tanto do
ponto de vista estritamente técnico quanto do ponto de vista jurídico. E serviria para
oportunamente rebater críticas como a lançada abaixo:
Os Tribunais de Contas ocasionalmente prestam um grande serviço, quando
auditores independentes vão a fundo, fazem a investigação, e colocam as evidências
de tal forma que os Conselheiros não podem ignorá-las. Nesses casos, as conclusões
desse órgão servem de base para o processo judicial e o aceleram significativamente.
O relatório do Tribunal de Contas concluía em algumas partes que “nada se apurou”,
e isso passou a ser usado publicamente pelo Prefeito como prova de sua idoneidade.
A regularidade dos procedimentos de licitações é examinada apenas do ponto de
vista formal pelo TCE. Não se verifica se as firmas cadastradas ou participantes das
concorrências existem física ou juridicamente. Quanto às notas fiscais, o Tribunal
faz um exame somente do ponto de vista contábil, sem perquirir sobre a existência
das firmas emitentes das notas fiscais contabilizadas. Então, o Tribunal de Contas,
na maioria das vezes, mais atrapalha do que ajuda no processo de investigação e
punição dos corruptos. Na verdade, os atestados de idoneidade que eles passam aos
corruptos são um incentivo à corrupção. (grifo do autor) (AMARRIBO, 2012, p. 71
e 72).
A prática mostra que os problemas ligados à área de licitações e contratos são mais
amplos do que o encaminhamento correto das formalidades do processo licitatório.
Experiências mostram que existe um potencial grande para as auditorias na
área de contratação de serviços e bens, além desses aspectos formais. O
enfoque, nos editais de licitação, não encontra contratos superfaturados em
função de suborno a pessoas envolvidas no processo, a formação de cartéis para
forçar o poder público a contratar em condições desfavoráveis, a lesão ao
erário por não-cumprimento das obrigações contratadas, etc. (grifo do autor)
(SPECK, 2000a, p. 134).
Depreende-se que dedicar esforços para qualificar o aspecto probatório dos trabalhos
auditoriais é ponto relevante para aperfeiçoar a efetividade dos serviços prestados pelo
TCERS à sociedade.
5.2 TRABALHOS DE AUDITORIA E O COMBATE À CORRUPÇÃO NA
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Esta categoria temática de análise busca lançar luzes em uma problemática já constante no
referencial teórico desta dissertação. É importante apurar, na persecução da efetividade dos
trabalhos de auditoria, se o TCERS é uma entidade de assessoria e consultoria, melhoria do
141
gasto público, ensino e aprendizagem de administração pública, apoiando assim os gestores e
agentes públicos em suas deficiências, ou se seus esforços são verdadeiramente focados no
controle, fiscalização, auditagem e correição das transações econômicas e financeiras
ocorridas na seara pública auditada.
Conforme já dito, uma e outra linha são absolutamente distintas e não se confundem. Assim
como facilmente depreende-se da leitura constitucional, tocante às funções dos tribunais de
contas, que essas entidades devem cumprir com um papel de controle, de fiscalização, de
auditagem e de correição da administração pública brasileira, ligando-as, assim,
umbilicalmente ao combate às manifestações deletérias da corrupção.
5.2.1 DA INTERPRETAÇÃO ACERCA DA MISSÃO CONSTITUCIONAL DO TCERS E O
SEU DESENROLAR NO MUNDO DA VIDA
Esta subcategoria temática de análise foi destacada para apurar se a missão constitucional do
TCERS e o seu desenrolar no mundo da vida – conceito habermasiano61 – formam uma
identidade, de tal modo a verificar se os trabalhos da Corte de Contas estão efetivamente
cumprindo com o seu dever lançado no ordenamento jurídico pátrio.
Retomando-se aqui o diálogo aberto ainda no referencial teórico deste trabalho,
especificamente sobre as duas categorias habermasianas que interagem na produção social –
sistema e mundo da vida –, aponta-se que no capitalismo avançado, o sistema e o mundo da
vida estão desacoplados (CHAPANI; CARVALHO, 2010).
A consequência é que o constante aumento da complexidade do sistema social conduz a uma
sobrecarga nos processos de obtenção de entendimento mediados pela linguagem. Isso
possibilita a existência e a manutenção de meios de controle independentes da linguagem: o
dinheiro, instrumento do mercado, e a burocracia, instrumento do Estado (CHAPANI;
CARVALHO, 2010).
61
Reprisando: mundo da vida é para Habermas o conjunto de saberes (ou certezas) em nós arraigados e nos
quais implicitamente escoramos todas as nossas ações cotidianas. Coincide com os hábitos, as tradições, as
crenças compartilhadas, enfim, tudo o que parece evidente. Importa referir, contudo, que o mundo da vida é
fundamentalmente simbólico, sendo suscetível, assim, de crítica, de redefinição, de reformulação. É no mundo
da vida que tem-se o conteúdo primeiro do agir comunicativo habermasiano.
142
Com o crescimento do sistema, os processos mediados linguisticamente tomaram uma
posição secundária e vão sendo colonizados por ele. E é desse processo que decorrem as
patologias da sociedade moderna (ANDRACA, 2011; HABERMAS, 2012).
Procurou-se então aprofundar a análise para apreciar se a entidade TCERS verdadeiramente
foca os seus esforços no controle, fiscalização, auditagem e correição das transações
econômicas e financeiras ocorridas na seara pública auditada – ações essas diretamente
associadas ao combate à corrupção. Ou se sua ação se perde por meios outros.
Isso porque:
[...] como o desenvolvimento não apenas ocorre no plano técnico-organizativo e no
agir instrumental-estratégico, mas também no plano do saber prático e no agir
comunicativo, toda vez que a instância política não atende às expectativas e
necessidades da sociedade civil, o conflito entre sistema e mundo da vida aflora e se
intensifica. As crises decorrentes desses conflitos, na compreensão de Habermas,
são muito importantes para o desenvolvimento da aprendizagem da humanidade.
(MÜHL, 1999, p. 38).
Tal abordagem, portanto, é relevante para os propósitos da pesquisa porque não poucos são os
operadores do controle da administração pública que pensam em atribuir às Cortes de Contas
uma ação mais branda, didática, orientadora e pedagógica para com os gestores e agentes,
públicos e privados, controlados, gerando, por consequência, um consumo dos orçamentos e
energias dessas instituições para atividades não ligadas diretamente à determinação
constitucional.
Veja-se o discurso de um Juiz de Contas – Conselheiro – quando indagado acerca da questão:
Pesquisador – [...] a primeira questão então ela parte do seguinte: eu gostaria de ver
qual a sua leitura com relação à missão do TCERS, dos tribunais de contas, partindo
da constituição. Essa primeira pergunta na verdade é pelo seguinte: há algum
discurso que diz que o Tribunal de Contas tem que também educar, agir de forma
preventiva, educativa e há um outro discurso, aí depende da visão, que diz: não, o
Tribunal de Contas tem a missão de fiscalizar, de auditar, de controlar de correição.
Entrevistado – Bem, eu entendo que essas funções elas não são excludentes, e
embora a função orientadora pedagógica, como se costuma dizer, não tenha
acento expresso na constituição, ela não colide com a chamada Lei maior da
República, porque nós somos uma instituição de Estado e o controle é inerente à
administração. Então não seria nem razoável que estruturas de Estado altamente
qualificadas, com seus corpos técnicos, as suas estruturas administrativas deixassem
de potencializar e difundir essas informações, esses conhecimentos, esses saberes
acumulados ao longo do tempo e por força da sua expertise, do conhecimento dos
seus agentes, restringindo, limitando todo esse acervo unicamente para o ambiente
143
interno da própria organização da corporação. Então, eu entendo que não só pode
como deve cumprir uma função orientadora, e, portanto, preventiva. E sou daqueles
que entendem que a efetividade do controle está diretamente ligada a sua
capacidade de agir preventivamente e a prevenção esta intimamente conectada
com a orientação, com a capacitação. Então repito: não são, ao meu juízo, funções
excludentes. Algumas funções estão no texto constitucional dela e não cabe discutir,
não vamos nos apartar é exatamente exercer o controle externo da administração e
cumprindo aquelas competências, previstas no artigo 71 da constituição brasileira.
Mas repito, eu acho que nós podemos e devemos conciliar essa atuação com uma
preocupação no sentido de aperfeiçoar a gestão, a própria governança, usando essa
palavra no sentido bastante aberto, para que a administração pública brasileira tenha
um desempenho melhor, mais qualificado, mais transparente, concentre mais
efetividade nos seus resultados, vá ao encontro em si daqueles princípios que a
própria constituição preconiza. (grifos nossos) (JUIZ DE CONTAS).
Depreende-se do conteúdo da fala, com base na mensagem emitida pelo Conselheiro, que é
aceitável uma missão também educativa, didática, orientadora e pedagógica para o TCERS,
muito embora essa função não conste no rol de competências constitucionais dos Tribunais de
Contas – e também não conste no extenso rol infraconstitucional.
A crítica para esse discurso, a despeito dos reflexos positivos desse agir didático-pedagógico,
é o descolamento para com a missão constitucional dos Tribunais de Contas e o
enfraquecimento do combate à corrupção por parte das Cortes de Contas (KANITZ, 1999;
TREVISAN et al., 2003; RIBEIRO, 2004; SÁ, 2007; ZERO HORA, 2008; MEDAUAR,
2012). Basta ver, para tanto, excertos das entrevistas concedidas por um Auditor Federal de
Controle Externo (AFCE) do TCU e pelo mesmo Juiz de Contas do TCERS. Quando
questionados sobre a atuação das Cortes de Contas em casos de corrupção, responderam com
a seguinte carga de significados:
Pesquisador – [...] e agora então eu vou um pouco mais para a parte técnica do
trabalho, e eu pergunto pra você então: o TCU é um órgão estatal importante no
combate à corrupção e na melhoria do gasto público?
Entrevistado - Eu diria que o foco do tribunal hoje ele não é diretamente sobre atos
de corrupção, eu não vejo o tribunal como um órgão que pensa, que trabalha em
cima de atos de corrupção, procurando atos de corrupção, né, isso eu vejo mais na
Polícia Federal (PF) no Ministério Público (MP). ...A CGU também faz alguns
trabalhos assim, mas o tribunal ele tem uma visão mais, ah, que hoje até está se
chamando de governança, mais ampla da administração pública, do funcionamento
da máquina, de boas práticas de avaliar programas, os resultados, né, não
diretamente atos de corrupção dos agentes. E, em relação à melhoria do gasto
público sim, aí eu acho que o Tribunal tem uma importância maior, mais efetiva
porque, todo esse tipo de processo que o trabalho que o tribunal faz, de auditorias
operacionais, de ah, comparar programas, ele tem reflexo na qualidade do gasto
público, né? Mas especificamente a corrupção, eu acho que ele não é um, não é
uma situação que o tribunal se direciona. Ela eventualmente aparece por
denúncia, por representação, mas não de o tribunal se dedicar a essa atividade
específica. (grifo do autor) (AUDITOR FEDERAL DE CONTROLE EXTERNO).
144
Pesquisador – [...] por exemplo, vereadores que se inscrevem em determinados
cursos, mas que não frequentassem esses cursos, passam absolutamente ao largo
deles fazendo compras ou outros interesses de cunho particular. O Senhor entende
que um auditor poderia verificar essa irregularidade por meio de uma filmagem?
Entrevistado – Em tese me parece possível, mas eu acho que isso não deve fazer
parte da nossa rotina de fiscalização, não deve ser uma prática essa porque ela
parece ser muito mais haver com uma prática policial ou do próprio Ministério
Público, ela não me parece que seja típica da nossa função. Mas uma vez
utilizada eu não a descaracterizaria, eu não a fulminaria, só penso que não deve ser
a forma principal de atuação nossa. (grifos do autor) (JUIZ DE CONTAS).
O conteúdo das falas dos entrevistados revela que a ação dos Tribunais de Contas não é
direcionada especificamente para o combate à corrupção, ou seja, “uma situação que o
tribunal se direciona”. Note-se a expressão: “não deve ser a forma principal de atuação
nossa”. Os agentes entrevistados citam outras instituições para isso, como a Polícia, o
Ministério Público e a Controladoria-Geral da União (CGU).
A leitura esposada pelos dois mencionados agentes de controle não condiz com a construção
constitucional dos Tribunais de Contas e corrobora as muitas críticas produzidas por inúmeros
pensadores sobre a efetividade dos trabalhos dos Tribunais de Contas62 – até mesmo dá um
dos porquês. Qual seria? A força dada para essa tese – que é válida, mas deveria ser suprida
por escolas de governo63 ou consultorias e assessorias contratadas – retira esforços do
cumprimento da missão constitucional das Cortes de Contas, que é essencialmente controlar,
fiscalizar. Trata-se de uma leitura sócio-jurídica equivocada e de num olhar laboral
acomodado na ortodoxia da práxis e do status quo, cujo amparo não é uníssono no universo
dos operadores do controle.
No entanto, a alocação de recursos orçamentários, temporais e humanos na chamada função
pedagógica das Cortes de Contas encontra amparo até mesmo na doutrina. Veja-se:
Além das funções afetas à apreciação e ao julgamento de processos, nas quais a
visão da sociedade é, em muitos casos, a de um Tribunal de Contas que está
preocupado apenas em multar os responsáveis ou imputar-lhes débitos, há outras
que são tão ou mais relevantes do que essas, tais como as funções preventivas e
pedagógicas.
[...]
62
Ver exemplos na seção “Problema” desta dissertação.
A União, os Estados e o Distrito Federal deverão manter escolas de governo para a formação e o
aperfeiçoamento dos servidores públicos, constituindo-se a participação nos cursos um dos requisitos para a
promoção na carreira, facultada, para isso, a celebração de convênios ou contratos entre os entes federados –
imposição do §2º do art. 39 da CF/88.
63
145
A função pedagógica do Tribunal de Contas da União – outra função que tem interrelação com a função preventiva – que caminha lado a lado com as suas
competências básicas de apreciar e julgar processos, reveste-se de fundamental
importância na prevenção e orientação dos gestores públicos. No caso dos tribunais
de contas, nas três esferas de governo, essa vertente de atuação pode ser
implementada por meio de cursos abertos aos gestores interessados. (grifos do autor)
(AGUIAR; ALBUQUERQUE; MEDEIROS, 2011, p. 165).
Modernamente, esta é a mais nova e inovadora função que está sendo exercida pelos
Tribunais de Contas. Trata-se de uma função revolucionária, modificadora de
hábitos administrativos, que enseja a instalação de novos procedimentos e direciona
uma ação administrativa consetânea com os interesses do cidadão. (MILESKI, 2011,
p. 373).
Sabe-se dos frutos positivos em se capacitar e treinar agentes públicos. Essa questão é
absolutamente relevante e pode ser análoga à necessidade de educação de qualidade que
qualquer nação deve ter para o seu adequado desenvolvimento socioeconômico. Porém, não
é missão das Cortes de Contas64; e investimentos nessa seara retiram efetividade das
funções constitucionais básicas.
Um Conselheiro do TCERS foi entrevistado para esta pesquisa e foi questionado sobre qual
era a diferença entre atuação didática-pedagógica e a atuação fiscalizatória-sancionatória,
assim como qual dessas era a missão maior do TCERS. Ainda, por fim, foi questionado se na
estrutura legal vigente havia previsão de atuação didática-pedagógica para as Cortes de
Contas. Respondeu com o seguinte conteúdo:
A principal distinção entre as atuações referidas está no momento em que são
realizadas: a primeira, como regra, é preventiva, isto é, se processa em momento
anterior à ocorrência de eventual inconformidade; a segunda, repressivamente,
quando já consumada a ilegalidade. Assim, o Tribunal de Contas promove cursos e
presta atendimento aos gestores e servidores jurisdicionados, buscando evitar a
ocorrência de má-gestão dos recursos públicos e, de outro lado, aplica as sanções
previstas na Constituição da República, quando cabíveis.
Entendo que a atuação didático-pedagógica complementa a fiscalizatória, visando a
uma administração pública em conformidade com os princípios constitucionais e
que satisfaça plenamente a sociedade. Sua previsão legal está expressa no art. 1º
da Lei Estadual nº 11.935/2003, que institui a Escola de Gestão e Controle do
TCERS, conforme segue: “Art. 1º - Fica instituída junto ao Tribunal de Contas
do Estado a Escola de Gestão e Controle, destinada a promover cursos e
estudos objetivando a capacitação, o treinamento e a especialização dos
servidores do seu quadro e das demais instituições públicas ou privadas”. (grifo
do autor) (JUIZ DE CONTAS).
Percebe-se no discurso uma boa empatia do Juiz de Contas para com a atuação didáticapedagógica das Cortes de Contas. Mesmo assim, é importante assentar que a criação da
64
Lima (2011) elenca as seguintes funções para as Cortes de Contas: fiscalizadora, opinativa, julgadora,
sancionadora, corretiva, consultiva, informativa, ouvidora e normativa.
146
Escola de Gestão e Controle do TCERS não decorre da expressa missão constitucional das
Cortes de Contas. É muito mais uma derivação, isso sim, do constante no §2º do art. 39 da
CF/88, onde está firmado que a União, os Estados e o Distrito Federal manterão escolas de
governo para a formação e o aperfeiçoamento dos servidores públicos, facultada para isso a
celebração de convênios ou contratos entre os entes federados.
Sobre a dualidade existente entre as duas formas de entender a missão constitucional das
Cortes de Contas, Coelho (2010) constrói oportuno raciocínio nesse sentido:
Note-se que a efetividade do controle não se confunde com a efetividade das
políticas públicas: essa traduz o impacto de determinada ação governamental, na
medida dos benefícios dela decorrentes, alcançados pela coletividade. Entretanto,
[...] nada impede que essa dimensão externa da efetividade, relacionada aos
programas de governo, seja apreciada pela função de controle, por meio das
auditorias de desempenho e, mais apropriadamente, mediante a avaliação de
programas. Desse modo, pode-se dizer que o exame da efetividade das políticas
públicas contribui para a efetividade do controle externo. (grifo do autor)
(COELHO, 2010, p. 67).
E um auditor do TCERS, dirigente de equipe, trouxe o seguinte olhar sobre essa questão em
análise:
Pesquisador – Na sua opinião qual é a diferença entre a atuação didática-pedagógica
e uma atuação fiscalizatória-sancionatória, qual dessas é a missão maior do Tribunal
de Contas do Rio Grande do Sul? Na estrutura legal há previsão de alguma atuação
pedagógica previstas para os Tribunais de Contas? Eu coloco essa pergunta pra
gente ponderar um discurso que se constrói sempre que se fala em Tribunais de
Contas que é um discurso de um Tribunal de Contas que atue em conjunto com o
gestor, assessorando o gestor, auxiliando o gestor no aperfeiçoamento da gestão
pública, mas não uma atuação sancionatória, corretiva, punitiva, de auditoria e
fiscalização. Então, qual é a missão dos Tribunais de Contas? É auditar, é fiscalizar,
é combater a corrupção, é estabelecer, fixar dano erário, é aplicar multa, ou é
auxiliar a gestão pública, dar conselhos, cursos, palestras, manuais, fazer trabalhos
que sejam dessa natureza?
Entrevistado – Eu acho que a atividade educacional do Tribunal ela é uma atividade,
é um resultado da atividade fiscalizatória do Tribunal. À medida que ele vai
atuando...
Pesquisador – Você acha isso, isso é a sua opinião ou você acha que no seu dia a dia
o Tribunal faz da fiscalização uma ação educativa?
Entrevistado – Eu acho que em havendo a intenção de se aprender alguma coisa
basta você corrigir aquelas coisas que estão sendo apontadas. Eu acho que a
atividade educativa que se reclama tanto é o resultado da atuação fiscalizatória.
Acho que a principal questão, missão constitucional do Tribunal, é a missão
fiscalizadora e eu acho que a atividade educação ela advém disso. O Tribunal pode
sim, em determinadas matérias, onde ele obtém em razão da sua atuação um
conhecimento privilegiado, oferecer instrução, oferecer algum curso nesse tipo. Mas
isso é uma atividade secundária na verdade, ao meu ver. Ao meu ver, o Tribunal tem
agido de uma maneira que fornece instrução ao longo do tempo e isso já vem de
147
muito... de bastante tempo, mas há necessidade também de haver o interesse
também, né, mas essa é uma atividade secundária no caso.
Pesquisador – Atividade secundária?
Entrevistado – O principal é a fiscalização, a missão constitucional é fiscalizar.
(grifo do autor) (AUDITOR PÚBLICO EXTERNO UM).
O conteúdo da fala do auditor revela que as duas ações, didática-pedagógica e fiscalizatóriasancionatória, caminham juntas na leitura da missão da Corte de Contas. No entanto, o
entrevistado registra que a principal missão é a fiscalizatória.
O mesmo Juiz de Contas, quando questionado sobre a importância das Cortes de Contas no
combate à corrupção, lançou a seguinte assertiva:
Pesquisador – [...] podemos dizer que o Tribunal de Contas é, nessa visão, um órgão
estatal absolutamente relevante pra combater a corrupção e aperfeiçoar a gestão
pública e o gasto público.
Entrevistado – Concordo integralmente com essa afirmação. (JUIZ DE CONTAS).
Ou seja, analisado o conteúdo da fala do Juiz de Contas, demonstra-se que combater a
corrupção é sim missão dos Tribunais de Contas.
Um auditor do TCERS, coordenador de dado setor, indagado sobre o mesmo ponto
respondeu:
Pesquisador - [...] uma outra questão é a seguinte: na tua opinião, na tua leitura, o
TCERS é um órgão estatal importante no combate à corrupção e na melhoria do
gasto público?
Entrevistado - Ah, sem sombra de dúvida! É, eu digo que, costumo dizer que é, até
faço falas no sentido da, da relevante função pública que nos é, nos é dada pela
constituição federal, porque podemos agir de ofício, não precisamos ter um
procedimento formal, né, uma motivação pra atuar. Atuamos a partir de critérios
técnicos, de um plano operativo, estabelecendo onde e o que vamos fazer. Então
essa função pública, que é o controle dos atos da gestão pública, ela tem que ocorrer,
tem que ser por um organismo estatal. (AUDITOR PÚBLICO EXTERNO TRÊS).
Ou seja, o conteúdo da fala também enriquece a assertiva de que os Tribunais de Contas são
órgão estatais importantes no combate à corrupção e, portanto, na melhoria do gasto público.
Se o cumprimento da missão constitucional dos Tribunais de Contas não sofresse ainda com
tantas críticas acerca da sua efetividade e eficácia, acerca da ausência dessas instituições no
combate à corrupção, teria o sistema a liberdade de alocar recursos na chamada função
148
pedagógica. No entanto, e partindo-se para uma interpretação desse contexto, parece uma
estratégia inadequada destacar uma função derivada, como a pedagógica, sem o pleno
reconhecimento da sociedade no cumprimento da missão maior, plasmada na Carta Magna.
Cabe aqui consignar a fala conclusiva de um coordenador regional de auditoria do TCERS
quando questionado sobre a dedicação de esforços para fins alheios ao controle a ser exercido
pelas Cortes de Contas.
Mas eu acho que é obrigação do gestor manter os recursos humanos da prefeitura,
ou do órgão público, atualizados no sentido que eles prestem um serviço mais eficaz
e efetivo pra população. Mas, resumindo, eu acho que qualquer esforço ou
qualquer esforço despendido no sentido de deixar de atuar no controle para
atuar na forma de divulgar deve ser deixada de lado, ou seja, qualquer energia
gasta nesse sentido vai deixar de ser utilizada no sentido efetivamente
constitucional da Corte de Contas. (grifo do autor) (AUDITOR PÚBLICO
EXTERNO DOIS).
O conteúdo extraído da fala do entrevistado ilustra a discussão desta categoria de análise: qual
a verdadeira missão das Cortes de Contas e onde a energia dessas instituições deve ser
depositada? Para o agente de controle, controlar é efetivar a missão constitucional das Cortes
de Contas e, por conseguinte, as energias devem ser centradas nesse desiderato.
Isso, o discurso pedagógico exacerbado, retira efetividade dos trabalhos do TCERS caso não
esteja lúcida no seu corpo institucional a sua verdadeira origem e sua relação umbilical com o
combate à corrupção. Não há uma receita, um número, uma fórmula capaz de equilibrar a
missão constitucional com a pedagógica – de valor igualmente inconteste –, mas o TCERS
deve ter presente que a última deve ser secundária, deve simplesmente advir da primeira e da
divulgação adequada dos seus resultados.
5.2.2 DOS TRABALHOS DE AUDITORIA E O COMBATE À CORRUPÇÃO
Esta categoria decorre das argumentações que questionam a efetividade dos trabalhos dos
Tribunais de Contas e foram lançadas na seção “Problema” desta dissertação. Por essa razão o
propósito é aqui verificar se os trabalhos auditoriais do TCERS, de âmbito municipal,
combatem a corrupção que envolve, de alguma forma, a administração pública fiscalizada.
149
Como vários argumentos, forjados no sentido da incapacidade de os trabalhos de controle
externo e auditoria dos Tribunais de Contas combateram o fenômeno da corrupção, já foram
lançados no problema de pesquisa e no referencial teórico desta dissertação, cabe principiar
esta categoria de análise com um pertinente argumento, publicado em 10 de julho de 2008 no
jornal gaúcho Zero Hora, elaborado pelo ex-Conselheiro Victor José Faccioni (2008) e
intitulado de “Pior sem eles...”. O artigo foi uma resposta ao editorial do mesmo jornal
intitulado “Tribunais de faz-de-conta” – publicado no dia anterior e já reproduzido, em parte,
na seção “A corrupção e os Tribunais de Contas” desta dissertação. Segue a argumentação do
então juiz de contas:
O editorial “Tribunais de faz-de-conta”, de ZH do dia 9, merece nossa maior
consideração, pois as críticas levam à reflexão, oportunizam corrigir erros,
esclarecem e até separam “o joio do trigo”; e ajudam a discernir se estamos no rumo
certo. Podem ser também resultado de ranços e inconformismos daqueles que estão
sob a jurisdição dos TCs. Tudo isso, no entanto, serve especialmente ao exercício da
cidadania.
Os Tribunais de Contas estão passando por uma grande reformulação, que poucos
conhecem e com vistas ao combate pleno à corrupção, em razão de convênio
firmado entre os TCs com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a
coordenação da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil
(Atricon) e o Instituto Rui Barbosa (IRB).
Com ele, já em plena execução, mas antes realizado pelo TCU, busca-se qualificar e
agilizar as tarefas dos TCs, através do implemento de auditorias de resultados,
social, ambiental e, ainda, a uniformização de jurisprudência. Está em andamento a
elaboração de um projeto de lei processual para uniformizar os procedimentos dos
TCs, que já está no TCU aos cuidados do ministro Marcos Vilaça, para exame e
aprovação daquele tribunal e, após, ser encaminhado ao Congresso Nacional.
Destaque-se que os TCs, na sua maioria, criaram ouvidorias, disque-denúncia, como
meio de o cidadão denunciar atos irregulares, que ocorram na administração pública
e até nos próprios tribunais, eis que os corruptos vivem aperfeiçoando seus métodos,
logo necessário aperfeiçoar seu combate. A propósito,o TCE/RS vem
sistematicamente adotando medidas de aperfeiçoamento, como a criação das
câmaras especiais, a Escola de Gestão e Controle, a auditoria de acompanhamento,
entre outras providências, para agilizar e dar maior eficácia ao exame das contas
públicas. Encontram-se em andamento, ainda, o exame de novo modelo de
fiscalização, proposto pelo corpo técnico, com a seleção de auditorias, através de
matriz de risco. Diga-se, de passagem, que as auditorias dos TCs são inúmeras vezes
requisitadas pelo Ministério Público para propositura de ações de improbidade
administrativa.
Apesar de, no exame e julgamento de contas, os TCs imporem o ressarcimento de
valores por má gestão dos recursos públicos e multas, eles não têm legitimidade para
a execução de suas decisões; e nem poder para quebra do sigilo bancário e fiscal, o
que muitas vezes permite a consumação dos efeitos desastrosos da corrupção e da
impunidade. Daí ser necessária lei que dê cobertura a essas medidas. Muito há,
ainda, para ser aperfeiçoado e, por isso, estamos dispostos e abertos às críticas. Por
isso, apoiamos integralmente a criação do Conselho Nacional dos TCs, proposta do
senador Renato Casagrande e do deputado federal Vital do Rêgo. Quanto à
formação dos TCs no Brasil, eles seguem os modelos adotados por países europeus,
notadamente Espanha, Itália, Portugal, dentre outros. Daí a importância desse debate
e reflexão, pois a corrupção não pode e nem deve ser tratada como resultado dele,
150
sob pena de corrermos sérios riscos de que resquícios de revanchismos,
corporativismos e interesses escusos se sobreponham à questão principal.
A corrupção não é mal exclusivo de países desenvolvidos e em desenvolvimento,
das iniciativas pública ou privada. Encontra-se em todos os seguimentos sociais e se
aperfeiçoa com extrema rapidez. Quem sabe seja esta a razão a ser combatida e não
as estruturas.
Ruim com eles, mas pior sem eles... (FACCIONI, 2008).
Uma questão apontada pelo texto conflui para conclusões esposadas por autores que
trabalharam o tema corrupção: a de que o fenômeno não é exclusivo de países em
desenvolvimento ou do setor público ou privado. O fenômeno da corrupção está na condição
humana, envolvendo todos os seguimentos sociais.
A par dessa retomada importante sobre o fenômeno da corrupção, também é válido destacar
outra questão colocada por Faccioni (2008) e muito contributiva para esta categoria de
análise: se o combate à corrupção parece ser realizado de forma inefetiva pelos Tribunais de
Contas, pior seriam os efeitos danosos do mal se não houvesse uma estrutura estatal dedicada
exclusivamente a fiscalizar, a corrigir e a auditar a administração pública. Isso porque o senso
de fiscalização, decorrente da presença de uma ação fiscalizatória – mesmo que inefetiva –,
seria frágil demais para inibir a cobiça e a sensação de impunidade dos agentes – públicos e
privados.
Outro ponto a ser destacado nesta categoria, é que os entrevistados para esta pesquisa – todos
agentes de controle da administração pública – atestam que a corrupção, diante do grau
democrático que vive o Brasil, não pode mais ser aceita, sob pena de ocaso do próprio modelo
democrático adotado pelo País. Nesse viés, lançam-se as narrativas auferidas65:
Pesquisador - Bom, só pra gente começar o nosso bate-papo, então, como o viés do
trabalho é mais focado na efetividade dos trabalhos, enquanto os tribunais sendo
constituídos como órgãos de combate à corrupção, melhoria do gasto público,
primeira pergunta [...] é a seguinte: lá em dois mil e doze, Hollywood fez um filme
contando a biografia do ex-presidente norte-americano Abraham Lincoln. A
produção foi dirigida por Steven Spielberg e teve Daniel Day-Lewis no papel
principal. Conforme o filme, o presidente praticou atos corruptos pra alcançar
determinados fins, né? Trocou favores, comprou votos, fez chantagens. Como
resultado histórico de médio-longo prazo ele obteve reconhecimento de direitos
humanos básicos pras pessoas negras, [...], o fim da guerra civil que eles viviam e
um novo recomeço de progresso nos Estados Unidos. Então a pergunta que eu te
65
A mesma questão foi colocada para todos os entrevistados. Inicialmente foi tratado com os entrevistados o
caso do ex-Presidente norte-americano Abraham Lincoln, sendo logo após abordado o esquema corrupto
amplamente conhecido como “mensalão”.
151
faço: como auditor federal de controle externo, são aceitáveis alguns atos de
corrupção se for possível sopesar as vantagens coletivas advindas dos mesmos?
Entrevistado - Não. Eu acredito que não, não são aceitáveis esses tipos de
irregularidades, né, e impropriedades desses atos de corrupção, por mais que se
procure dar essa justificativa de um futuro melhor para a sociedade, ou para o Brasil,
ou para a governabilidade. Nós, principalmente como auditores, não podemos
aceitar esses atos, né, não tem nenhuma justificativa. O ato de corrupção ele é, ele
fragiliza a sociedade, fragiliza a administração pública. É inaceitável, não dá pra
aceitar. Até parece que é um tema que está, o filme, tem muita semelhança com o
que está acontecendo no Brasil, né, isso de que pessoas justificam assim, mensalão,
ou compra de voto, com os ganhos sociais que tenham ocorrido, né, mas não, não
são aceitáveis, não. Não podem ser aceitáveis. Ainda mais nós no controle, a gente
tem que sempre procurar combater esses atos e dirimir eles, evitar, e, ah, por mais
que num âmbito do governo, das políticas ou dos políticos, se eles se justifiquem...
Mas na história toda está cheia de guerras e destruições que lá o governante
justificava: olha, eu tive que matar os civis lá, explodir uma cidade, para poder
vencer a guerra e alcançar a paz, né. Mas não podem ser aceitáveis esses atos.
(AUDITOR FEDERAL DE CONTROLE EXTERNO).
Entrevistado - Definitivamente, não. Quem define o que é “vantagem coletiva”? Os
preceitos morais, que se assentam em valores éticos, não podem ser flexibilizados
em se tratando de administração pública no seu sentido mais fundamental. A
corrupção existe. Isso é fato. Mas o postulado maquiavélico de que “os fins
justificam os meios” não pode prevalecer na sociedade contemporânea. A atitude de
alguns não pode comprometer o valor fundante. O “Princípe” – o governante – não
pode se colocar acima da moral e da ética. Não é dado unicamente ao administrador
público a autoridade para dizer o que é interesse público, tampouco o direito de
subverter a moralidade – padrão normativo socialmente compartilhado – em nome
de uma suposta “vantagem coletiva”. Então a corrupção não pode ser tolerada sob
qualquer de suas formas. A ética não admite ponderação de intensidade. Admitir
essa possibilidade de antemão não somente fragiliza, mas compromete de forma
irreparável a essência do controle público. (JUIZ DE CONTAS).
Entrevistado – Não são aceitáveis. (AUDITOR PÚBLICO EXTERNO UM).
Entrevistado – Tá, em relação a essa questão do ex-presidente dos Estados Unidos,
eu acho que não, eu não concordo com essa forma. Eu acho que os meios não
justificam os fins. Então, no momento que tu abre a porta pra conseguir algo dessa
forma, é muito fácil começar a tornar isso uma prática. Então, eu acho que nesse
sentido a gente tem que ser radical, não abrir espaço pra esse tipo de...
Pesquisador – Ou seja, nenhum tipo de ato corrupto deve ser aceito.
Entrevistado – Exatamente. (AUDITOR PÚBLICO EXTERNO DOIS).
Entrevistado – Não. (AUDITOR PÚBLICO EXTERNO TRÊS).
Entrevistado – Não, acho que em hipótese alguma. Eu acho que não. Porque isso aí
você tem que partir daquela máxima universal, eu digo, tu já imaginou se essas
condutas fossem aceitas? Elas não podem ser aceitas. Isso na verdade pode ter sido
um acidente histórico, né, uma coincidência, ou outra coisa, se não então nós vamos
chancelar toda e qualquer corruptela. (PROMOTOR DE JUSTIÇA UM).
Entrevistado – Eu nunca me deparei com um ato de corrupção que possuísse essas
finalidades que a gente verificou nesse filme referido, normalmente todos os atos de
corrupção que nós verificamos são pra favorecimento de um terceiro, de uma pessoa
individual e, portanto em violação ao princípio da igualdade termina. Então a
pergunta, por um acaso eu assisti esse filme e esse seria um ato de corrupção que
enfim leva qualquer um a refletir porque implicou praticamente com a abolição da
escravatura nos Estados Unidos.
Pesquisador – E do mensalão? Casando o mensalão...
152
Entrevistado – É o mensalão pode-se dizer que eles deveriam acreditar que com a
compra do congresso iam fazer coisas boas pelo país, eu não, porque eu acredito que
um ato de corrupção hoje, no atual estágio da democracia ele... na verdade é você
subverter os meios pra atingir um determinado fim e hoje no estágio atual da
democracia e de desenvolvimento dos direitos humanos também eu acredito que este
tipo de ato de corrupção pode levar a uma certa derrocada desse regime
democrático, que é com todos os seus defeitos, ele lá já está avançado, bem melhor
que no passado e acho que não comporta mais, não consigo visualizar, não acho que,
por exemplo, o mensalão se justifique. (PROMOTOR DE JUSTIÇA DOIS).
Pesquisador – Perfeito, só resumindo, o mensalão hoje é, seria inaceitável?
Entrevistado – Eu não tenho como aceitar, acho que não dá pra aceitar.
Pesquisador – As instituições devem combater práticas como essa.
Entrevistado – Não tenho dúvida que sim. (DELEGADO REGIONAL DE
POLÍCIA).
Não aceita a corrupção – conforme a análise do conteúdo das falas apresentadas –, retoma-se
a assertiva de que os Tribunais de Contas são organismos estatais, autônomos e independentes
na estrutura da administração pública brasileira, forjados para o combate à corrupção.
Conforme a constituição do Estado do Rio Grande do Sul, o Tribunal de Contas terá amplo
poder de investigação, cabendo-lhe requisitar e examinar, diretamente ou através de seu corpo
técnico, a qualquer tempo, todos os elementos necessários ao exercício de suas atribuições,
não podendo ser negada qualquer informação, a pretexto de sigilo, à Corte de Contas – §§2º e
3º do art. 71 da Constituição do RS.
Uma demonstração desse entendimento acerca da missão das Cortes de Contas, para além das
já colacionadas, é o I Pacto Republicano de Estado pela Promoção dos Direitos Humanos
Fundamentais e Enfrentamento à Corrupção, firmado pelo TCERS e pelos demais poderes do
Estado do Rio Grande do Sul, incluindo-se aí o MPRS (TCERS, 2014f).
O objetivo do pacto firmado é dar cumprimento a normas internacionais internalizadas ao
arcabouço jurídico brasileiro, como a Convenção sobre o Combate à Corrupção de
Funcionários Públicos
Estrangeiros em
Transações
Comerciais
Internacionais,
da
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômicos (OCDE), a Convenção
Interamericana contra a Corrupção, da Organização dos Estados Americanos (OEA) e a
Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (UNCAC) (TCERS, 2014f).
Outras motivações para o pacto são a concretização dos direitos humanos fundamentais por
poderes e instituições, conforme disposto na Declaração Universal dos Direitos Humanos, e o
153
reconhecimento de que é indispensável ao aperfeiçoamento do Estado Democrático e Social
de Direito a atuação de forma colaborativa, articulada, integrada e sistêmica entre os poderes
e instituições. Conforme o documento, o fortalecimento das relações institucionais contribuirá
para o desenvolvimento de ações integradas, potencializando a efetivação dos direitos
humanos fundamentais, o acesso à justiça e o enfrentamento à corrupção (TCERS, 2014f).
Em outro esforço nesse sentido, o TCERS firmou, em 31 de julho de 2009, um acordo de
cooperação técnica com diversos órgãos e entidades públicas do Estado do Rio Grande do
Sul, para articular ações de fiscalização e combate à corrupção, controle social e criar uma
rede de controle da gestão pública – a iniciativa desse esforço fora do TCU. O acordo teve por
finalidade ampliar a aprimorar, de modo expressivo e efetivo, a integração entre as
instituições e os órgãos públicos partícipes, nas diversas esferas da administração pública,
com o intuito de desenvolver ações direcionadas à fiscalização da gestão pública, ao
diagnóstico e combate à corrupção, ao incentivo e fortalecimento do controle social, ao
tráfego de informações e documentos, ao intercâmbio de experiências e à capacitação dos
seus quadros (TCERS, 2014g).
Aqui, e com base nesses dois termos onde o TCERS fora partícipe, uma questão de relevo
para esta categoria de análise: o serviço público é uno. Quando os diversos órgãos públicos
conjugam esforços e competências, o serviço público entregue à sociedade é,
verdadeiramente, efetivo. Ocorre que a cultura do TCERS ainda não é de adequada interação
com outros órgãos e instituições de controle da administração pública, a despeito das
formalidades mencionadas acima. Veja-se:
Pesquisador – Fica à vontade. Isso aqui é muito mais um bate-papo. Eu só estou me
guiando por algumas questões que vão dirigir pro objeto de estudo. ...O Tribunal de
Contas do Estado é um órgão estatal importante no combate à corrupção e na
melhoria do gasto público, na tua opinião?
Entrevistado – Ele é sim, muito embora se discuta a efetividade, eu acho que na
prática ele é o órgão que norteia muitas condutas dentro das administrações.
Pesquisador – Então ele é um órgão importante para o combate à corrupção e
melhoria do gasto público?
Entrevistado – Ele é um órgão muito importante para essas duas funções.
Pesquisador – Você concorda com o seguinte trecho extraído do artigo o
“Fortalecimento do Tribunal de Contas e a Busca de um Novo Sistema de Combate
à Corrupção”, de Waléria da Cruz Sá Barreto. A autora coloca: “Portanto, para o
fortalecimento dos Tribunais de Contas, torna-se fundamental a construção de uma
nova cultura institucional, cultura que envolva a quebra do isolamento e a
valorização das mais variadas parcerias. Assim, será possível a construção de um
154
novo sistema de combate à corrupção, sistema que efetivamente favoreça a
transparência da Administração Pública”. Você concorda? Posso repetir...
Entrevistado – No meu ponto de vista, isso não é importante só para o Tribunal de
Contas. É importante para os outros órgãos também. Porque na verdade se você tu
for observar a efetividade dos outros órgãos, também elas se equiparam um pouco
também a nossa. Acaba perdendo um pouco de... perdendo muito do seu poder de
combate à corrupção por esse isolamento. Na verdade, não é uma coisa particular do
Tribunal de Contas, né.
Pesquisador – Você esta falando dos órgãos que tem...
Entrevistado – Alguma incumbência, por exemplo, a Polícia Civil. Ela é um órgão
isolado. O Ministério Público... Não existe uma interação entre eles, entre os órgãos
de controle.
Pesquisador – E no Tribunal de Contas, com a sua experiência, você tem quanto
tempo de experiência no Tribunal de Contas?
Entrevistado – Cinco, quase seis anos.
Pesquisador – E nesse período você já interagiu efetivamente com outros órgãos?
Entrevistado – Efetivamente, com operação em conjunto, nunca na verdade.
Pesquisador – Já fez alguma atuação que tocasse o combate à corrupção?
Entrevistado – Que tocasse o combate à corrupção em conjunto ou
independentemente?
Pesquisador – Independente de ter sido com outros órgãos, alguma coisa, alguma
atuação específica também da sua equipe ou da sua regional.
Entrevistado – Como a nossa área é administrativa, a gente infere e verifica muitas
vezes a corrupção. Nesse sentido, sim. Agora em conjunto, com outro órgão nunca,
no máximo troca de informações, pedidos esporádicos de algum detalhe ou algum
outro de alguma informação.
Pesquisador – E seria importante essa interação na sua opinião?
Entrevistado – Seria importante o quê?
Pesquisador – A interação?
Entrevistado – Seria, porque na verdade dá uma efetividade ao trabalho, né. O que a
gente consegue às vezes apurar é, como disse, é meramente a questão administrativa,
muitas vezes.
Pesquisador – São coisas formais?
Entrevistado – São coisas formais... (AUDITOR PÚBLICO EXTERNO UM).
Entrevistado – Ele é promotor aqui.
Pesquisador – Quando eu questionei ele sobre a interação com outros órgãos, ele
disse que é absolutamente relevante, nessa mesma linha [...] uma pergunta que eu
não fiz é quantos anos no TCERS você tem?
Entrevistado – Eu tenho dezoito.
Pesquisador – Dezoito anos. Então vocês tem uma experiência temporal bem
parecida. Ele disse que é absolutamente relevante também pra combater à corrupção
(a interação entre as instituições). Ele não vislumbra nenhum impeditivo legal pra
que isso ocorra... Isso faz parte da cultura do MP então não interagir tanto (segundo
o promotor entrevistado). [...]
E no TCERS, você enxerga isso como uma questão cultural que perpassa a questão
hierárquica e tudo mais, até porque eles têm um modelo hierárquico diferente. Ou
também há nos auditores não interagir assim, fluentemente com outros agentes de
controle da administração pública?
155
Entrevistado – Eu acho que as duas coisas. A questão cultural e a questão de hábito.
Só que eu entendo o seguinte: que historicamente todas as instituições, e isso se tu
considerar a administração pública em geral, em relação ao executivo, com a
secretaria, funciona da mesma forma, eles funcionam isoladamente e eu acho que até
então não se tinha tomado consciência dessa questão. Eu acho que a questão é muito
relevante. Não veio à tona há muito tempo e eu acho que a gente pode caminhar
tranquilamente agora que o pessoal tá começando a tratar isso, começando a discutir
e ela pode tranquilamente evoluir de forma muito rápida a pondo de que se crie essa
sistemática de atuação concomitante, mas eu... A ideia é essa, eu acho que é cultural,
mas também é hábito, até por que assim, se tu considerar, nós recebemos muito mais
solicitação do MP do que a gente faz pra eles.
Pesquisador – Exato.
Entrevistado – Eu até nem tenho ideia, não conheço nenhuma, a não ser essa recente,
essa recente solicitação nossa de que o tribunal tenha pedido, mas isso na verdade,
isso o que influencia são vários aspectos, a questão da estrutura está ligada a questão
de seguir os canais competentes pra que só uma terceira pessoa possa autorizar esse
contato, mas eu acho que nós temos um campo fértil pra desenvolver isso
rapidamente e se tornar uma questão normal do dia a dia. (AUDITOR PÚBLICO
EXTERNO DOIS).
Do conteúdo das falas, extrai-se que a interação entre órgãos e instituições é fundamental para
o combate à corrupção e essa medida não cabe apenas ao TCERS. Cabe também à Polícia e
ao Ministério Público (MP). E outra extração possível é de que essa interação não rotineira no
TCERS.
No combate efetivo à corrupção, imperiosa é a interação com outras instituições. A ausência
dessa sinergia entre os agentes de controle fragiliza a efetividade das ações isoladas de
combate à corrupção.
A análise da Tomada de Contas Especial nº 025.733/2006-9, realizada no Conselho Federal
de Enfermagem (COFEN) – expediente do TCU –, colhido do acervo prospectado para esta
pesquisa e já lançado na categoria de análise acerca da segurança jurídica dos trabalhos,
contribuiu ainda com mais questões pertinentes para a efetividade dos trabalhos auditoriais do
TCERS. Dentre as sanções aplicadas pela Corte de Contas federal, identificam-se a
inabilitação para o exercício de cargos públicos e a declaração de inidoneidade para licitar
com a administração pública federal – medidas sancionatórias que não são aplicadas pelo
TCERS em virtude da falta de previsão legal para tanto. Ainda outra medida importante para
o combate à corrupção que o TCERS não dispõe, diferentemente do TCU, é o afastamento
156
temporário do responsável fiscalizado – art. 44 da Lei Federal nº 8.443/1992, Lei Orgânica do
TCU66.
Nessa seara, outra questão que toca a efetividade dos trabalhos no combate à corrupção: a
multa máxima imposta aos agentes responsabilizados67. No TCERS, a multa máxima por
infrações na administração financeira e orçamentária é de apenas R$ 1.500,00 (mil e
quinhentos reais). Ou seja, podem constar um número infindável de irregularidades na gestão
do agente fiscalizado que a multa máxima aplicada será de apenas R$ 1.500,00, valor
insuficiente para cobrir sequer os custos de execução e cobrança dessa sanção (TCERS,
2014h).
Ademais, quando o TCERS emite parecer desfavorável às contas de um prefeito, ou julga
irregulares as contas de um dirigente máximo de órgão fiscalizado, incluindo-se aí os
legislativos municipais, o efeito jurídico é nulo. Para que seja decretada a tão propagada
inelegibilidade de um agente fiscalizado, tem-se que ter, para além das contas rejeitadas por
irregularidade insanável, a configuração de ato doloso de improbidade administrativa, e por
decisão irrecorrível do órgão competente – ou seja, a justiça comum, conforme a alínea “g” do
inciso I do art. 1º da Lei Complementar Federal nº 64/1990.
Um olhar qualitativo sobre os trabalhos de auditoria do TCERS também revela fragilidades
que implicam na baixa efetividade dos serviços de fiscalização da administração pública
entregues. Essas fragilidades decorrem ainda da metodologia auditorial aplicada com relação
aos critérios de relevância, risco e materialidade68 na escolha das áreas e entidades a serem
analisadas.
66
Se existirem indícios suficientes de que, prosseguindo no exercício de suas funções, possa retardar ou
dificultar a realização de auditoria ou inspeção, causar novos danos ao Erário ou inviabilizar o seu ressarcimento,
o TCU pode, de ofício ou a requerimento do Ministério Público de Contas, determinar o afastamento temporário
do responsável.
67
Aqui não se está tratando de dano ao erário, mas sim de uma sanção pecuniária por infração a norma legal, ou
seja, a multa.
68
A relevância refere-se à importância relativa para o interesse público ou para o segmento da sociedade
beneficiada – uma leitura qualitativa –, enquanto o risco é a possibilidade de ocorrência de eventos indesejáveis,
tais como erros, falhas, fraudes, desperdícios ou descumprimento de metas ou de objetivos estabelecidos. Já a
materialidade refere-se à representatividade dos valores ou do volume de recursos envolvidos – uma leitura
quantitativa (IRB, 2011).
157
Como exemplo, o Processo de Contas TCERS nº 1511-0200/09-669, relativo ao exercício de
2009 de Montauri – Poder Executivo –, município gaúcho com apenas 1.542 habitantes e um
orçamento executado em 2009 de tão somente 6.446.530,36 (seis milhões, quatrocentos e
quarenta e seis mil, quinhentos e trinta reais e trinta e seis centavos)70.
O relatório de auditoria foi elaborado por uma equipe de 03 (três) auditores que fiscalizaram
in loco o jurisdicionado durante 04 (quatro) dias úteis. Já aqui uma crítica com relação à
materialidade dos trabalhos de auditoria do TCERS – uma das poucas Cortes de Contas do
País que busca auditar o universo de jurisdicionados: o Poder Executivo do município de
Carazinho, fiscalizado pela mesma regional no exercício de 2009, recebeu uma equipe
igualmente de 03 (três) auditores, durante 13 (treze) dias úteis – Processo de Contas TCERS
nº 1581-0200/09-9. Portanto, teve uma ação fiscalizatória apenas 3,25 vezes maior que o
Poder Executivo do município de Montauri. Ocorre que o município de Carazinho possui
59.317 habitantes, 38,47 vezes a população do município de Montauri. Ademais, em 2009 o
Poder Executivo do município de Carazinho executou um orçamento de 68.650.902,24
(sessenta e oito milhos, seiscentos e cinquenta mil, novecentos e dois reais e vinte e quatro
centavos), ou seja, 10,65 vezes o orçamento de Montauri.
Se o volume de recursos públicos administrados fosse o critério da materialidade – a menor
discrepância entre as duas variáveis tratadas aqui: população e orçamento –, o número de dias
úteis de fiscalização em Montauri cairia para apenas 02 (dois), sendo que apenas em um
desses seriam destacados os mesmos 03 (três) auditores – o outro dia útil contaria com apenas
01 (um) auditor em campo71. Num exercício lógico inverso, partindo-se dos esforços de
auditoria lançados pelo TCERS sobre o Poder Executivo de Montauri em 2009, poder-se-ia
dizer que a Corte de Contas deveria ampliar os dias de auditoria no Poder Executivo de
69
O único agente responsabilizado foi o Sr. Jairo Roque Roso, prefeito.
Os dados de população foram extraídos do censo de 2010 realizado pelo IBGE. Já os financeiros foram
obtidos no site do TCERS e se referem ao exercício auditado.
71
O cálculo levou em conta os créditos de auditoria. Para fins de cálculo, um crédito de auditoria é o trabalho de
um auditor em um dia útil. Explica-se assim o resultado esposado: 13 dias úteis x 3 auditores = 39 créditos de
auditoria para fiscalizar R$ 68.650.902,24 (Poder Executivo de Carazinho em 2009). Proporcionalmente,
aplicando-se regra de três, ter-se-iam apenas 3,66 créditos para exercer a fiscalização de R$ 6.446.530,36 (Poder
Executivo de Montauri em 2009). Arredondam-se os 3,66 para 4 créditos, ter-se-ia três auditores trabalhando em
um dia útil (três créditos) e um único auditor no dia seguinte (um crédito).
70
158
Carazinho para 42 (quarenta e dois) ao invés dos 13 (treze) realizados em 2009, com a mesma
equipe de 03 (três) auditores7273.
A apreciação do risco de auditoria, conforme o conceito utilizado (IRB, 2011), passaria por
uma análise absolutamente subjetiva, carecendo de segurança e fidedignidade, visto que
perpassa diversas variáveis, como a confiabilidade dos controles internos, o grau de
treinamentos dos servidores, o nível de honestidade dos fiscalizados, o nível de controle social
exercido sobre a administração pública local, etc. Assim, não é possível afirmar, a priori, que
o risco de auditoria em Carazinho é maior que o de Montauri74.
Já com relação à relevância, é possível se tecer alguns comentários pertinentes para a aferição
qualitativa da efetividade dos trabalhos do TCERS – já que a natureza conceitual de
relevância é qualitativa. As inconformidades apuradas pela equipe de auditores foram as
seguintes, conforme o relatório técnico:
1.
Desvio de função de uma servidora fazendária que realiza atividades na saúde;
2.
Manutenção de recursos no Banco Sicredi, quando a jurisprudência do TCERS
entende que deveriam ser mantidos os recursos apenas em bancos públicos;
3.
Ausência de agente público dedicado exclusivamente ao controle interno
constitucional do auditado;
4.
Inobservância dos princípios licitatórios para o Convite nº 01/2009;
72
Explica-se assim o resultado esposado: 4 dias úteis x 3 auditores = 12 créditos de auditoria para fiscalizar R$
6.446.530,36 (Poder Executivo de Montauri em 2009). Proporcionalmente, aplicando-se regra de três, ter-se-ia
que para fiscalizar os R$ 68.650.902,24 do Poder Executivo de Carazinho em 2009 seriam necessários 127,79
créditos de auditoria. Arredondam-se os 127,79 para 126 créditos, seriam 03 (três) auditores trabalhando durante
42 (quarenta e dois) dias úteis.
73
O mesmo exemplo ilustrativo de uma adoção inadequada da materialidade poderia ser dado comparando-se os
Processos de Contas TCERS nºs 631-0200/10-4 (Executivo Municipal de Ijuí em 2010) e 659-0200/10-0
(Executivo Municipal de Sete de Setembro em 2010). O TCERS utilizou 9 créditos de auditoria para Sete de
Setembro e apenas 35 para Ijuí – 3,89 vezes mais esforços em Ijuí, tão só. Ocorre que o Executivo Municipal de
Ijuí, com uma população de 78.915 habitantes, executou R$ 97.602.750,84 em 2010, contra apenas R$
7.426.956,32 do Executivo Municipal de Sete de Setembro, cuja população é de apenas 2.124 habitantes.
74
O TCERS não mantém nenhum procedimento específico para apurar o grau de risco dos auditados. Um
exemplo hipotético pode ser dado para a perfeita compreensão conceitual de risco de auditoria: poder-se-ia ter
uma situação em que o município X registrasse pouca população e também baixo nível de recursos públicos
administrados e que o município Y registrasse alto índice populacional e altos níveis de recursos públicos
geridos. No entanto, por falta de treinamento, desorganização administrativa, má-fé dos agentes e baixo índice de
controle social da população, o município X tivesse todo o seu recurso público fraudado e desviado para fins
privados. Já o município Y, com servidores altamente qualificados, controles internos consistentes, atuação
correita de seus gestores e um alto índice de participação social na gestão, tivesse todo o seu alto volume de
recursos públicos aplicados dentre dos melhores padrões de legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência.
159
5.
Irregularidades na compra de medicamentos: modalidade licitatória inadequada, falha
editalícia nos critérios de qualidade e aquisições diretas – sem licitação – num
montante de R$ 19.533,33; e
6.
Construção de uma praça pública que beneficiou terreno de propriedade da igreja
católica local – aqui, sugestão de débito ao prefeito de R$ 199.158,56 (dano ao erário).
A relatoria do processo ficou para o Excelentíssimo Sr. Conselheiro Marco Peixoto. A
sugestão de débito apresentada pela equipe de auditores não foi aceita pelo colegia julgador –
a Primeira Câmara do TCERS. Isso porque na oportunidade dos esclarecimentos o Sr. Jairo
Roque Roso, prefeito, demonstrou que o terreno onde hoje é a praça pública foi recebido em
servidão administrativa e em cessão de uso pelo prazo de 30 anos. O conjunto das demais
irregularidades relatadas pela equipe de auditoria acarretaram ao responsável uma multa de
R$ 1.000,00 (mil reais) para a qual não houve recurso.
Tratando-se de relevância – e entendida essa como a importância relativa para o interesse
público ou para o segmento da sociedade beneficiada (IRB, 2011) –, não há como descartar os
benefícios do controle estrito da legalidade consignado pelo trabalho auditorial, onde falhas
formais em procedimentos licitatórios foram verificadas e a questão estrutural do importante
órgão de controle interno local levantada, dado que não se dispõe de um agente efetivo
dedicado exclusivamente para as relevantes atividades. E também a inadequação de uma
servidora concursa para atividades fazendárias realizando tarefas da secretaria de saúde. O
Processo de Contas TCERS nº 879-0200/11-8 – relativo ao exercício de 2011 do Executivo
Municipal de Roca Sales –, por exemplo, cuja equipe de auditoria fora composta por dois
auditores durante 05 (cinco) dias úteis, destacou que havia a necessidade de se criar o cargo
de Procurador, assim como a necessidade de se destacado um agente exclusivamente as
atividades de controle interno – até porque a própria tesoureira realizava controle sobre as
suas atividades, descaracterizando assim o princípio de controle da segregação de funções. A
decisão optou por alertar o gestor sobre as relevantes irregularidades formais.
Ocorre que sob o prisma do efetivo combate à corrupção a ser desempenhado pelo TCERS,
trabalhos auditoriais dessa natureza descolam-se da relevância e deixam de ofertar recursos
humanos altamente qualificados para outras fiscalizações – mais materiais, mais críticas, mais
relevantes para a sociedade gaúcha. Isso porque, como visto nesta dissertação, existem
160
inúmeros casos robustos de corrupção onde os Tribunais de Contas não aparecem, até porque
não desenvolveram ainda uma cultura lúcida para encarar essa missão que decorre da
constituição brasileira.
A adequada efetividade do sistema fiscalizatório da administração pública brasileira
contribuiria para o aumento do grau de aderência às normas formais e informais de nossa
democracia, defendida essa aderência por North como o principal quesito para o crescimento
e o desenvolvimento socioeconômico de uma nação no longo prazo.
5.2.3 CONTROLE SOCIAL E OS TRABALHOS AUDITORIAIS
A missão constitucional das Cortes de Contas é controlar a administração pública. E nesse
mister não é possível esquecer da sua clara ligação com o controle social, cujo amparo
também tem origem na Carta Magna, dado que qualquer cidadão, partido político, associação
ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades
perante a Corte de Contas – §2º do art. 74 (BRASIL, 2013b).
Como visto no referencial teórico deste relatório de pesquisa, os trabalhos auditoriais do
TCERS estão intimamente associados ao controle social da administração pública. Os
trabalhos de auditoria são pagos pelo público e como tal pertencem ao público – devem ser
entregues ao público. E como também visto, o controle social está ligado matricialmente à
transparência, pois somente com informações pode ser exercido em sua plenitude conceitual.
Diante dessa conjuntura, nada mais adequado que auferir a efetividade dos serviços prestados
pelo TCERS em sua relação com o controle social da res publica. Extraídas as premissas em
uma premida síntese, segue a análise dessa categoria.
Foram identificas práticas de controle externo e auditoria do TCERS que consistentemente
fomentam, reforçam e instrumentalizam o importante controle social da administração
pública. Uma com claro destaque para esta pesquisa é a disponibilização dos trabalhos de
auditoria realizados diuturnamente pela Corte de Contas gaúcha, em atendimento ao constante
no art. 7º, inciso VII, alínea “b”, da LAI.
161
Um Conselheiro entrevistado para esta pesquisa, quando questionado acerca da
disponibilização dos relatórios de auditoria pelo TCERS, esclareceu a prática da Casa da
seguinte maneira:
Os relatórios de auditoria são disponibilizados mediante pedido de acesso a
informações de qualquer interessado em consonância com a Lei Federal nº
12.527/2011, que foi regulamentada no âmbito do Tribunal pelas Resoluções nºs
945/2013, 975/2013 e 994/2013. Destaco que, ressalvadas as hipóteses explicitadas
nesta última Resolução, o fornecimento dos documentos relacionados à atividadefim do Tribunal ficará condicionado ao transcurso do prazo para apresentação de
defesa ou esclarecimentos, conforme expresso no art. 5º da Resolução nº 945/2013,
alterada pelo Resolução nº 975/2013. (JUIZ DE CONTAS).
Ou seja, conforme o conteúdo da fala captada, assim que o fiscalizado tem o seu prazo de
esclarecimentos encerrado, qualquer cidadão poderá requisitar os trabalhos de auditoria
produzidos pelo corpo de auditores do TCERS – os relatórios de auditoria –, assim como os
esclarecimentos prestados pelo gestor fiscalizado e o parecer jurídico emitido pelo Ministério
Público de Contas (MPC). Essa é a luz do art. 5º da Resolução TCERS nº 945/2012, que
dispôs sobre o acesso a informações e a aplicação da Lei Federal nº 12.527/2011 no âmbito do
Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul. Veja-se:
Art. 5º O fornecimento de documentos relativos à atividade-fim do Tribunal de
Contas do Estado somente poderá ocorrer após decorrido o prazo para apresentação
de defesa ou esclarecimentos.
§ 1º No caso de processos ainda não levados a julgamento, serão entregues ao
solicitante, conjuntamente, os informes técnicos, esclarecimentos, razões e pareceres
constantes dos autos.
§ 2º Na hipótese do § 1º do presente artigo, far-se-á constar, em todas as peças,
independente do meio ou formato da entrega, expressa referência à situação de “nãojulgado” do respectivo processo.
§ 3º Quando já houver sido proferida decisão de mérito, esta será fornecida ao
solicitante, hipótese em que poderá ser dispensada a entrega dos documentos
referidos no § 1º deste artigo.
§ 4º Para os fins do caput deste artigo, será observado o prazo fixado na respectiva
intimação, o qual será contado na forma do Regimento Interno do Tribunal de
Contas do Estado. (TCERS, 2014h).
Para além de atender a uma imposição legal, essa prática do TCERS ilustra uma conduta
condizente com o momento presente de grande transparência da gestão pública brasileira;
162
momento onde os devidos raios de sol são lançados sobre os atos e fatos ocorridos no seio da
coisa pública75.
Mais que isso o TCERS vem capitaneando uma robusta campanha pela cultura da
transparência, intitulada de “Transparência: faça essa ideia pegar” (TCERS, 2014i). Já foram
editados 5 (cinco) vídeos sobre temáticas diversificadas, distribuídos inúmeros panfletos
orientativos, firmadas parcerias com entidades apoiadoras e veiculados spots em rádios,
inclusive do interior do Estado.
Um desdobramento da campanha é o prêmio “Boas Práticas de Transparência na internet”. A
premiação é conferida aos Poderes Executivos e Legislativos municipais, nas categorias
abaixo e acima de 10 mil habitantes. A premiação consiste na concessão de um diploma de
menção honrosa e na disponibilização de um selo digital para os sites (TCERS, 2014i).
Foram estatuídos 20 (vinte) critérios de avaliação para apreciar o atendimento às disposições
da Lei Complementar nº 131/2009 e da Lei de Acesso à Informação (LAI). Constam entre os
critérios, embasados com base nas exigências legais, os referentes à disponibilização de
informações organizacionais, como endereços e telefones das unidades, e os que tratam sobre
licitações, contratos celebrados pelas administrações e os registros das despesas (TCERS,
2014i).
O regulamento também prevê a atribuição de pontuação aos sites que fornecerem informações
relativas às atividades fins do poder público avaliado, a exemplo das ações de saúde,
educação e saneamento básico, e identificarem os veículos e os imóveis que compõem o
patrimônio da instituição, bem como divulgarem a relação nominal de seus servidores
públicos e da respectiva remuneração (TCERS, 2014i).
O próprio site do TCERS – www.tce.rs.gov.br – divulga a remuneração dos seus servidores e
destaca um espaço específico ao controle social, onde são disponibilizadas as execuções
orçamentárias dos 497 (quatrocentos e noventa e sete) municípios gaúchos, sendo possível
captar, através dele, dados de despesas e receitas, gastos com saúde e educação, e outros
tantos, como os fornecedores das administrações e respectivos pagamentos. Inclusive o
75
A pesquisa apurou que as sessões de julgamento do TCERS são transmitidas, ao vivo, em seu site. Também é
possível ao cidadão assistir às sessões passadas.
163
TCERS comprou para o seu site o sistema de buscas Google Search Appliance, que
possibilita localizar de forma muito rápida qualquer informação hospedada pelo site referente
ao assunto escolhido em uma base que abriga 220.000 (duzentas e vinte mil) peças
processuais sobre as contas do Estado e dos 497 (quatrocentos e noventa e sete) municípios
gaúchos.
Quando o Conselheiro entrevistado foi questionado como o controle social da administração
pública é visto pelo TCERS e qual a política institucional para o mesmo, respondeu com o
seguinte conteúdo:
O TCERS é um grande apoiador do controle social, pois o seu fortalecimento auxilia
a própria atuação fiscalizatória do Tribunal de Contas. Além disso, o controle social
é um excelente instrumento de efetivação da transparência na administração pública.
A política institucional adotada nesse sentido contempla ações pedagógicas, como a
capacitação de conselheiros municipais e campanhas como “É da nossa conta”,
“TCE nas Escolas”, “Avalie nosso Portal”. Ações de fomento ao conhecimento e
atendimento à Lei de Acesso à Informação, por meio da “Avaliação da
Transparência nos Portais” dos órgãos jurisdicionados, com o objetivo de garantir o
acesso a serviços e informações aos cidadãos.
Na mesma linha, o portal do TCERS na rede mundial, projetado e construído com
base nos Padrões Web em Governo Eletrônico (e-PWG), tem como premissa básica
a ampliação da comunicação-interatividade com o cidadão e, consequentemente, o
aumento do controle social. As ferramentas de consulta deste portal permitem que o
cidadão tenha acesso, de forma simples e rápida, a informações sobre toda a
execução orçamentária e financeira dos órgãos jurisdicionados ao TCERS, com
destaque para as aplicações em educação, saúde e obras públicas. Importante
destacar que essas informações também são disponibilizadas no formato de dados
abertos.
As informações relacionadas à atividade fim do TCERS também são facilmente
localizadas no portal – pareceres, votos e decisões. A usabilidade do portal do
TCERS e o incremento da participação da sociedade no controle dos gastos públicos
pode ser comprovado pelo crescente número de denúncias recebidas por meio da
Ouvidoria. (JUIZ DE CONTAS).
Ou seja, uma série de ações que incentivam e instrumentalizam a prática do controle social
sobre a administração pública, de forma efetiva, são capitaneadas pelo TCERS, destacando-se
a cultura da transparência. Essa, matéria prima para que a sociedade tenha e detenha
possibilidades concretas de atuação e intervenção no curso das gestões públicas.
Outro projeto também pode ser associado, intitulado de “Múltiplos Olhares”. Quando
questionado sobre como surgiu a ideia, o Conselheiro entrevistado consignou:
164
O primeiro encontro aconteceu no dia 8 de outubro de 2010 e, desde então, já foram
realizadas 8 (oito) edições do evento. A ideia surgiu do desejo do TCERS em
buscar, de maneira transparente, maior proximidade com a sociedade gaúcha,
abrindo as portas com o intuito de compreender como essa sociedade vê o seu
trabalho, bem como o da administração pública em geral.
Assim, baseado nos pressupostos de interação, transparência e superação do
pensamento simplificar, e conduzido sob a forma de um diálogo, o programa tem a
finalidade de oferecer uma nova forma de conexão do TCERS com a sociedade. A
partir disso, o Tribunal passa a repensar as estratégias institucionais de ação. (JUIZ
DE CONTAS).
A partir desse projeto já passaram pelo TCERS para discutir os rumos do controle externo,
gaúcho e brasileiro, personalidades como a jornalista Cláudia Laitano, o cineasta Jorge
Furtado, o presidente da Confederação Nacional dos Municípios Paulo Ziulkoski, o jornalista
Luiz Antônio Araújo, o filósofo Marco Antonio de Oliveira Azevedo, o jornalista e professor
universitário Antônio Hohlfeldt, o jornalista e escritor Eduardo Bueno, mais conhecido como
Peninha, Ruy Carlos Ostermann, Jarbas de Melo Lima, o jornalista e escritor Juremir
Machado e Fernando Schuler.
Por fim, é relevante destacar a instrumentalização dada pelo TCERS à sociedade gaúcha e
brasileira quando a Corte de Contas analisou o sistema de custeio das tarifas de ônibus de
Porto Alegre. Na oportunidade, corria o ano de 2013, uma série de manifestações pelo Brasil
foram desencadeadas clamando por maior qualidade e tarifas mais baixas no transporte
público, tema que originou uma onda de protestos em várias cidades brasileiras.
Com base no referencial teórico e nas considerações dessa seção, é possível concluir que os
trabalhos de controle externo e auditoria do TCERS são efetivos na sua constitucional relação
com o controle social da administração pública, ou seja, produzem um efeito real, atingindo
seus objetivos estratégicos, institucionais, de formação de imagem, etc. O TCERS, em sua
relação com o controle social, procura buscar o que a sociedade precisa e quer – numa
expressão essencialmente política – e o que a administração pública demanda como
retroalimentação do ciclo de gestão. Nesta categoria de análise, o TCERS causa impacto
transformador positivo.
165
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Inequivocamente existem múltiplas leituras sobre uma mesma realidade social. Algumas são
complementares entre si e outras totalmente conflitivas em suas extrações mais básicas.
Nenhuma delas, por mais robusta que seja, irá captar a complexa realidade na sua plenitude.
Por óbvio, também é esse o caso desta dissertação: parcial e incompleta.
A despeito das muitas fragilidades e encurtamentos inerentes ao método e ao pesquisador,
algumas considerações são possíveis de serem lançadas após o esforço despendido sobre o
tema, dentro das relações estabelecidas com as categorias de análise destacadas pelo desenho
metodológico adotado. E isso é importante frisar: dentro das relações estabelecidas com as
categorias de análise destacadas.
Os Tribunais de Contas do Brasil, em seu conjunto, são alvo de inúmeras críticas relacionadas
à efetividade dos serviços entregues à sociedade que os financia. Tal assertiva foi densamente
relatada nesta dissertação que procurou captar a efetividade no cumprimento da missão
constitucional do TCERS. Um dos porquês para esse quadro de insatisfação – que precisa ser
revertido – é a baixa participação das Cortes de Contas em notórios casos de corrupção contra
os recursos públicos. De fato, como já estudado por Speck (2000a), o jornalismo
investigativo, as Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) e o Ministério Público (MP)
transparecem maior efetividade no combate à corrupção, muito embora, ao contrário das
Cortes de Contas, não tenham como missão exclusiva a administração pública. Esse
específico ponto preocupa.
Das três categorias de análise esquematizadas para este estudo – duas delas subdivididas em
outras duas, montando-se assim cinco subcategorias –, em apenas uma delas os serviços do
TCERS são destacadamente efetivos – na categoria intitulada de “controle social e os
trabalhos auditoriais”. Para tanto, a pesquisa evidenciou um agir moderno do TCERS em
sua relação com a sociedade, atuando a Corte de Contas gaúcha de forma consentânea às
demandas da cidadania por maior transparência na gestão pública.
Mais que isso, o TCERS mantém práticas que fomentam o controle social da administração
pública. Disponibiliza os relatórios de auditoria produzidos pelo corpo de auditores – se
166
requisitados (portanto ainda não se trata de transparência ativa) –, mantém um site
tecnologicamente avançado, capaz de divulgar um conjunto rico de dados financeiros, divulga
vídeos das suas sessões de julgamento – inclusive ao vivo –, é dono de uma campanha pela
cultura da transparência na administração pública, lançou até um prêmio denominado de
“Boas Práticas de Transparência na internet” e realiza um esforço de trazer para dentro da
Corte de Contas pessoas capazes de pensar o amanhã do controle externo brasileiro, a
exemplo do projeto “Múltiplos Olhares”.
Nas outras quatro subcategorias –da discussão da responsabilidade pelos atos e fatos da gestão
auditada, da qualidade das provas angariadas pela técnica auditorial, da interpretação acerca
da missão constitucional do TCERS e o seu desenrolar no mundo da vida” e dos trabalhos de
auditoria e o combate à corrupção –, os serviços de controle externo e auditoria apresentam
fragilidades relacionadas a sua efetividade no cumprimento da missão constitucional.
Como visto na primeira delas, da discussão da responsabilidade pelos atos e fatos da
gestão auditada, apurou-se os processos de contas de âmbito municipal não discutem a
responsabilidade pelos atos e fatos da gestão auditada, objetivando sobre a figura do gestor
hierárquico máximo toda a culpa pelas irregularidades encontradas. Para além dos
questionamentos jurídicos possíveis sobre a impropriedade de se responsabilizar apenas o
gestor maior, é possível antever os desdobramentos práticos causados nos inúmeros agentes
públicos fiscalizados, visto que no âmbito no TCERS se sabe que a responsabilidade é, por
regra, do gestor hierárquico superior. Um dos desdobramentos é a sensação de
irresponsabilidade dos demais agentes públicos subordinados para com o TCERS. Esse
sentido só encontra amparo mesmo na práxis auditorial do TCERS, dado que o arcabouço
jurídico tem o desiderato, como visto, de responsabilizar qualquer agente, público ou privado,
que intervenha na ou com a administração pública.
Em outra senda, as técnicas de captação de provas – estudadas em virtude da categoria da
qualidade das provas angariadas pela técnica auditorial –, ainda estritamente documentais
– o que per se não é problema porque todas as provas em algum momento passam a ser
documentais, lato sensu –, não contam com o acesso adequado às transações bancárias dos
órgãos jurisdicionados, aos processos licitatórios realizados pelas administrações fiscalizadas,
em base informatizada, e aos dados fiscais das empresas que prestam serviços para a
167
administração pública. Não existe a figura da testemunha nos processos de contas, o que
encurta a ampla defesa e o contraditório dos fiscalizados e ao mesmo tempo as possibilidades
de captação de provas por parte do corpo técnico do TCERS. Ademais, o grau da ação
investigativa por parte dos auditores ainda é parco para os casos patentes de corrupção – como
o caso das diárias pagas a vereadores para verdadeiras “farras” com o dinheiro público.
Já o esforço de pesquisa despendido para a categoria da interpretação acerca da missão
constitucional do TCERS e o seu desenrolar no mundo da vida apurou que a interpretação
acerta da missão constitucional do TCERS – e das Cortes de Contas em geral –, empregada
por operadores do controle externo, ainda não aponta lucidamente para a aceitação de que um
sistema de combate à corrupção na administração pública, capitaneado pelos Tribunais de
Contas, é o imperativo da Carta Magna, sendo um desdobramento lógico do controle de
legalidade, onde a carga semântica do verbete “controle” constante na constituição brasileira
assume as vezes de correição, fiscalização, auditagem, sancionamento e policiamento.
As feições didático-pedagógicas das Cortes de Contas – diga-se, sem assento no modelo
jurídico estabelecido para os Tribunais de Contas –, por vezes de consultoria e assessoria,
dividem espaço e consomem uma fração da energia disponível para a missão maior dessas
instituições, qual seja: controlar a administração pública brasileira. A despeito das práticas
positivas e exitosas dessas ações didático-pedagógicas executadas pelas Cortes de Contas, e
que agregam às políticas públicas, a efetividade no combate à corrupção perde.
No que diz respeito ao estudado na categoria dos trabalhos de auditoria e o combate à
corrupção, muito embora existam inúmeros convênios firmados pelo TCERS com outras
instituições capazes de ofertar dados e informações para os trabalhos de auditoria – vide a
criação do CEGEX –, ainda é baixa a utilização efetiva dessas possibilidades probatórias, não
estando impregnada na ação dos auditores o uso corriqueiro das ferramentas em processo de
disponibilização. Aqui, cabe reprisar que o serviço público é uno, devendo os diversos órgãos
públicos conjugarem esforços e competências para entregar à sociedade um trabalho efetivo.
Devem todos os órgãos e agentes públicos de controle, não somente o TCERS, deterem tal
premissa básica em sua conduta rotineira.
168
Outra questão derivada da categoria que estudou os trabalhos auditoriais no combate à
corrupção é o baixo valor da multa aplicada por infrações ao ordenamento administrativo,
orçamentário e financeiro da administração pública. O valor máximo é de apenas mil e
quinhentos reais por exercício, independentemente do número de irregularidades apuradas
pelos relatórios de auditoria. Ainda, ao contrário do TCU, o TCERS não dispõe de sanções
como a inabilitação para o exercício de cargos públicos e a declaração de inidoneidade para
licitar com a administração pública, ou mesmo o afastamento temporário do responsável
fiscalizado. Tudo conjuga para uma baixa efetividade no combate à corrupção.
Ainda nesse tema, é possível destacar que TCERS tem por regra destacar para a fiscalização a
totalidade dos municípios gaúchos, hoje em 497. Assim, equipes de auditores são enviadas
todos os anos para essas localidades, a fim de dar cumprimento à missão constitucional da
Corte de Contas gaúcha. Ocorre que essa prática não contribui para o aperfeiçoamento
qualitativo dos trabalhos – como a qualidade e o tipo das provas, o tempo disponível para a
obtenção das mesmas e para as análises auditoriais decorrentes –, já que a quantidade de
órgãos auditados é imensa (poderes executivos, legislativos, empresas, consórcios, autarquias,
sociedades de economia mista, etc.). Disso resulta que os critérios de auditoria empregados,
como relevância, risco e materialidade, passam a carecer de aperfeiçoamentos.
Nem todos os órgãos devem passar por fiscalização ordinária, temáticas pouco relevantes não
devem ganhar o espaço dos temas caros para a sociedade e valores irrisórios não podem
ocupar a mesma atenção das grandes somas.
A democracia brasileira está amadurecendo há mais de duas décadas, num processo social
espelhado diretamente na condição humana – que não é perfeita. Mas se por um lado a
condição humana não é perfeita, consta em seu íntimo de forma indissociável o
aperfeiçoamento constante no tempo. Tem-se, assim, que as falhas e o aperfeiçoamento
constante das Cortes de Contas são absolutamente naturais, ainda mais porque essas
instituições são feitas por pessoas e para pessoas.
169
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182
ANEXO 1 – EXEMPLOS DE PERGUNTAS LANÇADAS NAS ENTREVISTAS
SEMIESTRUTURADAS REALIZADAS PARA ESTA PESQUISA ACADÊMICA
As questões abaixo apenas ilustram algumas questões abordadas com os entrevistados. Outras
tantas questões foram lançadas, conforme a pertinência das experiências do agente de controle
interlocutor. O material completo consta gravado e transcrito em arquivos da pesquisa.
Questões exemplificativas:
1 - Em 2012, Hollywood lançou um filme contando parte da biografia do ex-presidente norteamericano Abraham Lincoln. A produção foi dirigida por Steven Spielberg e teve Daniel
Day-Lewis no papel principal. Conforme a produção, o ex-presidente praticou atos corruptos
para alcançar determinados fins. Trocou cargos por favores, comprou votos, fez chantagens.
Como resultado de médio e longo prazo, obteve reconhecimento de direitos humanos básicos
para pessoas negras, o fim da guerra civil e um novo recomeço do progresso nos EUA. Nesse
sentido, a pergunta: são aceitáveis alguns atos de corrupção se for possível sopesar as
vantagens coletivas advindas dos mesmos?
2 – O Tribunal de Contas do RS (TCERS) é um órgão estatal importante no combate à
corrupção e na melhoria do gasto público?
3 – O Sr. concorda com o seguinte trecho extraído do artigo “O fortalecimento do Tribunal de
Contas e a busca de um novo sistema de combate à corrupção”, de Waléria da Cruz Sá
Barreto: “Portanto, para o fortalecimento dos Tribunais de Contas, torna-se fundamental a
construção de uma nova cultura institucional, cultura que envolva a quebra do isolamento e a
valorização das mais variadas parcerias. Assim, será possível a construção de um novo
sistema de combate à corrupção, sistema que efetivamente favoreça a transparência na
administração pública”?
4 – Qual a diferença entre atuação didática-pedagógica e atuação fiscalizatória-sancionatória?
Qual dessas é a missão maior do TCERS? Na estrutura legal há previsão de atuação
pedagógica prevista para as Cortes de Contas?
183
5 – O TCERS individualiza a responsabilização dos agentes públicos e privados fiscalizados?
Como se dá esse processo de identificação da responsabilidade?
6 – Quais os meios de prova admitidos pelo TCERS em seus processos?
7 – Quando o poder judiciário é provocando, há a possibilidade de controle judicial sobre as
ações do TCERS? Em que nível?
8 – As sanções aplicadas pelo TCERS são efetivas e céleres?
9 – O TCERS já trabalhou em conjunto com outros agentes de fiscalização como Polícia
Federal, Polícia Civil, Receita Federal, Receita Estadual, Ministério Público? Essa prática é
corriqueira ou eventual? Como se dá esse trabalho para o Auditor Público Externo (APE)? O
TCERS destaca auditores para acompanhar trabalhos com delegados, promotores e auditores
fiscais?
10 – Qual a liberdade de atuação do APE com outros órgãos? O Sr. concorda com este
sentença, lançada na página 71 da 5ª ed. da cartilha “Combate à Corrupção nas Prefeituras do
Brasil”: “Os Tribunais de Contas ocasionalmente prestam um grande serviço, quando
auditores independentes vão a fundo, fazem a investigação, e colocam as evidências de tal
forma que os Conselheiros não podem ignorá-las. Nesses casos, as conclusões desse órgão
servem de base para o processo judicial e o aceleram significativamente”?
11 – Como se dá a disponibilização dos relatórios de auditoria pelo TCERS para a sociedade?
12 – Como o controle social da administração pública é visto pelo TCERS? Qual a política
institucional para o controle social?
13 – O APE tem atuação especializada? Dispõe de estagiários? Como é feita a seleção dos
estagiários? Quais foram os APEs que atuaram na questão tarifária de Porto Alegre? Tinham
experiência pregressa?
14 – De quem é a responsabilidade pelos relatórios de auditoria? A identificação dessa
responsabilidade está clara nos processos de fiscalização instaurados pela Corte?
184
15 – Como são trabalhados critérios de relevância, materialidade e criticidade nos trabalhos
realizados pelo TCERS? O TCERS tem relatórios onde valores inexpressivos são apontados?
16 – No TCERS como se dá a ampla defesa e o contraditório? É o mesmo APE que analisa os
esclarecimentos?
17 – Como o APE é instrumentalizado para realizar os seus trabalhos? Com são identificadas,
por exemplo, notas fiscais frias, empresas fantasmas...? Os APEs têm acesso aos dados
bancários dos auditados?
18 – Como é mensurado o dano ao Erário?
19 – No TCERS, em algum expediente é utilizada a expressão “contas aprovadas” ou
quaisquer outras expressões análogas?
20 – Qual a fronteira entre as competências do TCERS e do TCU? Por exemplo, firma de um
convênio para construção de uma usina de leite ou álcool com repasses federais.
21 – Como surgiu a ideia do projeto “Múltiplos Olhares”?
185
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Leonardo Jorge Victor Nascente Ferreira