A COISIFICAÇÃO DO ESCRAVO
Vítor Nazareno da Mata Martins*
Danilson Jorge Coelho Cordovil**
Dawdson Soares Cangussu***
Maurício Sousa Silva****
No início da década de 60, surge na chamada Escola Paulista, formada por Florestan
Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Emília Viotti da Costa e outros,
uma revisão no tema escravidão com a finalidade de debater e combater o mito da
democracia racial defendido por Gilberto Freyre em obras como “Casa Grande &
Senzala” e “Sobrados e Mucambos”, onde esse ressaltava a existência de relações doces e
benevolentes entre senhores e escravos.
Esses pensadores da Escola Paulista, que questionaram e denunciaram os horrores da
escravidão, concluíram que as condições extremamente duras da vida sob o cativeiro
haviam destituído os negros das habilidades necessárias para serem bem sucedidos na vida
em liberdade. As condições desfavoráveis da vida em cativeiro teriam retirado dos escravos
da capacidade de pensar o seu modo de vida fora do modelo de organização político-social,
econômica, jurídica e ideológica instituída pela vontade do senhor de escravo, ocorrendo
assim, uma “coisificação social”, no sentido de que a violência exercida pelo sistema
escravista chegava a fazer com que os negros concebessem a si mesmos como não-homens,
como criaturas inferiores, como “coisas”, daí a denominação “teoria do escravo-coisa”.
Partindo deste referencial, da concepção do escravo como coisa, como agente passivo
na sociedade escravista, desenvolvida pela historiografia dos anos 60, aprofundar-se-á a
discussão utilizando para isso os argumentos de uma historiografia mais recente baseada na
obra “Visões da Liberdade” de Sidney Chalhoub, onde este tenta mostrar os escravos como
agentes ativos através de uma organização escrava contrapondo o trabalho de Fernando
*
Graduado em História Social Pela Universidade Federal do Pará.
Graduado em História Social pela Universidade Federal do Pará.
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Mestrando em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará.
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Especializando em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará.
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Henrique Cardoso, “Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional”, o qual, pertencendo à
historiografia dos anos 60, via o escravo como um agente passivo.
Para Fernando Henrique Cardoso o escravo se inseria na sociedade através do sistema
produtivo, nesse o escravo ocupava um lugar inferior, que segundo Cardoso era imposto
ideologicamente pelo senhor de escravo e essa vontade senhorial fazia com que o próprio
escravo se concebesse assim. Desta forma o escravo representava-se como não homem.
Esta concepção vai mais além. Estando o escravo se autoconcebendo como não homem, ele
não possuía maneira de reagir ao sistema como pessoa, uma vez que, economicamente,
ocupava lugar inferior, só restando ao escravo negar sua condição de coisa no plano
ideológico, isso feito por “atitudes de ‘desespero’ e revolta pela ânsia de liberdade”.1
Outro ponto bastante relevante é que Fernando Henrique Cardoso considera mínima a
possibilidade dos escravos formularem uma organização coordenada em seu proveito, e
que para estes a liberdade só poderia ser alcançada através da fuga.
A mais polêmica e contestada afirmação de FHC, pela historiografia dos anos 80, é a
de que o escravo aceitava sua condição de coisa, como nos mostra a citação.:
“(...) a possibilidade efetiva de os escravos desenvolverem ações
coordenadas tendo em vista propósitos seus era muito pequena. Não
tinham condições para definir alvos que levassem a destruição do sistema
escravista e não dispunham dos meios culturais (de técnicas sociais ou
materiais) capazes de permitir a consecução dos propósitos porventura
definidos. Está claro que o processo de aniquilamento pela socialização
incompleta e deformadora das possibilidades do escravo reagir como
pessoa não era expressamente deliberado pelos senhores. Ele resultava,
indiretamente, das próprias condições de trabalho, da representação do
Escravo como coisa e da aceitação pelos cativos da representação de
escravos que lhes era imposta (...)”. 2
Em face de um quadro que considerava a ação escrava como pouco relevante para as
transformações que aconteceram na sociedade escravista - incluindo aí a própria abolição
da escravidão - foi se articulando uma contestação sistemática, em especial a partir do final
da década de 80. Combatia-se, fundamentalmente, a imagem do “escravo-coisa”, a partir de
um conjunto expressivo de estudos empíricos. Assim, por exemplo, Sidney Chalhoub,
1
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: O Negro na Sociedade
Escravocrata do Rio Grande do Sul. São Paulo: DIFEL, 1962. p. 167.
2
Ibidem. P. 159.
estudando as últimas décadas da escravidão através dos processos civis e criminais que
envolviam escravos e senhores na cidade do Rio de Janeiro, demonstrou como os cativos
exploravam ativamente, em seu proveito, as brechas legais que a sociedade escravista
deixava em aberto, lhes permitindo lutar pela conquista de direitos. Ele discute como as
contradições contidas nos novos dispositivos legais - que rearticulavam e tornavam, de
certo modo, mais ambíguas as relações entre o Estado, a classe senhorial e os escravos eram percebidas e manipuladas pelos cativos. Assim, os escravos articulavam suas próprias
concepções de liberdade, daquilo que poderiam considerar como um “cativeiro justo ou
pelo menos tolerável”, os limites dos seus próprios deveres e seus “direitos” frente aos
senhores, etc., e se voltavam para a Justiça constituída, impetrando processos contra seus
carrascos, recorrendo à lei para conseguir sua liberdade ou para negociar - mesmo que
dentro de limites precisos - as condições de seu cativeiro.
Em Visões da Liberdade, Sidney Chalhoub analisa os diferentes significados da
liberdade para os escravos que moviam ações cíveis nas quais pleiteavam liberdade a seus
senhores. Para esse autor, os negros interferiam, certas vezes com sucesso, nas transações
de compra e venda. Considera ainda, a existência de relações afetivas entre escravos e a
revolta diante da separação de suas famílias.
O autor reafirma suas propostas de analise e de interpretação do estudo dos escravos
como sujeitos históricos, discutindo com a historiografia brasileira que tratava esses
homens como parte amorfa do sistema. Trava discussões com autores como Fernando
Henrique Cardoso e Jacob Gorender3, indo contra o conceito de coisificação do escravo.
Chalhoub discute a questão do tráfico interno, do desenraizamento do escravo, e do
quanto este participou ativamente dos processos de suas compras e vendas. O medo de
tornar-se escravos em fazendas no sudeste fez com que muitos escravos se rebelassem ou
agissem diretamente no controle de suas vidas, o que faz com que sejam dissolvidas cada
vez mais, teorias como a despersonalização e coisificação do escravo.
Sidney Chalhoub, ao contrário de Fernando Henrique Cardoso, critica a teoria do
“escravo-coisa”. Primeiramente mostra a possibilidade de os escravos se organizarem,
como na sublevação dos escravos contra o comerciante de cativos, afim de que o ocorrido
3
GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial. São Paulo: Ática, 1978. Ver especialmente o capítulo 1 da
Primeira parte para uma explicação mais detalhada sobre sua concepção acerca da teoria da “Coisificação”.
impedisse a venda de escravos para uma fazenda. Em documento – sobre um inquérito da
sublevação de escravos ocorrido em 1872 – citado por Chalhoub pode-se perceber
claramente uma organização eminentemente escrava:
“(...) tendo ido anteontem para casa de veludo para ser vendido foi
convidado por Filomeno, e outros para se associar com eles para
matarem Veludo para não irem para a fazenda de café para onde tinham
sido vencidos”.4
Esta organização da sublevação traz a possibilidade de uma rede de solidariedade,
formada por parentesco ou afinidades devido a uma possível convivência dos cativos num
determinado período de tempo, visto que não foram todos os cativos que participaram da
sublevação, mostrando que entre o grupo sublevante havia um entrosamento. Outro aspecto
perceptível na citação é o do significado de liberdade, significando no caso a não ida para a
fazenda de café.
Viu-se acima o debate teórico acerca da “coisificação” do escravo. Ver-se-á a partir
de agora o debate metodológico que diz respeito à interpretação das fontes utilizadas por
Fernando Henrique Cardoso criticadas por Sidney Chalhoub.
Fernando Henrique Cardoso – utilizando como fonte a obra jurídica sobre a situação
do escravo, de Perdigão Malheiros, publicada em 1860 – apropriou-se da idéia de que o
escravo, do ponto de vista jurídico, nada mais era do que uma “coisa”, tal como pode ser
visto no fragmento do trabalho de Malheiros:
“...reduzido à condição de cousa, sujeito ao poder e domínio ou
propriedade de outro, é havido por morto, privado de todos os direitos, e
não tem representação alguma”.5
Desta forma, na análise realizada por F.H. Cardoso em torno da situação social do
escravo, nota-se de forma clara a transferência que houve da “coisificação” jurídica para a
4
CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São
Paulo, Companhia das Letras, 1990. p. 31.
5
MALHEIRO, Perdigão. A Escravidão no Brasil: ensaio histórico, jurídico, social. Petrópolis, Vozes/INL,
1976, 2v. p. 35. In.: CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade. São Paulo, Companhia das Letras, 1990,
cap. I, p. 36.
*
observe-se que esta citação feita por Fernando Henrique Cardoso é uma redução da nota anterior (5).
Cardoso, op. Cit., p. 133.
social do escravo. Para tal transferência Cardoso deixara explícito em seu trabalho a
apropriação da citação acima:
“do ponto de vista jurídico é obvio que, no Sul como no resto do País, o
escravo era uma coisa, sujeita ao poder e à propriedade de outrem, e,
como tal ‘havido por morto, privado de todos os direitos’ e sem
representação alguma.* A condição jurídica de coisa, entretanto,
correspondia à própria condição social do escravo”.6
O que se tem que notar – lembrado por Chalhoub – é que a redução na citação de
Cardoso provoca uma generalização, ou melhor, uma permutação da condição do escravo
como coisa do âmbito jurídico para o social, contrapondo ao pensamento de Malheiros, o
qual via o escravo “coisa” na condição jurídica.
Em última análise, no que diz respeito à intenção historiográfica, pode-se dizer que
este breve trabalho tem a finalidade de mostrar o surgimento da teoria da “coisificação” do
escravo como uma reação à produção historiográfica da década de 1930 – representada por
Gilberto Freyre – pela historiografia da década de 1960 – representada aqui por Fernando
Henrique Cardoso –, e finalmente, utilizando a historiografia dos anos 80, aqui
representada por Sidney Chalhoub, no qual se pode observar um debate amplo no que tange
à negação da idéia da “coisificação” do escravo.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São
Paulo, Companhia das Letras, 1990.
GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial. São Paulo: Ática, 1978.
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: O Negro na Sociedade
Escravocrata do Rio Grande do Sul. São Paulo: DIFEL, 1962.
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Embora este trabalho esteja apoiado somente em dois estudiosos, um da historiografia da década de 1960
e, outro da historiografia da década de 1980 (Fernando Henrique Cardoso e Sidney Chalhoub,
respectivamente), existem outros trabalhos enquadrados na chamada historiografia dos anos 1980 que
combatem a teoria da “coisificação” como os de Jacob Gorender, Lana Lage da Gama Lima e Kátia M. de
Queirós Mattoso.
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