PODERES CONTRA PODERES: AS PRÁTICAS
CULTURAIS AFRO-BRASILEIRAS: CACHOEIRA, 1970
Edmar Ferreira Santos
[email protected]
Secretaria de Educação do Estado da Bahia
CACHOEIRA ENTRE 1940 E 1970
A década de 1940 pode ser considerada o início de um período de decadência na história
urbana do Recôncavo Baiano. Acontecimentos anteriores, tais como a criação de uma rede de
estradas de rodagem em superposição às ferrovias, cristalizaram os seus efeitos nesse período,
desfechando golpes na economia já bastante debilitada de importantes cidades da região.
1
Anos antes, a complementação das estradas de ferro da região, ligando-as à Leste
Brasileiro, atingiria a economia de cidades como Cachoeira e Santo Amaro. As mercadorias que
antes, necessariamente, tinham parada e passagem nos portos dessas cidades, agora seguiam de
trem direto para Salvador, retirando a serventia dos portos locais.
A cidade de Cachoeira, antigo empório comercial do Recôncavo, aprofundava a sua crise.
Tal situação era agravada, sem dúvida, pela queda de produção de fumo que se verifica no
período. A cultura do fumo, tão importante em Cachoeira no emprego de mão-de-obra na
plantação e colheita, no transporte e armazenagem e, por fim, na produção de charutos nas
fábricas, sofre um declínio sem precedentes. Apenas 614 toneladas de fumo em folha foram
comercializadas por Cachoeira em 1957. Digo apenas, pois, em 1930, vinte e sete anos antes, a
cidade de Cachoeira comercializou nada menos que 3.160 toneladas de fumo em folha.
2
Em 1958, a comercialização de fumo em folha não ultrapassou 139 toneladas. O número
de empregados nas fábricas de charutos foi reduzido em quase 20% entre os anos de 1950 e
1958, de 705 empregados para 580. Já nos trapiches, onde os trabalhadores se ocupavam em
épocas da safra, a mão-de-obra foi reduzida a um terço dos empregados, de 360 para 120
3
empregados.
No entanto, apesar das dificuldades econômicas em que a cidade vai aos poucos
mergulhando, entre os anos de 1950 e 1960 ela conheceu sua maior taxa de crescimento
1
SANTOS, Milton. A rede urbana do recôncavo. In. Brandão, Maria de Azevedo (org.). Recôncavo da Bahia:
sociedade e economia em transição. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1998, p. 80.
2
Idem, p.81.
3
Ibidem, p. 82.
populacional no século XX. A população local passou de 27.262 habitantes em 1950 para 28.869
habitantes em 1960, obtendo uma taxa de crescimento de 5.89%. Para o geógrafo Milton Santos
essa constatação teria explicação a partir dos movimentos migratórios, que tiveram lugar na cena
deste período, entre as zonas rurais do Recôncavo e municípios como Feira de Santana e
Salvador que alcançaram sensível crescimento populacional. Cidades pequenas como Cachoeira
funcionariam como intermediárias, constituindo-se em uma etapa para o homem rural antes de
prosseguir para centros maiores.
4
Os movimentos migratórios eram responsáveis pelo aumento momentâneo da população
dessas pequenas cidades, pois elas representavam uma esperança de emprego para homens e
mulheres vindos do campo, esperança impossível de ser atendida satisfatoriamente. Na década
de 50 em Cachoeira, os trabalhadores dos armazéns de fumo provinham cada vez mais das zonas
rurais e cada vez menos eram recrutados na própria cidade.
O crescimento populacional se refletiu na configuração do cenário urbano do município de
Cachoeira, que assistia sua periferia sendo povoada por “marginais e biscateiros nas pontas de
rua”. Assim, casebres de taipa iam sendo construídos e não eram poucos. Na década de 1950,
um terço das casas não eram cadastradas por estarem abaixo do mínimo fiscal.
5
O fenômeno migratório descrito pode ser observado através do estudo da queda na taxa de
crescimento da população de Cachoeira entre os anos de 1960 e 1970. A população que havia
crescido na década anterior 5.89%, alcançando o número de 28.869 habitantes sofreu uma
redução de -4.93% na década seguinte. Assim, em 1970 a população do município de Cachoeira
caiu para 27.443 habitantes, enquanto, a capital, por exemplo, cresceu, no mesmo período, uma
6
taxa de 82.38% .
O Recôncavo contribuiu sensivelmente para o aumento extraordinário da população de
Salvador que oferecia esperanças com as promessas de seu parque industrial. A cidade de São
Félix, município vizinho ligado à Cachoeira pelos 365 metros da ponte D. Pedro II sobre o rio
7
Paraguaçu, sofreu uma queda em sua taxa de crescimento populacional da ordem de -10.75% .
As taxas de crescimento populacional das cidades de Salvador, Cachoeira e São Félix entre 1960
e 1970 podem indicar o grau de estagnação econômica no Vale do Paraguaçu, o que
impossibilitava a oferta de trabalho, papel este transferido para Salvador.
4
Ibidem, p. 86.
Ibidem.
6
ESPINHEIRA, Carlos Geraldo D’Andrea (Coordenação). Estudo Sócio Econômico Área Prioritária de Cachoeira
1972 / 1973. Técnicos assistentes: Jéferson Afonso Bacelar e José Guilherme da Cunha Castro. Fundação do
Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia. Setor de Planejamento e Pesquisas Sociais. 2.ª edição. Salvador, 1974.
p.15.
7
Idem.
5
Na década de 1970, como já foi dito, a cidade de Cachoeira já se encontra em franca
decadência, resultante das transformações político-administrativas e econômicas que ocorreram
no recôncavo baiano ao longo da primeira metade do século XX. As emancipações políticas de
muitos distritos·
e, notadamente, as construções das rodovias, retiraram da cidade,
definitivamente, sua posição de pólo econômico regional.
As práticas culturais afro-brasileiras permaneceram em meio à “decadência melancólica”
em que a cidade se vê mergulhada. Um estudo realizado entre os anos de 1972 e 1973 pela
Fundação do Patrimônio Histórico e Cultural da Bahia contabilizou dezenove terreiros de
8
candomblé e onze sessões de giro em plena atividade na cidade .
O CÓDIGO PENAL DE 1940 E AS PRÁTICAS CULTURAIS NO BRASIL
O Código Penal instituído no Brasil a partir do Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de
1940, habilmente enquadrou as expressões culturais afro-brasileiras, com destaque para o
candomblé. Desde 1891, com a promulgação da primeira Constituição republicana, foi instituída
no Brasil a liberdade religiosa, porém, não é isso que verificamos quando observamos a
experiência das religiões afro-brasileiras ao longo de pelo menos três quartos do século XX.
O capítulo terceiro do Código Penal de 1940 postula dois artigos que podem enquadrar,
sutilmente ou não, as religiões afro-brasileiras. O título do capítulo terceiro é “Dos crimes contra
a saúde pública” e, no seu artigo 283, penaliza com detenção de três meses a um ano e multa,
aquele que “inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível”, o que era considerado
charlatanismo.
Já o artigo 284, penaliza com detenção de seis meses a dois anos, aquele que “exercer o
curandeirismo – prescrevendo, ministrando ou aplicando habitualmente, qualquer substância;
usando gestos, palavras ou qualquer outro meio; fazendo diagnósticos”. O mesmo artigo traz
ainda em seu parágrafo único que “se o crime é praticado mediante remuneração, o agente fica
também sujeito à multa”.
O inciso terceiro do artigo 284 que enquadra aquele que “faz diagnósticos”, nos leva a
conclusão que o mesmo agente do “curandeirismo” também pode ser enquadrado no artigo 282,
que penaliza com detenção de seis meses a dois anos aquele que exerce ilegalmente a medicina,
“ainda que a título gratuito” mas, “se é praticado com o fim de lucro, aplica-se também a multa”.
A cura é elemento fundamental para as religiões afro-brasileiras. É prerrogativa sacerdotal
nos cultos afro-brasileiros socorrer as pessoas que o procuram, adeptos ou não, de algum
problema, muitas vezes de saúde, através de um “trabalho” caracterizado por uma intervenção
8
ESPINHEIRA, Carlos Geraldo D’Andrea (Coordenação). Op. Cit., pp.38-39.
“mágico-terapêutica”.
O antropólogo Júlio Braga assim caracteriza as atribuições das Iyalorixás e Babalorixás no
tratamento de seus “clientes”:
Na verdade, a ação do pai-de-santo (ou mãe-de-santo), quando realiza uma tarefa
qualquer, no âmbito de suas prerrogativas sacerdotais, é marcada basicamente pelo
sentimento de estar socorrendo alguém de algum tipo de problema. Pela sua cabeça,
certamente, não passaria a idéia de que estivesse a praticar ato perverso ou maléfico contra
alguém. A dicotomia entre o bem e o mal não está afastada e disso parece ter plena
consciência. Mas o que interessa, no momento da intervenção mágico-terapêutica, é a
convicção de estar realizando um ‘trabalho’, um serviço religioso para o bem do cliente.
Além do mais, não parece existir nenhum sentimento de culpa quando da realização dessas
cerimônias, geralmente precedida de uma consulta às divindades a quem cabe, em última
9
instância, responder por tal expediente. (grifo meu)
O exercício ilegal da medicina, o curandeirismo e o charlatanismo, portanto, eram
expedientes jurídicos à disposição daqueles que quisessem utilizá-los contra os praticantes das
religiões afro-brasileiras. Reforçando tal situação, em 3 de outubro de 1941, através do decretolei 3.688, foi instituída a “Lei das Contravenções Penais” que, traz alguns dispositivos jurídicos
que deixam as práticas culturais afro-brasileiras sob os olhos e ouvidos do Estado e dos seus
detratores.
No capítulo segundo da Lei das Contravenções Penais, temos as “Contravenções referentes
ao Patrimônio” que, em seu artigo 27, pune com prisão simples de um a seis meses e multa,
aquele que “explorar a credulidade pública mediante sortilégio, predição do futuro, explicação de
sonho, ou práticas congêneres”. Esse artigo pode ser entendido como o lócus privilegiado para
aqueles detratores dos jogos de búzios e obís.
Também o capítulo quarto, “Das contravenções referentes à paz pública”, no seu artigo 42,
enquadra aquele que “perturbar alguém, o trabalho ou o sossego alheio: com gritaria ou
algazarra; exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais;
abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos”. A pena para esse delito: “prisão simples,
de quinze dias a três meses, ou multa”. Este artigo interessa porque o culto aos Orixás em
Cachoeira, em sua maioria ligados à tradição jêje-nagô, utilizam-se de instrumentos sonoros em
quase todos os seus atos, são os atabaques – rum, rumpí, rumlé e o gan.
Por fim, no capítulo sétimo, as “Contravenções relativas à polícia de costumes”, elencamos
dois artigos que se dispõem à perseguição das práticas culturais afro-brasileiras. O primeiro o
artigo 65 que, na mesma linha do artigo 42, pune com prisão simples de quinze dias a dois meses
ou multa, aquele que “molestar alguém ou perturbar-lhe a tranqüilidade, por acinte ou por
9
BRAGA, Júlio. Na gamela do feitiço: repressão e resistência nos candomblés da Bahia. Salvador: EDUFBA,
1995. p. 134.
motivo reprovável”. E o segundo artigo é o 59, do qual eram potenciais vitimas os sacerdotes e
sacerdotisas das religiões afro-brasileiras. Trata-se do crime de “vadiagem”, que punia com
prisão simples de quinze dias a três meses aquele que “entregar-se habitualmente à ociosidade,
sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou
prover a própria subsistência mediante ocupação ilícita”.
É possível alguém considerar exagero pensar que o Candomblé estava de tal maneira
exposto aos dispositivos jurídicos acima descritos. Contudo, em 21 de setembro de 1970, o paide-santo José das Três Linhas, foi denunciado ao Juízo de Direito da Comarca de Cachoeira, por
transgredir todos os artigos anteriormente expostos. Nosso próximo passo é a análise desse
processo judicial.
TRÊS LINHAS E A JUSTIÇA
Não foram poucas as vítimas da repressão jurídico-policial aos candomblés. Muitas
pessoas foram presas arbitrariamente, tiveram suas casas ou terreiros invadidos, seus deuses
profanados, seus instrumentos religiosos ridicularizados em lugares públicos. Outras
responderam inquéritos policiais, foram qualificadas como contraventoras, praticantes de
feitiçaria, falsa medicina, etc.. Contudo, são poucos os processos crimes contra os praticantes dos
candomblés encontrados nos arquivos baianos, o que transforma esses documentos em
10
“achados” de significativa importância .
Iremos analisar um processo judicial contra um pai-de-santo conhecido pelo cognome de
“José das Três Linhas”. Como veremos, neste caso a justiça operou a partir de uma denúncia que
solicitou o enquadramento do indiciado nos artigos 27, 42, 59 e 65 da Lei das Contravenções
Penais e, também, nos artigos 283 e 284 do Código Penal. Assim, analisaremos o desenrolar do
processo judicial perseguindo os pressupostos da formulação da culpa.
No dia 21 de setembro de 1970, o senhor Fortunato da Costa Dória, fez a denúncia ao Juiz
de Direito da Comarca de Cachoeira nos seguintes termos:
Fortunato da Costa Dória, brasileiro, casado, advogado, residente nesta cidade da
Cachoeira à rua Conselheiro Virgílio Damásio n.º 12, vem perante V. Excia. Expor o
seguinte:
1. Há cerca de cinco meses, apareceu nesta cidade, vindo residir na rua Cons. Virgílio
Damásio n.º 14, o indivíduo sem identificação, que se anuncia como “José das três linhas,
cartomante, consulta de quiromancia, das 9 às 20 horas, Campo Verde, Caboclo”, conforme
está escrito à entrada da casa em que está morando.
10
Ver BRAGA, Júlio. Op. Cit.; também LUHNING, Ângela. “Acabe com este Santo, Pedrito vem aí: mito e
realidade da perseguição ao candomblé baiano entre 1920 e 1942”. In. Revista USP dossiê povo negro – 300 anos, n.
º28, dez/fev., 1995/96.
2. Este indivíduo, no dia 27 de junho do ano em curso, que foi um sábado, encheu a casa
onde mora de uma leva de zabaneiras e desde as vinte e uma hora até as seis do dia
seguinte, que foi domingo, atroou a cidade com o ribombo ensurdecedor dos atabaques e os
gritos selvagens do mulherio que, rebolando as ancas na mais desenvolta sensualidade
característica das funções dos candomblés, não permitiu a ninguém, por toda a extensão
desta rua e das circunjacentes, não permitiu a ninguém nem trabalhar nem conciliar o sono.
3. Depois disto, no dia 22 do próximo passado mês de agosto, nova função na casa de
“José das três linhas”, que teve início às vinte horas daquele sábado e se prolongou, sem
intervalo, até domingo 23, às dezesseis horas e desta vez mais desenvoltos se mostraram êle
e o rebotalho feminino participante da folgança infernal a que se juntaram rufiões de
sarjeta, porquê o delegado de polícia mandou dois soldados, armados de revolver, que
ostensivamente se postaram no passeio da casa do quiromante-cartomante-macumbeiro,
para lhe garantir a folgança maléfica com que este burlão ousado, que se julga acima da
lei, afronta os brios de uma sociedade civilizada, onde jamais ninguém, nenhum pai ou mãe
de santo se atreveu a bater candomblé dentro do perímetro urbano desta cidade, uma das
mais ilustres de que nos fala a História pátria, como agora esta fazendo êste intruso que a
todos desafia e isto a cinqüenta passos da residência de V. Excia. E a outros tantos do Hotel
Bichara, morada do Dr. Promotor de Justiça desta Comarca da Cachoeira. Porquê êste
“três linhas” é atrevido, nenhuma consideração dispensa aos que ganham a vida
trabalhando honestamente, nem respeita os velhos, os enfermos e as crianças que precisam
de sossêgo durante o dia e repousar à noite.
4. É que “José das três linhas” é um desocupado, é um ocioso, é um explorador errante
da crendice do populacho que o tem como um curandeiro que lhe sara os males físicos,
como um mensageiro do deus das trevas com quem mantém colóquios que o fazem adivinhar
e predizer eventos, afastando, por seu poder oculto, males a uns e fazendo que a outros
sobre venham êstes males, conforme o desejo do consulente que o procura e lhe paga a
consulta.
5. Assim, havendo o dito “José das três linhas”, que se prepara, como se diz, para novo
insulto às famílias cachoeiranas, no dia 27 do corrente, chamado dia de São Cosme,
praticado as contravenções definidas nos artigos 27, 42, 59 e 65 da Lei das Contravenções
Penais, em cujas penas se acha incurso (além de praticar o charlatanismo e o
curandeirismo, de que tratam os artigos 283 e 284 do Código Penal), pede o infra assinado
se digne V. Excia. de instaurar contra êle o respectivo processo, para que seja condenado,
de tudo ciente, para os fins de direito, o dr. Promotor de Justiça, inquirindo-se as
testemunhas José Carlos Almeida, funcionário dos Correios e Telégrafos, residente à
Travessa Camarão, Carlos Cajazeira de Oliveira, estudante e Antônio Barreiros, oficial de
justiça, residentes à rua Cons. Virgílio Damásio n.º 22 e 7 respectivamente.
No dia seguinte (22 de setembro de 1970), o Juiz da Comarca, Sr. Joaquim José de
Carvalho Filho, mandou publicar portaria determinando que, contra “José das Três Linhas”, se
instaurasse o competente processo e, nomeou seu defensor dativo o “Solicitador-acadêmico”
Raimundo R. Santos. Também mandava publicar a “citação” do dito acusado a fim de “qualificalo” no dia 7 de outubro de 1970 e assistir a inquirição das testemunhas indicadas pelo
denunciante.
No intervalo de alguns “vistos” presentes no processo encontra-se o “mandado de citação”,
cumprido quase sete meses depois da ordem judicial no dia 13 de abril de 1971. O documento
mandava “citar” José das Três Linhas onde fosse encontrado para ser qualificado no dia 27
daquele mesmo mês, sob pena do processo correr à sua revelia.
No dia seguinte, 14 de abril de 1971, foi publicado um “edital de citação de réu ausente”,
certificando, segundo diligência do Oficial de Justiça, que José das Três Linhas não mais residia
em Cachoeira, “achando-se em lugar ignorado e não sabido”. Para que chegasse ao seu
conhecimento o edital de citação foi publicado pelo prazo de quinze dias tanto na imprensa local
quanto no Diário da Justiça.
Nos autos do processo consta o recorte do jornal “A Cachoeira” do dia 25 de abril de 1971,
contendo o “Edital de citação do réu ausente” na íntegra, com a denuncia feita pelo advogado
Fortunato da Costa Dória e a “Portaria” que dava início ao processo. Como José das Três Linhas
não apareceu, no dia 5 de agosto de 1971 o Juiz da Comarca manda intimar as testemunhas
arroladas para prestarem depoimento.
Em 2 de setembro de 1971, diante do Juiz, do Promotor, da Escrivã e do Defensor ad-hoc,
prestou depoimento o jovem de vinte e quatro anos, industriário, Carlos Cajazeira de Oliveira
que inquirido sobre a denuncia feita contra José das Três Linhas disse:
Que sabe efetivamente é que José das Três Linhas bateu candomblé de sábado para
domingo a noite toda; que o candomblé foi batido na rua da Ponte Nova [Virgílio
Damásio], a uns quatro passos da residência da testemunha; que se deitou cedo e
adormeceu, ouvindo de vez em quando, ruídos a que atribuiu ser de instrumentos de
Candomblé; que no dia seguinte foi que a testemunha foi certificada de que realmente se
tratava de candomblé; que não sabe dizer se o indiciado explorava a credulidade pública,
fazia cartomancia, quiromancia ou outro tipo de curandeirismo na casa onde fez noitada de
candomblé porque a testemunha estava residindo na Guanabara; que não sabe se José das
Três Linhas abusando da credulidade publica, através de sortilégios, crendices ou até
ministrando drogas ou passando receitas recebia dinheiro dos que pretendiam procurar;
que não sabe dizer se José das Três Linhas é um ocioso que vivia a explorar a crendice dos
incautos; que nada mais sabe esclarecer a este Juízo sobre os fatos referidos na queixa de
folhas dos autos; que não conhece o indiciado, tendo visto o mesmo apenas uma vez, nada
sabendo dizer sobre os antecedentes e a conduta do indiciado.
Os termos preconceituosos se referindo ao candomblé e ao sacerdote do culto afrobrasileiro presentes na denuncia foram assimilados pela justiça e se repetiu no depoimento de
Carlos Cajazeira de Oliveira que, pela seqüência apresentada em seu relato, parece responder
questão por questão denunciada na petição feita pelo advogado Fortunato da Costa Dória. Tal
situação também se repetiu no depoimento da segunda testemunha ouvida, o serventuário da
justiça Antonio Barreiros de Queiroz, que perguntado no dia 27 de outubro acerca do denunciado
disse:
que de fato o dito indiciado morava na mesma rua onde reside a testemunha, tendo, na
época, feito duas festas, uma das quais durou três dias; que efetivamente na casa do
indiciado se batia tambor ou atabaque durante a noite toda, nos dias de festa a que se
referiu na pergunta anterior; que o queixoso Doutor Fortunato Dória, chegou a procurar o
depoente, reclamando contra a algazarra praticada pelo indiciado em dia de festa, mas que
a testemunha disse ao Doutor Fortunato que ouvia durante a noite o toque do tambor, mas
que fechava sua residência e a ela se recolhia com sua família; que na casa do indiciado
costumava haver um aglomerado de pessoas á procura do mesmo, mas não havia barulho,
salvo nos dias de festa a que já se referiu a testemunha; que não sabe se o indiciado
efetivamente explorava a credulidade publica, através da cartomância, e da quiromância ou
mesmo do candomblé, fato que apenas a testemunha ouviu falar; que as festas noturnas
realizadas na casa do indiciado que se prolongavam por toda a noite, perturbavam o
sossego das famílias residentes na rua onde o indiciado fazia as ditas festas, sossêgo este
que era perturbado pelo uso de instrumentos sonoros, ou sejam: tambores, atabaques etc.;
que conheceu o indiciado quando o mesmo mudou para a casa onde realizava as referidas
festas noturnas, não sabendo dizer se o mesmo tinha profissão definida ou se era vadio; que
o indiciado não fazia as suas festas noturnas, propositadamente e por assinte as famílias da
rua, mas para comemorar os Santos de sua seita fictícia; que não sabe a conduta e os
antecedentes do indiciado; que na casa do indiciado entravam pessoas das mais variadas
classes da sociedade Cachoeirana.
O depoimento do Sr. Antônio Barreiros de Queiroz encerra a inquirição das testemunhas.
O Dr. Fortunato da Costa Dória também foi intimado mas não compareceu. Talvez já satisfeito
com o sumiço de José das Três Linhas. Do depoimento do Sr. Antônio Barreiros pode-se
ressaltar, ao final, apesar do preconceito já assinalado, uma tentativa de retirar a “intenção do
crime” do pai-de-santo e o trânsito de indivíduos de diferentes classes sociais na casa de Três
Linhas.
A instrução criminal foi encerrada em 4 de novembro de 1971, com o pedido do Promotor
de Justiça para condenação do acusado no inciso III da artigo 42 da lei das Contravenções
Penais, ou seja, perturbar o sossego alheio abusando de instrumento sonoro. O defensor ad-hoc
de José das Três Linhas, o Dr. José Góis Silva, pediu a absolvição do seu patrocinado, sob o
argumento de que nenhuma das contravenções citadas pelo queixoso ficou comprovada nos
autos e, solicitou ao Juiz, caso não concordasse com seu argumento, que aplicasse à José das
Três Linha a pena mínima ou a multa em “importância módica”. Contudo, o Juiz Joaquim José
de Carvalho Filho, declarou que não se achava em condições de julgar a causa naquele momento
e ordenou que os autos fossem conclusos.
No dia 10 de novembro de 1971, o Juiz da Comarca da cidade de Cachoeira expôs seu
veredicto:
Das contravenções capituladas na queixa-crime contra o indiciado, ficou, data vênia,
positivada, a meu ver, aquela contemplada no artigo 42, inciso III, da Lei específica.
Com efeito, restou evidenciada, induvidosamente, a autoria do fato contravencional
imputado ao indiciado, através dos uniformes e firmes depoimentos das testemunhas deste
processo, que afirmaram, unanimemente, a prática, pelo acusado, do fato contravencional,
através de festas de candomblé, que se prolongavam por toda a noite, perturbando o
sossego das famílias a rua Virgilio Damásio e adjacências, com o uso contínuo, desenfreado
e altamente ressonante e perturbador de tambores e atabaques, empregados naquelas
intranqüilizadoras folganças de macumba...
Não existe a menor dúvida de que o indiciado, ao se dizer cartomante, quiromante ou
curandeiro, colocando cartazes em sua porta para atrair a crendice popular, realizando
fanfarras noturnas, nas quais aliciava mulheres (ou até virgens!) e “rufiões de sarjeta” para
as suas folganças infernais, perturbando, com o ruído ensurdecedor de tambores e
atabaques, o sossego e a tranqüilidade das famílias honestas e moralizadas da rua Virgilio
Damásio e circunjacências, agia voluntariamente, fosse para fins comerciais, fosse para fins
libertinos e sensuais...
Importa ressaltar, contudo, que o indiciado se acha foragido, não tendo sido qualificado
e nem interrogado, e, por via de conseqüência, nada consta nos autos sobre a sua conduta,
os seus antecedentes criminais, se o mesmo tem ocupação certa, ou se é um ocioso e sobre
quaisquer outros elementos de informação de sua personalidade...
ANTE O EXPOSTO e por tudo o mais que dos autos consta, condeno JOSÉ DAS TRÊS
LINHAS a dois meses de prisão simples, assim como as custas do processo e a taxa
penitenciária de cinqüenta centavos (Cr$0.50).
Mais intranqüilizadoras são as palavras do Juiz da Comarca de Cachoeira. Evidências de
preconceito e discriminação da “justiça” em relação às religiões afro-brasileiras e seus adeptos.
Frases como: “intranqüilizadoras folganças de macumba; fanfarras noturnas nas quais aliciava
mulheres (ou até virgens!) e ‘rufiões de sarjeta’; folganças infernais para fins comerciais ou
libertinos e sensuais”, foram escritas com a tinta da lei. Dessa maneira, José das Três Linhas foi
condenado não apenas por causa dos sons dos atabaques de sua casa, mas, sobretudo, pelo
preconceito, pelo desrespeito às diferenças e, como declarou o próprio Juiz “por tudo mais que
dos autos consta”.
Assim, José das Três Linhas teve seu cognome lançado no rol dos culpados e contra ele foi
expedido mandado de prisão. Como ele não esperou para ser preso e fugiu desde o momento em
que foi denunciado, nem apareceu para ser qualificado, não proporcionou à justiça sequer saber
seu verdadeiro nome. José das Três Linhas não respeitou o arbítrio preconceituoso da justiça e
repudiou a lei que tentou prendê-lo, como fizeram com outros fiéis de um sistema de crença
diferente, alicerçado em valores civilizatórios afro-brasileiros.
REFERENCIAS
BRAGA, Júlio. Na gamela do feitiço: repressão e resistência nos candomblés da Bahia.
Salvador: EDUFBA, 1995.
ESPINHEIRA, Carlos Geraldo D’Andrea (Coordenação). Estudo Sócio Econômico Área
Prioritária de Cachoeira 1972/1973. Técnicos assistentes: Jéferson Afonso Bacelar e José
Guilherme da Cunha Castro. Fundação do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia. Setor de
Planejamento e Pesquisas Sociais. 2.ª edição. Salvador, 1974.
LUHNING, Ângela. “Acabe com este Santo, Pedrito vem aí: mito e realidade da perseguição ao
candomblé baiano entre 1920 e 1942”. In. Revista USP dossiê povo negro – 300 anos, n.º 28,
dez/fev., 1995/96.
SANTOS, Milton. A rede urbana do recôncavo. In. Brandão, Maria de Azevedo (org.).
Recôncavo da Bahia: sociedade e economia em transição. Salvador: Fundação Casa de Jorge
Amado, 1998.
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Edmar Ferreira Santos