PODERES CONTRA PODERES: AS PRÁTICAS CULTURAIS AFRO-BRASILEIRAS: CACHOEIRA, 1970 Edmar Ferreira Santos [email protected] Secretaria de Educação do Estado da Bahia CACHOEIRA ENTRE 1940 E 1970 A década de 1940 pode ser considerada o início de um período de decadência na história urbana do Recôncavo Baiano. Acontecimentos anteriores, tais como a criação de uma rede de estradas de rodagem em superposição às ferrovias, cristalizaram os seus efeitos nesse período, desfechando golpes na economia já bastante debilitada de importantes cidades da região. 1 Anos antes, a complementação das estradas de ferro da região, ligando-as à Leste Brasileiro, atingiria a economia de cidades como Cachoeira e Santo Amaro. As mercadorias que antes, necessariamente, tinham parada e passagem nos portos dessas cidades, agora seguiam de trem direto para Salvador, retirando a serventia dos portos locais. A cidade de Cachoeira, antigo empório comercial do Recôncavo, aprofundava a sua crise. Tal situação era agravada, sem dúvida, pela queda de produção de fumo que se verifica no período. A cultura do fumo, tão importante em Cachoeira no emprego de mão-de-obra na plantação e colheita, no transporte e armazenagem e, por fim, na produção de charutos nas fábricas, sofre um declínio sem precedentes. Apenas 614 toneladas de fumo em folha foram comercializadas por Cachoeira em 1957. Digo apenas, pois, em 1930, vinte e sete anos antes, a cidade de Cachoeira comercializou nada menos que 3.160 toneladas de fumo em folha. 2 Em 1958, a comercialização de fumo em folha não ultrapassou 139 toneladas. O número de empregados nas fábricas de charutos foi reduzido em quase 20% entre os anos de 1950 e 1958, de 705 empregados para 580. Já nos trapiches, onde os trabalhadores se ocupavam em épocas da safra, a mão-de-obra foi reduzida a um terço dos empregados, de 360 para 120 3 empregados. No entanto, apesar das dificuldades econômicas em que a cidade vai aos poucos mergulhando, entre os anos de 1950 e 1960 ela conheceu sua maior taxa de crescimento 1 SANTOS, Milton. A rede urbana do recôncavo. In. Brandão, Maria de Azevedo (org.). Recôncavo da Bahia: sociedade e economia em transição. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1998, p. 80. 2 Idem, p.81. 3 Ibidem, p. 82. populacional no século XX. A população local passou de 27.262 habitantes em 1950 para 28.869 habitantes em 1960, obtendo uma taxa de crescimento de 5.89%. Para o geógrafo Milton Santos essa constatação teria explicação a partir dos movimentos migratórios, que tiveram lugar na cena deste período, entre as zonas rurais do Recôncavo e municípios como Feira de Santana e Salvador que alcançaram sensível crescimento populacional. Cidades pequenas como Cachoeira funcionariam como intermediárias, constituindo-se em uma etapa para o homem rural antes de prosseguir para centros maiores. 4 Os movimentos migratórios eram responsáveis pelo aumento momentâneo da população dessas pequenas cidades, pois elas representavam uma esperança de emprego para homens e mulheres vindos do campo, esperança impossível de ser atendida satisfatoriamente. Na década de 50 em Cachoeira, os trabalhadores dos armazéns de fumo provinham cada vez mais das zonas rurais e cada vez menos eram recrutados na própria cidade. O crescimento populacional se refletiu na configuração do cenário urbano do município de Cachoeira, que assistia sua periferia sendo povoada por “marginais e biscateiros nas pontas de rua”. Assim, casebres de taipa iam sendo construídos e não eram poucos. Na década de 1950, um terço das casas não eram cadastradas por estarem abaixo do mínimo fiscal. 5 O fenômeno migratório descrito pode ser observado através do estudo da queda na taxa de crescimento da população de Cachoeira entre os anos de 1960 e 1970. A população que havia crescido na década anterior 5.89%, alcançando o número de 28.869 habitantes sofreu uma redução de -4.93% na década seguinte. Assim, em 1970 a população do município de Cachoeira caiu para 27.443 habitantes, enquanto, a capital, por exemplo, cresceu, no mesmo período, uma 6 taxa de 82.38% . O Recôncavo contribuiu sensivelmente para o aumento extraordinário da população de Salvador que oferecia esperanças com as promessas de seu parque industrial. A cidade de São Félix, município vizinho ligado à Cachoeira pelos 365 metros da ponte D. Pedro II sobre o rio 7 Paraguaçu, sofreu uma queda em sua taxa de crescimento populacional da ordem de -10.75% . As taxas de crescimento populacional das cidades de Salvador, Cachoeira e São Félix entre 1960 e 1970 podem indicar o grau de estagnação econômica no Vale do Paraguaçu, o que impossibilitava a oferta de trabalho, papel este transferido para Salvador. 4 Ibidem, p. 86. Ibidem. 6 ESPINHEIRA, Carlos Geraldo D’Andrea (Coordenação). Estudo Sócio Econômico Área Prioritária de Cachoeira 1972 / 1973. Técnicos assistentes: Jéferson Afonso Bacelar e José Guilherme da Cunha Castro. Fundação do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia. Setor de Planejamento e Pesquisas Sociais. 2.ª edição. Salvador, 1974. p.15. 7 Idem. 5 Na década de 1970, como já foi dito, a cidade de Cachoeira já se encontra em franca decadência, resultante das transformações político-administrativas e econômicas que ocorreram no recôncavo baiano ao longo da primeira metade do século XX. As emancipações políticas de muitos distritos· e, notadamente, as construções das rodovias, retiraram da cidade, definitivamente, sua posição de pólo econômico regional. As práticas culturais afro-brasileiras permaneceram em meio à “decadência melancólica” em que a cidade se vê mergulhada. Um estudo realizado entre os anos de 1972 e 1973 pela Fundação do Patrimônio Histórico e Cultural da Bahia contabilizou dezenove terreiros de 8 candomblé e onze sessões de giro em plena atividade na cidade . O CÓDIGO PENAL DE 1940 E AS PRÁTICAS CULTURAIS NO BRASIL O Código Penal instituído no Brasil a partir do Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940, habilmente enquadrou as expressões culturais afro-brasileiras, com destaque para o candomblé. Desde 1891, com a promulgação da primeira Constituição republicana, foi instituída no Brasil a liberdade religiosa, porém, não é isso que verificamos quando observamos a experiência das religiões afro-brasileiras ao longo de pelo menos três quartos do século XX. O capítulo terceiro do Código Penal de 1940 postula dois artigos que podem enquadrar, sutilmente ou não, as religiões afro-brasileiras. O título do capítulo terceiro é “Dos crimes contra a saúde pública” e, no seu artigo 283, penaliza com detenção de três meses a um ano e multa, aquele que “inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível”, o que era considerado charlatanismo. Já o artigo 284, penaliza com detenção de seis meses a dois anos, aquele que “exercer o curandeirismo – prescrevendo, ministrando ou aplicando habitualmente, qualquer substância; usando gestos, palavras ou qualquer outro meio; fazendo diagnósticos”. O mesmo artigo traz ainda em seu parágrafo único que “se o crime é praticado mediante remuneração, o agente fica também sujeito à multa”. O inciso terceiro do artigo 284 que enquadra aquele que “faz diagnósticos”, nos leva a conclusão que o mesmo agente do “curandeirismo” também pode ser enquadrado no artigo 282, que penaliza com detenção de seis meses a dois anos aquele que exerce ilegalmente a medicina, “ainda que a título gratuito” mas, “se é praticado com o fim de lucro, aplica-se também a multa”. A cura é elemento fundamental para as religiões afro-brasileiras. É prerrogativa sacerdotal nos cultos afro-brasileiros socorrer as pessoas que o procuram, adeptos ou não, de algum problema, muitas vezes de saúde, através de um “trabalho” caracterizado por uma intervenção 8 ESPINHEIRA, Carlos Geraldo D’Andrea (Coordenação). Op. Cit., pp.38-39. “mágico-terapêutica”. O antropólogo Júlio Braga assim caracteriza as atribuições das Iyalorixás e Babalorixás no tratamento de seus “clientes”: Na verdade, a ação do pai-de-santo (ou mãe-de-santo), quando realiza uma tarefa qualquer, no âmbito de suas prerrogativas sacerdotais, é marcada basicamente pelo sentimento de estar socorrendo alguém de algum tipo de problema. Pela sua cabeça, certamente, não passaria a idéia de que estivesse a praticar ato perverso ou maléfico contra alguém. A dicotomia entre o bem e o mal não está afastada e disso parece ter plena consciência. Mas o que interessa, no momento da intervenção mágico-terapêutica, é a convicção de estar realizando um ‘trabalho’, um serviço religioso para o bem do cliente. Além do mais, não parece existir nenhum sentimento de culpa quando da realização dessas cerimônias, geralmente precedida de uma consulta às divindades a quem cabe, em última 9 instância, responder por tal expediente. (grifo meu) O exercício ilegal da medicina, o curandeirismo e o charlatanismo, portanto, eram expedientes jurídicos à disposição daqueles que quisessem utilizá-los contra os praticantes das religiões afro-brasileiras. Reforçando tal situação, em 3 de outubro de 1941, através do decretolei 3.688, foi instituída a “Lei das Contravenções Penais” que, traz alguns dispositivos jurídicos que deixam as práticas culturais afro-brasileiras sob os olhos e ouvidos do Estado e dos seus detratores. No capítulo segundo da Lei das Contravenções Penais, temos as “Contravenções referentes ao Patrimônio” que, em seu artigo 27, pune com prisão simples de um a seis meses e multa, aquele que “explorar a credulidade pública mediante sortilégio, predição do futuro, explicação de sonho, ou práticas congêneres”. Esse artigo pode ser entendido como o lócus privilegiado para aqueles detratores dos jogos de búzios e obís. Também o capítulo quarto, “Das contravenções referentes à paz pública”, no seu artigo 42, enquadra aquele que “perturbar alguém, o trabalho ou o sossego alheio: com gritaria ou algazarra; exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais; abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos”. A pena para esse delito: “prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa”. Este artigo interessa porque o culto aos Orixás em Cachoeira, em sua maioria ligados à tradição jêje-nagô, utilizam-se de instrumentos sonoros em quase todos os seus atos, são os atabaques – rum, rumpí, rumlé e o gan. Por fim, no capítulo sétimo, as “Contravenções relativas à polícia de costumes”, elencamos dois artigos que se dispõem à perseguição das práticas culturais afro-brasileiras. O primeiro o artigo 65 que, na mesma linha do artigo 42, pune com prisão simples de quinze dias a dois meses ou multa, aquele que “molestar alguém ou perturbar-lhe a tranqüilidade, por acinte ou por 9 BRAGA, Júlio. Na gamela do feitiço: repressão e resistência nos candomblés da Bahia. Salvador: EDUFBA, 1995. p. 134. motivo reprovável”. E o segundo artigo é o 59, do qual eram potenciais vitimas os sacerdotes e sacerdotisas das religiões afro-brasileiras. Trata-se do crime de “vadiagem”, que punia com prisão simples de quinze dias a três meses aquele que “entregar-se habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover a própria subsistência mediante ocupação ilícita”. É possível alguém considerar exagero pensar que o Candomblé estava de tal maneira exposto aos dispositivos jurídicos acima descritos. Contudo, em 21 de setembro de 1970, o paide-santo José das Três Linhas, foi denunciado ao Juízo de Direito da Comarca de Cachoeira, por transgredir todos os artigos anteriormente expostos. Nosso próximo passo é a análise desse processo judicial. TRÊS LINHAS E A JUSTIÇA Não foram poucas as vítimas da repressão jurídico-policial aos candomblés. Muitas pessoas foram presas arbitrariamente, tiveram suas casas ou terreiros invadidos, seus deuses profanados, seus instrumentos religiosos ridicularizados em lugares públicos. Outras responderam inquéritos policiais, foram qualificadas como contraventoras, praticantes de feitiçaria, falsa medicina, etc.. Contudo, são poucos os processos crimes contra os praticantes dos candomblés encontrados nos arquivos baianos, o que transforma esses documentos em 10 “achados” de significativa importância . Iremos analisar um processo judicial contra um pai-de-santo conhecido pelo cognome de “José das Três Linhas”. Como veremos, neste caso a justiça operou a partir de uma denúncia que solicitou o enquadramento do indiciado nos artigos 27, 42, 59 e 65 da Lei das Contravenções Penais e, também, nos artigos 283 e 284 do Código Penal. Assim, analisaremos o desenrolar do processo judicial perseguindo os pressupostos da formulação da culpa. No dia 21 de setembro de 1970, o senhor Fortunato da Costa Dória, fez a denúncia ao Juiz de Direito da Comarca de Cachoeira nos seguintes termos: Fortunato da Costa Dória, brasileiro, casado, advogado, residente nesta cidade da Cachoeira à rua Conselheiro Virgílio Damásio n.º 12, vem perante V. Excia. Expor o seguinte: 1. Há cerca de cinco meses, apareceu nesta cidade, vindo residir na rua Cons. Virgílio Damásio n.º 14, o indivíduo sem identificação, que se anuncia como “José das três linhas, cartomante, consulta de quiromancia, das 9 às 20 horas, Campo Verde, Caboclo”, conforme está escrito à entrada da casa em que está morando. 10 Ver BRAGA, Júlio. Op. Cit.; também LUHNING, Ângela. “Acabe com este Santo, Pedrito vem aí: mito e realidade da perseguição ao candomblé baiano entre 1920 e 1942”. In. Revista USP dossiê povo negro – 300 anos, n. º28, dez/fev., 1995/96. 2. Este indivíduo, no dia 27 de junho do ano em curso, que foi um sábado, encheu a casa onde mora de uma leva de zabaneiras e desde as vinte e uma hora até as seis do dia seguinte, que foi domingo, atroou a cidade com o ribombo ensurdecedor dos atabaques e os gritos selvagens do mulherio que, rebolando as ancas na mais desenvolta sensualidade característica das funções dos candomblés, não permitiu a ninguém, por toda a extensão desta rua e das circunjacentes, não permitiu a ninguém nem trabalhar nem conciliar o sono. 3. Depois disto, no dia 22 do próximo passado mês de agosto, nova função na casa de “José das três linhas”, que teve início às vinte horas daquele sábado e se prolongou, sem intervalo, até domingo 23, às dezesseis horas e desta vez mais desenvoltos se mostraram êle e o rebotalho feminino participante da folgança infernal a que se juntaram rufiões de sarjeta, porquê o delegado de polícia mandou dois soldados, armados de revolver, que ostensivamente se postaram no passeio da casa do quiromante-cartomante-macumbeiro, para lhe garantir a folgança maléfica com que este burlão ousado, que se julga acima da lei, afronta os brios de uma sociedade civilizada, onde jamais ninguém, nenhum pai ou mãe de santo se atreveu a bater candomblé dentro do perímetro urbano desta cidade, uma das mais ilustres de que nos fala a História pátria, como agora esta fazendo êste intruso que a todos desafia e isto a cinqüenta passos da residência de V. Excia. E a outros tantos do Hotel Bichara, morada do Dr. Promotor de Justiça desta Comarca da Cachoeira. Porquê êste “três linhas” é atrevido, nenhuma consideração dispensa aos que ganham a vida trabalhando honestamente, nem respeita os velhos, os enfermos e as crianças que precisam de sossêgo durante o dia e repousar à noite. 4. É que “José das três linhas” é um desocupado, é um ocioso, é um explorador errante da crendice do populacho que o tem como um curandeiro que lhe sara os males físicos, como um mensageiro do deus das trevas com quem mantém colóquios que o fazem adivinhar e predizer eventos, afastando, por seu poder oculto, males a uns e fazendo que a outros sobre venham êstes males, conforme o desejo do consulente que o procura e lhe paga a consulta. 5. Assim, havendo o dito “José das três linhas”, que se prepara, como se diz, para novo insulto às famílias cachoeiranas, no dia 27 do corrente, chamado dia de São Cosme, praticado as contravenções definidas nos artigos 27, 42, 59 e 65 da Lei das Contravenções Penais, em cujas penas se acha incurso (além de praticar o charlatanismo e o curandeirismo, de que tratam os artigos 283 e 284 do Código Penal), pede o infra assinado se digne V. Excia. de instaurar contra êle o respectivo processo, para que seja condenado, de tudo ciente, para os fins de direito, o dr. Promotor de Justiça, inquirindo-se as testemunhas José Carlos Almeida, funcionário dos Correios e Telégrafos, residente à Travessa Camarão, Carlos Cajazeira de Oliveira, estudante e Antônio Barreiros, oficial de justiça, residentes à rua Cons. Virgílio Damásio n.º 22 e 7 respectivamente. No dia seguinte (22 de setembro de 1970), o Juiz da Comarca, Sr. Joaquim José de Carvalho Filho, mandou publicar portaria determinando que, contra “José das Três Linhas”, se instaurasse o competente processo e, nomeou seu defensor dativo o “Solicitador-acadêmico” Raimundo R. Santos. Também mandava publicar a “citação” do dito acusado a fim de “qualificalo” no dia 7 de outubro de 1970 e assistir a inquirição das testemunhas indicadas pelo denunciante. No intervalo de alguns “vistos” presentes no processo encontra-se o “mandado de citação”, cumprido quase sete meses depois da ordem judicial no dia 13 de abril de 1971. O documento mandava “citar” José das Três Linhas onde fosse encontrado para ser qualificado no dia 27 daquele mesmo mês, sob pena do processo correr à sua revelia. No dia seguinte, 14 de abril de 1971, foi publicado um “edital de citação de réu ausente”, certificando, segundo diligência do Oficial de Justiça, que José das Três Linhas não mais residia em Cachoeira, “achando-se em lugar ignorado e não sabido”. Para que chegasse ao seu conhecimento o edital de citação foi publicado pelo prazo de quinze dias tanto na imprensa local quanto no Diário da Justiça. Nos autos do processo consta o recorte do jornal “A Cachoeira” do dia 25 de abril de 1971, contendo o “Edital de citação do réu ausente” na íntegra, com a denuncia feita pelo advogado Fortunato da Costa Dória e a “Portaria” que dava início ao processo. Como José das Três Linhas não apareceu, no dia 5 de agosto de 1971 o Juiz da Comarca manda intimar as testemunhas arroladas para prestarem depoimento. Em 2 de setembro de 1971, diante do Juiz, do Promotor, da Escrivã e do Defensor ad-hoc, prestou depoimento o jovem de vinte e quatro anos, industriário, Carlos Cajazeira de Oliveira que inquirido sobre a denuncia feita contra José das Três Linhas disse: Que sabe efetivamente é que José das Três Linhas bateu candomblé de sábado para domingo a noite toda; que o candomblé foi batido na rua da Ponte Nova [Virgílio Damásio], a uns quatro passos da residência da testemunha; que se deitou cedo e adormeceu, ouvindo de vez em quando, ruídos a que atribuiu ser de instrumentos de Candomblé; que no dia seguinte foi que a testemunha foi certificada de que realmente se tratava de candomblé; que não sabe dizer se o indiciado explorava a credulidade pública, fazia cartomancia, quiromancia ou outro tipo de curandeirismo na casa onde fez noitada de candomblé porque a testemunha estava residindo na Guanabara; que não sabe se José das Três Linhas abusando da credulidade publica, através de sortilégios, crendices ou até ministrando drogas ou passando receitas recebia dinheiro dos que pretendiam procurar; que não sabe dizer se José das Três Linhas é um ocioso que vivia a explorar a crendice dos incautos; que nada mais sabe esclarecer a este Juízo sobre os fatos referidos na queixa de folhas dos autos; que não conhece o indiciado, tendo visto o mesmo apenas uma vez, nada sabendo dizer sobre os antecedentes e a conduta do indiciado. Os termos preconceituosos se referindo ao candomblé e ao sacerdote do culto afrobrasileiro presentes na denuncia foram assimilados pela justiça e se repetiu no depoimento de Carlos Cajazeira de Oliveira que, pela seqüência apresentada em seu relato, parece responder questão por questão denunciada na petição feita pelo advogado Fortunato da Costa Dória. Tal situação também se repetiu no depoimento da segunda testemunha ouvida, o serventuário da justiça Antonio Barreiros de Queiroz, que perguntado no dia 27 de outubro acerca do denunciado disse: que de fato o dito indiciado morava na mesma rua onde reside a testemunha, tendo, na época, feito duas festas, uma das quais durou três dias; que efetivamente na casa do indiciado se batia tambor ou atabaque durante a noite toda, nos dias de festa a que se referiu na pergunta anterior; que o queixoso Doutor Fortunato Dória, chegou a procurar o depoente, reclamando contra a algazarra praticada pelo indiciado em dia de festa, mas que a testemunha disse ao Doutor Fortunato que ouvia durante a noite o toque do tambor, mas que fechava sua residência e a ela se recolhia com sua família; que na casa do indiciado costumava haver um aglomerado de pessoas á procura do mesmo, mas não havia barulho, salvo nos dias de festa a que já se referiu a testemunha; que não sabe se o indiciado efetivamente explorava a credulidade publica, através da cartomância, e da quiromância ou mesmo do candomblé, fato que apenas a testemunha ouviu falar; que as festas noturnas realizadas na casa do indiciado que se prolongavam por toda a noite, perturbavam o sossego das famílias residentes na rua onde o indiciado fazia as ditas festas, sossêgo este que era perturbado pelo uso de instrumentos sonoros, ou sejam: tambores, atabaques etc.; que conheceu o indiciado quando o mesmo mudou para a casa onde realizava as referidas festas noturnas, não sabendo dizer se o mesmo tinha profissão definida ou se era vadio; que o indiciado não fazia as suas festas noturnas, propositadamente e por assinte as famílias da rua, mas para comemorar os Santos de sua seita fictícia; que não sabe a conduta e os antecedentes do indiciado; que na casa do indiciado entravam pessoas das mais variadas classes da sociedade Cachoeirana. O depoimento do Sr. Antônio Barreiros de Queiroz encerra a inquirição das testemunhas. O Dr. Fortunato da Costa Dória também foi intimado mas não compareceu. Talvez já satisfeito com o sumiço de José das Três Linhas. Do depoimento do Sr. Antônio Barreiros pode-se ressaltar, ao final, apesar do preconceito já assinalado, uma tentativa de retirar a “intenção do crime” do pai-de-santo e o trânsito de indivíduos de diferentes classes sociais na casa de Três Linhas. A instrução criminal foi encerrada em 4 de novembro de 1971, com o pedido do Promotor de Justiça para condenação do acusado no inciso III da artigo 42 da lei das Contravenções Penais, ou seja, perturbar o sossego alheio abusando de instrumento sonoro. O defensor ad-hoc de José das Três Linhas, o Dr. José Góis Silva, pediu a absolvição do seu patrocinado, sob o argumento de que nenhuma das contravenções citadas pelo queixoso ficou comprovada nos autos e, solicitou ao Juiz, caso não concordasse com seu argumento, que aplicasse à José das Três Linha a pena mínima ou a multa em “importância módica”. Contudo, o Juiz Joaquim José de Carvalho Filho, declarou que não se achava em condições de julgar a causa naquele momento e ordenou que os autos fossem conclusos. No dia 10 de novembro de 1971, o Juiz da Comarca da cidade de Cachoeira expôs seu veredicto: Das contravenções capituladas na queixa-crime contra o indiciado, ficou, data vênia, positivada, a meu ver, aquela contemplada no artigo 42, inciso III, da Lei específica. Com efeito, restou evidenciada, induvidosamente, a autoria do fato contravencional imputado ao indiciado, através dos uniformes e firmes depoimentos das testemunhas deste processo, que afirmaram, unanimemente, a prática, pelo acusado, do fato contravencional, através de festas de candomblé, que se prolongavam por toda a noite, perturbando o sossego das famílias a rua Virgilio Damásio e adjacências, com o uso contínuo, desenfreado e altamente ressonante e perturbador de tambores e atabaques, empregados naquelas intranqüilizadoras folganças de macumba... Não existe a menor dúvida de que o indiciado, ao se dizer cartomante, quiromante ou curandeiro, colocando cartazes em sua porta para atrair a crendice popular, realizando fanfarras noturnas, nas quais aliciava mulheres (ou até virgens!) e “rufiões de sarjeta” para as suas folganças infernais, perturbando, com o ruído ensurdecedor de tambores e atabaques, o sossego e a tranqüilidade das famílias honestas e moralizadas da rua Virgilio Damásio e circunjacências, agia voluntariamente, fosse para fins comerciais, fosse para fins libertinos e sensuais... Importa ressaltar, contudo, que o indiciado se acha foragido, não tendo sido qualificado e nem interrogado, e, por via de conseqüência, nada consta nos autos sobre a sua conduta, os seus antecedentes criminais, se o mesmo tem ocupação certa, ou se é um ocioso e sobre quaisquer outros elementos de informação de sua personalidade... ANTE O EXPOSTO e por tudo o mais que dos autos consta, condeno JOSÉ DAS TRÊS LINHAS a dois meses de prisão simples, assim como as custas do processo e a taxa penitenciária de cinqüenta centavos (Cr$0.50). Mais intranqüilizadoras são as palavras do Juiz da Comarca de Cachoeira. Evidências de preconceito e discriminação da “justiça” em relação às religiões afro-brasileiras e seus adeptos. Frases como: “intranqüilizadoras folganças de macumba; fanfarras noturnas nas quais aliciava mulheres (ou até virgens!) e ‘rufiões de sarjeta’; folganças infernais para fins comerciais ou libertinos e sensuais”, foram escritas com a tinta da lei. Dessa maneira, José das Três Linhas foi condenado não apenas por causa dos sons dos atabaques de sua casa, mas, sobretudo, pelo preconceito, pelo desrespeito às diferenças e, como declarou o próprio Juiz “por tudo mais que dos autos consta”. Assim, José das Três Linhas teve seu cognome lançado no rol dos culpados e contra ele foi expedido mandado de prisão. Como ele não esperou para ser preso e fugiu desde o momento em que foi denunciado, nem apareceu para ser qualificado, não proporcionou à justiça sequer saber seu verdadeiro nome. José das Três Linhas não respeitou o arbítrio preconceituoso da justiça e repudiou a lei que tentou prendê-lo, como fizeram com outros fiéis de um sistema de crença diferente, alicerçado em valores civilizatórios afro-brasileiros. REFERENCIAS BRAGA, Júlio. Na gamela do feitiço: repressão e resistência nos candomblés da Bahia. Salvador: EDUFBA, 1995. ESPINHEIRA, Carlos Geraldo D’Andrea (Coordenação). Estudo Sócio Econômico Área Prioritária de Cachoeira 1972/1973. Técnicos assistentes: Jéferson Afonso Bacelar e José Guilherme da Cunha Castro. Fundação do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia. Setor de Planejamento e Pesquisas Sociais. 2.ª edição. Salvador, 1974. LUHNING, Ângela. “Acabe com este Santo, Pedrito vem aí: mito e realidade da perseguição ao candomblé baiano entre 1920 e 1942”. In. Revista USP dossiê povo negro – 300 anos, n.º 28, dez/fev., 1995/96. SANTOS, Milton. A rede urbana do recôncavo. In. Brandão, Maria de Azevedo (org.). Recôncavo da Bahia: sociedade e economia em transição. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1998.