©2013 Gislania Dornelas Direitos desta edição adquiridos pela Paco Editorial. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação, etc., sem a permissão da editora e/ou autor. D7358 Dornelas, Gislania Vida por Inteiro: relacionamentos/Gislania Dornelas. Jundiaí, Paco Editorial: 2013. 204 p. ISBN: 978-85-8148-096-1 1. Literatura Brasileira 2. Literatura Contemporânea. I. Dornelas, Gislania CDD: B869 Índices para catálogo sistemático: 1. Literatura B869 IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL Foi feito Depósito Legal Agradecimentos Comecei a escrever as minhas ideias, acontecimentos e histórias por incentivo de um cliente que tive em meu restaurante no ano de 2001. Ele frequentava um templo esotérico o qual eu também frequentei por indicação dele. Algum tempo depois escrevi uma carta de agradecimento ao mestre deste templo onde frequentávamos juntos e esta carta fora publicada em um jornal. Após este meu cliente/amigo ter lido esta carta ele me dizia que eu tinha o dom de escrever. Sempre falei muito sobre os meus ideais e tudo que eu acreditava e um dia descobri que as pessoas não estavam interessadas nas minhas crenças e muito menos no meu falatório o qual só pertencia a mim. Silenciei a boca, mas minha mente fervilhava e os meus dedos se aliaram a ela através da escrita de textos. Agradeço a este cliente por ter sido meu primeiro incentivo a escrever. O meu segundo agradecimento é a Guy Ericsson, a pessoa que hoje dividimos uma história por ele ter acreditado em mim, mesmo sem saber o português e eu ter apenas relatado a ele o conteúdo do meu livro. Ele me apoiou para a concretização do mesmo. Muitas vezes ele preparava as nossas refeições para que eu pudesse reler e fazer as correções do texto. Agradeço aos meus filhos por ter me apoiado quando eu não acreditava mais nos seres humanos e eles na mesma sintonia em que eu me encontrava se fazia fortes para segurar a minha barra e alavancar a minha autoestima. Agradeço a minha mãe por ela ser uma mulher de fibra e ter cuidado de mim e meus irmãos e nunca ter desistido de nós, mesmo com todas as dificuldades encontradas na vida dela. Tivemos nossas desavenças, mas o tempo me mostrou o quanto eu estava equivocada e que ela só quis zelar pelo meu bem-estar. Agradeço a minha sobrinha Camila Dornelas por me ajudar também nesta publicação através de encarminhar, no Brasil, o que eu não posso fazer aqui na Suécia. Agradeço aos colaboradores da Paco: Rodrigo Brito pela paciência comigo nas negociações; Kátia Ayache na sua coordenação; Bruna Feco, que captou o sonho que tive com a capa do livro e não consegui descrevê-lo na sua totalidade; Matheus de Alexandro e Vinicius Whitehead Merli. Enfim, agradeço a Deus por ter colocado todos os personagens da minha história em meu caminho para que hoje eu possa estar dividindo isso com pessoas que se encontram na mesma sintonia que a minha. A maioria dos meus personagens tem codinomes. Cabe cada um se identificar e se encontrar na minha história. A minha história não é melhor do que a história de outras pessoas, é apenas a minha coragem de dividir publicamente as minhas experiências que contribuíram para o meu crescimento. A vida não teria valido a pena se eu não pudesse dividir isso com alguém. Eu sou a pessoa mais importante na minha vida e me amo, vocês perceberão na minha ousadia em escrever. Boa viagem na leitura, A autora. “Hoje o dia brilha mais bonito porque você existe.” Ano, 1962. Signo, áries. Horóscopo chinês, tigre. Destino, só á Deus pertence. Lutas e aventuras, todas possíveis e imagináveis. Eram dez horas de uma linda manhã do primeiro dia de outono, ouvira-se o choro de criança recém-nascida de dentro de casa, Onofre andava de um lado para o outro no quintal, primeiro filho e muita emoção. Não poderia ficar dentro de casa neste momento por ordens da parteira. O quarto de casal não tinha portas, era uma casa simples, ou seja, uma choupana, que ficava de frente para uma mata virgem. O local era bucólico. A vida era simples e a região habitada por familiares, onde todos se ajudavam mutuamente, quase uma tribo ou um clã. Era também comentado na família a existência de uma índia que fizera parte dos ascendentes familiares. A parteira anunciou a Onofre sua permissão de visita ao quarto. Ele entrara ansioso. Ao entrar no quarto, embora esperasse por um menino, fora notificado de que era uma menina. Com olhos cheios de lágrimas e felicidade, perguntara a Maria qual seria o nome e ela prontamente respondera: — Gabriela. Quero este nome por causa daquela filha do cartorário que é linda e inteligente. E nossa filha será bonita e inteligente como ela. — No dia do casamento de nossa filha eu quero fazer um toldo até chegar na mata, vai ter uma festa de uma semana, vai ser a minha maior alegria realizar este casamento, com muitos convidados, muita comida, bebidas e doces. — Onofre, nossa filha acaba de nascer e você já a está casando? A noite fora só felicidade, aquela criança recém nascida mal sabia que teria uma longa história pela frente. Gabriela era a primeira filha de Onofre e Maria e primeira neta de seus avós maternos, Francisco e Salvina, que foram seus padrinhos de batismo. Seus avós e tios a paparicavam por ser a primeira neta e sobrinha na família. Por parte de seu pai não era a primeira neta, mas morava próximo de seus avós paternos, Avelino, e a sua terceira mulher, Gabriela a conhecera como “vovó Lica” a mãe de seus tios, meio-irmãos de Onofre. Eles eram Elice, Elias e Élcio que eram ainda crianças e faziam tudo o que Gabriela queria. Seus desejos eram prontamente atendidos por eles também. Passara um ano e quatro meses após o nascimento de Gabriela e o nascimento de mais um bebê. Gabriela era ainda muito pequena e nem percebera a presença da nova irmã, Mirian. Mais um ano e dois meses se passou quando se deu o nascimento do terceiro bebê, Gisela. Esta Gabriela estava com dois anos e seis meses, passara a sentir ciúmes. A família era simples e sem instrução. Foram criando as filhas sem grandes preocupações, com pequenos caprichos de criança mimada. Quando Gisela estava dormindo no berço, o qual era o mesmo que havia passado pelas primeiras filhas, Gabriela retirara uma das vigas do 5 Gislania Dornelas berço, tomara a chupeta de Gisela, enfiara a cabeça no berço e dormira sentada no chão com a chupeta do bebezinho recém-nascido. Isto para os pais era um grande gesto de esperteza de Gabriela a qual ia contornando a divisão da atenção de seus pais com as irmãs. Gisela nascera a mais loira com olhos azuis, pareciam duas pedras de safiras, encantava todos com o brilho de seus olhos. Gabriela sentira a atenção a ela dispensada sendo divida com a irmã. Aos três anos e nove meses, Gabriela ganhara mais uma irmã, Ângela, a qual passara também despercebida por Gabriela, mesmo porque além de fazer muitos questionamentos sobre tudo e ser “custosa” como todos diziam, Maria, com quatro filhas a cuidar, mandara Gabriela passar uma temporada com os avós maternos para que pudesse ter mais tempo com as filhas menores. Seus avós maternos vinham buscá-la e levá-la para a fazenda deles. Não passava uma semana e seus tios Elias e Élcio iam buscá-la. Gabriela vivia pelos caminhos, ora sendo transportada nos braços dos tios de volta para casa, ora na garupa do cavalo de Francisco sendo levada da companhia da mãe e das irmãs. Onofre cultivava em sua pequena propriedade financiada, e a cultura era de subsistência. Trabalhava também com o seu pai que era proprietário de um garimpo e neste trabalhava todos os membros masculinos da família. Um dia, Onofre estava no trabalho e Maria estava em casa somente com as filhas, enquanto costurava e escutara bater a porta. Assustara pois não era hábito na região bater a porta. Quando alguém chegava ia logo dizendo: — Oh! De casa? Este era um hábito dos parentes da região. Maria fora ver quem era. Eram umas ciganas. Maria mandara as filhas entrarem. Cumprimentara as ciganas, mas estava assustada, pois lhe era falado que as ciganas roubavam e faziam feitiços. — Boa-tarde! — Boa-tarde. Em que posso ajudar? — Nós queremos aquela galinha. Apontando para uma galinha que Gabriela ganhara de seus parentes quando ela cantava e recitava para eles. Maria recusara dizendo: — Essa galinha é da minha filha, ela ganhou e não posso te dar. Te dou outra. — Não, eu quero esta. — Então não vamos entrar num acordo. Nisto aparecera Gabriela que fora espiar pelo o outro lado da casa. A cigana vira a menina curiosa e dissera: — Não levo a galinha, mas esta menina vai te dar muito trabalho, ela vai chorar para o resto de sua vida e você vai sofrer muito com isto. Maria não cedera à praga da cigana. Estas foram embora, mas sem que Maria percebesse roubaram a galinha. Gabriela chorara quando escutara sua mãe falar do roubo da galinha, não que desse importância à 6 Vida por Inteiro: Relacionamentos galinha, pois nem sabia bem o que era possuir algo, mas porque ouvira que os pais falavam deste assunto e ela fazia parte da situação. ♫♫♫ O trabalho de Onofre no garimpo era longe de casa e ele passava muito tempo longe de sua familia. Onofre dissera a seu pai que deixaria de trabalhar com ele para estar mais próximo das mulheres de sua vida. Onofre havia comprado suas terras em nome do pai, o qual controlava a vida dos filhos. Avelino pedira ao filho que trabalhasse até acabar de pagar o que devia a ele e assim Onofre poderia fazer o que quisesse, e ele o fez. Trinta de agosto, último dia de trabalho no garimpo. Gabriela via o pai sair de casa, ir até o córrego que ficava próximo e voltar. Ele não queria trabalhar naquele dia, seu coração palpitava e uma angústia tomava conta de seu coração. Nas idas e voltas Maria dizia: — Não vá, se seu coração te diz para ficar! Pode lhe acontecer algo ruim. — Tenho que ir, tenho meu dever a cumprir e mais a mais hoje será o último dia de trabalho. Depois disto viverei somente para o plantio e para vocês. Seremos uma família feliz. Finalmente fora para o trabalho, seguira seu destino. Que destino? Chegando no garimpo dissera para um dos parentes que ali junto trabalhava: — Hoje eu não vou fazer comida. Faça você. Por que eu farei o seu serviço. E entrara no túnel onde era feitas as cavações para a procura de diamantes. Para que diamantes? Já tinha cinco pedras preciosas em casa. Mal adentrara no túnel e este desabara. Seu irmão que se encontrava do lado de fora fora arremessado longe quebrando a clavícula e os dois braços. Onofre... encerrara o seu último dia de trabalho, seus planos em familia e a sua vida, morrendo soterrado. ♫♫♫ Tarde da noite, Gabriela acordara na casa dos avós paternos, até vira quando alguém a carregava enquanto dormia, mas o sono a dominava, quase nem percebendo a transferência de casa e de cama. Acordara assustada com pessoas correndo atrás de sua mãe que corria em direção ao pasto. Sentira medo, pois não sabia por que sua mãe fazia isto e sem nada entender observava. Pensara que as vacas poderiam correr atrás de sua mãe podendo machucá-la. Mais machucada do que estava não poderia ficar. Ouvira quando sua mãe estava sendo carregada e ela gritava: — Ele morreu. Vocês estão me escondendo a verdade. — Calma, Maria, ele quebrou os dois braços e a clavícula, mas logo sairá do hospital e estará aqui com você. Onofre retornara, enrolado em um lençol branco, todo ensanguentado, todo triturado. Vinte e cinco anos, uma esposa grávida e quatro filhas, e ele ali inerte, sem vida, sem realizar os seus planos de uma vida familiar feliz. 7 Gislania Dornelas Gabriela dormia e acordava várias vezes. Tudo isso era confuso, sentira uma tristeza, mas não entendia o que estava acontecendo. Novamente acordara e já não estava mais na casa dos avós, estava na casa do tio Terêncio, irmão do pai de Onofre. Terêncio era referência de toda família, ele era bem-sucedido, tinha uma fazenda enorme e era o único na região que possuía uma caminhonete. Seus avós maternos também estavam ali. Pela primeira vez percebera a família toda reunida. No colo de seu avô materno, Gabriela via tudo acontecer, mas sem nada entender. De repente, começara uma discussão antes do enterro. Seus avós maternos diziam que as crianças deveriam despedir-se do pai morto, mas seus avós paternos acreditavam que ter a lembrança do pai naquela situação seria traumático. Caso resolvido, as crianças foram despedir de Onofre. Gabriela ainda lembra da voz nítida de sua tia dizer: — Peça a bênção para seu pai, pois esta será a derradeira vez que o fará. Gabriela pensara: “O que poderia ser a derradeira vez? por que seu pai estava ali dormindo? Por que aquele pano branco amarrado em seu rosto?” Só depois de alguns anos pôde descobrir que era para amarrar o rosto que estava todo quebrado e o tecido branco era para firmar os ossos no lugar. O caixão fora fechado para o enterro e colocado na caminhonete de tio Terêncio, que seguira para Chapada de Minas, uma pequena cidade próxima. Somente um dos irmãos de Onofre acompanhara o enterro. Gabriela assistia tudo sem compreender nada, mas as lembranças ficaram em sua memória e com o tempo fora sendo reconstituída aquela história triste sem nenhum esforço quando era tocado no assunto pela família. ♫♫♫ Certa tarde, enquanto Maria costurava na sala, Gisela começara a bater palmas e dizer como as crianças faziam de costume quando via o pai se aproximar de casa vindo do trabalho: — Papai, papai está chegando. Uma onda de calafrio tomara conta de Maria, que saíra até a porta da sala onde se encontravam as crianças brincando e as galinhas saíram correndo assustadas. Maria pegara as quatro filhas e fora para casa de seu sogro e tio (Onofre e Maria eram primos) dizendo que não ficaria ali por mais nenhum minuto. Embora tivesse optado por morar sozinha e criar as filhas naquele local, não suportara por muito tempo viver sozinha. O pai de Maria logo que ficara sabendo do ocorrido viera e as levaram para morar em seu sítio. Embora Gabriela saísse dali com frequência para a casa dos avós maternos, naquele momento saíra guardando o local somente na memória. Local: Mata Preta, interior de Minas. Todas as vezes que Gabriela ouvira a história de João e Maria, imaginava o cenário da história naquele local. 8 Vida por Inteiro: Relacionamentos Quando Onofre ainda era vivo, Gabriela cantava a música que era Cabelo loiro de Leo Canhoto e Robertinho. Primeira música que ela cantara e Onofre se orgulhava da filha. “A alegria é o tempo bom da vida” Natal! Comemorações típicas, todo o clã local reunido, com muita comida, mas sem presentes e papai Noel. Com encontros para colocar assuntos em dia e falar das atividades das fazendas. Gabriela trajava um vestido verde-água com detalhes em rosa e amarelo e laçarotes, fita no cabelo, meia três quartos com bolinhas penduradas e sapato de verniz branco, que a deixava encantada. Seu avô a pegava no colo e ela reclamava porque ele iria amassar sua roupa. Por ter boa memorização, suas tias a ensinavam recitar. Seu avô a exibia para os amigos que a enchia de bombons e ela ficava toda feliz querendo recitar mais e mais para ganhar balas grandes (como ela chamava os bombons). Seu avô não a corrigia, pois era a sua alegria vê-la falando assim, embora seu coração estivesse cheio de tristezas por ver a neta tão nova crescer sem o pai. Para compensar a falta que Gabriela sentia do pai, Chico fazia todos os seus gostos para vê-la feliz. Suas irmãs não eram preocupações para a família, já elas não demonstravam a falta do pai como Gabriela sentia e falava o tempo todo sobre isso. Embora, os avós maternos e paternos fossem parentes, viviam em comunidades diferentes. Não eram tão distantes, mas os seus valores e a vida econômica se diferiam. Gabriela não esquecia a família por parte de Onofre e perguntava deles. Gabriela olhara para o seu avô e dissera: — Vovô, pede para o tio Terêncio ir no céu buscar o papai? Gabriela, que ouvia dizer que o tio de seu pai era rico e que conseguia tudo o que ele queria, acreditava que, com a sua caminhonete, ele poderia ir buscar seu pai no céu, que era o lugar para onde diziam a ela que seu pai havia ido. Isso deixara toda a família emocionada. Maria saíra da cozinha e entrara em seu quarto fechara a porta e chorara muito, sabia que não seria fácil. Gabriela insistia: — Vovô, pede para ele ir buscar o papai lá no céu. Salvina a pegara no colo e dissera: — Gabriela, venha com a vovó? Vou fazer uma boneca de pano para você. Por aquele momento todos estavam salvos dos desejos impossíveis de Gabriela. A vida na casa de Francisco Borges andava movimentada com Maria e as filhas ali. Parentes estavam sempre visitando para prestar solidariedade a ela. Os tios e primos de Gabriela também vinham sempre e começaram 9 Gislania Dornelas também a permanecer na fazenda a pedido de Salvina para distrair Gabriela, que com a presença dos primos esquecia o pai, Elias, Élcio e Elice. ♫♫♫ Era tarde da noite, e Gabriela acordara com um choro e um barulho estranho vindo do quarto de sua mãe. Maria estava tendo o filho que esperava e tentava fazer o seu parto sozinha no escuro, não chamara por ninguém para ajudá-la, mas a dor era intensa e começara a chorar, acordando Salvina com os seus gemidos e viera ajudar a filha com o parto. Ao cortar o cordão umbilical se surpreendera com o segundo bebê que deixara a família toda preocupada. Gabriela não pode identificar com precisão as conversas, mas percebia que algo estranho acontecia. Ficara imóvel na cama tentando escutar cada sussurro, sem que alguém percebesse e a mandasse dormir novamente. Ouvira bem quando disseram: — A menina nasceu encapotada. O que seria isto? Pensava consigo. Depois de alguns anos pôde compreender que a irmã nascera com a placenta e isto a deixara por anos encabulada. Depois de oito meses que Onofre falecera os gêmeos nasceram. Ele e Maria chegaram a suspeitar da gravidez, mas Onofre não pôde ver os filhos nascerem. Seu filho desejado levara o seu nome, Onofre Dornelas Filho, o qual não conhecera o pai e também não fizera parte do seu vocabulário a palavra pai. A menina com o nome de Amélia. ♫♫♫ O sítio de Francisco era de cultura de subsistência e em cada época do ano havia um tipo de produção – época da cana-de-açúcar, do cheiro de garapa, melado, açúcar quente e rapadura. O cheiro invadia o ar. Francisco cortava a cana e trazia no carro de boi, que anunciava sua chegada com o canto da rodas do carro em atrito com o solo. Gabriela adorava a melodia deste barulho de carro de boi. Ao chegar com a cana, era feita a moenda. As roldanas da engenhoca que moíam as canas eram simples e movimentadas por bois. Gabriela, as irmãs e os primos conduziam os bois para moer a cana. A garapa escorria por caneletas feitas de bambu e caía em um tanque no qual Salvina e as filhas pegavam a garapa com baldes e colocavam nos tachos de cobre. O calor escaldante da fornalha e a queima da madeira que aquecia o local com labaredas oras azuis, ora laranjas, encantavam os olhos de Gabriela, que ficava diante da fornalha assistindo o fogo consumir a madeira e formando o vermelho da brasa. O melado chegando ao ponto exalava o cheiro de rapadura que era contagiante por todo o sítio de Francisco e Salvina. As tias de Gabriela, Matilda e Eva, por serem mais jovens, batiam o melado e colocava nas formas de rapaduras, que no final da tarde eram conduzidas pelas crianças para o depósito de rapaduras. Chico Borges olhava as crianças trabalhando e dizia “Trabalho de criança é pouco, mas quem o perde fica louco!” 10 Vida por Inteiro: Relacionamentos Enquanto as crianças participavam do trabalho no engenho, na moenda e buscando alguma coisa para auxiliar o trabalho da família, Salvina preparava o almoço. Sua comida era deliciosa, tinha um sabor incomparável, tinha o sabor de um momento que jamais poderá ser repetido. O almoço pronto era anunciado com um sino que badalava como música nas mãos de Salvina. As crianças corriam para saborear a comida da avó e os deliciosos doces caseiros também feitos por ela. Ao final do dia, Matilda e Eva iam nadar no córrego levando as crianças com elas. Elas diziam: — Quem quer aprender a nadar? — Eu! – Gritavam as crianças eufóricas. — Então vocês têm que engolir peixinhos vivos se quisessem aprender a nadar. Pegava os peixes no córrego e dava para as crianças engolirem, todas estavam ansiosas para nadar e os engoliam. Aprender nadar. Que nada! Na época do plantio de milho, arroz, feijão e colheita do café, as crianças ficavam com Matilda e Eva. Francisco, Salvina e Maria iam para a roça e elas cuidavam da casa e das crianças. Gabriela, cheia de vontades, queria que seus desejos fossem prontamente atendidos. Matilda e Eva, que eram ainda jovens, e tinham ciúmes de Gabriela por Francisco realizar todos os seus gostos. Estas sempre armavam alguma coisa contra Gabriela. — Gabriela, se você não ficar quieta e fazer o que eu estou mandando, vou chamar o homem do saco para te levar para longe daqui. Gabriela havia perdido o pai e o convívio com os seus tios paternos que brincavam com ela e também faziam tudo o que ela queria. Não estava disposta a perder mais nada, fazia o que as tias mandavam, mas a rebeldia não a deixava comportada e atenta a tudo o tempo todo. Fazer tudo do jeito que as tias queriam eram humanamente impossível, era ficar presa e sem criatividade. Estas, então, pintavam o rosto com pó do coador de café, vestia as roupas sujas do pai, colocavam um chapéu sujo, velho e rasgado. Batia a porta e Eva que havia ficado com as crianças, mandava Gabriela abrir a porta. — Mamãeeeeeeeeeeeeeeeeeee! Maria, na lavoura, escutava e vinha ver o que estava acontecendo, o que as irmãs haviam feito com Gabriela. Discutiam, mas elas lhe jogavam na cara de Maria que ela estava ali de favor com aquele monte de filhos que só davam gastos, que era melhor ficar quieta. Maria chorava sozinha durante a noite no seu quarto, não tinha para onde ir, sem marido, sem profissão, sem dinheiro e seu pai não a deixara entrar com pedido de recebimento da pensão que ela tinha direito com a morte do marido e herdar as terras que ele deixara e lhe era de direito. Gabriela acordava e escutava o choro e os soluços da mãe e isto lhe alfinetava a alma. Sabia que a mãe sofria, mas não sabia bem o que era isso e nem como acabar com tudo aquilo, tinha apenas cinco anos para fazer alguma coisa. 11 Gislania Dornelas ♫♫♫ No final da colheita ou produção de rapaduras e açúcar, Chico Borges ia para cidade vender os produtos. Gabriela sempre ia com o avô. Em suas negociações exibia a neta, que encantava os seus amigos com seu falatório e até se envolvendo nas negociações do avô tentando falar como ele. Antes de ir embora, eles passavam na casa de Eugênia uma das irmãs de Maria. Eugênia e o marido tinham uma sorveteria e Gabriela dizia: — Tia Eugênia, você faz sorvete quente para mim? Francisco, Eugênia e Geraldo gargalhavam de Gabriela e ela levava consigo a esperança da próxima vez ter o seu sorvete quente. Chico Borges a enchia de presentes, comprando roupas que ela queria, sapatos de verniz e bonecas. Francisco tinha influência política na cidade onde Eugênia morava e conseguira colocar Gabriela na escola aos seis anos por ela ser esperta. Assim a afastaria do convívio com as tias que brigavam com Gabriela o tempo todo, aliviando o sofrimento de Maria e aproveitando o seu potencial. Começara os preparativos para a vida escolar. Suas tias não podiam deixar de aprontar. — Gabriela, quando você chegar na escola, a professora vai falar o seu nome e você tem que responder: “Ausente”. Gabriela ficara encantada com a beleza da professora Clarice. Ela era morena como sua mãe, cabelos longos e cacheados e tinha uma voz doce. Assim que o seu nome fora colocado na lista de presença, a professora Clarice falara com aquela voz doce e segura e seu nome soara como música: — Gabriela... — Ausente. A classe toda começara a rir. Gabriela ficara desapontada. Fora então que percebera que tinha sido vítima das maquinações de suas tias. Na hora do recreio, chorara sozinha. d. Clarice, que estava passando por ali, a vira chorando e perguntara: — O que houve, Gabriela? Rapidamente, Gabriela olhara para o lado e vira um menino correndo. Não exitara em dizer que ele havia batido nela. Ele havia rido dela na sala de aula, agora era o momento de sua vingança. d. Clarice chamara o menino e dissera: — Por que você bateu em Gabriela? — Professora, foi sem querer, eu estava correndo e nem vi. — Peça desculpas! — Desculpe? — Está desculpado. Resolvido o problema. Que nada! A consciência pesara, primeira vez que Gabriela sentira o peso dela. Mentir! E o menino ainda se desculpara por uma coisa que não havia feito e agora como consertar isto, contar a verdade? Não estava segura disto, voltar a escola e ter que olhar nos olhos do menino e lembrar que havia mentido, não iria conseguir. Primeira decisão de sua vida: “Não vou mais para escola”. 12 Vida por Inteiro: Relacionamentos O menino era primo dos primos de Gabriela e ela tinha ciúmes dele com seus primos, mas mentir era demais. Francisco aceitara a desculpa de Gabriela sem questionamentos, pois não tinha o pai, era melhor ficar mesmo perto da mãe. Ao chegar em casa e ser dito que não iria mais para escola, suas tias diziam: — Vai ficar burra, olha as orelhas de burro crescendo. E faziam mímicas imitando o burro para atormentar Gabriela, que logo começava a chorar. — Além de ficar burra, tá virando manteiga derretida. — Deixe a menina em paz. Dizia seu avô. Salvina logo a tirava de perto das tias ia brincar com ela, ou a levava em suas visitas a casa de parentes onde Gabriela encontrava suas tias. — Gabriela, vamos brincar com a tia? Eu sou costureira e faço roupas para suas bonecas, você é mãe. — Eu não sou mãe de boneca. Eu sou costureira e você a mãe. A avó achava engraçado e as tias também. Nas brincadeiras com as primas sempre era a professora, a médica, a costureira, mas mãe jamais. ♫♫♫ Nas festas no sítio de Francisco, reunia-se toda a família e ouviam músicas, dançavam e cantavam. A sanfona havia sido trocada pela radiola. Eva comprara um disco de vinil para a sua radiola. Gabriela, Mirian e suas primas cantavam e dançavam com suas tias. A música era: Eu te amo meu Brasil (segunda música em sua memória). “Todos nós sabemos alguma coisa. Todos nós desconhecemos alguma coisa. Por isso estamos sempre aprendendo” Sete anos, idade de ir para a escola, mas Gabriela recusara. Felícia, prima de Maria que morava em Araguari, fora visitar os tios no sítio. O pai de Felícia era irmão de Francisco e ele se chamava Zaquiel. Entre festas para recebê-la e a conversa entre as primas, Felícia conversara com Maria a possibilidade de Gabriela ir para a cidade estudar. Ela iria completar oito anos e Felícia incentivara Maria a deixá-la ir morar com ela. Depois que elas acertaram tudo. Faltava convencer Gabriela de que ela iria voltar a estudar e mudaria de casa novamente. Felícia, com sua diplomacia, lhe convencera ir para Araguari estudar. No início do ano letivo, Maria levara Gabriela e ficara na cidade para lhe acompanhar no seu primeiro dia na escola. Maria e Felícia foram a escola, pegaram a lista de materiais, compraram e encaparam os seus cadernos e livros. O cheiro de livro novo enfeitiçava Gabriela. Cheiro de aprendizagem, cheiro de uma vida diferente. O 13 Gislania Dornelas uniforme era: saia azul plissada, com blusa branca e um lenço branco no bolso, meias três quartos brancas e sapato de verniz preto. Gabriela entrou na escola, olhou em sua volta e sentiu medo de se perder nela. A escola parecia enorme. No final da tarde, Maria fora à escola lhe buscar, mas se desencontraram. Gabriela estava perdida na cidade, mas conseguira chegar em casa através de informações que pedira a pessoas na rua. Quando Maria chegou em casa chorando encontrara Gabriela já acolhida por suas primas. Abraçaram-se e choraram mais um pouco, mas Maria teve que ir embora, por causa dos outros filhos que ficaram com Salvina. Apesar de tudo, Gabriela se virava bem e isso confortava Maria. Gabriela enfrentou vários problemas na escola, chegou a apanhar de alunos de outra classe por ser “roceira”, assim era chamada pelos colegas da escola. Paula, irmã de Felícia, conversara com uma menina que morava perto da casa dela e estudava na mesma escola que Gabriela. Ela lhe pedira que acompanhasse Gabriela todos os dias até a escola, para que ela não apanhasse mais, porém fora antes até a escola para mostrar com quem eles estavam mexendo. Na casa de Felícia, ela era tratada com toda mordomia, a “mascotinha” da casa. Todos faziam de tudo para lhe deixar a vontade sem sentir falta da sua família. Felícia era costureira e lhe vestia como uma princesa, cuidava de seus cabelos, sua postura, pois Gabriela era um tanto quanto relaxada com a sua postura. Cuidava de seus cadernos, exigia capricho, letra bonita e olhava toda sua tarefa de casa antes de ir para escola. Se houvesse algo errado era imediatamente corrigido. Na sua alfabetização além da cartilha “Caminho Suave” fora usada o livro Os três porquinhos. A cada semana era lido a história de cada um dos porquinhos e eles tinham nomes: Palhaço, o que construiu casa de palha. Ela lembrava da choupana onde nascera e de início sentira-se acolhida, mas quando o Lobo assoprou a cas,a ela desmoronara como a sua família no dia em que seu pai morrera. Quando fora apresentada à casa de pau do Palito, lembrara do paiol do sítio de seu avô que era de madeira e cobertura de palha. O terceiro: Pedrico, o da casa de tijolos, a casa de seus avós era de tijolos, mas os móveis que compunham o desenho da casa de Pedrico virou fantasia em sua mente e ela desejou ter uma casa com lareira daquele estilo quando tivesse a sua. Nas séries seguintes seu processo de aprendizagem continuara com poesias e nunca se esquecera também de Bárbara Bela, de Alvarenga Peixoto. “Bárbara Bela Do norte estrela Que o meu destino Sabe guiar De ti ausente 14 Vida por Inteiro: Relacionamentos Triste somente As horas passo A suspirar Pôr entre as penhas De incultas brenhas Cansa-me a vista De te buscar Porém não vejo Mais te desejo, Sem esperança De te encontrar Eu também queria A noite e o dia Contigo poder passar Mas orgulhosa Sorte invejosa, D’esta fortuna Me quer privar Tu, Entre os braços, Temos abraços Da filha amada Pode gozar, Priva-me da estrela De ti e D’ela Busca dou modos De me matar!”. E por causa dessa poesia ela fazia de conta em suas brincadeiras que se chamava Bárbara. ♫♫♫ Alguns finais de semana ou feriados, Gabriela voltava para casa dos seus avós. Todas as vezes que ela retornava, Salvina preparava todas as guloseimas que ela gostava (pão de queijo, bolo de mandioca, biscoito de polvilho e doces os quais nunca faltavam na casa dos avós). Era uma festa a sua chegada no sítio. Com o tempo, ficara acertado entre Felícia e Maria os dias que Gabriela viria para o sítio e passara a viajar sozinha de ônibus; se virava bem e não seria mais necessário Maria sair do sítio para lhe buscar na cidade. Maria lhe buscaria no ponto de ônibus. Certo feriado passado despercebido no sítio de seus avós. Gabriela viera, e chegando no local combinado, ninguém lhe esperava. Ela chorou de medo, então o motorista disse que a levaria para a casa dele e no dia seguinte lhe deixaria em Araguari de volta. No ônibus havia uns parentes de sua avó que lhe reconhecera e se propuseram lhe levar para casa de15