1 Sandra Costa – Espaço Agrário O FUNDO HISTÓRICO DAS MUDANÇAS TÉCNICAS OCORRIDAS NA AGRICULTURA MEDIEVAL ! Durante o domínio romano, e enquanto duraram os reinados germânicos que o sucederam, as cidades da Europa Ocidental expandiram-se, mesmo em meio às várias crises de abastecimento com origem na insuficiente produção de alimentos e na instabilidade política. Isto decorria de uma função muito especial: constituírem-se em local onde se realizavam múltiplas simultaneamente, operações como de mercados comércio. Atuavam, terminais e como entrepostos nas grandes rotas de intercâmbio. ! Sediavam feiras regionais e desempenhavam um papel de extrema relevância na integração econômica e política, em uma época em que os meios de transporte eram precários, requerendo muitos estágios entre a origem e o destino final das mercadorias. ! Com a invasão do Ocidente pelos sarracenos, no século VII, muitos destes fluxos de comércio que iam do Norte da África ao Norte da Europa foram interrompidos, provocando o 2 Sandra Costa – Espaço Agrário desaparecimento das trocas de longo curso, o que fez parte da Europa permanecer isolada e dependente do autoabastecimento, no que se refere tanto aos produtos agrícolas como aos artesanais. ! A conseqüência maior da ruptura destas rotas foi a regressão da vida urbana. As cidades perderam sua importância econômica e política e se despovoaram. Criavam-se, assim, as condições para o surgimento de uma nova ordem econômica, que se convencionou denominar FEUDALISMO, a partir do século XIX, pelo uso generalizado do serviço foreiro, por um campesinato mantido subjulgado. ! Uma característica básica do feudalismo foi um certo grau de fechamento, pois grande parte do que era consumido tinha origem na produção das terras sob os diferentes domínios ou nos gineceus, intercâmbio tendas comercial de artesanatos existia, mas das era aldeias. O voltado, principalmente, para aquisição de produtos de difícil ou impossível produção local. Entre estes, estavam os minérios, especiarias, sedas, algodão etc. (Loyon, 1992, p.99 e 145). O centro dinâmico do feudalismo passou a ser a aldeia, que Sandra Costa – Espaço Agrário 3 reproduzia, de modo incompleto e em escala menor, algumas das funções da cidade que lhe precedeu. As aldeias não tinham o mesmo nível de organização das cidades e nem exerciam um papel de centros polarizadores nas redes que integravam o Ocidente. ! A desfavorecer a vida urbana estavam as formas de organização política que sucederam ao centralizado Império Romano. Eram ineficientes no controle do território e na manutenção da unidade, que era mais formal do que real, como no caso do Domínio Carolíngio. Entretanto, o maior problema para a continuidade da vida urbana era a incapacidade da agricultura de gerar excedentes suficientes. ! Em realidade, a crise de abastecimento já vinha se agravando desde o fim do domínio de Roma e sua explicação não se dava unicamente em decorrência da baixa disponibilidade de servos para lavrar a terra. ! O padrão precedente de organização da produção agrícola, baseado na escravidão, já demonstrara, muito antes, o seu esgotamento. Ainda mesmo durante o Império Romano, em 4 Sandra Costa – Espaço Agrário decorrência do absenteísmo dos proprietários e das revoltas escravas, o modelo da grande propriedade utilizadora do trabalho compulsório agonizava. ! Com a instabilidade política do fim da República - o que obrigava a maioria dos patrícios a se deslocar para Roma, entregando a gestão do estabelecimento agrícola aos escravos -, houve uma desorganização da agricultura no antigo império, motivando o seguinte comentário de Lucio Moderato Columella, autor da De Re Rustica, obra que deu maior contribuição ao pensamento agronômico na Antigüidade Clássica: "rem rusticam pessimo cuique servorum, velutcarnifici, noscae dedimus..." (confiamos a agricultura de forma ultrajante aos piores dos nossos escravos, quase uma canificina), apud Rosa (1883, p.167). ! O desaparecimento do modelo de produção agrícola baseado no trabalho compulsório - inicialmente escravo e posteriormente servo e cuja falência já se tornara evidente nos últimos séculos do Império Romano - dava-se, entretanto, muito lentamente, o que só fazia agravar as condições de abastecimento da população urbanizada. 5 Sandra Costa – Espaço Agrário ! Somente no século XII, generalizar-se-ia a idéia de que a escravidão era não-ética, não-lucrativa e desnecessária (Loyon, 1992, p.33). Contudo, não se pode atribuir exclusivamente às relações de trabalho a crise mais geral que se abateu sobre a agricultura nos primeiros séculos da Idade Média. ! Concomitantemente ao problema da ausência no trabalho e da falta de escravos e de servos, ocorria a falência do paradigma agronômico até então dominante. O conhecimento em ciências agrárias do mundo clássico não oferecia soluções para o esgotamento das terras e o trabalho compulsório e não pago bloqueava a emergência de inovações técnicas poupadoras de força de trabalho. ! O estado da arte na agricultura referia-se ao conhecimento sobre cultivo dos solos leves que circundam o Mediterrâneo, os quais já apresentavam um claro quadro de baixa fertilidade, no fim do Império Romano. De outra parte, não se havia consolidado ainda qualquer teoria sobre como cultivar os Sandra Costa – Espaço Agrário 6 solos pesados que se distribuem do norte da Itália em direção ao norte da Europa. ! O esvaziamento das cidades e a incapacidade dos governantes de manter uma organização política centralizada, sobretudo depois do declínio da monarquia carolíngia, tinham como causa principal, portanto, a crise da agricultura, crise esta cuja superação só se daria com mudanças estruturais. Estas deveriam englobar a descentralização política e econômica, a recontratualização das relações de produção e a adoção de um novo modelo de organização da produção agrícola, o qual, mesmo sendo uma imposição histórica, dependia de interações entre a base material da sociedade, a infra-estrutura, e a base das idéias e mentalidades, a superestrutura, as quais não tinham um momento certo para acontecer, condicionando-se ao percurso histórico de cada região. ! O novo contrato implicaria em que a nobreza, detentora do domínio das terras, aceitasse, a título de estímulo à produção, a apropriação por produtores diretos de parte do excedente gerado e que incentivasse os camponeses a adotar inovações tecnológicas. Estas bases terminaram por condicionar a Sandra Costa – Espaço Agrário 7 gênese do sistema de produção familiar medieval na Europa Feudal, o qual nasce associando inovações instituídas nas relações de trabalho - as quais objetivavam superar a crise de abastecimento - com a incorporação de alguns legados em termos de agricultura familiar, que pré-existiam em convívio com o latifúndio escravista. Entre estes legados, estava a divisão da superfície agricultável da terra, principalmente no centro e norte da Itália, em centuriatio1. Esta herança do Império Romano limitava a concentração da terra e ensejava o aparecimento de imóveis menores. ! A agricultura medieval passa a se estruturar a partir das mudanças em três tipos de domínio fundiário que, por sua vez, ensejam três tipos de sistema de produção: 1) as terras de uso do senhor feudal; 2) as terras de uso comunal, mas de posse legitimada pelo senhor feudal; e 3) as terras dos camponeses, oneradas ou não por corvéias e rendas e herdadas pelo senhor feudal. Além destes três tipos, os camponeses detinham uma pequena área cercada, próxima à residência, destinada ao cultivo de frutas e legumes. 8 Sandra Costa – Espaço Agrário ! Na terra do senhor, desenvolvia-se uma agricultura em escala maior na qual trabalhavam os servos e, posteriormente, assalariados, que não possuíam parcelas. Neste caso, toda a produção dela resultante era do senhor feudal, que cuidava da alimentação e das necessidades dos produtores. As terras de uso comunal eram pradarias, pântanos e florestas, onde os aldeões mantinham seus animais para se proverem de lã, carne, leite ou força animal convertida em trabalho para tracionar arados e carroças. Destas terras retiravam turfa e madeira para suas necessidades energéticas e artesanais. As terras dos camponeses eram destinadas às lavouras, onde se praticava, basicamente, a ceralicultura. Sandra Costa – Espaço Agrário 9 ! Este sistema - que na falta de melhor conceituação ensejou uma sociedade definida por negação: não tribal e não industrial -, à exceção as diferenças de região para região na Europa, estava firmemente amparado no direito baseado nos costumes de acesso à terra que veio se consolidando nos poros e brechas deixados pela ocupação latifundiária do solo, baseada na escravidão e na servidão (Mantoux, 1988, p.121). Mesmo sofrendo modificações com o tempo, o modelo manteve seus traços fundamentais até desaparecer por força de amplas transformações que, no âmbito da política e da economia, resultaram da Revolução Francesa e da Revolução Industrial.