A relação erótica autêntica e a realização da reciprocidade em O Segundo
Sexo de Simone de Beauvoir
Juliana Oliva1
Resumo
Em O Segundo Sexo (1949), Simone de Beauvoir analisa a construção da “Mulher”
enquanto ideal de feminilidade à luz do que ela chama “moral existencialista”. Para
Beauvoir, “Homem” e “Mulher” são categorias criadas a partir do corpo humano
enquanto organismo, corpo que, para a autora, não possui nenhum significado e não
determina o destino do ser humano antes da criação de tais categorias e de outros
valores em sociedade. Para ela, os seres humanos existem contingentemente livres e não
são determinados por nada que não sejam as suas próprias escolhas em situação. A
categoria “Mulher”, foco principal de O Segundo Sexo, reduz os seres humanos
identificados como “mulher” ao seu organismo, enquanto os seres humanos ditos
“homem” são direcionados a transcender as condições do próprio organismo em sua
categoria. A mulher é situada como corpo, objeto, o Outro, em relação ao homem e na
relação com o homem, relação sem reciprocidade, em que apenas o homem coloca-se
como sujeito enquanto a mulher, cuja liberdade é contida, é permanentemente colocada
como objeto. Beauvoir identifica a possibilidade de reciprocidade se os indivíduos
estiverem situados de forma que possam apreender o outro e colocar-se,
simultaneamente, como sujeito e objeto, como em uma relação erótica que ela chama
“autêntica”. Esta comunicação pretende apresentar o que Beauvoir identifica como
reciprocidade na relação erótica autêntica e suas implicações na relação homem-mulher
em outros âmbitos.
Palavras-chave: Simone de Beauvoir. Mulher. Reciprocidade.
Em O Segundo Sexo, escrito entre os anos de 1947 e 1949, quando a obra foi
finalizada e então publicada, Simone de Beauvoir reflete acerca da constituição da
subjetividade e da situação dos indivíduos sob as categorias “Homem” e “Mulher” 2, que
estes assumem como se tais categorias fossem essências predeterminadas e imutáveis.
Contrariando a ausência de ser e a liberdade original que os impele a justificar a própria
existência fazendo algo de si mesmos, que, segundo a visão da autora, os caracterizam,
os seres humanos se tornam homens e mulheres e compreendem esse tornar-se como ser
permanentemente, como se essas categorias consistissem em uma natureza.3
1
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Filosofia EFLCH – UNIFESP e bolsista da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail:
[email protected]
2
BEAUVOIR, 2009, p. 30
3
Idem, p. 25
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Identificando a categoria Mulher, que é atribuída aos indivíduos identificados
como pertencentes ao sexo dito “feminino”, situada como inferior à categoria Homem,
situada como “o segundo sexo” em uma hierarquia, Beauvoir foca o seu estudo nos
indivíduos que chamamos “mulheres”. Ela explora os diversos âmbitos e construções do
tornar-se mulher, os desmantela e os analisa adotando a perspectiva “da moral
existencialista”4, na qual ela compreende o que é chamado “ser mulher” como tornar-se
mulher.5 É também importante mencionar que algumas estudiosas de Beauvoir6
interpretam a perspectiva de O Segundo Sexo não como existencialista, mas como
fenomenológica. Por exemplo, para Barbara Andrew, devido à Beauvoir negar um
sistema que explique o mundo ou a consciência humana7; para Andrew e Eva
Lundgren-Gotlhin, pela apresentação de descrições da experiência que mulheres tem de
si mesmas, de seus corpos e de suas mentes, no segundo volume da obra, negando um
modelo universal feminino8; para Karen Vintges, devido à compreensão do indivíduo
em situação9; e para Kristana Arp, pela distinção feita por Beauvoir entre o corpo
vivido pelo sujeito e o corpo objeto.10 Buscamos compreender e examinar a perspectiva
de Beauvoir no contexto da moral existencialista, no qual ela mesma se situa e
conforme a sua apresentação dessa moral; porém, conforme dito anteriormente, sobre a
importância de mencionar essa outra interpretação, consideramos relevante a
contextualização que essas e outras estudiosas fazem do pensamento da autora para a
compreensão da perspectiva de Beauvoir.
A construção do feminino e da situação “total da mulher”11, ou seja, das
condições que cercam a mulher na sociedade, não correspondem a um estado natural da
feminilidade para Beauvoir, não há feminilidade absoluta12, ou melhor, não há
feminilidade anterior a uma construção social. Beauvoir considera a situação da mulher
conforme a mulher lhe aparece, negando um universal de Mulher e uma feminilidade
natural: “Situaremos de maneira inteiramente diferente o problema do destino feminino:
4
Idem, p. 30
5
Idem, p. 361
6
Barbara Andrew, Sara Heinämaa, Karen Vintges, Sonia Kruks, Eva Lundgren-Gothlin, Kristana Arp e Maria
Carmen López Sáenz. (Cf. ANDREW, 2003, p.29 e SÁENZ, 2012, p.186)
7
Cf. ANDREW, op. cit., p.28
Cf. ANDREW, op. cit., p.28; GOTHLIN, 2003, p. 47
9
Cf. VINTGES, 1995, p. 46
10
Cf. ARP, 1995, p.165
8
11
12
BEAUVOIR, op. cit., p. 85
Idem, p. 25
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colocaremos a mulher num mundo de valores e atribuiremos a suas condutas uma
dimensão de liberdade.”13, assim ela descreve o lugar da mulher sob o seu olhar.
Para Beauvoir, todo ser humano é originalmente e contingentemente livre14 e,
no contexto de sua moral existencialista, é preciso que essa liberdade, em cada um, seja
conservada em toda escolha feita por cada indivíduo15. Beauvoir nega que existam
ideias universais e predeterminadas16, o que há ao redor dos seres humanos no mundo
só existe para eles, só existe no “desvelamento do mundo”17, em que os significados e
valores das coisas são atribuídos pelos indivíduos. Por meio desse desvelamento do
mundo então, um mundo humano é criado e a essência de tudo o que existe é
construída, inclusive a de cada indivíduo, que, livre, justifica a sua existência conforme
as suas escolhas, porém, também conforme as limitações da situação na qual se
encontra.18 Ao justificar a própria existência, ele ultrapassa a condição de sua espécie e
se lança para o futuro, ou, nas palavras de Beauvoir, “todo sujeito coloca-se
concretamente através de projetos como uma transcendência.”19
A liberdade original, o que permite que o indivíduo justifique a própria
existência e crie valores, também ganha valor nesse mundo desvelado20, segundo
Beauvoir: “querer o desvelamento do mundo, querer-se livre, é um único e mesmo
movimento.”21 Contudo, os projetos desse movimento só existem no mundo por meio
do reconhecimento por outros sujeitos: “nenhum projeto se define a não ser por sua
interferência com outros projetos; fazer „com que haja‟ ser é comunicar-se através do
ser com outrem.”22 Dessa forma, compreendemos que a interferência dos projetos, os
diversos e simultâneos desvelamentos do mundo, formam o que a autora chama
“situação”.
Em busca das origens do posicionamento do sexo feminino enquanto “o
segundo sexo” e da criação da feminilidade, Beauvoir analisa a situação da mulher
desde os tempos mais primitivos23 até a década de 1940, momento em que escreve O
13
Idem, p. 83-84
Cf. BEAUVOIR, 2005, p. 16-19
15
Idem, p. 21
16
Idem, p. 16
17
Idem, p. 30
18
Idem, p. 17
19
BEAUVOIR, 2009, p. 30
20
BEAUVOIR, 2005, p. 30
14
21
Idem, p. 25
22
Idem, p. 62
23
Cf. BEAUVOIR, 2009, p. 99
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Segundo Sexo, com grande foco na sociedade Ocidental, principalmente nas sociedades
francesa e norte-americana. O percurso de Beauvoir está dividido em dois volumes: no
primeiro, “Fatos e Mitos”, ela apresenta, analisa e recusa o ponto de vista dos homens
sobre as mulheres e do conhecimento que produziram a respeito, em teorias,
historiografia, mitos e literatura. No segundo volume, “A Experiência vivida”, Beauvoir
trabalha com o ponto de vista das mulheres - relatos, cartas, trechos de diários, poesia,
literatura - sobre as suas próprias experiências enquanto indivíduos formados para
tornar-se mulher e situados enquanto tal.
Ao longo da obra, Beauvoir questiona essa situação decorrente da divisão da
humanidade em duas categorias, Homem e Mulher, na qual a mulher é apreendida como
o Outro em relação ao homem, sujeito absoluto, e é direcionada em sua formação a
assumir essa posição como se esta fosse o seu destino, independente da escolha singular
de cada mulher para justificar a própria existência. Para Beauvoir, os organismos
feminino e masculino são diferentes e, definindo o corpo a partir da existência, essas
diferenças não tem sentido em si.24 Considerando a liberdade e a ausência de ser dos
indivíduos, é possível desvelar o mundo de inúmeras formas, e nesse desvelamento é
possível atribuir diversos valores às diferenças biológicas entre os organismos, antes de
classificá-los como homens e mulheres, o que significa que a situação do homem e da
mulher poderiam ser outras e não as que conhecemos. Beauvoir entende que essas
situações como conhecemos tenham sido criadas, e esclarece como família, teorias, leis,
costumes, tradições e a formação de homens e mulheres as constroem e as sustentam.
Posicionada como o Outro desde a infância, a mulher encontra-se em um conflito entre
liberdade original em potencial e uma situação de opressão que ignora a sua
subjetividade e a impele a fazer-se objeto, enquanto a formação do menino, e a situação
masculina, direcionam o homem a transcender a sua existência.25
No caso da mulher, além de ponto de partida da diferenciação do sexo, o corpo,
enquanto organismo é, segundo Beauvoir, “um dos elementos essenciais da situação que
ela ocupa neste mundo”26, o seu destino na sociedade é dado com base no
funcionamento do seu corpo de fêmea da espécie humana. O corpo, “instrumento de
24
Idem, p.67
Idem, p. 375-376
26
Idem, p. 70
25
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nosso domínio do mundo”,27 para Beauvoir, não viabiliza à mulher o domínio do mundo
e nem o seu próprio corpo é de seu domínio, o corpo feminino é onde a mulher se
encontra presa, mas não pela natureza, e sim pelo mundo desvelado pelos homens que
limita a mulher à sua condição de fêmea ao atribuir valores e significados negativos à
constituição do corpo feminino enquanto organismo e, consequentemente, a esse corpo
enquanto situação.
Julie K. Ward, de acordo com a sua leitura de Beauvoir, assinala que toda
perspectiva do corpo é situada28, ou seja, mesmo que se pretenda pensar o corpo
somente enquanto organismo, o que se conhece dele e as definições que lhes são
atribuídas encontram-se situadas em um mundo de valores. Assim, a perspectiva
biológica que compreende aspectos do corpo feminino, como a menstruação e a
menopausa, por exemplo, de forma negativa, já consiste em uma perspectiva
pertencente a uma sociedade da qual carrega os valores. O “corpo vivido pelo sujeito”29,
pelo sujeito dito feminino, carrega em suas experiências o peso da ideia de Mulher, peso
que diversas vezes é fundamentado por interpretações de dados biológicos como
determinações.
De acordo com Judith Butler, para Beauvoir, a mulher é “identificada pela
anatomia”30 e não pela consciência transcendente, a mulher corresponde na
corporeidade ao eu alienado do homem, como se o homem fosse somente sujeito,
consciência transcendente não atrelada a um corpo31, e a mulher, como mencionado,
limitada à condição de fêmea da espécie, como se fosse somente corpo, carne, objeto.
Nessa situação não é o corpo que determina uma suposta essência masculina no homem,
a sua subjetividade é valorizada; tornar-se homem é tornar-se sujeito, um único Sujeito,
é afirmar-se como tal, desvelar o mundo e transcender a sua existência.32 A
subjetividade da mulher está encoberta pelos mitos que ela apreende em sua formação e
cuja confirmação ela encontra em uma difusão de teorias, mitos e costumes ao seu redor
e nos registros históricos sobre outras mulheres, sempre situadas como Outro; ela se
encontra privada de justificar a sua existência conforme a sua própria escolha e impelida
a encarnar mitos, destinada a repetir a história feminina que conhece.
27
Idem, p. 65
Cf. WARD, 1995, p. 225
29
BEAUVOIR, 2009, p. 71
30
BUTLER, 2010, p. 43
31
Idem, Ibidem
32
Cf. BEAUVOIR, 2009, p. 422
28
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Para Beauvoir, a relação intersubjetiva consiste em uma relação entre
indivíduos que são sujeitos para si e objetos para o outro, essa ambiguidade é o que
caracteriza a existência humana, ou seja, todo indivíduo é sujeito para si e objeto para o
outro.33 Contudo, as posições, do homem, enquanto sujeito absoluto, e da mulher,
enquanto Outro, estão fixadas34, por meio da construção de uma situação específica, na
sociedade e, deste modo, também na relação intersubjetiva homem-mulher que passa a
uma relação entre, respectivamente, sujeito e objeto, que não trocam de posição.
Contudo, a mulher, mesmo limitada por sua situação, não deixa de existir enquanto
liberdade, nem deixa de apreender, enquanto sujeito, o homem como objeto na
relação35. Há reciprocidade em potencial nessa relação, que não se realiza pois a
ambiguidade sujeito-objeto de cada um está reprimida.36 Sonia Kruks observa que, para
Beauvoir, o problema na relação homem-mulher não está na objetificação da mulher
realizada pelo homem, mas na ausência de reciprocidade nessa objetificação, a situação
não se inverte, a mulher, “uma potencialidade reprimida”37, não passa à posição de
sujeito e o homem não é objetificado, não há “reconhecimento da intersubjetividade”38.
Beauvoir assinala que a necessidade que um sexo tem do outro em suas
relações nunca engendrou reciprocidade39, não há reconhecimento da subjetividade da
mulher, ambos estão unidos para garantirem as suas posições no mundo, o homem tem
o seu lugar de sujeito confirmado pela mulher e a mulher faz-se objeto para que o
homem justifique a existência dela. Beauvoir observa as mulheres em conjunto em
situação de vassalagem, a mulher serve o homem em troca da manutenção de alguns
privilégios e segurança em sua situação.40 Essa vassalagem, relação sem reciprocidade,
criada a partir das categorias “Homem” e “Mulher” e sustentadas por “fatos e mitos”41,
se concretiza na “experiência vivida”42 de homens e mulheres. Beauvoir observa que as
mulheres não estão unidas43 se opondo à situação de Outro em que vivem, mas estão
ligadas aos homens, como vassalas: a mulher branca é solidária ao homem branco e não
33
Idem, p. 99
Idem, p. 16
35
Idem, p. 343-344
36
Idem, p. 18
37
KRUKS, 1992, p. 100
38
Idem, Ibidem
39
Cf. BEAUVOIR, 2009, p. 548
40
Idem, p. 20
34
41
42
43
Fazendo referência ao título do primeiro volume de O Segundo Sexo.
Tema e título do segundo volume da obra.
Cf. BEAUVOIR, 2009, p. 20
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à mulher negra44, a dona de casa burguesa reproduz as opiniões e a visão do marido,45 e
a camponesa não pode sentar à mesa com o marido durante as refeições na casa que ela
também sustenta economicamente46; é com o homem que a mulher concorda, ela
aprende – e se ilude – que é ele quem a define, a assegura, a protege e a poupa de
assumir a sua existência, que é ele quem garante a ela um lugar neste mundo47, situação
característica não somente do âmbito do casal, mas presente em todas as esferas da
sociedade em todo momento, de acordo com a investigação de Beauvoir ao longo de O
Segundo Sexo.
Para Beauvoir, é preciso libertar a mulher da categoria do Outro, de um ideal
de feminilidade, para que ela seja reconhecida como sujeito e assim haja a ambiguidade
sujeito-objeto na relação homem-mulher.48 Reconhecer a mulher como sujeito é libertála de uma situação de opressão e é também tirar o homem da posição superior e tirar-lhe
os seus privilégios, movimento que depende de ambos os sexos.
Beauvoir identifica a possibilidade de a mulher ser reconhecida como sujeito
em relação ao homem, a realização da ambiguidade sujeito-objeto que caracteriza a
reciprocidade, na relação erótica heterossexual autêntica, relação livre, sem “justificação
estranha”49, cujos valores sejam criados pelo casal, independente de instituições.50
Fazer-se objeto erótico é uma das imposições do mito da feminilidade à
mulher, que deve apreender o próprio corpo, que não lhe pertence, como um objeto a ser
contemplado, desejado e possuído pelo homem, aquele que tem domínio sobre o corpo
feminino, o que exclui a realização da reciprocidade na relação erótica, e em qualquer
outro tipo de relação entre homem e mulher. A relação erótica que Beauvoir chama
“autêntica” é consentida pelos indivíduos dessa relação, que são livres e se relacionam
espontaneamente, independente de instituições ou necessidade de realizar um outro
projeto por meio dessa relação, a ambiguidade sujeito-objeto é assumida e desejada em
si mesmo e no outro por ambos:
44
Idem, Ibidem
Idem, p. 812-813
46
Idem, p. 165
47
Idem, p. 203
48
Idem, p. 343-344
49
Idem, p. 581
50
Idem, p. 518-519
45
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A verdade é que o amor físico não pode ser tratado nem como um fim
absoluto nem como um simples meio: não pode justificar uma
existência, mas não pode tampouco receber nenhuma justificação
estranha. Isso equivale a dizer que deveria desempenhar em toda vida
humana um papel episódico e autônomo. Isso equivale a dizer que
deveria ser livre.51
O “amor físico”, o que entendemos como sinônimo de “relação erótica”, não
pode ser um projeto do indivíduo, nem meio para um projeto; o amor físico também não
pode ser determinado por nada que não o próprio indivíduo que participa da relação, ela
o denomina livre. Assim, sendo livre, é possível realizar o amor físico, a relação erótica,
com outros valores:
[O] prazer é sentido por cada um dos parceiros como sendo seu,
embora tendo sua fonte no outro. As palavras receber e dar trocam
seus sentidos, a alegria é gratidão, o prazer ternura. Numa forma
concreta e carnal realiza-se o reconhecimento recíproco do eu e do
outro na consciência mais aguda do outro e do eu.52
A mulher não é reduzida ao seu corpo, não é humilhada, ao oferecer-se como
objeto na relação erótica se a sua subjetividade for reconhecida pelo homem admitindo
que ela também o objetifica nessa relação: “se [o homem] a [a mulher] deseja em sua
carne, reconhecendo sua liberdade, ela se reencontra como o essencial no momento em
que se faz objeto, ela continua livre na submissão a que consente.”53
Para Beauvoir, o valor do corpo da mulher é criado, sempre pode ser
questionado e recriado, a cada escolha. Debra Bergoffen observa que não é a alteridade
do corpo que é alienante, mas o modo que se vive essa alteridade que determina a sua
relação com a subjetividade54, não é o fazer-se carne da mulher na relação erótica, mas
o fazer-se carne, objeto, em sua existência que a torna objeto. A mulher se oferece como
carne na relação erótica mas não é reduzida ao seu corpo se a sua subjetividade for
reconhecida pelo homem, admitindo que ela também o objetifica nessa relação, que ele
também se faz carne para ela.55 Segundo a leitura de Andrew, para Beauvoir: “nós
podemos ver esse outro como um corpo que tem vontade e nos deleitarmos no prazer
51
Cf. BEAUVOIR, 2009, p.581
Idem, p. 518-519
53
Idem, p. 518
54
Cf. BERGOFFEN, 1995, p.191
52
55
BEAUVOIR, 2009, p. 518
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trazido não só pela objetividade mas também pela subjetividade do outro.”56, o
reconhecimento do outro como sujeito pode ser tão prazeroso quanto possuí-lo como
objeto. Andrew entende que na atividade erótica a ambiguidade humana, colocar-se
como sujeito e ser apreendido como objeto, se esgota em todos os aspectos.57
Beauvoir reflete sobre essa relação na qual ambos colocam-se como sujeito e
objeto simultaneamente, abandonando as posições fixas de suas categorias a ponto de se
sentirem como se fossem também o outro, ela assinala que não deixam de perceber que
nessa união há um outro, contudo esse outro não é apreendido como um Outro absoluto:
Certas mulheres dizem sentir nelas o sexo masculino como uma parte
de seu próprio corpo; certos homens acreditam ser a mulher que
penetram; essas expressões são evidentemente inexatas; a dimensão
do outro permanece; mas o fato é que a alteridade não tem mais um
caráter hostil; é essa consciência da união dos corpos em sua
separação que dá ao ato sexual seu caráter comovente; ele é tanto mais
perturbador quanto os dois seres, que juntos negam e afirmam
apaixonadamente seus limites, são semelhantes e no entanto
diferentes. Essa diferença, que muitas vezes os isola, torna-se, quando
se reúnem, a fonte de seu encantamento; a febre imóvel que a queima,
a mulher contempla-lhe a imagem invertida no seu ardor viril; a
potência do homem, é o poder que ela exerce sobre ele; esse sexo
inflado de vida pertence-lhe, como seu sorriso pertence ao homem que
lhe dá prazer. Todas as riquezas da virilidade e da feminilidade
refletindo-se, apreendendo-se umas através das outras, compõem uma
unidade móvel e estática. O que é necessário a uma tal harmonia não
são requintes técnicos mas antes, na base de uma atração erótica
imediata, uma generosidade recíproca de corpo e alma.58
Beauvoir assinala a sensação de perceber na relação apenas um corpo, o
próprio corpo, como se o outro fizesse parte deste, como se dois corpos se tornassem
um só, mas ela aponta que embora os amantes sintam o outro corpo como parte do seu
ou acreditem ser o outro corpo, ainda há a dimensão do outro na situação. Ela observa
que essa alteridade não tem caráter hostil, mas as diferenças permanecem, porque os
corpos na relação são diferentes, mas e o significado desses corpos? Embora naquele
momento sejam iguais enquanto carne e consciência, sem que um ameace o outro, sem a
oposição entre o homem que possui e a mulher possuída enquanto coisa, as referências
56
“we can see that other as willed body and take delight in the pleasure brought by both the other‟s objecthood and
subjecthood.” (ANDREW, op. cit., p.41)
57
Idem, Ibidem
58
BEAUVOIR, 2009, p.519
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do contexto social no qual ambos foram formados ainda aparecem, e Beauvoir as
descreve: a “potência do homem” e “esse sexo inflado de vida” são as “riquezas da
virilidade” que para a mulher parecem lhe pertencer, e “o seu [da mulher] sorriso”, uma
das “riquezas da feminilidade”, é o que parece ao homem lhe pertencer, essa é a troca
que Beauvoir identifica. A reciprocidade se realiza em uma relação, a relação erótica,
entre um homem e uma mulher, ainda representados pelas imagens de masculino e
feminino que continuam, em outras situações, a anular a reciprocidade entre ambos: o
pênis como símbolo masculino que representa a sua virilidade e a sua capacidade de
transcender, e o sorriso da mulher, expressão a ser admirada daquela que é representada
pela feminilidade, definida pela sua própria condição de fêmea a constituir-se como
objeto a ser admirado, são enfatizados por Beauvoir como o que também ambos tem a
trocar na relação erótica. Assim, no erotismo, a igualdade se realiza ainda no contexto
dos valores que separam homens e mulheres, trata-se apenas de uma possibilidade de
reciprocidade em uma situação que não implicará diretamente em uma mudança na
situação geral das relações entre homem e mulher.
Bergoffen assinala que na experiência erótica o sujeito não é objetificado em
sua carne, por meio dela ele se expressa “como um presente” para o outro, sem ameaças
à sua subjetividade; mas é preciso que aquele que oferece o corpo como presente ao
outro antes experiencie o seu próprio corpo como seu.59 No caso da mulher, para que ela
experiencie o próprio corpo como dela, não só na relação erótica mas em qualquer
relação, em outras esferas da sociedade, é preciso que homem e mulher deixem as
categorias que lhes foram impostas e façam de si o que escolherem, negando
determinações exteriores, conservando a própria liberdade e a liberdade de outrem.
Parece-nos que na relação erótica autêntica Beauvoir identifica nos indivíduos
que se colocam como sujeitos apreendendo o outro, o desejando como carne, objeto, ao
mesmo tempo em que se oferecem a esse outro se fazendo objetos, a realização da
moral existencialista, em que os indivíduos colocam-se como sujeitos em suas relações
intersubjetivas e são apreendidos pelo outro, que também se coloca como sujeito, como
objeto. Andrew, em sua leitura de Beauvoir, também associa o sujeito da relação erótica
autêntica, que compreende a si mesmo e o outro como consciência e corpo ao mesmo
tempo, ao sujeito da moral existencialista de Beauvoir que compreende a si mesmo e o
59
BERGOFFEN, op. cit., p.191
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outro como sujeito e objeto ao mesmo tempo em outros âmbitos.60 Entendemos que
para Beauvoir, a ambiguidade daquele que deseja o outro como objeto e também como
sujeito, para que esse outro também o deseje como objeto, representa a ambiguidade do
indivíduo que justifica a própria existência colocando-se como sujeito diante dos outros
que, também como sujeitos, apreendem e tornam realidade os seus projetos.
Embora Beauvoir relate momentos nas vidas de mulheres em que elas
transcendem a situação de Outro, ela não considera essas conquistas suficientes para
que a situação da mulher seja modificada e para que a mulher possa afirmar-se como
sujeito na sociedade e nas relações intersubjetivas; é a relação erótica que parece um
exemplo, algo como um modelo ou ideal, para a realização da reciprocidade na relação
homem-mulher em todos os âmbitos.
A libertação da mulher depende de seu reconhecimento enquanto sujeito, que
depende de uma mudança em sua situação e também da forma como o homem a
apreende e como ela mesma apreende a si mesma, o que seria possível por meio do
reconhecimento de si mesmo e do outro como sujeito e objeto simultaneamente que
Beauvoir identifica na relação erótica heterossexual autêntica e na moral existencialista.
Ou seja, a reciprocidade entre homem e mulher não consiste em uma realização
exclusiva à relação erótica, mas poderia ser pensada e realizada nas relações entre
ambos em todos os outros âmbitos da sociedade, o que possibilitaria uma mudança na
situação total da mulher. Mas, devido à importância dada por Beauvoir à relação erótica
autêntica para pensar a reciprocidade na relação homem-mulher, faz-se necessário
compreender o papel da relação erótica como o que entendemos como critério apontado
por Beauvoir para a realização da reciprocidade na relação entre homem e mulher para
além da relação erótica, bem como, para compreendermos no que consiste e qual é o
papel da relação erótica, investigar também o que é o erotismo para Beauvoir, a partir
de O Segundo Sexo e para além deste, passando também por algumas de suas obras de
ficção, no contexto da reflexão de Beauvoir acerca da subjetividade feminina ignorada
pela imposição de ideias universais de Mulher que caracterizam a situação feminina e a
relação intersubjetiva homem-mulher.
60
Cf. ANDREW, op. cit., p.41
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Bibliografia
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A relação erótica autêntica e a realização da reciprocidade em O