Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade - SECAD Ministério da Educação UFMG Universidade Federal de Minas Gerais Ricardo Henriques Caminhadas de universitários de origem popular “(...) Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantes e ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esses livros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, que contrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes mais pobres às universidades de excelência do país ou só o permite para os cursos com menor prestígio social.” UFMG Caminhadas de universitários de origem popular Caminhadas de universitários de origem popular UFMG Copyright © 2006 by Universidade Federal do Rio de Janeiro / Pró-Reitoria de Extensão. O conteúdo dos textos desta publicação é de inteira responsabilidade de seus autores. Organização da Coleção: Jorge Luiz Barbosa Coordenação Técnica: Ana Inês Sousa Programação Visual: Seção de Produção Editorial da Extensão / PR-5 / UFRJ Coordenação: Claudio Bastos Anna Paula Felix Iannini Thiago Maioli Azevedo Revisão de Textos: Simone Maria de Paiva Martins Imagem da Capa: www.imageafter.com Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares Caminhadas de universitários de origem popular Rio de Janeiro - 2006 Coleção Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva Ministério da Educação Fernando Haddad Ministro José Henrique Paim Fernandes Secretário Executivo André Luiz de Figueiredo Lázaro Secretário Executivo Adjunto Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade - SECAD Ricardo Henriques Secretário Departamento de Desenvolvimento e Articulação Institucional Francisco Potiguara Cavalcante Junior Diretor Programa Conexões de Saberes: Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares Jailson de Souza e Silva Coordenação Nacional Geraldo Leão Carneiro Juarez Tarcísio Dayrell Luiz Carlos Felizardo Junior Nilma Lino Gomes Rodrigo Ednilson Jesus Shirley Aparecida de Miranda Coordenação na Universidade Federal de Minas Gerais Caminhadas de universitários de origem popular Bolsistas Autores Amador da Luz Moreira Filho Cátia Cristina Avelino Célia Diamantino Oliveira Cláudia Maria Aparecida Santos Cristina Ferreira Sabino Edna da Silva Angelo Eduardo Silva Pereira Elisânea Martins Lima Everton Corrêa Fagner Patrício Lucas Heloíza Helena da Costa Josemeire Alves Pereira Juliana Horta de Assis Pinto Júlio Érico Alves de Arruda Leonardo Augusto dos Santos Maria Aparecida Rodrigues da Rocha Marizete Aparecida da Silva Matheus da Costa Alves Pereira Paulo Henrique Reis de Sena Reginaldo Ferreira da Silva Rodrigo Marcos de Jesus Soraya Martins Patrocínio Tatiana Lucia Cardoso Thiago de Jesus Gonçalves Vanderlúcia Aparecida da Costa Wallace Marcelino Pereira Instituições Parceiras: Observatório de Favelas do Rio de Janeiro Jailson de Souza e Silva Dalcio Marinho Gonçalves Coordenação Editorial da Coleção “Caminhadas de Universitários de Origem Popular” Universidade Federal de Minas Gerais Ronaldo Tadêu Pena Reitor Heloisa Maria Murgel Starling Vice-Reitora Ângela Imaculada Loureiro de Freitas Dalben Pró-Reitora de Extensão ProEX – Pró-Reitoria de Extensão Programa Ações Afirmativas na UFMG Observatório da Juventude da UFMG FUMP – Fundação Mendes Pimentel Prefácio A sociedade brasileira tem como seu maior desafio a construção de mecanismos que permitam, sem abrir mão da democracia, o enfrentamento da secular desigualdade social e econômica que caracteriza o país. E, para isso, a educação é um elemento fundamental. A possibilidade da educação contribuir de forma sistemática para esse processo implica uma educação de qualidade para todos, portanto, uma educação que necessita ser efetivamente democratizada, em todos os níveis de ensino, e orientada, de forma continuada, pela melhoria de sua qualidade. O Ministério da Educação, no atual governo, persegue de forma intensa e sistemática esses objetivos. Conexões de Saberes é um dos programas do MEC que expressa de forma nítida a luta contra a desigualdade, em particular no âmbito educacional. O Programa procura, por um lado, estreitar os vínculos entre as instituições acadêmicas e as comunidades populares e, por outro, melhorar as condições objetivas que contribuem para os estudantes universitários de origem popular permanecerem e concluírem com êxito a graduação e pós-graduação nas universidades públicas. O programa, criado pelo MEC em dezembro de 2004, é desenvolvido a partir da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD-MEC) e representa a evolução e expansão, para o cenário nacional, de uma iniciativa elaborada, na cidade do Rio de Janeiro no ano de 2002, pela Organização da Sociedade Civil de Interesse Público Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. Na ocasião constitui-se uma Rede de Universitários de Espaços Populares com núcleos de formação e produção de conhecimento em várias comunidades populares da cidade. O Programa Conexões de Saberes criou, inicialmente, uma rede de estudantes universitários em cinco universidades federais, distribuídas pelo país: UFRJ, UFF, UFPE, UFMG e UFPA. A partir de maio de 2005, ampliamos o programa para mais nove universidades federais: UFAM; UFC; UFPB; UFBA; UFMS; UnB; UFES; UFPR e UFRGS. Em 2006, o Ministério da Educação já assegurou, em todos os estados do país, 31 universidades federais integrantes do programa. Essas Universidades, a partir do Conexões de Saberes, passam a ter, cada uma, ao menos 25 universitários que participam de um processo contínuo de qualificação como pesquisadores; construindo diagnósticos em suas instituições sobre as condições pedagógicas dos alunos de origem popular e desenvolvendo diagnósticos e ações sociais em comunidades populares. Dessa forma, busca-se a formulação de ações voltadas para a melhoria das condições de permanência dos alunos de origem popular na universidade pública e, também, aproximar os setores populares da instituição, ampliando as possibilidades de encontro dos saberes destas duas instâncias sociais. Nesse sentido, o livro que tem nas mãos, caro(a) leitor(a), é um marco dos objetivos do Programa: a coleção “Caminhadas” terá 14 livros publicados em 2006, reunindo as contribuições das universidades integrantes do Conexões de Saberes em 2005. Em 2007, teremos 17 novas obras, que reunirão os relatos dos estudantes das universidades que ingressaram no Programa em 2006. Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantes e ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esses livros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, que contrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes mais pobres às universidades de excelência do país ou só o permite para os cursos com menor prestígio social. Que este livro contribua para sensibilizar, fazer pensar e estimular a luta pela construção de uma universidade pública efetivamente democrática, uma sociedade brasileira mais justa e fraterna e uma humanidade a cada dia mais plena. Ricardo Henriques Secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Ministério da Educação Sumário Apresentação Shirley Aparecida de Miranda........................................................................ 9 Memoriais Conexões para chegar à universidade Thiago de Jesus Gonçalves ....................................................................................... 13 Casinha branca Tatiana Lucia Cardoso ............................................................................................. 19 Caminho de pedras Edna da Silva Angelo ................................................................................................ 26 Do ensino médio à UFMG: considerações acerca de uma trajetória Amador da L. Moreira Filho ..................................................................................... 30 Mais que pedras Cátia Cristina Avelino............................................................................................... 33 Uma longa e insistente caminhada Célia Diamantino Oliveira ........................................................................................ 40 Trilhando um caminho de lutas e conquistas Cláudia Maria Aparecida Santos.............................................................................. 43 Menino do Rio Fagner Patrício Lucas .............................................................................................. 47 Kilundu Cristina Ferreira Sabino ........................................................................................... 53 Devemos sempre lutar Everton Correa Alves ................................................................................................ 56 Uma trajetória permeada por contradições Heloíza Helena da Costa........................................................................................... 61 A luta Júlio Érico Alves de Arruda ...................................................................................... 65 Entre flores e pedras Elisanea Lima ........................................................................................................... 69 Minha trajetória Marizete Aparecida da Silva ..................................................................................... 77 Não vim até aqui para desistir agora Leonardo Augusto dos Santos ................................................................................... 81 Passo a passo vou me construindo... Maria Aparecida Rodrigues ...................................................................................... 87 Algumas notas sobre minha trajetória e permanência na UFMG Matheus Costa Alves Pereira .................................................................................... 92 Memória em fragmentos Rodrigo Marcos de Jesus .......................................................................................... 98 A mãe e o menino Paulo Henrique Reis de Sena .................................................................................. 107 Minha trajetória acadêmica Reginaldo Ferreira Silva......................................................................................... 112 Pequeno recorte Soraya Martins Patrocínio ...................................................................................... 116 Trajetória acadêmica: a reconstrução de uma história Juliana H. de Assis Pinto ........................................................................................ 118 A formiguinha e o elefante Vanderlucia Aparecida da Costa ............................................................................ 124 Vida de comum Wallace Marcelino Pereira ..................................................................................... 129 Singularidades compartilhadas: aspectos de uma trajetória Josemeire Alves Pereira .......................................................................................... 134 Posfácio Luiz Carlos Felizardo Junior e Rodrigo Ednilson de Jesus ................................... 145 Apresentação Vamos bordando a nossa vida, sem conhecer por inteiro o risco; representamos o nosso papel, sem conhecer por inteiro a peça. De vez em quando, voltamos o olhar para o bordado já feito e sob ele desvendamos o risco desconhecido; ou para as cenas já representadas, e lemos o texto, antes ignorado. E é então que se pode escrever (...) a “história”. (Magda Soares1) A democratização do acesso ao Ensino Superior e o fortalecimento da trajetória de estudantes de origem popular são desafios contemporâneos para a universidade pública no Brasil. Com a intenção de enfrentar esses desafios, a Universidade Federal de Minas Gerais se incorporou, em 2005, ao Projeto Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares, desenvolvido pela SECAD/MEC junto às universidades federais, em parceria com o Observatório de Favelas. O objetivo do Conexões de Saberes é estimular a aproximação da universidade e as regiões populares, através da interlocução entre saberes e experiências. Em cada universidade participante do Projeto , foram selecionados, pelo menos, vinte e cinco jovens de origem popular, que tivessem inserção em algum tipo de movimento social. No nosso caso, adotamos também o critério de pertencimento racial identificando alunos e alunas que se declararam pretos ou pardos (negros e afrodescendentes). Identificamos os jovens com esse perfil por meio do cadastro da Fundação Universitária Mendes Pimentel – FUMP4 , que se tornou mais uma parceira do Projeto. 1 SOARES, Magda. Metamemória-memórias: travessia de uma educadora. São Paulo: Cortez, 1991. Em 2006, o Conexões de Saberes altera sua institucionalidade para Programa de Extensão, composto de três subprojetos: Memória Viva, desenvolvido em Belo Horizonte, no Aglomerado Santa Lúcia, em parceria com o Grupo Teatro do Beco, a Associação dos Universitários do Morro – AUM e o Centro Cultural da UFMG; Juventude em Movimento, em parceria com a Prefeitura de Contagem e o Democratização da Universidade. 3 No ano de 2005, o Conexões era composto por quatorze universidades, aqui representadas por suas siglas: UFF; UFRJ; UFPE; UFPA, UFMG, UFES; UFRGS; UFPR; UNB; UFMS; UFBA; UFPB; UFC e UFAM No exercício de 2006, mais 17 universidades se integram ao Programa, a saber: UFAC, UNIFAP, UNIR, UFRR, UFT, UFG, UFMT, UFAL, UFMA, UFRPE, UFPI, UFRN, UFS, UNIRIO, UFRRJ, UFSCar e UFSC, totalizando 31 IFES a desenvolverem um projeto de permanência de estudantes de origem popular nas universidades públicas. 4 A Fundação Mendes Pimentel tem como missão prestar assistência ao corpo discente da UFMG, equalizando as condições socioeconômicas básicas para uma formação acadêmica de qualidade. Desenvolve Programas de Assistência Estudantil, que respondem às necessidades de atenção à saúde, de alimentação de qualidade nutricional e higiênica, acesso a livro e moradia, através de bolsas socioeducacionais e de manutenção (reembolsáveis ou não), e de participação em eventos culturais, entre outras. 2 Universidade Federal de Minas Gerais 9 O Projeto Conexões da UFMG é desenvolvido na Faculdade de Educação, em articulação intrínseca com o Observatório da Juventude da UFMG e o Programa Ações Afirmativas na UFMG. Consideramos os acúmulos construídos nesses Programas, que evidenciam o distanciamento do espaço acadêmico em relação ao repertório cultural da maioria dos alunos pretos e pardos de origem popular, o que repercute na pouca inserção desse grupo em projetos de pesquisa e atividades acadêmicas que extrapolem as bolsas de assistência estudantil destinadas para alunos pobres. Concluímos que a desconstrução das representações sociais negativas sobre os alunos e as alunas de origem popular e o reconhecimento e a legitimação de seus saberes são as condições necessárias para o acesso e a permanência bem-sucedida desses jovens na universidade. Assim, nossa primeira estratégia de trabalho com alunos e alunas bolsistas foi a reflexão sobre sua identidade e trajetória. Interessa-nos identificar as dificuldades que os jovens negros e afrodescendentes de origem popular enfrentam e conferir visibilidade às estratégias que têm desenvolvido para superar as barreiras em seu percurso de inserção acadêmica, em função do diferenciado capital cultural que possuem. Nesse trajeto, nos defrontamos com experiências singulares, reveladoras da persistência desses jovens que enfrentaram dolorosos percalços para ingressar na universidade. Essa capacidade de ultrapassar a inexorabilidade das condições sociais e reinventar sua própria história precisa ser reconhecida, valorizada e incorporada aos processos acadêmicos e sociais. É com esse objetivo que organizamos esta publicação. Nossa aposta é que o contato de outros leitores e leitoras com as trajetórias dos estudantes de origem popular na universidade ajude a problematizar as condições de acesso e permanência nesse espaço. Queremos que a riqueza desse “saber sobre a vida” possa se expressar na voz desses sujeitos. Queremos também compartilhar com outros leitores e leitoras as emoções que sentimos quando ouvimos, lemos e dialogamos sobre essas trajetórias. Orientar a escrita de um percurso de vida: esse foi o desafio que a coordenação executiva do Projeto Conexões de Saberes na UFMG se propôs. Uma tarefa desafiadora porque a elaboração escrita não é uma obra milagrosa, um ato de inspiração ou o exercício de um “dom”. É um trabalho artesanal – composto de idas e vindas, reescritas, releituras e novas leituras na construção de tessituras outras. Esse trabalho pode ser prazeroso, mas nunca prescindirá de esforço e de tempo. Outro desafio foi a composição de um texto narrativo que ultrapassasse a enumeração de fatos e trilhasse um caminho reflexivo. Estávamos lidando com questões delicadas e complexas, com emoções guardadas, silenciadas, abafadas. E nas lacunas dos textos, insistíamos: fale, prossiga, detalhe, esclareça! Havia também o oposto, um exagero de detalhes que denunciava a necessidade de lapidação do texto, mas não só. Era o eco de um grito repercutindo, uma indignação que rompia o aprisionamento. Encontrar junto com cada autor e autora o limite adequado causou incômodos e dissabores. Mas outros sabores emergiram. Boa parte do risco do bordado foi encontrado coletivamente, socializando as produções e as histórias. Compartilhamos descobertas e tentamos ampliar a capacidade analítica, indagando em que medida as trajetórias pessoais se entrelaçam com vivências geracionais e se constituem em processos socioculturais. É bom lembrar que solidariedade vem do latim sólos – sólido – e é o contrário de solidão. A autoria foi sendo produzida solidariamente. 10 Caminhadas de universitários de origem popular O processo de orientação resultou num emocionante trabalho. Quantas vezes lágrimas e sorrisos atravessaram a leitura dos textos! Quanta admiração brotou! Alcançar a retidão nos aspectos formais da língua escrita exige um trabalho muito criterioso, principalmente num grupo em que a maioria iniciava os primeiros passos nesse percurso. Os índices de oralidade e aspectos que comprometiam a coerência textual – redundâncias, uso inadequado de conectivos, entre outros – eram recorrentes nas produções. Agradecemos o trabalho de revisão de Rosane Pires, que foi essencial, não só na lapidação dos textos, mas no diálogo com os autores e autoras. Ao final, a revisão tornou-se um processo formativo, um diálogo produtivo, uma conexão de saberes. Assumir uma autoria, construir um estilo próprio e inserir-se nos padrões acadêmicos! Esses passos só começaram. Ainda estamos desvendando o risco do bordado. Ainda estamos escrevendo histórias. Shirley Aparecida de Miranda Belo Horizonte, verão de 2006 Grupo Conexões de Saberes UFMG (2005) Universidade Federal de Minas Gerais 11 Conexões para chegar à universidade A universidade não poderá continuar se sustentando enquanto espaço intelectual, cientifico, educativo e político por muito tempo, se continuar distante e desinteressada das questões que dizem respeito aos direitos humanos, ao diálogo das culturas e aos direitos do povo. É nesse sentido que vejo a importância do projeto Conexões de Saberes na UFMG. Um dos objetivos do projeto é problematizar as relações existentes entre os saberes populares e a universidade. Busca-se, assim, articular o conhecimento científico com os saberes populares, a fim de que a universidade se abra verdadeiramente para a sociedade. Uma das ações propostas pelo projeto para incentivar essa conexão foi a criação de textos que valorizem a história escolar e a vida dos alunos universitários negros de camadas populares. Aqui, subjaz a crença de que, através dessas histórias singulares, podemos entender um pouco como se constrói a relação com o saber e com escola entre alunos pobres de origem negra. Então, mesmo diante das dificuldades impostas pela excludente e discriminatória organização social brasileira, fato é que esses e outros alunos de camadas populares alcançam e realizam seus cursos superiores. É de se esperar que, dessa forma, se abra cada vez mais espaço para um diálogo sobre questões relacionadas ao acesso e à permanência na universidade pública, que, atualmente, é cercada pelo mito de ser ela uma instituição amplamente democrática. E que o acesso e a permanência de indivíduos de diversos seguimentos sociais se devem pelo mérito individual dos indivíduos pertencentes a esses segmentos sociais. Este projeto visa dar visibilidade à trajetória escolar e universitária dos alunos de camada popular e mostrar que uma trajetória de sucesso não é construída ao acaso ou simples e puramente por mérito individual. Assim, espera-se demonstrar que as trajetórias desses alunos de camadas populares, apesar de singulares, não foram vividas individualmente, passaram e passam também por tomadas de decisões políticas, sociais, culturais, coletivas e individuais. E que a universidade, ao problematizar e dar visibilidade a essas trajetórias escolares – e de vida –, entenda e tente conectar-se de maneira mais dinâmica com a sociedade. Diante disso, espero poder contribuir com um breve relato de minha história escolar. Um primeiro aspecto que gostaria de destacar é a relação com o universo escolar na minha família. Como foram e até aonde foram os estudos de meus pais, avós e irmãs. Meu objetivo com o relato desse aspecto é o de pensar e fazer com que se pense como minha relação com a escola e com os estudos foi influenciada pela relação da minha família com a escola. Meu pai é de origem negra e possui cerca de cinco anos de estudo. Meu pai não chegou a conhecer o próprio pai. E sua mãe, devido a dificuldades financeiras, deixou-o aos cuidados de seus pais quando ainda era pequeno. Meu pai, portanto, foi criado pela tia. Por isso, e pelas dificuldades financeiras que sempre são presentes nas famílias de origem popular, começou a trabalhar muito cedo, antes dos 14 anos. O fato de trabalhar desde muito novo acabou impossibilitando-o de dar continuidade aos estudos. Entretanto, com o passar dos anos ele Universidade Federal de Minas Gerais 13 conseguiu fazer alguns cursos de qualificação na área hospitalar. Isso lhe deu a possibilidade de trabalhar como auxiliar de enfermagem, função que exerce atualmente na rede pública de hospitais. Apesar do pouco tempo de estudos escolares, meu pai sempre valorizou muito os estudos, uma vez que ele trabalhou com pessoas e fez amigos no ambiente hospitalar, que tinham alto grau de escolaridade, ou porque queria que seus filhos tivessem a oportunidade de ir mais longe do que ele na escola. Mesmo com essa vontade de que seus filhos tivessem uma longevidade maior na escola, não significou que foram gastos recursos financeiros (como exemplo aulas particulares, cursos preparatório ou escolas particulares) que tivessem como intuito nos preparar para o ingresso em uma universidade. Minha mãe, diferentemente de meu pai, teve a figura dos pais presente em sua vida. Minha mãe é filha de uma negra com um branco de origem portuguesa. Ela, ao contrário de meu pai, teve uma maior trajetória escolar, chegando a concluir o magistério de nível médio. Atualmente, é professora primária da Rede Estadual de Educação. Minha mãe teve uma vida diferente da de meu pai, apesar de ambos serem de origem popular, ela teve um incentivo maior para continuar seus estudos. Ela teve um apoio financeiro de seu padrinho para concluir o magistério. E, dessa forma, não necessitou interromper os estudos para trabalhar. Fato que não aconteceu com seu irmão que, aos 14 anos, teve de parar os estudos a fins de trabalho. Da união dos meus pais, nasceram três crianças, eu e minhas irmãs, Cristina e Verônica. A primeira, Cristina, tem atualmente 24 anos e trabalha como agente de saúde. Cristina concluiu apenas o Ensino Fundamental. Ela teve de largar os estudos devido a uma gravidez aos 16 anos. Mas mesmo antes dessa gravidez, ela já vinha tendo problemas na escola referentes à indisciplina, ocasionando uma reprovação. A segunda, Verônica, tem atualmente 18 anos e está cursando pela segunda vez o 2º ano do Ensino Médio. Ao pensar a relação da minha família com a escola, percebo que foi uma relação na qual nunca se configurou um plano que objetivava com que seus membros realizassem os estudos superiores. Portanto, minha trajetória escolar, tento em vista esforços familiares para alcançar o Ensino Superior, é de certa forma um fato “inusitado” uma vez que sempre estudei em escolas públicas, que não tinham nenhum status escolar, e que sou o primeiro da minha família em três gerações a cursar o Ensino Superior. Entretanto, acredito que não é somente o esforço empreendido pela organização familiar que me levou (e podem levar outros) ao “sucesso escolar” – considero como sucesso escolar o fato de ser de camada popular e estar cursando uma universidade pública, que, como se sabe, apesar de ser considerada como um espaço de acesso democrático, é na verdade, um lugar de difícil acesso, principalmente se você é oriundo de camadas populares – e para demonstrar o que disse anteriormente, falarei agora da minha vida na escola e em outros espaços formativos e educacionais. Minha vida escolar começa, oficialmente, aos sete anos de idade, na Escola Estadual Coronel Vicente T. Júnior, localizada no bairro que resido, Vera Cruz. Porém, devido a minha mãe ser professora, tive um contato anterior com a escola. Esse contato possibilitou-me ver o funcionamento, as regras e os valores que seriam cobrados, posteriormente, na escola. Vivi, acredito, uma situação que a maioria dos outros alunos de origem popular não vive e que, obviamente, influenciou toda a minha trajetória escolar e meu relativo sucesso na escola. 14 Caminhadas de universitários de origem popular Lembro que minha mãe sempre trazia livros didáticos da escola para que eu pudesse “brincar de escrever”, sempre tive um contato muito próximo e precoce com a escrita e com a leitura em minha casa. Segundo relato de minha mãe, quando criança, ainda aos três anos, sempre que ela fazia seus “planos de aula”, dava-me ou eu pedia lápis e caderno e brincava de escrever. Além disso, o contato com a escola se dava também, nos momentos de festas da/na escola. Dessa maneira, ao ingressar na escola ao sete anos, a relação que eu havia construído com a escola não era a de uma simples obrigação ou ofício de aluno. Era também uma relação prazerosa. O fato de ser filho de professora fez com que eu desse um significado e me mobilizasse diferentemente dos outros alunos em relação à escola. Por minha mãe ser professora, o trabalho de mobilização escolar sempre ficou a seu cargo. Ela, mais que meu pai, era quem cobrava de mim e das minhas irmãs o comprometimento com os estudos. Entretanto, como já disse, o estudo universitário nunca foi uma coisa planejada sistematicamente por minha família, a possibilidade de chegar à universidade foi algo construído à medida que eu ia obtendo êxitos nos estudos. A participação de meu pai na vida escolar limitava-se ao apoio material e participações esporádicas em reuniões e festas escolares. Minha mãe e minha irmã mais velha, até certo momento, é que acompanhavam meus deveres de casa e meu envolvimento com a atividade escolar. Minha mãe utilizava-se de uma pressão psicológica para mobilizar a mim e minhas irmãs em relação à escola. Ela depositava em nós (filhos) todas as responsabilidades pelo bom desenvolvimento escolar, para ela nós deveríamos aprender na escola. Lembro-me que ela dizia que não era por ela ser professora que deveríamos esperar que ela nos auxiliasse de forma direta e constante nas tarefas escolares e que deveríamos prestar atenção às aulas. Isso passou a significar, para mim, que, ao estudar, era importante que não fosse necessária intervenção de minha mãe na resolução de tarefas escolares e que dessa forma eu seria mais independente na escola. Lembro-me que, durante as primeiras séries do ensino fundamental (1ª à 4ª série), minha postura como aluno sempre foi a de um aluno atento, disciplinado. Eu sentia uma certa necessidade e cobrança de demonstrar aos professores e colegas de classe um bom aproveitamento na escola, devido ao fato de ser filho de professora. Concluído o primário, mudei de escola. Aos 11 anos, na 5ª série comecei a estudar em uma escola localizada em um bairro próximo. A escola chama-se Escola Estadual Caminho a Luz e fica no bairro Esplanada. Nessa escola, havia predominantemente alunos com uma condição social melhor do que a dos alunos da escola que estudei anteriormente. O primeiro ano foi um ano de adaptação, novos colegas, novos professores e uma forma de relação com a escola muito diferente da anterior. Foi nessa escola que a universidade começou a se desenhar como uma perspectiva de mudança e futuro para mim. Foi nessa escola que tive pela primeira vez um contato mais próximo com pessoas que haviam cursado o ensino superior, seja através de professores ou através de pais e irmãos de amigos de escola que estavam cursando ou haviam cursado o ensino superior. A partir da sétima série, minha relação com alguns professores da escola deixou de ser puramente um relacionamento de aluno/professor baseado na disciplina e passou a ser um relacionamento de aluno/professor com um vínculo de amizade. Criei um vínculo de amizade Universidade Federal de Minas Gerais 15 com minha professora de português Analpia. Esta professora despertou em mim o gosto e hábito pela/da leitura. Certa vez, em sala de aula, ela deu a mim e a meus colegas, a tarefa de montar uma pasta literária que deveria ter biografia e obras dos autores estudados por nós durante aquele ano. Estava tendo dificuldades em montar minha pasta, pois não havia me identificado com nenhum dos autores estudados. Então resolvi transmitir minhas insatisfações e dificuldades para a professora. Pensei, a princípio, que a professora ira ser intransigente e inflexível no assunto. Mas para minha surpresa ela perguntou-me que autor ou tipo de texto eu gostaria de ter em minha pasta. Disse a ela que preferia textos mais curtos e com humor. Então ela me emprestou um livro de Luis Fernando Veríssimo e disse: “Leia esse livro, talvez você goste e então faça sua pasta sobre ele, caso não goste, você deverá ler outros autores, para que possa fazer sua pasta. Busque ter prazer e não dor ao ler”. O livro indicado, a atitude e o que ela me disse sobre o ato da leitura mudoram muito minha relação com os livros e com os professores de uma forma geral. Creio que ela me fez despertar para uma “leitura mais prazerosa” e uma relação mais afetiva com alguns professores. Aos 14 anos e ao final da oitava série, surge a possibilidade de trabalhar como aprendiz em uma rede de supermercados. Foi uma possibilidade que me deu a oportunidade de auxiliar na renda familiar, sem com isso atrapalhar meus estudos. Esse contrato de aprendiz me possibilitou, também, estudar na escola profissionalizante do SENAC. No SENAC, além da formação profissional voltada para o comércio, tive a oportunidade de aprofundar meus estudos em língua portuguesa, matemática comercial, redação e geo-história de Minas Gerais. No SENAC, tive também um curso básico de informática e digitação que foi muito importante na minha formação. Esse primeiro contato com o mercado do trabalho ampliou minhas relações sociais. Nessas novas relações sociais, sempre era posto o valor dos estudos e de certa forma a importância dos estudos universitários. Sempre que dialogava com funcionários da empresa ou com colegas que estudavam no SENAC, o estudo e a universidade surgiam como uma forma de ascensão social. O Ensino Médio, cursado na Escola Estadual Caminho a Luz, transcorreu como nas séries anteriores, sem nenhuma dificuldade. Sempre fui, sem falsa modéstia, um dos melhores alunos da classe durante o Ensino Fundamental. No segundo ano do Ensino Médio, tive a oportunidade de participar de uma seleção para fazer um curso profissionalizante no SENAI, no qual havia uma ajuda de custo. Assim como no SENAC, agora, no SENAI, tive além de uma formação profissional, uma formação escolar na qual aprofundei meus conhecimentos em língua portuguesa, matemática e língua estrangeira (inglês). No SENAI, tive a oportunidade de fazer um curso básico de desenho técnico e um novo curso de informática. Outra vez, as relações sociais construídas no SENAI davam ao estudo um grande valor na ascensão social. No Ensino Médio, minhas relações sociais se ampliaram bastante, mas, em todas, o diálogo sobre a importância e a possibilidade de se fazer um curso superior era freqüente e comum. Acredito que foi, nesse período, que a universidade passou de um sonho a um desejo. Uma possibilidade que poderia ser real se eu me dedicasse. 16 Caminhadas de universitários de origem popular O que disse acima se tornou fato, no final do Ensino Médio, quando tentei pela primeira vez o vestibular na UFMG. Naquele ano havia tentado, sem êxito, o curso de Ciências Sociais. Optei por esse curso devido a uma aproximação com um professor de sociologia do colégio. Ele, professor, negro, de origem popular – ressaltei a raça desse professor primeiro porque era difícil ter um professor negro no Ensino Médio, segundo pela sua visão crítica acerca do funcionamento escolar e da sociedade, além de uma atitude afirmativa em relação ao pertencimento racial – me instigou bastante a pensar sobre temas como racismo, raça, desigualdades sociais, valores éticos sobre na/a educação. Da amizade com esse professor, chamado Jairison, ficaram os ensinamentos e questionamentos sobre desigualdades, raças e educação e a vontade de me tornar um educador e poder contribuir para uma mudança social mais ampla. Após terminar o ensino médio, passei por problemas familiares (divórcio dos pais) e foi necessário trabalhar para auxiliar minha mãe no sustento familiar. Trabalhei durante um ano em uma rede de supermercados (o curso do SENAC me valeu nessa hora) e foi necessário deixar de lado, durante esse tempo, o sonho de ser universitário. Mas, ao final de um ano, pedi para ser “desligado” da empresa e voltei a me dedicar aos estudos no intuito de me tornar um universitário. Devido às condições econômicas em que me encontrava não foi possível fazer um curso pré-vestibular, mas mesmo assim não desisti de tentar fazer o concurso na UFMG. Na época, havia conseguido isenção para o vestibular da UFMG o que me motivou bastante a estudar para o vestibular. Diante das dificuldades financeiras para pagar um cursinho, busquei estudar em espaços alternativos: Biblioteca Pública do Estado, Centro Cultural do Alto Vera Cruz, Centro Cultural de Belo Horizonte, bibliotecas das escolas em que havia estudado etc. Esses espaços alternativos foram muito importantes para meu sucesso no vestibular, pois neles conheci diversas pessoas que me ajudaram tanto de maneira objetiva: empréstimo de livros para o vestibular, livros didáticos e outros materiais para estudo, como de maneira subjetiva: apoio emocional nas horas difíceis, conselhos sobre o vestibular e as provas. Minha família e meus amigos ajudaram também de forma direta e indireta: diretamente, no auxilio das passagens e alimentação para poder estudar e buscar livros nas bibliotecas e centros culturais longe de casa. E, indiretamente, no apoio afetivo e moral que me era dado. Chegando a época das inscrições para o vestibular, surgiu em mim uma grande dúvida, para qual curso deveria prestar os exames. Tentaria, novamente, Ciências Sociais ou tentaria Pedagogia. A Pedagogia surgiu como opção em uma dessas conversas que tive nos espaços alternativos de estudo. Algumas pessoas diziam ver em mim uma grande afinidade com questões relacionadas à educação. E que eu deveria unir a vontade de ser professor com esse de interesse por questões educacionais. Busquei, então, me informar sobre o curso de Pedagogia e sobre a profissão de pedagogo em revistas, artigos etc. Acabei optando prestar vestibular para Pedagogia, o que não me arrependo, ao contrário, sinto cada dia mais orgulho e vejo que foi acertada minha escolha. Escolhida a área e prestado o vestibular, conseguimos entrar na UFMG – falo no plural porque essa conquista não foi só minha, foi também da minha família, de meus amigos e das pessoas que de alguma forma me auxiliaram nessa conquista. Após a merecida comemoração veio a dúvida: entramos, mas como nos manter na universidade? Era sabido por mim e por minha família que a manutenção em um curso universitário não era fácil, demandaria dinheiro para xerox, livros, transporte, alimentação. Dinheiro que Universidade Federal de Minas Gerais 17 provavelmente não teríamos; diante dessa dificuldade, ressalto com foi importante a ajuda desempenhada pela FUMP (Fundação Universitária Mendes Pimentel). Através dela, pude e posso manter-me no curso, devido a auxílio assistencial dado pela instituição. A entrada na universidade representou também a entrada em um mundo diferente ao qual eu estava acostumado. Na universidade, vi pessoas que tiveram uma vida repleta de oportunidades e de vivências que eu nunca tive. Pessoas que viveram uma história de vida muito diferente da minha, vidas com um número bem menor de privações e preconceitos. Na universidade, vivi um grande conflito que era o do saber e o de valorizar o local de minha origem. A universidade, por ser um ambiente composto por uma elite intelectual e social, às vezes, tenta fazer você negar suas origens para ser aceito no meio. Quando você não aceita essa imposição, é necessário que você se fortaleça fora desse meio para poder agüentar a pressão. Busquei me fortalecer voltando aos colégios e espaços alternativos que foram importantes para minha entrada na universidade. Lá tento demonstrar que é possível e que é direito nosso estudar em uma universidade pública, e que há mais do que mérito individual ao se entrar em uma universidade. Mas na universidade também conheci pessoas com histórias parecidas com a minha e que me fortaleceram na construção da minha identidade. A possibilidade de conhecê-las surgiu a partir das palestras do Programa Ações Afirmativas. Programa do qual é parte integrante o “Conexões de Saberes” e tem como um dos objetivos contribuir para a formação e permanência dos alunos negros na universidade. Espero, através dessa conexão entre o projeto, minha formação e história de vida e a comunidade, poder contribuir para a luta por uma universidade verdadeiramente mais aberta e democrática e por uma educação que busque a conscientização e autonomia do homem. Thiago de Jesus Gonçalves 18 Caminhadas de universitários de origem popular Casinha branca “Eu queria ter na vida simplesmente um lugar de mato verde pra plantar e pra colher ter uma casinha branca de varanda, um quintal e uma janela só pra ver o sol nascer...” “Eu tenho andado tão sozinho ultimamente que nem vejo à minha frente nada que me dê prazer...” (Gilson e Joram) Não tive uma infância provida de regalias financeiras como a grande maioria das pessoas de origem humilde. Primogênita de uma família de quatro filhos, era sempre cobrada em relação ao meu comportamento nos estudos, nas rodas de brincadeiras, no ambiente familiar. Ouvia repetidas vezes que precisava dar bons exemplos, que não poderia decepcionar os meus. A adolescência não foi diferente. Aos meus dez anos, minha mãe falecera por falta de atendimento médico na rede pública de saúde. Como toda e qualquer criança, sentia-me angustiada, sem saber ao certo o que ocorria. Apenas os anos me fizeram compreender, gradativamente, que aquela situação seria apenas o início de muitas perdas e também um marco da minha construção individual e social no contexto da sociedade em que vivemos. Venho de uma família extremamente miscigenada: brancos europeus, índios, negros africanos, entre outras etnias (e sei lá o que mais há na minha hemoglobina!). Meus pais eram pessoas simples, vindas de famílias que não traziam nenhum tipo de tradição acadêmica dos próprios progenitores. Transbordavam conhecimento popular, daquele conhecimento moldado pela oralidade que “atravessa gerações a fio” e constitui boa parte da beleza cultural do país. Freqüentaram até o quarto ano primário da escola somente e, apesar do pouco contato com a educação adquirida das letras, sempre leram bastante. Minha mãe tinha como hobby a confecção de cadernos de receitas e pequenos poemas. Após os afazeres domésticos, concentrava tardes inteiras na execução de seus escritos. Disseram-me, certa vez, que queria ser professora. A vida não lhe permitiu. A lida diária no trato dos filhos e a rotina da casa não lhe permitiu retomar os estudos. Do meu pai, tenho nas lembranças as dezenas de livros de faroeste norte-americano. Muitas vezes sentia-me curiosa e desejosa em compreender seu intento nas vezes em que lhe via absorto por um dia inteiro nos livros que contavam estórias do “oeste bravio e sem lei”. Às vezes, pedia-lhe para que lesse algum trecho, incomodada e sem compreender o motivo das gargalhadas intensas que o meu “velho” Universidade Federal de Minas Gerais 19 dava. Os textos quase sempre permeados por índios – que logo identifiquei como sendo sempre os malvados – e brancos, sempre os mocinhos bonzinhos, fizeram crescer em mim uma necessidade de estar do outro lado – o lado do leitor e mais tarde do crítico. Mas o que eu gostava mesmo era de sentar ao lado do “meu velho” enquanto ele ia lendo os gibis da Turma da Mônica, representando as cenas de cada página folheada fazendo “caras e bocas” para o meu delírio e o de minha irmã-do-meio. Delicioso delírio que, provavelmente, gerou em mim o gosto pelas coisas escritas. O estranho é que meu pai sempre foi um homem ríspido, áspero e, de certo modo, até inflexível, de poucas afeições com os outros e conosco, seus filhos; talvez devido à forma implacável com que a vida sempre o tratou. Fora educado longe do carinho da mãe, que sempre tivera uma saúde bastante debilitada. Sofrera muitas rejeições na escola pelo fato de ser negro e pobre. Lembro-me de ter-me dito que era castigado continuamente pelos professores diante da turma. Mas encontrou em Dona Lourdes, sua finada professora, amizade e incentivo. Com ela, desenvolveu o gosto pela leitura. Constantemente ia para a escola de “barriga vazia”. Devido às privações impostas a uma família de oito irmãos e de poucos recursos, ele precisou começar a trabalhar bem cedo: não tinha tanto tempo para ser criança, não tinha tanto tempo para estudar... Entretanto, quando estava munido de um livro se transformava em Dom Quixote de La Mancha, seu personagem preferido, e se tornava tão criança quanto os filhos na arte de sonhar. Lembro-me que nos momentos de nostalgia cantarolava os versos de Meus tempos de criança, uma canção de Ataulfo Alves: “Eu daria tudo que eu tivesse Pra voltar aos dias de criança Eu não sei pra que que a gente cresce Se não sai da gente essa lembrança Aos domingos missa na matriz Da cidadezinha onde eu nasci Ai, meu Deus, eu era tão feliz No meu pequenino Miral Que saudade da professorinha Que me ensinou o beabá Onde andará Mariazinha Meu primeiro amor onde andará? Eu igual a toda meninada Quanta travessura que eu fazia Jogo de botões sobre a calçada Eu era feliz e não sabia.” Jamais poderia esquecer-me do meu avô paterno na formação de minha personalidade e sua contribuição em minha trajetória. Exemplo de sensibilidade e amor à arte, era o caçula de uma família de doze filhos. Morava na roça e, entre os deveres impostos pela simplicidade da vida interiorana e os solfejos da infância, aos cinco anos – autodidata – se alfabetizou, aos oito adquiriu seu primeiro instrumento de cordas. A paixão pela música atravessou o tempo e o fez um profissional da noite. Durante o dia, trabalhava como pintor de paredes para complementar a renda da casa. Foi assim que criou, longe da esposa doente, seus oito filhos. 20 Caminhadas de universitários de origem popular Eu me lembro que, desde criança, gostava muito de vê-lo tocar. Creio que lhe herdei o fascínio pela música. Ah! Quantas noites adentramos em cantigas de violão e voz, compartilhando gostos e emoções... Hoje, devido às limitações do seu corpo físico, já muito surrado pelas marcas do tempo apenas me contento em recordar o melhor de sua arte e das longas conversas, dos ensejos musicais que tínhamos há tempos atrás. Meu avô, meu herói. Creio que ele sequer mensura a dimensão de minha admiração e respeito. “...sinto cada vez mais longe a felicidade vendo em minha mocidade tanto sonho perecer...” Sempre fui boa aluna. Acostumada aos elogios dos professores, esforçava-me para ser também uma colega acessível a toda a turma. Segundo alguns amigos, eu era questionadora em demasia. Isso, às vezes, irritava alguns colegas e professores. Por muitas vezes, me via embrenhada em discussões ferrenhas sobre assuntos diversos. Na infância, isso era identificado por alguns familiares como uma espécie de “desvio psicológico”. Na adolescência, isso me afastava dos grupos: não me sentia inserida. O engraçado é que sempre fui considerada uma pessoa carismática e, por isso, atraía muitas pessoas ao meu redor. No entanto, me via obrigada a ficar calada muitas vezes porque, ao fazer algum comentário, me percebia incompreendida: não falava a mesma linguagem da “tribo”. Então, me refugiava nas longas conversas que traçava com pessoas de idades mais avançadas e, assim, via saciada minha necessidade de diálogos mais avassaladores. Com o tempo, fui aprendendo a adequar conteúdos a pessoas e evitar, assim, desconforto e antipatia das mesmas. Tenho um temperamento com forte tendência à introspecção e isso me fazia recorrer apaixonadamente aos livros. Visitava constantemente as bibliotecas. Devorava pilhas e pilhas de livros que chegavam a coleções inteiras. Deliciava-me em meio às páginas e conteúdos propostos. Meus amigos ficavam horrorizados e minha família preocupada acabou me levando ao médico para fazer um eletroencefalograma aos nove anos de idade, acreditando que eu estava “pirando”, literalmente. Naquela época, eles não compreendiam que eu tinha necessidades de informação distintas da grande maioria das crianças. Minhas motivações não se ajustavam ao padrão que eles tinham em mente. Na concepção deles, isso beirava a anormalidade. Não se referia apenas ao fato de eu desejar ingressar na universidade, mas na presença da necessidade contínua de busca de conhecimento, mesmo que inconsciente, e conhecimento aplicado e aplicável à sociedade em moldes gerais... Para uma criança, uma pré-adolescente, isso soava discrepante demais. Hoje eu entendo a preocupação deles. Entendo e respeito, mas não me submeto. Bem, eles ainda continuam sem compreender... Sempre imaginei um mundo onde as pessoas pudessem realmente se constituir capazes no processo decisório de suas escolhas. Para mim, isso estava diretamente ligado aos livros e à visão crítica de mundo que os anos e a convivência com pessoas de distintos segmentos sociais me proporcionaram. Como toda e qualquer pessoa, eu tinha muitas dificuldades pessoais e a leitura me proporcionava, de forma plausível e possível, contemplar a alegria e a liberdade de viver: “liberdade pra dentro da cabeça”. Creio que – não sei se consciente ou inconscientemente – isso influenciou na escolha do meu curso de graduação – Biblioteconomia – e minha área de atuação – Ciência da Informação. Transitei por muitas escolas e, por isso, acabei adotando um senso de auto-adaptação em situações extremas, devido ao grande número de mudanças e de recomeços como princípio de sobrevivência com que fui sujeitada ao longo da vida. Após o falecimento da minha mãe, Universidade Federal de Minas Gerais 21 meus irmãos e eu vivíamos perambulando de casa em casa. Morávamos por curtos espaços de tempo em casas de parentes porque meu pai viajava, periodicamente a trabalho e, muitas vezes, não tinha com quem nos deixar. A família sempre foi fonte de referência para mim. Nela, via refletido o mundo. De fato, não estava equivocada: a família pode ser tão amável e cruel quanto o mundo. Vivenciei, diariamente e inúmeras vezes, o caos estrutural e financeiro em família; comecei a ganhar meu próprio dinheiro bem cedo. Vendia doces na escola, para garantir o dinheiro das passagens e das cópias dos livros que quase nunca podiam ser comprados. Aos quinze anos, eu e meus irmãos fomos morar definitivamente com os avós maternos. Devido às idas e vindas, fiquei um ano sem estar matriculada em uma escola. Essa situação para mim era extremamente frustrante, visto que foi uma atitude deliberada de alguns para impedir que eu continuasse estudando. Infelizmente, eu ainda era menor de idade e dependia da boa vontade dos adultos. Na minha condição de “semi-orfã”, lembro-me de terem dito que “segundo grau era artigo de luxo” no meu caso. “Estudar pra que, se destino de mulher é esquentar a barriga no fogão e esfriar no tanque?”. Realmente tive que trabalhar para começar a garantir pelo menos o pagamento das contas da família porque tivemos (eu e meus irmãos) que nos alojar no barracão dos fundos da casa de minha avó. A partir daí tive várias oportunidades de ingressar no mercado de trabalho e, como a maioria dos brasileiros, tornei-me uma profissional multifacetada. Fui babá, faxineira, atendente de consultório odontológico, recepcionista de consultório de acupuntura, trabalhadora de linha de produção de uma tradicional empresa de cosméticos nacional, cantora nas horas vagas, bordadeira, “crocheteira”, operadora de “Call Center”, entre outras possibilidades de sobrevivência. Paralelamente a essas atividades, continuava traçando estratégias para abreviar meu ingresso na universidade. Minha família cogitava um bom casamento para mim. Eu me ocupava em me preparar para chegar à UFMG. Já havia me decidido que seria aquela a instituição que eu ingressaria. Não via e não queria enxergar outra possibilidade. Primeiro, porque era pública (e uma das melhores do país); segundo, porque de forma alguma me sujeitaria aos preços das particulares (não tinha recursos para isso). Esse era um sonho, que no meu coração era quase uma certeza, pelo qual eu ainda me sujeitaria à farta dose de sofrimento. Durante oito anos, fui boicotada e incitada de todas as formas possíveis a desistir de minha empreitada. Já não bastava trabalhar de domingo a domingo fazendo horas-extras na empresa numa jornada de mais de oito horas diárias; as rotinas da casa nos finais de semana; responder pelos irmãos que causavam problemas na escola; namorados exigindo atenção e se opondo deliberadamente aos meus planos... Ah! E o cansaço impregnado no meu rosto abatido. Abatido muito mais pela falta de apoio psicológico do que financeiro. Mas eu precisava seguir em frente, nadar contra a maré... “Às vezes, saio a caminhar pela cidade à procura de amizade, vou seguindo a multidão...” Sempre aparentei menos idade do realmente tinha e, por isso, encontrava muitas dificuldades para ser empregada legalmente. Aparentar menos idade me privou de boas oportunidades profissionais. Os critérios de seleção adotados pelo mercado muitas vezes dizem muito pouco ou dizem erroneamente algo sobre alguém. Mas o que fazer? São os critérios adotados. Só quem sente na pele é capaz de ler nas entrelinhas o sentido estrito do preconceito. Discriminação de gênero, de cor e de classe social. Ser mulher não é a tarefa mais fácil do mundo, isso é fato. 22 Caminhadas de universitários de origem popular É claro que não deixa de ser prazerosa e privilegiada. Nenhum homem é capaz de enxergar a vida e as pessoas como uma mulher. Geralmente superamos em intensidade, em originalidade e em extensão. Quase toda mulher vivencia a realidade cotidiana de ter de sobreviver aos preconceitos e machismos dos colegas de trabalho, dos irmãos, dos tios, dos primos, dos namorados, dos amigos, do pai, na caminhada diária de sua existência. Isso quando, na maioria das vezes, não é impelida e coagida por outras mulheres a se contentar com as migalhas e os restos do que só um homem pode ter. Não estou levantando nenhuma bandeira de feminismo radical, apenas pontuando algumas percepções que, às vezes, somos impedidas de fazer sob alegação e taxação de destituição da feminilidade. Homens e mulheres foram feitos para conviver harmoniosamente. Nem à frente, nem atrás um do outro. É bom caminhar lado a lado e de mãos dadas... As diferenças deveriam acrescentar e não mutilar... Penso... A cor de minha pele tanto abriu quanto fechou portas na minha vida. Nas diversas situações que a mim se apresentavam, sempre soube que tinha (e tenho) “boa aparência” para certos cargos e outros não. Não aprendi isso na escola, porque essa lição, diria um dos meus caros professores de português, trata-se de um “caso de sujeito oculto”. Todos sabem que existe, ninguém identifica e por isso, às vezes, até passa por inexistente. Conjectura um tanto quanto subjetiva... Minha pele é minha marca registrada e evidencia de fato minha origem. De fato, orgulhome dela e é pela genealogia que ela encerra que prossigo apaixonada na construção da minha história. Sou negra. Alguns me classificam de moreninha, o –inha, acredito, deve ser devido à baixa estatura, de pardinha, de mulatinha, por que se enxerga em mim, mestiça de negro e branca, o fenótipo das duas etnias e de outras também. O fato é que meu pai é negro, minha mãe era branca e eu sou a interseção dos dois. Carrego as forças e fraquezas, ou vantagens e desvantagens inerentes aos dois, tanto nos planos econômico quanto social. Aprendi, no convívio social, o que nenhum dicionário foi capaz de explicar que boa aparência tem tudo a ver com cor de pele, agregada a tudo o que o respaldo financeiro é capaz de fornecer: boa alimentação, cuidados de beleza, lazer, saúde... Em síntese: qualidade de vida. Como tudo na vida, isso é questão de padrões. Certos padrões não estão ao alcance de todos. Mas, como uma parcela significativa da população, tenho sobrevivido aos padrões e mesmo fora ou dentro deles tenho podido caminhar independente deles na minha etnicidade... “...mas eu me retraio olhando em cada rosto, cada um tem seu mistério, seu sofrer, sua ilusão...” A universidade tem me proporcionado momentos fantásticos. Não apenas pela diversidade dispersa e ao mesmo tempo mesclada nos indivíduos e situações, mas também por permitir vôos cada vez mais altos. Sinto-me em terra firme, em plano raso, em posição privilegiada. Venho alçando vôos rasantes, de grandes altitudes, de reconhecimento e concluo que a percepção do todo tem sido mais abrangente, qualitativamente melhor. Tenho me permitido escolhas e atitudes mais impactantes. Nas minhas divagações, noto que para compreender o todo é necessário trabalhar as partes já que estas são tão distintas e tão interdependentes para a harmonia desse todo proposto. Sinto-me revigorada através das “trocas-de-figurinhas”, do trânsito de experiências, de conhecimentos, de saberes e, principalmente, das possibilidades de prática socialmente aplicável dos conteúdos adquiridos. Vislumbro ser possível o sonho de uma sociedade mais justa e igualitária, aproximando-se um pouco mais da realidade das maiorias exclusas. O Projeto Conexões de Saberes pode ser definido dessa maneira. Universidade Federal de Minas Gerais 23 Trabalhar com jovens de origem popular tem sido a continuidade prática de um projeto de realização pessoal e profissional que, a cada dia, como um novelo de lã, vem se desenrolando ainda mais. Percebo que esse é um processo inicial de uma longa caminhada. A aprovação no vestibular foi, apenas, o primeiro arranque. Caminhar no campus e pelo campus nem sempre é uma tarefa simples. Por vezes, a caminhada torna-se angustiante e dolorosa quando as pedras no caminho aparentam ser maiores que as forças impelidas para retirá-las. Se, por um lado, adquiro, diariamente, consciência da vitória que é ocupar esse espaço, por outro, muitas vezes temo por não saber até quando poderei prosseguir. É claro que esse sentimento não é privilégio do estudante de origem popular, mas é inegável que suas preocupações estão diretamente ligadas a necessidades tão básicas quanto às de subsistência humana: comer, beber, dormir, vestir ou se divertir, muitas vezes, são atividades relegadas a um segundo plano quando os recursos são escassos. Eu tenho caminhado no campus, como tantos outros colegas, em busca de formação e desenvolvimento teórico, científico e tecnológico, lutando diariamente para vencer todas as deficiências que a escola pública e que a minha condição social permitiram que eu desenvolvesse. No campus, tenho podido desenvolver o raciocínio crítico e testá-lo diariamente, questionando-o, sugerindo diariamente: afinal, é para isso e por isso que o ambiente acadêmico está proposto e inserido na sociedade. Percebo, também, que é preciso que esse ambiente seja fomentador, cada vez mais, de propostas a ajustes sociais, evidenciando, assim, seu caráter público. O retorno social devolvido pelos seus profissionais nada mais é, a meu ver, que o ônus destinado ao investimento social envolvido na formação desses mesmos profissionais enquanto graduandos e pós-graduandos, na forma de mão-de-obra qualificada, como a de professores e profissionais da área técnico-administrativa, na forma de bolsas e subsídios de pesquisa, de material de leitura contido em bibliotecas e outros centros de informação, de instalações, alojamentos, restaurantes, entre outros. Tenho caminhado no campus todos os dias e, quando me sinto deprimida, porque as dificuldades têm sido muitas, em lampejos de memória, lembro-me justamente de tudo isso. Então concluo: preciso devolver o que tenho pegado como empréstimo... E isso também me motiva a caminhar... Quando caminho pelo campus, percebo todas as coisas belas que ele me tem oferecido. A beleza da arte e das artes, da letra e das letras, da música e das músicas, da galáxia e do Universo, do número e dos números, da química e das químicas, da geografia e das geografias, da biologia e das biologias, do homem e dos homens... Concluo que, mesmo andando pelo campus, preciso andar no campus para que outros também possam andar nele e por ele. Tenho entendido o andar no campus como o caminhar ativo e questionador de quem se sente realmente inserido no ambiente e propõe melhorá-lo sempre. Andar pelo campus é o caminhar cotidiano, muitas vezes superficial, casual e que, por muitas vezes, permite e encerra a leveza da descoberta do outro, do indivíduo antes do coletivo. Percebo que muita gente não anda pelo e no campus, mas apenas passa (a jato, bem depressa) por ele. Talvez por opção, por obrigação ou, talvez, porque andar no e pelo exige uma postura de desconstrução de si mesmo e disposição para se reconstruir todos os dias. É tarefa extenuante, pode trazer alguns transtornos, pode abrir feridas, pode gerar inquietação, pode demandar pró-atividade em benefício ao outro e do outro e nem sempre de si próprio. Pode demandar resultados em longo prazo e, por isso, mais do que racionalidade, é preciso ter fé, o que não tem sido tarefa fácil para a grande maioria das pessoas. Fé na vida, nas pessoas, fé no mundo. E, aí, voltamos 24 Caminhadas de universitários de origem popular à lógica do todo que beneficiará as partes e o todo demandando um crescente despojamento... Ah, se Marx ouvisse isso... É preciso um pouco de utopia para sermos melhores, “melhores no amor, melhores na dor”... Nosso medidor social mundial de utopias está em baixa. Sinto que o meu fica bem abaixo do desejável às vezes... Infelizmente... Interesso-me intensamente pelas questões da saúde e tenho podido ver de perto que há bastante o que ser feito. Católica por opção e vinda de uma família que se constitui numa verdadeira miscelânea da fé, com a pastoral da criança tenho visualizado mais de perto a dimensão das carências da minha cidade. Elas não diferem muito das carências do estado e tampouco do país. Concluo que ainda precisam ser tomadas medidas de urgência. Percebo que, apesar de alguns avanços, o Brasil está longe de ser o país do futuro dessas crianças. Quando era criança, ouvia que esse era o país do futuro, das oportunidades, da harmonia entre os povos, da alegria... Cresci ouvindo isso. Hoje não posso me queixar, porque tenho podido estar onde sempre desejei, mas sei também que muitos como eu, com uma história semelhante a minha, ficaram pelo caminho ou perderam-se nele. Espero e trabalho para que o presente e o futuro dessas crianças possam ser melhores e menos incertos do que têm sido o de todos nós. Tenho trabalhado e me qualificado numa área do conhecimento fascinante. Primeiro, porque a grande maioria da população sequer tem idéia de que ela existe; segundo, porque é um desafio cotidiano lidar com o preconceito e desinformação das pessoas em relação à Biblioteconomia, uma sub-área da Ciência da Informação, que é uma grande área do conhecimento. Uns me perguntam para que despender quatro anos na universidade para aprender a “empilhar livros em prateleiras” (coisa que até uma criança de nove anos de idade é capaz de fazer); outros me dizem que esse tipo de curso não produz conhecimento algum para a humanidade. Isso quando não é colocada em xeque a capacidade intelectual dos profissionais etc. Percebo que tudo isso é fruto de uma sociedade que, infelizmente, lê muito pouco ou quase nada. Quando menciono o ato de ler, digo ler nas entrelinhas, no sentido crítico do termo. Infelizmente, uma grande parcela da sociedade brasileira ainda não tem noção da dimensão da produção mundial de conhecimento e de informações que precisam ser direcionadas, acessadas, organizadas, geridas e disponibilizadas para que as desigualdades possam ser banidas e sanadas através da disseminação do conhecimento e de técnicas que fomentem isso de forma a caminhar lado a lado com todas as tecnologias que o homem é capaz de gerar. Entendo como Biblioteconomia, isto é, Ciência da Informação. Minha profissão, minha paixão, minha vocação. A universidade tem me proporcionado mais essa experiência fantástica de poder voar alto, reconhecer o terreno a ser semeado, enxergar além das aparências, planar... E eu tenho planado agora... O meu futuro, hoje, é menos incerto do que outrora fora. Hoje, percebo que gosto das incertezas apesar de, a todo o momento, querer extrair delas certezas. Elas (as incertezas) têm me impulsionado a seguir em frente. Através do pragmatismo que me cerceia, ora distante e contrário à teorização do academicismo que me cerca, tenho me construído uma pessoa melhor a cada dia, mesmo com todas as contradições da minha condição humana. “Quando se deseja o abismo é preciso ter asas...”, dizia Nietzsche, o ateu. Tatiana Lucia Cardoso Universidade Federal de Minas Gerais 25 Caminho de pedras “Antes de começar o trabalho de modificar o mundo, dê três voltas dentro de sua casa”. (Provérbio Chinês) Neste texto, transcrevo minha trajetória escolar, que decorre de questionamentos que nortearam e norteiam minha vida e possibilitam entender um pouco do que sou hoje e minhas atitudes. Começo declarando as minhas sinceras desculpas. Desculpas por não ter um estilo literário próprio, pela possibilidade de dar margens a interpretações erradas, pelas pessoas que fizeram parte de minha vida e faltam nesse pequeno texto, pelo meu excesso de metáforas e adjetivos. Gostaria, antes de tudo, que percebesse meu pesadelo e meu sonho em escrever sobre mim mesma e apresentar isso a você. Esse texto faz parte de mim, por mais que tente dissolvê-lo, não posso. Assim, prossiga sua leitura sabendo que essas pobres palavras que decorrem ao longo do texto são gente, gente que tenta, sofre, levanta, cai novamente, mas continua na luta. Os primeiros anos de estudo que tive começaram quando eu tinha mais ou mesmo três anos de idade, em uma escolinha perto de casa. Pelo interesse em acompanhar meus pais, que liam o jornal todo fim de semana, tive contato com o mundo literário bem cedo – aos quatro anos já lia algumas palavras e desenhava outras. Na escola onde iniciei meus estudos, a sala era estruturada agrupando ou separando os alunos, ora pelo rendimento escolar, ora por vontade da educadora. Percorri todos os diferentes espaços desse local e me sentia frustrada nessa instabilidade, lutava para atingir o ideal de boa aluna e, assim como meus colegas de classe, ser prestigiada. Situações como essas demonstram a forma hierárquica e de submissão propagada em nossa sociedade, pois desde a infância somos submetidos a uma competição. Quando criança tinha uma grande variedade de interrogações que nunca eram esclarecidas. Assim, a escola, que era para ser um espaço de interesse e aprendizado, tornou-se, de certa forma, um lugar tumultuado e confuso. Como não sabia exteriorizar com clareza minhas indagações, terminava sendo moldada para não questionar, tinha pavor de retaliações. Como qualquer outra criança, acordava, brincava, estudava, porém era extremamente tímida. Minha educação no ensino básico foi bem rigorosa e severa. Percebo como isso influenciou toda minha vida e colaborou para minha formação como pessoa compromissada e preocupada em não agredir o alheio. A educação religiosa também é um pouco responsável por essa postura. Minha família era bem estruturada (aos olhos da sociedade). Papai, mamãe, irmão, irmã. Nós nos apresentávamos como modelo às demais. Um exemplo de respeito, educação, conforto e alegria. No entanto, preste a completar dez anos de idade, meu pai decidiu separar-se da 26 Caminhadas de universitários de origem popular família, de forma brusca e repentina. A ausência do afeto paterno tornou-me reclusa em meu próprio mundo e me concentrei nos estudos como forma de refúgio. Minha mãe assumiu a responsabilidade do lar e sempre demonstrou pleno esforço para preencher todas as lacunas ocasionadas pela falta da presença paterna. Dedicando-me tanto aos estudos, meus familiares e amigos criaram uma expectativa de sucesso profissional e escolar muito grande a meu respeito. Isso me atrapalhou muito. O medo de decepcionar as pessoas me desgastou até o ponto de apresentar problemas físicos, tinha um cansaço constante, seguido de uma dor de cabeça terrível. Esse período foi superado após uma longa reflexão e conhecimento do meu eu. Superada essa fase, tive de volta meus questionamentos suprimidos, porém, agora, de forma mais aguçada e indissolúvel no meio em que vivia. Concluí o Ensino Médio em um colégio da área central de Belo Horizonte, escola dita como tradicional no estado. Ela é constituída basicamente de alunos de classe média. Ainda com um ensino fraco, a escola era, e ainda é, bastante procurada. Os funcionários conscientes desse fato não tratavam os alunos com nenhuma cortesia. Eu sentia que a maioria deles expressava enorme insatisfação em lidar com crianças e adolescentes. Gastava cerca de uma hora de trinta minutos para chegar à escola e mais de duas horas para voltar para casa. A imensa maioria dos meus ex-colegas de classe mora na área nobre de Belo Horizonte, bem próxima à escola. Mesmo assim, cheguei a ser agraciada pelas excelentes notas e comportamento exemplar, segundo os professores e a coordenação do turno. Sendo pobre, negra e estudando em um colégio onde a maioria dos alunos tinha uma realidade de vida diferente da minha, deixava de ir a festas, clubes etc, alegando outras razões que não a existência de preconceito, para justificar esse tipo de comportamento. Procurava sempre obedecer rigidamente às normas socialmente estabelecidas, adotando um comportamento exemplar, para não dar margem às retaliações declaradas que me cercavam a respeito de preconceito econômico ou racial, evitava certas situações, locais ou eventos, temendo receber um tratamento hostil por parte dos outros. Quando prestei vestibular, meus antecedentes de boa estudante fizeram com que criasse uma grande expectativa quanto ao meu ingresso na universidade. No entanto, a concorrência é desleal! Apesar de ser esforçada e de isso ser um plano de vida, não passei na primeira vez. Além de lidar com uma tristeza interna, ainda tinha que me deparar com criticas e observações sobre minha derrota. Em primeiro plano, coloquei a baixa qualidade educacional do ensino público como principal decorrência de meu insucesso. Mas, depois, analisando melhor o ocorrido, deparei-me com a realidade não tão depreciativa da instituição. Não questiono todas as escolas públicas, a generalização pode levar a um equívoco grave. Classificá-las sempre como péssimas é jogar fora todo o aprendizado que se construiu juntos aos professores e colegas do local. O cuidado que se deve tomar é de desqualificar a instituição de tal forma que os seus alunos sejam classificados sempre como incapazes. A escola pública não é a única culpada pela desigualdade de acesso ao ensino superior. A família e a comunidade onde a escola está inserida também são responsáveis pela evolução escolar da criança e adolescente. Cheguei a passar na seleção para uma universidade particular, porém a falta de recursos financeiros me impossibilitou de poder fazer até a matricula. Na segunda tentativa, às portas da prova do vestibular, deparei-me com algo terrível. Foi diagnosticada em minha mãe uma doença maligna – câncer. A tensão pairava no ar. Universidade Federal de Minas Gerais 27 Primeiro, a operação de risco e, depois, os tratamentos desgastantes. Sentindo muito essa situação, realizei as provas. Quando saiu o resultado, fiquei extremamente feliz. Ao final dessa turbulência, havia ingressado na UFMG e minha mãe estava curada. Por minha simpatia pela área de humanas e por influência de minha irmã Carla Ângelo que já estava no curso, optei por Biblioteconomia. Os critérios de seleção dos vestibulares parecem construídos para eliminar a camada pobre da sociedade. Acontece que há uma ideologia de assegurar a presença dos melhores através de provas de conhecimento. A nós, que estudamos em escola pública, não são oferecidas as mesmas oportunidades de ensino em comparação aos da escola privada. Quando se presta vestibular, a competição não é igualitária entre os concorrentes. A competência do candidato é colocada de fora. A exclusão é notória. Ao realizar uma prova de matemática, por exemplo, você é exposto a questões que nunca, nem em brincadeira, foram transmitidas para seu conhecimento (pelo menos comigo foi assim). Não posso dizer que foi por falta de procurar, pois em comparação aos meus colegas de escola eu estudava até demais. Isso se estende às demais disciplinas e cria uma situação de transtorno e sensação de incapacidade. Não considero que estar fazendo um curso superior signifique uma ascensão no status social. Ao contrário, estar na universidade representa uma possibilidade de dar continuidade aos estudos e me especializar na profissão que escolhi. Todas as barreiras que superei, as que estou superando e aquelas que sei que terei de enfrentar, não desejo que sejam de forma tão dura para meus pares que virão. Sendo de origem pobre, negra e tendo estudado em uma escola pública de ensino relativamente fraco, represento uma parcela mínima dentro das universidades federais. Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), realizada no ano de 2001 sobre a desigualdade racial no Brasil em relação ao ingresso no ensino superior, somente 2% dos negros conseguem entrar para a universidade. Enfim, 98% dos negros que ingressam no Ensino Fundamental não conseguem chegar ao Ensino Superior. Na universidade, os estudantes que, como eu, são oriundos de escola pública, sem contar a segregação racial, se deparam sempre com essa questão: a desqualificação sem ter idéia de seu potencial. Ao final, estamos sempre lutando para impor respeito de nossa capacidade aos docentes e colegas. Há uma estigmatização. Na vida, aprendi que ser bom nunca foi o bastante, é preciso, além de tudo, provar que é capaz e transpor todas as barreiras, demonstrando coragem e atitude. Quem é pobre e negro, entende muito bem o que quero dizer. Pessoas como nos têm a vida marcada por desigualdade, ignorância, antipatia e hipocrisia. São incansáveis as demonstrações de fatos que comprovam o tratamento diferenciado e negativo dispensado a nós, afrodescendentes. Por exemplo: é pequena no Brasil a produção de bonecas negras ou a presença na televisão de pessoas negras – salvo quando de forma pejorativa e em situações de baixo prestígio social. A importância de reserva de vagas nas universidades públicas é ocasionada no sentido de romper essa desigualdade. As cotas nada mais são que uma medida emergencial e transitória para tentar amenizar o quadro vergonhoso do acesso ao Ensino Superior, por negros e negras. Nada mais justo que tentar reparar os erros com medidas radicais em todos os níveis, principalmente na educação. Participo, hoje, do Projeto Conexões de Saberes: um diálogo entre a universidade e as camadas populares. Esse programa é nacional e, em Minas Gerais, é associado aos Programas de Extensão do Ações Afirmativas na UFMG e ao Observatório da Juventude da UFMG. 28 Caminhadas de universitários de origem popular Até então, trabalhava como estagiária na Escola de Belas Artes. Nesse local, apreendi bastante e adquiri eternos amigos. No entanto, fui seduzida pela proposta do projeto Conexões. O desejo de atravessar os muros da universidade e conspirar a favor das comunidades me fascinou. O fato de, além de pesquisar e teorizar, poder também atuar de forma positiva, impulsionou-me o interesse já despertado pela participação em programas sociais na comunidade em que vivo. O projeto Conexões vem me proporcionando uma competência que excede o conhecimento produzido pela academia. Ele dimensiona o aumento da produção do saber: saber-fazer, saber-escutar, saber-falar, saber-conviver. Trata-se de conectar-se às diversas realidades da sociedade e poder produzir algo em favor delas. Inquietude em conjunto com mais 24 bolsistas universitários que compartilham as mesmas idéias em relação à nação desigual e injusta. Percebo minha identidade consolidada de forma mais consciente, já que agora entendo um pouco mais sobre mim e sobre a sociedade, sei o que penso e, principalmente, como posso exteriorizar isso. Este texto mesmo vai ao encontro do conhecimento do meu eu. Esta autobiografia nasce e morre no intuito de ser espelho. Espelho que reproduz o confronto da realidade que, ao mesmo tempo, deslumbra e atemoriza ao desnudar a possibilidade do oposto idêntico, contraditório em espaço, em tempo ou em destino. É a história da identidade, eu sou na medida dos outros. Edna da Silva Angelo Universidade Federal de Minas Gerais 29 Do ensino médio à UFMG: considerações acerca de uma trajetória Pretendo analisar a minha trajetória a partir da entrada no ensino médio, já que tendo cursado o segundo grau técnico de contabilidade, entendo essa fase como direcionada mais objetivamente à preparação para o trabalho e, portanto, relacionada, juntamente com outros fatores que serão abordados a seguir, à motivação para o acesso ao curso superior. Estudei no período noturno, em uma escola considerada de boa qualidade pela comunidade local. No entanto, como parte das escolas públicas brasileiras, havia alguns problemas que se repetiam ano após ano: falta de professores, constantes greves e paralisações na justa luta por melhores salários e/ou condições de trabalho. Todavia, não poderia deixar de reconhecer a dedicação de alguns bons professores, que, mesmo com as dificuldades, se comprometiam com a formação dos alunos. Apesar desses bons professores, considero que a instrução recebida não foi a adequada para disputar com boas chances uma vaga na universidade pública, era um curso técnico e penso que não teria como objetivo prioritário o preparo para o vestibular. Contudo, havia a expectativa de fazer um curso superior, originada talvez na convivência com amigos que já faziam faculdade e a partir de incentivos de um tio que era o único membro da família a ter formação superior. Ele exerceu grande influência na formação do meu desejo de ingressar na universidade. Não poderia deixar de citar também a minha mãe, que mesmo tendo estudado apenas até a quarta série do primário, soube compreender e me ensinar a importância dos estudos na construção de um futuro digno. Porém, apesar de todos esses incentivos, eu tinha a impressão de que a UFMG era um “mundo longe”, e pagar uma faculdade particular naquele momento era impossível, portanto resolvi centralizar meus esforços no trabalho. Somente após dois anos passados desde o término do ensino médio, quando já possuía condições de custear o curso pré-vestibular, é que voltei a estudar. Nessa época, trabalhava em um escritório contábil, cumprindo uma jornada de oito horas diárias. Além da exaustão física experimentada diariamente, percebi que a falta de tempo para a dedicação às atividades extraclasse poderia se tornar um problema, tornando difícil a assimilação dos conteúdos. Sendo assim, era necessário aproveitar os finais de semana, o que tornava ainda mais laboriosa a preparação para as provas. Ao final daquele ano, prestei meu primeiro vestibular. O resultado foi ruim. Apesar de ter utilizado grande parte do meu tempo disponível, às vezes no ônibus durante o trajeto do trabalho à escola ou nos finais de semana, o que ficou claro após aquela prova é que o nível de preparo que consegui alcançar não havia sido o suficiente. Ao término 30 Caminhadas de universitários de origem popular do primeiro dia de prova, já sabia que não seria aprovado. Mesmo assim decidi fazer as provas restantes, pensando na aquisição de uma experiência que poderia me ser útil ao ano seguinte, encarei essa etapa como um treinamento. Não ter tido sucesso, mesmo depois de todo aquele esforço, foi decepcionante. Perceberme no lugar de um “candidato não apto ou não possuidor do conhecimento mínimo exigido” foi extremamente doloroso. Mesmo se tratando de um insucesso num vestibular tão concorrido como o da UFMG, experimentei um sentimento de baixa auto-estima e de desânimo que, felizmente, fui superando aos poucos. Hoje tenho consciência de outros fatores envolvidos na aprovação ou reprovação de qualquer vestibular. Sei que o capital cultural que eu não dispunha naquele momento não tem relação com a minha capacidade intelectual e eu não tinha responsabilidade ou culpa do desprovimento de tal conhecimento mínimo exigido. No ano seguinte, continuava com o intuito de tentar o vestibular. Entretanto, ao tomar conhecimento de um concurso público em que a jornada de trabalho seria de seis horas diárias, e considerando que seria mais fácil ser aprovado no concurso que no vestibular, resolvi que valeria a pena adiar um pouco mais o sonho da universidade e me dedicar ao tal concurso. Se fosse aprovado, eu continuaria trabalhando, já que era uma necessidade, mas a jornada de trabalho menor me proporcionaria mais tempo para a preparação para o vestibular. Quando o resultado do concurso foi divulgado, confirmando a minha aprovação, sentime em uma nova fase, cheio de possibilidades e com mais tempo para estudar, mais próximo da universidade. Tentaria, inclusive, uma vaga numa faculdade particular, já que agora teria condições de arcar com a mensalidade, mesmo não sabendo ainda como resolveria um aperto incrível no orçamento. Estudei muito durante todo o ano. Chegava do trabalho por volta das quatorze horas e ,depois de descansar por cerca de uma hora, me dedicava às leituras e aos exercícios. Dessa vez, decidi me preparar em casa, utilizando as mesmas apostilas do curso pré-vestibular que havia freqüentado no ano anterior. Obedecia a um programa ou horário que elaborei, segundo as necessidades de mais ou menos horas de estudo para cada matéria. Nas datas determinadas, me inscrevi no vestibular da UFMG e de uma faculdade particular. O resultado da faculdade particular foi divulgado primeiro, confirmando a minha aprovação, que na verdade nem chegou a ser uma surpresa, pois havia me preparado bem. Finalmente, a partir do apoio da minha família, da minha mãe em especial, eu ingressaria no mundo universitário. Estava muito feliz, apesar de preocupado com os custos das mensalidades, transporte, alimentação, livros etc. Mas estava disposto a enfrentar até onde fosse possível. Porém, restava ainda o resultado da UFMG, que eu aguardava com grande ansiedade, ora confiante, ora receoso. Um dia antes da data limite para o pagamento da matrícula na faculdade particular, finalmente foi divulgada a lista de aprovados da UFMG. Depois da alegria de ver meu nome nessa lista, o sentimento mais marcante era o alívio. O vestibular é incrivelmente desgastante. Atualmente, apesar de ainda estar cursando apenas o quarto período, não concordo com a opinião de que sair da universidade é mais difícil que entrar. Ao final do terceiro período, após passar por um processo seletivo, onde constavam uma redação e entrevista, entre alunos caracterizados como de baixa-condição socioeconômica pela FUMP (Fundação Mendes Pimentel), e que se auto declaram negros, fui selecionado para integrar o “Projeto Conexões de Saberes: Diálogos entre a Universidade e as Camadas Populares”. Este é um projeto de extensão, que tem o objetivo de estabelecer uma interUniversidade Federal de Minas Gerais 31 locução entre a universidade e os movimentos sociais, a fim de estabelecer um intercâmbio de conhecimentos, além de proporcionar instrução aos alunos participantes, no intuito de que estes tenham melhores condições de estender suas respectivas jornadas acadêmicas após a graduação. As reuniões do Conexões têm sido de extrema importância, pois têm proporcionado discussões que me ajudam perceber a relação entre as dificuldades que enfrentei para entrar na universidade e o modelo social em que vivemos, que contribui decisivamente para a perpetuação da desigualdade social. Essa desigualdade se reflete, dentre tantos os outros setores, no acesso à universidade. Felizmente, a minha trajetória está repleta de personagens que me guiaram no sentido do crescimento, simbolizado, em grande medida, pelo acesso à universidade. Ao percorrer todas essas lembranças, algumas boas, outras nem tanto, ficam marcados os momentos dos abraços, do reconhecimento por parte das pessoas que amamos. Parte de um caminho difícil havia ficado para trás. Não me esqueço de uma frase da minha mãe: “Nunca imaginei meu filho estudando na faculdade devido às nossas condições financeiras”. Outra boa recordação foi ouvir minha irmã caçula dizer que também estudaria na UFMG. Foi bom constatar que a minha trajetória influencia e encoraja outras pessoas. Não posso deixar de registrar, no entanto, a minha indignação em face das diversas estratégias que beiram verdadeiros malabarismos, que os estudantes oriundos de famílias com baixo poder aquisitivo como eu são obrigados a adotar. Tais estratégias, muitas vezes, alongam o caminho a ser trilhado antes da universidade, ou seja, outras necessidades mais prementes precisam ser remediadas antes da dedicação efetiva a um curso superior. Essa realidade resulta em desistência ou mesmo no ingresso tardio desses jovens na universidade. Hoje, vivo me imaginando no mestrado. Confesso que, por vezes, ainda fico receoso quanto a mais esse salto. Tenho consciência dos obstáculos, mas uma coisa não me falta para lidar com as dificuldades: a experiência. Estou há pouco mais de dois anos na universidade e descubro a cada informação nova, a cada resposta ou questionamento suscitado, um novo sentido que justifica todo incentivo e esforço depreendido ao longo desse percurso. Talvez estejam curiosos para saber qual o combustível para tais questionamentos. Durante a escrita deste texto, concluí que o primeiro passo dessa trajetória seja uma paixão surgida desde a metade do Ensino Médio: a Geografia. Amador da L. Moreira Filho 32 Caminhadas de universitários de origem popular Mais que pedras Falar de minha trajetória rumo à universidade, sem dúvida, é um trabalho de resgate, não apenas de um passado recente, mas de quase uma vida. Saber com exatidão qual o momento exato, ou que determinada ação me conduziu ao ensino superior, é quase impossível, já que toda a minha trajetória de vida e minhas relações tiveram não apenas responsabilidade por essa conquista, como, muitas vezes, foram peças fundamentais para a mesma. Desde a minha vizinha, que me ensinou a ler, fazer cálculos e que corrigia meus deveres de casa, aos meus diferentes patrões, que permitiam que eu estudasse dentro do ambiente de trabalho ou faziam-me concessões visando minha educação escolar; como também minha mãe, que, mesmo sem saber como realizá-los, sempre me incentivou a todo tipo de curso ou sonho que almejasse, além de ter me colocado nas melhores escolas públicas que conhecia, até os meus amigos e conhecidos, que com paciência ministravam, em horários inusitados, todo tipo de “reforço particular”, tirando minhas dúvidas, que não eram poucas, ou ensinando o que não tinha compreendido em sala. Bem, desde que me entendo por gente, sempre trabalhei, tanto em casa quanto fora, trabalhava por necessidade de ajudar em casa e me sustentar na escola, com material e passagem, já que sempre estudei no centro de BH; quanto à localização da escola, minha mãe nunca abriu mão, não aceitava que estudássemos no bairro, assim, desde o jardim, que também era público, até o segundo grau, todos os seus quatro filhos estudaram em escolas tradicionais do centro da cidade. Isso, ao mesmo tempo em que era benéfico, constituía-se num problema, porque sempre tínhamos que pagar passagem e, se em algumas vezes não tínhamos nem o que comer, muito menos com o que pagá-la diariamente. Aos cinco anos, minha rotina escolar era ir para o centro da cidade com meu irmão de sete anos, depois de esquentar o almoço, arrumar a casa, tomar banho e esperá-lo chegar do trabalho para irmos estudar. É isso mesmo, meu irmão já trabalhava com essa idade. Aos seis anos, já estudava na escola Estadual Cesário Alvim, fazia o pré-primário na mesma escola do meu irmão mais velho, minha mãe engravidou do meu segundo irmão, e essa gravidez modificou toda a minha rotina, já que significaria mais trabalho e o abandono, temporário, dos estudos. No ano de 1983, eu tinha amplas atividades, olhar meu irmão, que tinha meses de vida, dar mamadeira, trocar fraldas, dar banhos, com um nojo enorme do seu umbigo, que ainda não tinha caído, e ajudar minha mãe que teve uma infecção séria no seio e quase faleceu, tudo isso me levou a não cursar a 1ª série nesse ano. Na verdade, tentei ainda por um tempo permanecer na escola, porém tinha um índice de faltas imenso e não conseguia acompanhar a matéria, o que me rendeu três anos na primeira série; duas bombas consecutivas e uma infame aprovação. A segunda série não foi muito diferente, novamente devido a questões familiares minha vida acadêmica foi prejudicada e perdi mais dois anos na mesma série. Universidade Federal de Minas Gerais 33 A partir de 1988, minha vida estava um pouco mais fácil, pelo menos em relação ao meu irmão, que já estava no jardim e me dava tempo para freqüentar a escola e continuar trabalhando. Finalmente, no ano seguinte, consegui acabar meu extenso ensino fundamental: levara sete anos para completar o básico de minha educação!!! E não era das melhores. É melancólico observar meu histórico escolar e perceber tantos “acidentes” em meu percurso educacional e, no resgate da memória, reviver o momento das provas, a angústia na busca do boletim e até mesmo lembrar de algumas incompreensíveis professoras que não entendiam toda a minha situação e cobravam, de forma mais severa e até constrangedora, um exercício que não era feito, um cabelo mais alinhado, uma unha aparada, uma perna mais limpa, todas essas questões, que na época eram por mim somente sentidas e não problematizadas, trouxeram à tona um misto de emoções, que já não mais me lembrava, mas que, no desenvolver de minha história, também foram importantes para o êxito alcançado. Finalmente chegava a 5ª série no Colégio Estadual Olegário Maciel, novos problemas começavam: primeiro, porque já trabalhava fora em uma casa de família na parte da manhã (apesar de já trabalhar anteriormente, meus “bicos” não me ocupavam todos os dias), segundo, que, de certa forma, perdia todo um chão acolhedor que a outra escola me proporcionara. Tudo, desde a matéria que eu não entendia direito devido ao meu déficit no primário, os professores que mal me notavam, cansaço do trabalho, as constantes faltas até os alunos que me ignoravam ou me agrediam, eram razões para que eu odiasse o colégio e contribuíssem para que eu desistisse de estudar. Também razões eu possuía aos montes: primeiro, ninguém falava comigo na sala, não deixavam que participasse de qualquer brincadeira do grupo e até mesmo de esportes coletivos como na educação física eu era excluída. Assim, toda semana eu brigava com todos, com o tempo passei a ser temida e respeitada, porém tinha consciência de que não era aceita, e percebia claramente que o fator predominante de toda essa ojeriza estava relacionado a minha raça e minha situação social, visivelmente inferior a dos outros. Constantemente eu era alvo de piadas racistas e comparações pejorativas que me entristeciam e confundiam, naquela época nada era assim tão claro como hoje, na minha cabeça, e não existia qualquer política ou preocupação por parte da direção da escola quanto a essas questões – no meio daquele ano já sabia que novamente seria reprovada – decidi, então, parar de estudar e abandonei o colégio. Por um ano não quis saber de escola, passei a trabalhar durante todo o dia para ajudar nas despesas da casa e, à noite, via televisão e ficava conversando com meus amigos, tinha muitas divergências com meu irmão mais velho, e também tinha agora uma nova irmã, com menos de um ano, minha família, portanto, estava completa, pelo menos nos planos de minha mãe. O que significava um orçamento ainda mais apertado, além do aluguel, da água e da luz, tínhamos que prover material escolar, dinheiro de passagem e todas outras nossas necessidades com o salário dos dois empregos da minha mãe, o meu e do meu irmão e os nossos respectivos “bicos”. Diante de todo esse quadro, minhas expectativas de vida eram bem limitadas, sentia me muito frustrada pela vida que levava e totalmente sem rumo quanto a um futuro, foi nesse cenário que conheci a Igreja Batista Novo Alvorecer, onde descobri outros valores e preceitos, aprendi a valorizar-me e percebi que havia um outro caminho possível a trilhar, tanto na minha vida espiritual, familiar quanto na profissional e educacional. 34 Caminhadas de universitários de origem popular Passei, a partir daí, a acreditar que eu podia tudo, mesmo sem saber como, e que Deus podia e iria me ajudar, porém eu deveria também dar alguns passos nessa direção: estabeleci objetivos, defini caminhos e o primeiro passo que decidi dar foi o que me conduziu de volta à escola. Voltei a estudar no ano de 1992, na Escola Estadual Pedro II, novamente na 5ª série. Começava ali minha carreira no turno da noite, sem dúvida era uma mudança significativa na minha vida, porém muitas outras transformações haviam se processado em meu interior e eu nem havia me dado conta, nem disso nem de como tudo isso modificaria toda minha existência. Naquele ano havia decidido, por razões que relatarei mais adiante, a ser uma advogada e essa decisão, que, para quase todos ao meu redor, menos para minha mãe e minha igreja, era motivo de descrença e chacota, não somente passou a me impulsionar, como também se tornou minha direção e uma das razões da minha vida. Tornei-me, assim, uma pessoa sociável na nova escola, por se tratar do turno da noite os alunos eram mais maduros e menos preconceituosos. Líder, tanto na sala quanto na igreja, passei a me valorizar e a buscar superar meu déficit educacional, tornei-me uma “excelente” aluna, no que é possível ser de excelente dentro dos padrões de um colégio público; me dava bem com todos na escola e, além disso, a escola tornou-se, para mim, também um lugar de trabalho. No colégio, vendia salgados, sanduíches, bombom, salada de fruta e cosméticos de variadas marcas, levava duas mochilas, uma para os produtos outra com meu material, na hora do recreio havia uma eficiente “rede de informações” que me avisava da chegada do disciplinário, pois era proibida a venda de produtos dentro colégio, a tempo de eu e minhas mercadorias “desaparecerem” para um outro ponto em alguma outra sala. Por sete anos, esse “comércio” foi o responsável pela minha permanência na escola, com esse dinheiro pagava minha passagem, tirava xerox e supria-me de outras necessidades, nunca mais fui reprovada ou fiquei em recuperação, pelo contrário, normalmente passava no meio do ano e ajudava os outros alunos a entender a matéria e fazer trabalhos, era mesmo uma troca, eles me mantinham informada do que ocorria na escola, trabalhos, provas, matéria, já que ainda me ausentava muito e eu tirava-lhes as dúvidas, pelo menos na área de humanas. Além disso, trabalhava durante todo dia em uma lojinha próxima a minha casa, minha primeira oportunidade de exercer outro oficio sem ser doméstica, trabalhava para uma antiga patroa que resolvera ensinar-me a função de balconista para que pudesse trabalhar para ela, pois precisava de alguém de confiança. Tornei-me uma excelente atendente, recebia vários convites para trabalhar em outras lojas e me dava muito bem com os clientes; tive então minha carteira assinada e meu salário aumentado, de acordo com minha classe, porém esse ainda não supria totalmente minhas necessidades. O Ensino Médio ocorreu sem grandes acidentes, pelo menos na escola, já que em casa as coisas não eram tão tranqüilas. Não era mais reprovada, nem ficava atrasada em relação à turma, entretanto me ausentava muito das aulas e essas faltas eram fruto de todo meu cansaço, pois trabalhava muito. Eu e minha família sempre precisávamos nos preocupar com o que iríamos jantar e almoçar, além da água e luz, que viviam cortadas, e principalmente o aluguel que sempre estava atrasado ou não era pago integralmente. Minha mãe, apesar de seus empregos e dos Universidade Federal de Minas Gerais 35 trabalhos extras de fim de semana, não conseguia suprir todas as coisas, e o mais caro – o aluguel – era de sua responsabilidade. Em minha casa, todos já trabalhavam fora, menos a minha irmã caçula e ainda assim as coisas não eram fácies. Nesse período de relativa tranqüilidade, pelo menos na escola, estávamos prestes a ser despejados, minha mãe, diante da situação, tomava remédios para depressão, devido aos problemas que passávamos, sem ter noção de como tirar a família daquela situação, e nós, seus filhos, não sabíamos como solucionar o grave problema financeiro em que nos encontrávamos, resolvemos então radicalizar. Eu e meu irmão mais velho decidimos pedir conta em nossos empregos para pagarmos os aluguéis atrasados, pois o advogado que administrava a casa estava “infernizando” a vida da minha mãe e de seus fiadores, ligava xingando a todos, nos ameaçava e ninguém suportava mais tudo aquilo. Entretanto, mesmo saindo de nossos empregos, não conseguimos resolver a situação. Fizemos nossos acertos e passamos todo o dinheiro para minha mãe pagar os atrasados, porém, aproveitando-se do frágil estado emocional que minha mãe se encontrava, o advogado recebeu o dinheiro, mas não lhe forneceu nenhum recibo. Algum tempo depois, entrou com uma ação judicial de despejo, exigindo o pagamento da dívida ou a casa dos fiadores como pagamento. Nos encontrávamos agora em uma situação ainda pior que a anterior, pois não tínhamos mais de onde tirar dinheiro, meu irmão não tinha mais emprego, eu havia feito um acordo e permanecia na loja, porém permanecíamos com a divida. Na semana em que seríamos despejados, conseguimos mudar de casa, porém o processo contra os fiadores permanecia e o pagamento da divida não havia ainda sido efetuado. Na verdade, toda essa confusão só foi resolvida em 2004, quando o juiz definiu o valor da dívida e a dividiu por um ano, com prestações de R$ 250,00 – tempo difícil – pagava R$ 350,00 de aluguel da casa onde morávamos, mais as prestações da divida que deveria ser depositada em juízo, além de nossas despesas cotidianas. Toda essa injustiça e confusão fomentavam dentro de mim a necessidade de modificar aquela situação, observava minha mãe precisando de um advogado, sem ter condições para obter alguém que fosse bom e que pudesse dedicar-se exclusivamente a sua causa. Percebia também, nos meus trabalhos voluntários, tantas outras pessoas que passavam por situações semelhantes, sem que eu nada pudesse fazer, e parecíamos um bando de abandonados no mundo, pelo governo e pelas leis, tudo isso gerou dentro de mim uma revolta imensa e o desejo de fazer alguma coisa para diminuir tantas injustiças que observava no cotidiano. O Direito – enquanto curso superior – sempre despertou minha atenção, talvez porque acreditava que o direito e a justiça fossem algo homólogos, coisa que hoje, infelizmente, já sei não se efetiva, ou por entender que a melhor forma de proteger minha família de tanta humilhação e roubalheira seria conhecendo as leis e possuindo legitimidade para representálos, assim sendo, decidi tornar-me advogada. Posso afirmar, portanto, que foi o resultado de diferentes situações que criaram dentro de mim o desejo de me formar em um curso superior, especificamente fazer Direito. Toda uma gama de circunstâncias que me revoltavam e entristeciam eram canalizadas em meu interior para esse ideal, que, para a maioria dos que me cercavam, era um sonho impossível e inatingível que deveria ser esquecido, afinal, estudar na UFMG era “coisa” pra rico. Porém, eu possuía, ainda, apoio daqueles que verdadeiramente me amavam, tanto em meu trabalho, em casa e na minha igreja, obtinha apoio para permanecer sonhando, conse36 Caminhadas de universitários de origem popular lhos e direção de como alcançá-los. Diante disso, compreendi que meus objetivos poderiam ser atingidos desde que fosse pela UFMG, pois era a única faculdade gratuita com curso de Direito em BH, embora minha formação educacional não me possibilitava êxito em seu vestibular, mesmo assim tentei e fui reprovada. Passei a fazer cursinho, num pré-vestibular sem fins lucrativos, e comecei a estudar à noite, no segundo semestre de 1999, e percebi que não sabia quase nada do que era ensinado, faltava-me base e era difícil acompanhar a turma. Pagava o cursinho com o meu salário, as mensalidades não eram caras, e ia de carona para o centro com minha patroa e sempre ganhava, da esposa de meu pastor, biscoitos, frutas e vale transporte para me ajudar nos estudos. Naquele ano, novamente tentei o curso de Direito e novamente nem passei perto de ser aprovada. No ano seguinte, ainda trabalhava no depósito, vendia roupa em domicílio e fazia faxina para ajudar na renda. Fiz alguns cálculos e estabeleci naquele ano um projeto de estudo, como algumas pessoas em meu cursinho haviam parado de trabalhar para se dedicar aos estudos imaginei que se planejasse poderia fazer o mesmo, mas precisava ser mandada embora para pode receber seguro desemprego e tudo que tivesse direito. Conversei com os meus patrões sobre a possibilidade se ser mandada embora e dos meus planos; após convencê-los da sua eficácia, eles concordaram e, no 2º semestre de 2000, fui dispensada. O plano era simples, mas requeria responsabilidade e controle: com o dinheiro do acerto permaneceria cumprindo minhas obrigações mensais de casa e pagando cursinho e passagem e haveria ainda cinco meses de seguro desemprego, que me garantiria dedicação exclusiva aos estudos. Voltei novamente para o cursinho e passei a estudar de manhã, almoçava no serviço da minha mãe, ela trabalhava em um jardim estadual e comprava biscoitos baratos e horríveis para lanchar à tarde. Ficava o dia inteiro no cursinho tendo aulas e monitorias de diferentes matérias e, às vezes, assistia às aulas à noite. Aos sábados, ficava de 8:00 às 18:00 no pré-vestibular, comia sanduíche como almoço e biscoitos e, no domingo, tinha aulas especiais no CEFET ou em algum outro lugar. O projeto em nível financeiro foi um sucesso, paguei o cursinho e não faltei com as minhas obrigações de casa, mas em nível estudantil nem tanto, pois novamente não havia conseguido ser aprovada na 1ª etapa do vestibular de Direito, faltaram dois pontos. O ano seguinte, foi um ano de trabalho, agora desempregada tinha somente “bicos” para fazer que não eram suficientemente satisfatórios frente às minhas necessidades; decidi trabalhar com aulas particulares, já que o tempo do cursinho havia fomentado em mim um bom conhecimento, trabalhava em diferentes lares de 8:00 às 21:00. Nesse ano, devido ao meu horário de trabalho, não dava para fazer cursinho, passei a estudar depois que chegava das aulas, estudava todos os dias até de madrugada, utilizava minhas apostilas e cadernos dos anos de pré-vestibular. Minha maior dificuldade sempre foi matemática. Física só sabia superficialmente a matéria, resolvi, assim, contratar um professor particular da área de exatas para me auxiliar e tirar dúvidas. Em matemática tinha um amigo que me ajudava muito, entendia tudo da matéria e não cobrava nada, que foi responsável por eu aprender pelo menos metade dessa matéria. Já em física, como tinha muita dificuldade, precisava arrumar um professor que cobrasse barato e concordasse com meus horários “peculiares”; as aulas seriam às 6:30 ou depois das 22:00. Universidade Federal de Minas Gerais 37 Consegui um aluno de física da UFMG envolvido em trabalho voluntário, que concordou com as aulas e alguns “toques” de química na parte da manhã. Toda essa jornada e esse corre-corre foram importantíssimos para meu aprendizado, pois ministrava aulas de 5ª, 6ª e 7ª séries, trabalhava e, simultaneamente, estudava. Porém, tinha plena consciência de que todo esse estudo estava muito aquém do que precisava para passar no curso de Direito da Federal, resolvi então fazer vestibular para História, pois era uma matéria que eu gostava muito e tinha possibilidades de ser aprovada, sentia que se não passasse não teria ânimo para continuar tentando. Decidi, no ano de 2002, fazer matrícula para o vestibular de História noturno, passei mal no dia da prova, entretanto fui aprovada na 1ª etapa, ainda que com minha menor nota de todos os outros vestibulares!!!! Comecei, mesmo sabendo que tinha poucas chances, a fazer um cursinho para a segunda etapa do vestibular, fiz no lugar mais barato que achei e no tempo que dava, fiz uma ótima pontuação na segunda etapa e, finalmente, entrei na UFMG, pelo menos teoricamente, pois havia ainda uma barreira que precisava vencer entre tantas outras que fui descobrindo pelo caminho. É interessante notar que antes de entrar na faculdade a maior dificuldade que acreditava precisar superar era o vestibular e descobri que essa era só a primeira pedra. Na universidade, parece que a desigualdade social é ainda mais explícita e notória, essa diferença principia-se no intelecto daquele que estudou em melhores escolas e aprendeu a escrever, a problematizar questões, elaborar textos e possui estrutura familiar e financeira para se dedicar aos estudos sem trabalhar ou, no máximo, trabalhar para se sustentar sem precisar se preocupar com contas ou aluguéis. Outra grande diferença percebida por mim nesse novo universo era a fluência em outros idiomas de meus colegas de sala, além da facilidade no manuseio do computador, algo que era uma tecnologia extremamente distante de minha realidade, não sabia digitar, nunca havia feito um curso de computação e não conhecia a Internet, muito menos power point, tudo isso me colocava ainda em uma posição de desvantagem frente à minha turma, além de dificultar qualquer possibilidade de um estágio na universidade. Como havia dito, a primeira barreira a vencer foi a matrícula de R$ 140,00, que eu não tinha; foi somente através da solidariedade dos meus antigos patrões do depósito, amigos e clientes que essa primeira etapa foi vencida, pois eles se organizaram e, através de uma lista, arrecadaram o valor necessário para o pagamento da matrícula. Outra importante conquista em minha vida acadêmica que vale ser destacada foi a compra de meu computador, novamente foi fruto de meus amigos; a minha igreja doou boa parte para a compra do mesmo e já que a compra tinha de ser a vista a galera do deposito me emprestou o restante para que eu pagasse em “suaves” prestações, e para minha alegria, finalmente eu tinha um computador, usado, sem impressora, nem Internet, mas meu - significava que não precisaria mais dormir na casa de ninguém para fazer trabalhos pela madrugada, além de poder aprender a digitar, entre outras coisas, como de fato aconteceu. Analisando todo esse processo até agora, posso afirmar que foi de grande relevância para minha permanência na universidade a FUMP – Fundação Mendes Pimentel –, que através de seus inúmeros benefícios muito tem me ajudado, oferecendo cursos de aperfeiçoamento, financiando cursos e proporcionado-me empréstimos, os professores que me beneficiaram com estágios remunerados com flexibilidade de horários, permitindo que 38 Caminhadas de universitários de origem popular trabalhasse também com aulas particulares e, ainda, mais recentemente, o Projeto Conexões de Saberes, com todo apoio financeiro, educacional e psicológico, que muito tem me sustentado. Ainda assim, permanecer na faculdade me exige muito esforço e jogo de cintura, seja para gastar menos xerox, utilizando livros da biblioteca, comprando o necessário, andando a pé e de carona sempre que possível ou ficando um dia inteiro na universidade, comendo biscoito para economizar passagem entre outras estratégias. Também não rejeito nenhum “bico” que possa vir me garantir um extra, afinal permaneço no aluguel e ainda preciso ajudar em casa. Resgatar toda essa história me fez refletir quão milagroso é realmente minha estada e permanência na UFMG. Hoje entendo o porquê do descrédito de muitos que tentaram me dissuadir pelo caminho, talvez se eu mesma tivesse a real dimensão do meu sonho, não teria ousado sonhar. Ainda hoje este descrédito permanece, posso percebê-lo em olhares, quando compartilho meus mais novos ideais – mestrado e doutorado –, como é difícil para alguns aceitarem que eu, negra, pobre e burra (como muitos me taxaram), possa estar na UFMG, quando esperavam para mim um outro futuro, muito distante e sombrio de minha atual realidade. Só posso relatar tudo isso e viver parte do meu sonho, digo parte porque pretendo ainda fazer Direito, pelo fato de que estive amparada durante toda a minha caminhada por mãos fortes e amigas, tanto de Deus, que me ajudou a acreditar no impossível tornando-o atingível, como dos amigos, que gastaram tempo para me ensinar sem nada exigirem, nada mesmo, e todos aqueles que me presentearam com frutas, biscoitos, vale-transportes, conselhos, presença, e que não permitiram que desanimasse em momento algum, comemorando cada uma de minhas vitórias como se fossem suas. Todas essas ações foram pedras que fomentaram meu caminho e possibilitaram que, hoje, eu seja graduanda em História com Formação Complementar em Direito, da Universidade Federal de Minas Gerais, rumo aos meus novos ideais... Cátia Cristina Avelino Universidade Federal de Minas Gerais 39 Uma longa e insistente caminhada A aprovação no vestibular da UFMG representou, sem dúvida, uma grande conquista após uma longa caminhada. Filha primogênita de um metalúrgico e de uma dona de casa, e estudante da rede pública no interior de Minas Gerais, tive uma infância e adolescência tranqüilas: nunca passara por sérias dificuldades econômicas, mas via a possibilidade de ingressar em uma universidade federal um pouco distante... Naquela época, sabia que os obstáculos seriam grandes, entretanto, nunca intransponíveis... A realidade começou a mudar quando já cursava o Ensino Médio. Em 1998, mudei a minha postura diante do tempo dedicado ao estudo, isto é, passei a me dedicar mais e tentar a tão sonhada vaga. Assumi diante de toda a família que era isso o que queria e recebi, mesmo que com um com certo receio, o apoio de todos. Minha mãe, com o coração apertado, não queria que saísse de perto, e meu pai não sabia se teria condições de me manter em Belo Horizonte. Já a minha irmã sofreu com a possibilidade de não estarmos juntas diariamente. Falar da minha trajetória sem falar em três elementos fundamentais seria impossível: minha família, meus amigos e o Sandro. A primeira sempre foi meu porto seguro: aqueles que sempre estão ali a qualquer hora, prontos a me ajudar. Meus amigos também exerceram importância fundamental: desde o incentivo, os puxões de orelha, o apoio na hora de estudar matemática, até na hora de me ajudar escolher a universidade e o curso. Já o Sandro, por segurar a barra quando eu precisava. Infelizmente, após concluir o Ensino Médio em 2000, a aprovação nesse ano não veio. Mas muitos amigos conseguiram e fiquei muito contente por eles. Alguns, hoje estão em Viçosa, Ouro Preto e Belo Horizonte. Essa reprovação me fez pensar além do que Ipatinga poderia me oferecer. Sei que essa decisão causou um misto de emoções dentro de casa. Ao mesmo tempo em que me apoiavam, também sofriam, pois de qualquer forma eu teria que morar em outra cidade. Resolvi tomar novos rumos: mudei-me para Belo Horizonte para fazer cursinho. A adaptação foi difícil. Morar em uma casa pequena, com tia, primos e tio que não tinha um contato tão intimo, deixava-me um pouco constrangida. Sentia-me muito sozinha, apesar de todos me tratarem bem. O choque cultural foi outro obstáculo: sentia-me sufocada, e achava que Belo Horizonte não era do jeito que eu pensava e que, nessa cidade, as pessoas eram tão diferentes de mim... Sentia-me só mesmo estando com diversas pessoas por perto. Conheci várias pessoas do interior que também sentiam a mesma coisa e passamos a dividir esses sentimentos... A responsabilidade repentina em ter que me virar sozinha, de administrar o dinheiro que meu pai me mandava e, principalmente, a saudade da minha casa, das minhas coisas, dos meus amigos e da minha família, diversas vezes me fizeram pensar se era isso mesmo o que eu queria. 40 Caminhadas de universitários de origem popular Resolvi, após seis meses, sair da casa da minha tia e procurar um lugar pra morar. Foi ai então que vieram os tempos difíceis de morar em repúblicas. Conviver e dividir uma casa com pessoas tão diferentes me causou um sentimento estranho e um conflito comigo mesma. Muitas vezes tive que deixar de lado vários traços da minha personalidade para não me achar “tão diferente”. Essa diferença se referia aos meus hábitos e costumes e também algumas opiniões sobre os mais diversos assuntos. Confesso que inúmeras vezes pensei em voltar e abandonar tudo, mas nessa fase conheci o Sandro e ele me fez uma pessoa mais forte. O tempo se passou, fui me ajeitando na cidade e superando alguns obstáculos. Às vezes, quando estava realmente decidida a voltar pra minha casa no interior, ligava pra ele chorando e ele sabia dizer exatamente o que eu precisava ouvir naquela hora. Lembrava-me diversas vezes, e ainda nesse presente momento, de como a imagem do meu avô paterno era sempre presente: negro, ex-tropeiro, de pouca escolaridade, mas de um carisma e humildade tão fascinantes, que me deixavam totalmente leve, e, nos momentos difíceis, me fortaleciam. Sempre dizia: “Estuda minha neta, que assim você vai longe e vence na vida”. Ele nos deixou três meses antes de minha vinda para Belo Horizonte pra fazer cursinho. Partiu sem saber se a neta mais velha ingressaria em alguma faculdade, mas deixou marcado em mim, para sempre, um exemplo lindo de luta e perseverança. Diariamente, ficava pensando se tudo isso valeria a pena. Mas, só de me lembrar que meus pais não tiveram a oportunidade de sequer tentar cursar uma faculdade e que estavam me dando essa chance, um sentimento de luta rapidamente apossava-se de mim. Minha mãe, órfã de pai, vinda de uma pequena cidade, chegou a cursar somente até a quarta série. Meu pai ainda foi além: estudou até a oitava série, iniciou um curso médio profissionalizante em metalurgia, graças ao trabalho na siderúrgica, mas esse mesmo trabalho o impediu de seguir o que tinha planejado. Então, devido a tudo isso, levantava a cabeça e seguia em frente. As pessoas em Ipatinga, quando me viam por lá, nunca perdiam a chance de questionar, e criticar a mim e aos meus pais, se estudar em Belo Horizonte valeria tanto a pena assim. Muitos acreditavam que essa insistência não passava de um capricho meu pra sair de casa. Não conseguiam entender por que eu precisava ir tão longe só pra estudar, já que em Ipatinga existia uma boa faculdade. Tanto naquela época quanto hoje, seria impossível para os meus pais custearem uma faculdade particular em Ipatinga. Ainda mais se tratando de duas filhas, com pouca diferença de idade. Depois de tantas provações, recebi o resultado tão esperado: fui aprovada! A felicidade naquele momento era infindável e o desabafo tornou-se inevitável: lembrei-me das pessoas que me ajudaram com imensa gratidão e também daquelas que me criticavam e zombaram de tudo o que um dia sonhara. O que dizer do apoio das minhas amigas e do meu namorado, do choro da minha mãe e da minha irmã, da alegria do meu pai... Impossível utilizar palavras para expressar tamanha felicidade. Após a surpresa da aprovação, caí literalmente de “pára-quedas” dentro da UFMG. Fiquei um pouco decepcionada, acreditava que seria tão diferente... A minha sorte é que fui muito bem recebida pelo pessoal do curso. Mas havia, ainda, mesmo após a aprovação, um vazio a ser preenchido. Estava perdida dentro da UFMG. Sentia a necessidade de algo mais. Participei de alguns eventos da universidade como voluntária, entretanto essa prática não foi suficiente. Universidade Federal de Minas Gerais 41 Recebi uma carta sobre uma certa seleção de bolsistas que atuariam em um projeto de ações afirmativas. Como estava de férias, recebi a noticia tardiamente pelo Sandro e já não havia mais tempo para participar da seleção. Já estava fazendo estágio quando surgiu uma nova oportunidade. Quando dei por mim, estava selecionada para participar desse projeto. Rapidamente, abandonei o estágio e passei a participar de um grupo que vinha de experiências parecidas com as minhas. O Grupo Conexões de Saberes foi uma surpresa e tanto. Gostei de saber que através desse grupo iniciaríamos uma interlocução com algumas comunidades sobre os seus próprios saberes. Atuar junto a alguns jovens dessas comunidades também me cativou, devido à possibilidade de mostrá-los que, se quiserem, podem e devem batalhar por uma vaga nessa universidade, que, às vezes, se mostra tão fechada para sociedade em que está inserida. Com os colegas do projeto, passei a compreender melhor as questões sobre as ações afirmativas, tanto dentro quanto fora da universidade. Entendi, também, que o fato de ser de origem popular e estar estudando na UFMG incomoda e muito a outras pessoas. Após minha aprovação, minha irmã percebeu e procurou agarrar com unhas e dentes a chance de ingressar na UFMG. Infelizmente, no seu primeiro vestibular, em 2004, ela não conseguiu. Resolveu, então, seguir os passos da única irmã: deixou meus pais em Ipatinga, veio morar comigo em Belo horizonte e matriculou-se em um cursinho. A UFMG era um lugar que ela gostaria e também deveria estar. A família, então, em 2005, foi surpreendida com mais uma feliz noticia: a filha caçula também fora aprovada! Conseguiu uma vaga no curso de Biblioteconomia e hoje ocupa um lugar que também é seu. Hoje, quando me lembro de todos os esforços que todos fizeram e que eu também fiz para estar aqui, sinto que eles me tornaram um ser humano mais consciente e forte. Percebo que, para estar aqui ocupando esse espaço, várias foram as lutas travadas por negros e pardos nessa sociedade há muito tempo. Acredito que agora sei do meu papel dentro da sociedade e de tudo que represento para outros alunos que, de alguma forma, encontram-se excluídos do processo educacional. Também serei grata a todos os meus amigos do Projeto Conexões de Saberes, por toda a força e compreensão nos momentos difíceis que tenho passado, durante esse tempo que estamos juntos. Célia Diamantino Oliveira 42 Caminhadas de universitários de origem popular Trilhando um caminho de lutas e conquistas Sempre gostei muito de estudar, talvez pela ameaça constante de ter que abandonar a escola. Morava com meus pais, que eram agricultores, em Congonhas do Norte, interior de Minas Gerais. Eu era a sexta de uma família de oito filhos. Meu pai tinha ainda oito filhos mais velhos, resultado de seu primeiro casamento. Naquele contexto, era normal os pais colocarem os filhos na escola apenas para serem alfabetizados. Quando as crianças estavam lendo e escrevendo, os pais entendiam que elas não necessitavam mais estudar, posto que a escola já havia cumprido o seu papel. Nesse momento, seus filhos já poderiam ajudá-los na lavoura. Nossa casa ficava a uma distância de duas horas e meia da única escola da região. Naquele tempo, não existia na região o transporte escolar e tínhamos que ir e voltar a pé. Saíamos de casa por volta das nove horas da manhã e retornávamos por volta das dezoito horas. Adicionalmente, as aulas de 5ª à 8ª séries só eram ministradas no turno da noite, o que impossibilitava o ingresso e a permanência de alunos que moravam longe da escola. Além disso, os adolescentes ajudavam os pais na lavoura, o que dificultava ainda mais a permanência na escola por muito tempo. Essa situação marcou a trajetória escolar de quase todos os meus irmãos. Apenas minha irmã mais velha, que trabalhava na cidade, estava concluindo o ensino fundamental. Eu e meus outros irmãos morávamos com nossos pais. Estudávamos durante o dia e nas férias escolares ajudávamos na lavoura e nos afazeres domésticos. Sabíamos que, ao concluirmos a 4ª série, deveríamos nos afastar da escola e ajudar nossos pais no trabalho. Quando estava cursando a 4ª série, ouvi pela primeira vez a palavra universidade, em uma conversa com minha professora. Ela estava me incentivando a permanecer na escola. Explicou-me que depois da 8ª série vinha o ensino médio, depois deste vinha o ensino superior. Era lá que as pessoas se tornavam médicos, advogados, diretores e supervisores de escola etc. Mas ainda não acabava aí, depois do ensino superior existiam outros cursos. Foi uma surpresa, para mim, descobrir que existia tanto estudo assim. Pensava que o ensino médio era o “fim da escola”. Essa professora era formada em magistério e fazia um curso à distância em Diamantina. No período das férias escolares, ia até lá para fazer as provas. Incentivou-me a continuar estudando, dizendo-me que nunca teremos estudado o bastante, pois a vida vai sempre nos exigir mais e devemos nos esforçar, estudando e fazendo cursos de aperfeiçoamento, para nos preparar o máximo possível. Apesar da pouca escolaridade, minha mãe sabia a importância que a escola representava na vida das pessoas. Sabia que quem estuda tem maiores chances de alcançar o sucesso. Assim que completei a 4ª série, ela pediu para uma prima hospedar-me em sua casa, que ficava no centro da cidade, bem próximo à escola. Em 1991, oito anos após entrar na escola, conclui a 7ª série do ensino fundamental, em uma escola estadual em Congonhas do Norte, cidade do interior de Minas Gerais. Universidade Federal de Minas Gerais 43 Ao final desse ano, mudei-me para Nova Lima, Juntamente com minha irmã, onde concluí o ensino fundamental em uma escola estadual da cidade. Nessa época, era necessário pagar uma mensalidade para as escolas públicas de Nova Lima, o que impediu meu ingresso no ensino médio, devido à difícil situação financeira na qual nos encontrávamos. Comecei então a trabalhar na casa de uma vizinha, o que possibilitou que no ano seguinte me matriculasse no ensino médio. Eu trabalhava durante o dia e estudava à noite. Era uma rotina muito cansativa, mas, como tinha muita vontade de me formar, continuava, sem ser vencida pelo cansaço. Durante todo o ensino médio, ouvi pouco sobre o ensino superior. Os professores e diretores quase não falavam sobre a universidade, e os colegas, a maioria sem nenhuma informação, não discutiam a questão. Não havia nenhum professor que incentivasse os alunos a prestar vestibular. Na maioria das vezes que o assunto surgia na classe, os professores davam informações desanimadoras do tipo: “Vocês tem razão em não prestarem vestibular, as provas são muito difíceis, vocês não iriam conseguir”. Acredito que esses professores agiam assim pelo fato de todos os alunos serem de origem popular, que, geralmente, vão muito cedo para o mercado de trabalho, o que reduz significativamente suas chances de ingresso no ensino superior. Para esses alunos, o curso técnico é o caminho mais provável. Talvez, se naquela ocasião, pelo menos um professor tivesse conversado com a turma, esclarecendo dúvidas e passado informações, eu não teria demorado tanto tempo para ingressar na universidade. Aquelas frases marcaram meu dia-a-dia durante muito tempo. Eu acreditava que elas eram verdadeiras e me contentava com o diploma de ensino médio, com cursos técnicos e com empregos que não exigiam qualificação. A falta de informação era tamanha que não sabíamos sequer que existiam universidades públicas e gratuitas, como UFMG e UEMG, e outras no interior do estado. Ficávamos presos à idéia de que o ensino médio seria o ponto final em nossa vida escolar. Restava, após a formatura, fazer alguns cursinhos como informática, inglês etc. Eu até que sonhava, muito timidamente, em um dia entrar na universidade, mas nem eu mesma acreditava que isso seria possível. O curso técnico em administração de empresa, no qual me formei, não me abriu as portas do mercado de trabalho como eu pensei. O emprego melhor com o qual sempre sonhava não chegou. Fiz então um curso básico de informática, na esperança de que alguma coisa melhor acontecesse. Em 97, fui trabalhar como babá na casa de uma família italiana. Madallena, para quem eu trabalhava, sugeriu que eu estudasse de manhã e trabalhasse no período da tarde e parte da noite. Aceitei logo. O difícil agora era escolher o que estudar. Ela me sugeriu um curso superior, uma vez que já havia completado o ensino médio. Mas como eu tinha pouca informação sobre o ensino superior, decidi então fazer um curso técnico de magistério em uma instituição de ensino particular de Belo Horizonte. Ali, os professores nos passavam muitas informações sobre as universidades, principalmente sobre as públicas, UEMG e UFMG. Eles ressaltavam que era importante prestarmos o vestibular e, principalmente, não desistir caso não conseguíssemos passar nas primeiras provas. Se isso acontecesse, deveríamos nos preparar novamente e prestar o vestibular quantas vezes fosse preciso, até conseguir a vaga. Um desses professores nos deu uma relação de alguns cursinhos de pré-vestibular que eram de ótima qualidade e tinham preços acessíveis em Belo Horizonte e região. 44 Caminhadas de universitários de origem popular Nos deu informações também sobre a FUMP, dizendo que através dessa instituição poderíamos pedir, inclusive, isenção da taxa de inscrição no vestibular da UFMG. Nesse período, algumas amigas foram aprovadas em exames vestibulares. Uma delas na UFMG, outra na UEMG, e outras em várias universidades particulares. Sentia que eu também poderia conseguir. Voltei então a sonhar com o ensino superior, mas dessa vez, acreditando que era possível realizar o sonho. Foi assim que criei coragem e, após ter conseguido a isenção da taxa de inscrição através da FUMP, me inscrevi em meu primeiro vestibular em 2001. Prestei vestibular com o incentivo, inclusive financeiro, da família para a qual eu trabalhava, e o apoio um pouco desconfiado de minha família. Enfim, seria a primeira pessoa da família a ingressar na universidade e todos os meus familiares tinham a idéia de que a universidade era para ricos. Não passei, mas não desisti. Em fevereiro de 2002, me matriculei em um cursinho pré-vestibular em Nova Lima. Estudei o ano inteiro até a data das provas. O dinheiro que ganhava era investido em minha preparação para as provas, pagando o cursinho, comprando as apostilas, tirando xerox, pagando ônibus etc. Muitas vezes, tinha medo de não conseguir. Sentia vontade de desistir. Mas depois de tanto investimento financeiro, de tempo e da expectativa que se criou em minha família, meus amigos e em mim mesma, eu não poderia desistir. Tinha de seguir em frente e conquistar meu direito de cursar o ensino superior. Pois, como diz Freire, “Os sonhos são projetos pelos quais se luta. Sua realização não se verifica facilmente, sem obstáculos. Implica, pelo contrário, avanços, recuos, marchas às vezes demoradas. Implica luta”. Inscrevi-me nos vestibulares da PUC, UFMG e UEMG, para o curso de Pedagogia. As primeiras provas foram as da PUC, que encarei como uma preparação para as provas da UFMG. Passei na PUC. Foi um alivio, mas não completo. Havia me tornado uma universitária, mas eu não tinha como pagar as mensalidades dessa instituição. Além disso, meu objetivo principal era ser aprovada na UFMG. Quando saiu o resultado das provas, mal conseguia acreditar que estava classificada para a segunda etapa do vestibular da UFMG. Eu já estava quase lá, era só um pouco mais de esforço. Quando vi meu nome na lista de aprovados, não conseguia acreditar. Agora eu era aluna da UFMG e a primeira coisa que fiz foi ligar para todas as pessoas que eu conhecia e dar o grito de desabafo: “Passei!” Consegui o que nem eu mesma acreditava: assegurar meu direito de estar no ensino público superior. Olhava a lista de aprovados todas as manhãs, durante vários dias, para ver se não era só um sonho. Graças a Deus, era realidade. Minha família ficou muito orgulhosa. Minha mãe, mesmo sem saber muito bem o significado de ser universitária, diz para todos que sua filha está cursando a tal universidade, e de graça. Dentro da universidade começava uma outra etapa em minha vida. Ao iniciar os estudos, senti uma grande dificuldade em produzir os textos acadêmicos exigidos pelos professores. Produzir saberes era uma novidade para mim. Além disso, a maneira dos professores ministrarem as aulas e a linguagem usada por estes era completamente diferente da do grupo no qual eu estava inserida. Precisava me esforçar mais para me manter na universidade e assim continuava a trabalhar como babá. Meu horário de serviço impedia que eu participasse, fora do meu horário de aulas, de palestras, seminários, oficinas ou qualquer uma das tantas atividades que a universidade oferece. Universidade Federal de Minas Gerais 45 Almejava obter uma bolsa acadêmica, pois esta me daria a possibilidade de participar ativamente das atividades da universidade. Além de aprimorar minha formação acadêmica, com o valor financeiro, cobriria minhas despesas mais urgentes como livros, xerox, passagens etc. Candidatei-me a várias bolsas. Percebi então que conseguir uma bolsa não era tão simples. Muitas exigem conhecimentos de língua estrangeira, domínio de programas de informática, publicações, participação em seminários etc. Essas exigências sempre me deixavam de fora. Em fevereiro de 2005, recebi uma carta com informações sobre o projeto “Conexões de Saberes” e sobre o processo de seleção de 25 bolsistas. Era a oportunidade que estava esperando. Talvez agora conseguiria a bolsa acadêmica e poderia participar mais da vida da universidade. Fiz a seleção e consegui a sonhada bolsa em um programa de pesquisa e extensão. Deixei o emprego de babá e passei a dedicar meu tempo à minha formação e ao projeto. O Conexões de Saberes é um marco importante em minha vida acadêmica. Os 25 bolsistas têm características comuns: somos todos afrodescendentes, oriundos de classes populares. Isso nos deixa muito tranqüilos e à vontade uns com os outros. É muito bom trabalhar com pessoas que entendem nossas limitações financeiras e conhecem nossas possibilidades, pois passamos pelas mesmas dificuldades para assegurar nossa vaga na UFMG e enfrentamos, também, grandes desafios na busca do sucesso em nossas trajetórias acadêmicas. A equipe responsável pelo projeto nos recebeu muito bem e tem nos dado um grande apoio e nos auxiliado em nossos trabalhos. Uma característica positiva no projeto tem sido o trabalho em equipe. Quase todas as atividades solicitadas pelos nossos orientadores têm sido em grupo, o que facilita a interação e fortalece os laços de amizade entre os bolsistas. Os orientadores do projeto vêem dedicando essa primeira parte do trabalho em nossa formação enquanto pesquisadores. Para isso, temos feito pesquisas sobre vários temas, sempre com a intervenção direta de um orientador. Temos participado de seminários e debates sobre temas de extrema importância o que nos garante um aprofundamento teórico que, além de nos auxiliar em nosso desempenho acadêmico, nos ajudará na nossa atuação em nossas comunidades de origem e nas que iremos desenvolver atividades. A questão racial não havia me despertado grande interesse antes de meu ingresso na universidade. Alguns professores trouxeram o tema para a sala de aula, onde, além da leitura de várias bibliografias indicadas, foram feitos debates sobre o tema. A participação em seminários, principalmente nos do Ações Afirmativas, colaboraram para um maior aprofundamento teórico sobre a questão, ajudando também na construção de minha identidade. O Conexões de Saberes também tem disponibilizado bibliografias sobre a questão racial e promovido uma série de debates com os bolsistas. Os desafios encontrados no desenvolvimento do projeto são muitos, mas, a cada etapa que vencemos, a cada obstáculo que superamos, ficamos com a certeza, ainda maior, que um futuro melhor é possível. Como Freire diz: “O futuro não nos faz. Nós é que nos fazemos na luta para fazê-lo”. Cláudia Maria Aparecida Santos 46 Caminhadas de universitários de origem popular Menino do Rio “Falo de meninos cujo silêncio é rebeldia e a palavra é solidão.” (Evandro Nunes5) Durante minha infância e adolescência, convivi com a violência e com vários outros problemas de um morador da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. Perdi amigos de escola que se envolveram com o tráfico de drogas e com o crime. Às vezes, me pergunto: “Por que eu, morador de uma comunidade pobre marcada pela violência, segui uma trajetória tão diferenciada de alguns amigos?” Tal como questiona Souza , “Por que uns e não outros?” Grande parcela da minha família vive atualmente no Rio de Janeiro, na mesma região, no mesmo local onde passei a minha infância e parte da minha adolescência. Apesar dos problemas sociais lá existentes, como o crime e o tráfico de drogas, é a minha terra natal, lugar que não representa um retrato na parede, mas sim um local de que guardo lembranças de uma vida feliz ao lado dos meus familiares e amigos. Não tive uma vida de regalias financeiras e, desde cedo, já estava acostumado com a idéia de trabalhar para sobreviver com dignidade. Idéia que era reforçada pela tradição evangélica da minha família. Lembro-me das histórias de meus pais sobre suas trajetórias até chegar ao Rio de Janeiro. Relatos que me faziam perceber que era preciso estar preparado para encarar a vida. Uma vida cheia de armadilhas e angústias. Nesse momento, passei a me espelhar na figura dos meus pais. Dessa forma, a participação deles em minha trajetória foi sempre muito ativa, sempre me falavam o quanto era importante continuar a estudar para conseguir um bom emprego. Esse processo de espelhamento é relatado num trecho do livro A mulher negra que vi de perto, de Nilma Lino Gomes (1995)7: O “meu” mundo, o “meu eu”, a “minha cultura”, são traduzidos também através do outro, de “seu” mundo e de “sua cultura”, do processo de decifração deste outro; do diferente. Há um processo de espelhamento. Ao mesmo tempo em que os grupos socialmente considerados minorias lançam um olhar para a sociedade, formam-se imagens “(...) a partir do modo como uma sociedade se vê refletida pelos olhos do outro”. Essas imagens, que não são estáticas, “(...) permitem alterações, tanto na minha auto-imagem como na minha conduta, e este termo deve ser aqui tomado em seu sentido literal, alter/ ações – as ações que assumo em função do outro” (NOVAES, 1993. p. 109).” 5 NUNES, Evandro. Pretopoetapreta. Belo Horizonte: [s.n.], 2002/2003. SOUZA E SILVA, Joilson de. Por que uns e não outros?: caminhada de jovens pobres para a universidade. Rio de Janeiro: Sete Letras, 2003. 7 GOMES, Nilma Lino. A mulher negra que vi de perto. Belo Horizonte: MAZZA edições, 1995. 200 p. (coleção GRIÔ/ textos, 3) 6 Universidade Federal de Minas Gerais 47 Ainda, segundo a autora, “a identidade não é inata, ela se constrói em determinado contexto histórico e cultural”. Nesse momento, estava construindo minha identidade. Como essa identidade está intrinsecamente relacionada ao contexto social, há uma junção entre a identidade pessoal e social. Segundo Selaibe8, a primeira identidade é “aquilo que diferencia cada um de nós e só nos iguala a nós mesmos, mesmo que seja entendida num processo de transformação, é da ordem da representação e está localizada na consciência”. Entendo, portanto, identidade pessoal como uma representação de uma individualidade – caráter especial ou particularidade que distingue uma pessoa ou coisa de acordo com o Dicionário Aurélio. Enquanto a identidade social, para Penna9, relacionasse mais “(...) aos referenciais coletivos de inserção a um grupo, usos das formas de reconhecimento, os processos culturais de reconstrução de representações”. O estudo de identidade possui inúmeras abordagens no campo da psicologia e da sociologia. O objetivo aqui, não é abarcar essa infinidade de discussões, mas fazer um recorte sucinto, de forma a explicitar alguns conceitos, que, de alguma forma, exemplificam o processo de construção de minha identidade. Como descrito no trecho acima, o “meu mundo, o meu eu, a minha cultura, são traduzidos também através do outro”, que, nesse caso, se reflete nas figuras dos meus pais. Assim, boa parte de minhas ações estava em função deles. Essa influência não está restrita somente ao ambiente familiar, mas abrange toda a sociedade. Acredito que a influência da sociedade se dá de forma mais complexa, pois, se tratando de uma identidade negra, ao lançarmos os nossos olhares para como a sociedade nos vê, percebemos uma posição contraditória, já que, ao mesmo tempo em que há uma exaltação da diversidade brasileira, há também uma forte discriminação racial. Percebo, então, um conflito no processo de construção da identidade, pois tenho que desconstruir uma visão distorcida e fragmentada de uma sociedade dita democrática, para então construir a minha identidade; uma vez que a construção dessa identidade é um processo dinâmico, que tem influência do contexto político, social e cultural. Ao abordar a questão da discriminação racial, que marcou a minha trajetória, e marca a trajetória de muitos estudantes negros, podemos perceber na televisão e nas revistas como a referência negra assume um sentido pejorativo. Nas telenovelas, por exemplo, o negro quase sempre está representando papéis de empregados domésticos, ocupando posições inferiores em relação ao segmento branco. Isso justifica, em parte, as situações de negação do negro brasileiro em relação a sua origem racial, o que reforça a ideologia do branqueamento – na utilização de nuances de cor para descrever a cor da pele que, segundo Gomes10, remete a uma questão de cor da pele e não à origem racial; e, com isso, contribui para a formação de uma identidade étnico-racial distorcida e fragmentada. Rumo ao novo mundo – universidade Durante o ensino fundamental, não estava tão clara a questão da diferença entre o ensino público e particular. Conhecia somente um mundo, aquele que estava acostumado a viver na periferia. Não se falava em universidade e eu não conhecia amigos que estivessem no ensino superior, as pessoas falavam que “faculdade era coisa pra gente rica”. Apesar 8 SELAIBE, Mara. Identidade: um referencial de orientação pessoal ou um conteúdo da consciência imagética? Cadernos PUC, São Paulo, n. 33, 1988. p. 155. 9 PENNA, Maura. O que faz ser nordestino. Identidades sociais, interesses e o “escândalo” Erundina. São Paulo: Cortez, 1992, 180p. 10 GOMES, Nilma Lino. A mulher negra que vi de perto. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1995. 48 Caminhadas de universitários de origem popular de eu ter um bom rendimento escolar, não tinha nenhuma projeção de entrar em uma universidade. A perspectiva que tinha era de ingressar em uma academia militar e continuar o ensino médio. Mas como não tinha recursos financeiros para fazer um curso de preparação, desisti de servir à pátria. O meu desejo de entrar em uma universidade federal foi despertado quando minha irmã decidiu tentar o vestibular para o curso de Letras ou Pedagogia da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro). Ela estudava em uma escola de formação de professores ligada à UERJ, que direcionava muitos estudantes para a universidade. A partir de então, minhas perspectivas eram influenciadas pelas suas. E, de certa forma, nós trazíamos o desejo de melhoria das condições de vida da família. Quando terminei o ensino fundamental, ia tentar uma vaga na mesma escola da que minha irmã estudava. Mas meu pai resolveu mudar para Minas Gerais, devido a um convite de trabalho que recebera de um amigo. Sua decisão não foi bem aceita no início, mas depois fomos cedendo, pois tínhamos que estar juntos para poder apoiá-lo. Esse momento de mudança foi um pouco traumático, pois, apesar da violência do estado do Rio de Janeiro, nascemos e fomos criados lá, a maior parte da nossa família estava lá. O primeiro contato com Minas Gerais foi como se tivéssemos chegado em um mundo diferente, mais tranqüilo do que estávamos acostumados a viver na Baixada Fluminense. Esse momento foi extremamente estranho para mim, pois não estava acostumado a conviver com outras pessoas de estilos completamente diferentes; um verdadeiro choque entre culturas, que no primeiro instante foi muito forte, mas com o tempo fui adaptando ao estilo mineiro de ser. Mudei-me para um bairro localizado na região metropolitana de Belo Horizonte, onde moro até hoje. No início, enfrentávamos muitos problemas com o lugar, devido à falta de infra-estrutura: esgoto, asfalto e principalmente com o transporte. Nessa época, criamos a Associação de Moradores para lutar pela melhoria das condições do bairro e, com o tempo, conseguimos mudar algumas coisas. Esse foi o início da minha participação efetiva em algum movimento social, que, posteriormente, estendeu-se a pequenas participações em grêmios escolares e culminou, satisfatoriamente, após o ingresso a universidade, na participação no projeto Conexões de Saberes na UFMG. Terminei o ensino médio em Belo Horizonte e, após um ano, decidi me preparar para o vestibular da UFMG, com o apoio financeiro do meu pai. Um ano antes, minha irmã havia passado no curso de Letras na mesma universidade e eu consegui passar para o curso de Engenharia Mecânica. Em minha sala, não há muitos alunos de classes populares, a maior parte veio de escolas particulares, consideradas de excelência em ensino, e tiveram, durante a preparação para o vestibular, condições financeiras de estudar em cursinhos preparatórios de elevado índice de aprovação na UFMG. Ao conviver com essas pessoas, que de fato pertencem a classes mais privilegiadas, percebi que, quando se fala em políticas públicas para afirmar o direito de acesso de grupos sub-representados à universidade, a grande maioria imagina somente a políticas de cotas, como se essa política fosse a única modalidade de política de ações afirmativas. Existe um completo desconhecimento de outras políticas de ações afirmativas. Como o desenvolvido pelo programa Ações Afirmativas na UFMG, que apresenta estratégias de intervenção com o objetivo de reduzir os efeitos antidemocráticos dos processos de seleção e exclusão social impostos a afrodescendentes e promover a permanência bem-sucedida de estudantes negros, sobretudo os de baixa renda. Universidade Federal de Minas Gerais 49 Enquanto a universidade continuar centrada na valorização da meritocracia (competência individual), teremos como conseqüência um distanciamento, tanto teórico quanto prático, da democratização da educação. Não podemos negar que a vida acadêmica exige determinadas competências e saberes, mas não podemos limitar tal discussão a uma questão de mérito, tendo em vista que, no momento do vestibular, grande parte dos estudantes está em condições de desigualdade. Ao descrever minha trajetória, ainda que de forma sucinta, busco refletir sobre questões que até então não estavam tão explícitas para mim. Antes mesmo de entrar na universidade, já havia feito um planejamento de como poderia aproveitar o saber acadêmico de forma a contribuir com outras pessoas que foram socialmente excluídas. Por isso, comecei a procurar projetos para expandir meus horizontes, principalmente os de cunho social que tivessem alguma atuação efetiva fora da universidade. Através de uma divulgação dentro da universidade, tomei conhecimento e consegui entrar no projeto Conexões de Saberes na UFMG, que tem como um dos objetivos o fortalecimento da trajetória acadêmica de jovens negros, pretos ou pardos, oriundos das camadas populares, incidindo sobre o problema da permanência bem-sucedida desse grupo na universidade pública. Outro objetivo do projeto é buscar a aproximação entre os saberes produzidos na universidade e os saberes produzidos nas práticas das comunidades populares, como forma de construir a consciência da educação superior como um direito, incidindo sobre a problemática do acesso de jovens dos setores populares. Antes de me envolver com esse projeto, estava literalmente perdido dentro da universidade. Lugar tão diferente do meu mundo, mas onde também há discriminação racial, em que insistem em afirmar que existe “democracia racial”, em que a visão sobre os negros ainda é distorcida. Procuro aproximar esse novo mundo do mundo em que eu vivo. Continuo sendo o garoto negro da periferia do Rio de Janeiro, que gosta de samba, rap e rock, mas que, agora, vê as contradições de uma sociedade dita “democrática”. Fagner Patrício Lucas 50 Caminhadas de universitários de origem popular Bolsistas que atuam no Aglomerado Santa Lucia, Belo Horizonte. Sala Conexões de Saberes (2006). Faculdade de Educação/UFMG. Foto: Cris Sabino Kilundu11 Nasci em 1977, na cidade de Belo Horizonte. Filha de Aurelina Lima, trinta anos, costureira, solteira. Natural de Jacinto, Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais. Meu pai, taxista, policial militar, boêmio, natural de Santa Luzia. Morávamos em um cortiço, um quarto com banheiro, no bairro Paraíso, região leste. Fui para a Creche Tinquitela da paróquia da Igreja Nossa Senhora da Boa Viagem, aos três anos de idade. Escrevi aos cinco, saí aos seis, quando minha mãe trocou de empresa. Aos sete anos, morávamos na avenida Amazonas, atrás de uma clínica de neurologia, vez por outra no porão desta, quarto e banheiro, 1983. Quando concluí a 1ª série do ensino fundamental, ganhei de presente de aniversário um passeio, indo ao cinema e ao teatro pela primeira vez. A partir de então, duas vezes por ano, esse passeio se repetia. Minha mãe sempre me levava pra sair, me enchia de bordados e fitinhas, mas cortou meu cabelo antes de eu completar oito anos, meu cabelo não cresceu mais. Não pude ser “paquita da Xuxa” na festa de natal da escola e tive certeza, naquele momento, de que os bordados não bastavam – segundo a professora, eu era de cor. Voltamos para o Paraíso. A mata da baleia, a turma do vôlei, amigos e diversão começam a fazer parte da história. Eram dois cômodos, quarto e cozinha. Visitamos familiares em São Paulo e no Vale do Jequitinhonha e os recebemos também em casa durante esses anos porque havia espaço para vários colchões. As famílias no Paraíso, amontoadas nos cortiços, eram quase todas negras, mães com sete ou oito filhos, todos da mesma escola, vários da minha idade. Recordo-me desses anos com muita satisfação, pelo convívio, o diálogo e o respeito. Mas o aluguel ficou caro. Newton Cardoso era um político influente na região, prometia muitas coisas, promovia shows e procissões quilométricas até o comitê onde nós deixávamos o nome para conseguir casa própria em um loteamento próximo ao campinho. Minha mãe acendia vela e ensaiava o desenho do nome antes de irmos, acreditava todas as vezes que o sonho da casa própria seria realizado, ela sempre teve muita fé em Deus e baixo salário. Um primo que se hospedou em nossa casa, quando recém-chegado à capital, comprou um lote, fomos morar na última casa, da última rua do Bairro Nova York, em Vespasiano, 1987. Troquei de escola no meio do ano letivo. Minha realidade era outra nesse Nova York. A Escola Municipal Dejanira Rodrigues de Oliveira ficava longe da minha casa, não conhecia ninguém pra fazer o trajeto junto, não havia nenhuma menina da quinta série na minha rua. Não tinha uma turma, daí minha primeira repetência. Não conseguia fazer nada interessante, fiquei moribunda. Sentia-me feia porque de feia me chamavam direta e indiretamente e porque o bonito estava no outro de outra cor ou de outra etiqueta. Ser pobre e negra dava-me a sensação 11 Expressão da língua Quimbundo – de raiz matricial Angola ou Banto –, que traz consigo um significado que transcende o espaço de vivência atual. Refere-se ao espírito de um antepassado remoto, um ancestral. Universidade Federal de Minas Gerais 53 de vítima de uma circunstância e questionava sozinha essa injustiça. Com o tempo, fui chefe de turma, freqüentei grêmios, festas, mas não gostava da escola, não curtia o bairro Nova York. Não havia quadras, só igrejas evangélicas e botecos. Durante a adolescência, os congados, as festas juninas da igreja católica, o candomblé, os grupos de samba e dança, tão comuns no Paraíso, me fizeram falta. Até então, entendia todo aquele agito do bairro como uma brincadeira em que todos participavam. Simples como cabra-cega, chicotinho queimado ou rouba-bandeira, era correr nos terreiros e dar um “rolé” no Cemitério da Saudade. Ajudar a tecer panos e falas coloridas, para o momento de coroar a Virgem Maria, e hastear a bandeira de Nossa Senhora do Rosário. Como não havia nada disso em Nova York, um bairro de periferia da cidade de Vespasiano, minha vida perdeu o sabor que há em uma comunidade de negros tradicional, como era o Paraíso da cidade de Belo Horizonte. Percebi, no olhar da vizinhança, que eu era uma ameaça por não ter TV colorida ou bicicleta, embora visse todos como pobres, havia no trato comigo e com minha mãe algo que nos empobrecia mais. Escrevia poemas mórbidos, lia sempre cadernos, livros de contos e outras coisas que minha mãe trazia, ou que eu pegava escondido dos lugares onde ela trabalhava. Eu a ajudava a limpar algumas mansões, escritórios e clínicas de psicologia. Com o dinheiro que recebia, pagava passagem de ônibus para passear no centro da cidade, ir ao cinema, à biblioteca pública Luís de Bessa e comprar cremes com rótulos coloridos onde inscrito havia promessas de crescer e alisar o cabelo. Num desses dias, conheci uma biblioteca escolar fascinante. Ela ficava na rua da Bahia com Bernardo Guimarães, na casa que foi de Bernardo Guimarães um dia, e que naquela época era a Escola Estadual Ordem e Progresso. Minha mãe trabalhava em um prédio comercial na rua da Bahia e recebeu a informação de que um grupo de mães dormiria na porta da escola para conseguir vagas. Já havia me inscrito em escolas profissionalizantes onde ocorreria sorteio de vagas, mas, precavidas, dormimos na porta também e consegui me matricular. Essa não foi a maior dificuldade para ingressar no ensino médio. Estudando em Belo Horizonte e morando em Vespasiano, após o primeiro semestre não havia mais dinheiro para a passagem de ônibus. Para não desistir dos estudos, comecei a limpar lojas, sozinha. Entre uma e outra, conhecia pessoas, adquiria novas patroas e minha mãe me pressionava para trabalhar em casa de família, dormir, diminuir os gastos com o transporte. Optei por trabalhar à noite em bares e boates; repetência pela segunda vez. Em 1995, tricentenário da morte de Zumbi, na gestão de Patrus Ananias na Prefeitura de Belo Horizonte, o projeto Arena da Cultura foi ponto de encontro e reivindicação para agentes e produtores culturais diversos, plurais. Todo final de semana acontecia baile no Estrela, no Casarão, no Pindorama. Reuniões, oficinas, palestras e debates em quase toda região metropolitana. Raspei o cabelo, uns ou outros me chamavam de Maria Alcina, mas foi possível com essa inclusão ao estilo da “moda” encontrar minha turma e me envolver com os Outroístas, uma turma que gostava de comunicação, música brasileira e acreditava na revolução, sem ser partidário, era outroísmo. Nosso objetivo era discutir filosofia, marxismo, comunismos e esboçar um ismo outro, nosso, inclusivo. Através da abertura do campo de amizades, conheci movimentos culturais e políticos. Falava e ouvia muito de pessoas com história de vida semelhantes a minha. Construí perspectivas durante várias reuniões e projetos sociais para a melhoria da qualidade de vida da mulher, do negro e projetos individuais para melhoria na qualidade da minha vida, da vida de minha mãe. 54 Caminhadas de universitários de origem popular No momento em que comunguei com outros minhas dificuldades e descobri que o cercadinho a minha volta podia ser ultrapassado, pensei em prestar vestibular para Sociologia e o fiz, sem sucesso. Daí em diante, foram três anos de cursinho e vida social frenética, eu gostava de política, lia o que me indicavam e falava muito. Numa dessas ocasiões, na Escola Sindical 7 de Outubro, na região do Barreiro em Belo Horizonte, conheci Roberto Raimundo e Juarez Dayrell. Ingressei, posteriormente, com outros trinta e nove jovens, no projeto formação de Agentes Culturais do Observatório da Juventude da UFMG, um divisor de águas nessa trajetória. Daqui em diante, a fala é outra, ao passar no vestibular da Universidade Federal de Minas Gerais e integrar o D-vEr.CidaDe CuLturaL – Associação construída a partir do processo de formação de Agentes Culturais –, construo para dentro e fora de mim possibilidades reais de pôr em prática meu projeto de vida, aquele que sonhei lá atrás e me atrevo a realizar até hoje. Quero ter uma trajetória acadêmica de sucesso: primeiro, me graduar em Biblioteconomia e Documentação, aqui, na minha amada Belo Horizonte, e em Musicologia, lá em Salvador. Mas permanecem as pedras, uma delas é a dívida com Fundação Mendes Pimentel, que os estudantes pobres da UFMG recebem junto com o título Carente I, todos os meses em suaves prestações. Outra é a burocracia e as enroladas dos setores públicos no atendimento às demandas de políticas afirmativas dentro e fora das favelas, bem como a concessão de recursos para que nós, juventude participativa, terceiro setor, representantes e agentes culturais, coloquemos a mão na massa com dignidade na construção de um Brasil melhor. Cristina Ferreira Sabino Universidade Federal de Minas Gerais 55 Devemos sempre lutar Sou o filho mais velho de uma família de quatro irmãos, sendo dois homens, um de 23 e o de 17, e uma menina de 15 anos. Somos de família de classe pobre e que se auto declara negra. O caminho de ingresso na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) começou aos 19 anos, quando passei a fre qüentar um cursinho pré-vestibular. Nunca havia pensado, até então, em fazer um curso superior, menos ainda na UFMG. Isso me soava como algo fora da realidade, uma vez que nenhuma pessoa de minha família, ou mesmo, pelo menos até aonde eu conhecia, da pequena favela onde moro, realizara esse feito. Acredito, também, que nem mesmo as pessoas com as quais tenho relações mais estreitas, parentes e amigos, esperassem que eu estudasse mais do que o segundo grau. Creio nisso menos por entender que me subestimassem do que pelas suas percepções advindas de experiência de vida de pessoas pobres e, em sua maioria, negras. Até mesmo minha mãe, como soube algum tempo depois, pensava que seu filho mais velho estava estudando além do necessário. Afirmo que a educação para algumas pessoas de camadas populares tem um grande valor, os pais dizem a seus filhos que estudem para que “sejam alguém na vida”. O apoio dos pais se dá, nesse caso, mais pela via do incentivo, pois na maioria das vezes não têm concluído nem mesmo o ensino fundamental e não conhecem a caminhada para um curso superior. Esses pais que valorizam a educação têm apenas a noção de que um longo período de dedicação aos estudos tem bons resultados. Já outros atribuem mais valor ao emprego, retirando deste o sustento da família e, no seu entender, não é a educação algo mais importante que o trabalho. Percebemos que, na maior parte dos casos, a questão do tempo presente é mais valorizada em detrimento a resultados de longo prazo. As famílias carentes têm o imperativo da necessidade de sobrevivência em suas vidas e quando o filho chega à determinada idade, geralmente quando estão começando o ensino médio, cobram dele uma “ajuda”. Para esses últimos, a educação se resumiria a aprender a ler e a escrever, sendo que dessa forma não seria necessário freqüentar a escola por muito tempo. Comecei a trabalhar desde os meus 15 anos e fiz todo o secundário à noite. Trabalhava de cobrador de ônibus em uma empresa que se localizava próximo de minha casa. Quanto à escola, cursei, do ensino fundamental ao médio, escola pública. Quando criança, minha mãe não deixava nem meus irmãos e nem eu ficarmos brincando na rua. Noto que o medo de que a permanência na rua possa levar os jovens que vivem em favelas a ingressar na vida do crime é recorrente, sobretudo nas mães, e é a partir daí que interpreto a atitude de minha mãe para comigo e meus irmãos. Sei bem que as drogas não estão só presente nas ruas e becos dos morros, elas estão disseminadas também entre os jovens de classe média e média alta e, por conseqüência, estão presentes nos espaços por eles freqüentados. Espaços que incluem o próprio ambiente acadêmico, lugar que tem grande status perante a sociedade e no qual não é repreendida a circulação de jovens. 56 Caminhadas de universitários de origem popular Adquiri o gosto pela leitura quando já havia começado a trabalhar. Destaco isso porque era durante o horário de serviço que eu mais dedicava tempo à leitura. Lia entre a cobrança de uma passagem e outra, e também durante o tempo de parada no ponto final. Comecei com a literatura e depois passei a algumas obras políticas. Quase não tive orientação bibliográfica, ia por “instinto”. No cursinho, tive algumas indicações de leitura de periódicos. Acho importante salientar o que norteava as minhas leituras: tinha uma grande vontade de entender como funcionava o mundo, tanto as questões naturais quanto as questões sociais, com maior destaque para as últimas. Outra coisa que penso ter interferido em minha trajetória até a universidade foi a vontade, desde de pequeno, de morar em uma casa “normal” e ter um lanche da tarde como havia nas casas de meus colegas de escola. Suas casas não ficavam em becos e não eram localizadas em um único espaço, em uma pequena depressão geográfica, na qual havia muitas outras. O acesso às casas de meus colegas se dava pelas ruas e o modo pelo qual estavam dispostas, em quarteirões, dava a entender que eram independentes umas das outras. Quanto aos lanches, os de meus colegas iam além de um simples copo de café com um pão francês. Tinha suco, café, biscoito, bolo, entre outros e tudo isso ao mesmo tempo. Eu não tinha a possibilidade de escolha, que àquela época entendia como condição legal. Seriam esses fatores, os cuidados de minha mãe, o trabalho, a leitura e o sonho de menino, mais os conselhos dos professores do cursinho (Associação Pré-UFMG), que me teriam levado a querer fazer um curso superior. Ao escrever esta memória, penso também que sofri influência, pelo menos na forma de estudar, de um professor de história que tive lá pela sexta série do primeiro grau. Quanto ao que me levara a fazer o pré-vestibular, não sei explicar direito. Quando penso nesse assunto, só me lembro de duas coisas. A primeira era eu me perguntando o que faria da vida depois de terminar o segundo grau. E a segunda era de estar dentro de um ônibus, na condição de passageiro, e me deparar com um outdoor no qual havia uma propaganda de um cursinho pré-vestibular. Creio que esses fatos acima relembrados possam ter me conduzido a um cursinho. Outra coisa importante que destaco é a escolha do curso. Nas duas primeiras vezes nas quais fiz vestibular, me candidatei ao curso de Administração/noturno e, na terceira e última vez, na qual consegui passar, tentei Geografia/Licenciatura. A relevância dessa parte de minha trajetória está no fato de que a escolha do curso que eu deveria tentar estava mais condicionada ao horário, tanto o de cada curso oferecido pela universidade quanto o horário que eu teria em disponível, e o nível de concorrência no processo seletivo do que pelas minhas preferências pessoais. Isso porque eu precisava trabalhar durante o dia, caso contrário não poderia estudar. Também havia o fato de depender de minha própria renda para manutenção dos custos de vida. Acreditava, e ainda acredito, que os cursos dentro da UFMG que têm uma demanda mais intensa por parte de alunos oriundos das camadas mais abastadas da sociedade, como Medicina e Direito, por exemplo, que carregam consigo um certo status, oferecem um maior grau de dificuldade, em seus respectivos processos de seleção, para alunos pobres. Dificuldades que se intensificam mais ainda quando esses últimos são negros, como demonstra alguns trabalhos acerca do assunto. Escolhi, enfim, o curso de Geografia/Licenciatura, por ser em horário noturno e por não ter uma grande demanda, ou seja, muitos alunos por vagas. Essa baixa demanda evidenciaria, no meu entender, o pouco status que o curso possuiria, pouco demandado por estudantes de classe média e alta. No que se refere ao meu gosto pessoal – Administração –, era um curso que me fascinava só Universidade Federal de Minas Gerais 57 de ouvi-lo, mesmo sem saber direito o seu conteúdo. Já em Geografia, o que me interessava era a geopolítica, matéria que soube, posteriormente ao entrar na universidade, ser apenas uma pequena parte do curso. Para passar no vestibular, estudei durante três anos, tempo de freqüência do cursi-nho, logo, só passei na terceira tentativa. Saía de madrugada para o trabalho, entre cinco e seis horas da manhã, e só retornava por volta das quatorze horas. Chegava em casa, tomava um banho, almoçava e ia para o cursinho. Voltava dele por volta das 23:30 e 24:00. Durante os dias da semana, de segunda a sexta, foi essa a minha rotina diária durante a época de cursinho. Quando escrevo essa parte, fico lembrando dos dias nos quais chegava em casa do trabalho, cansado e com muito sono, mas não podia dormir porque daí a poucas horas teria de estar no cursinho. Quando acabavam as aulas, também passava por maus momentos, pois tinha que enfrentar uma fila imensa para o elevador e, logo depois, a espera pelo ônibus no centro da cidade tarde da noite. Cheguei a pensar se todo aquele esforço valeria a pena algum dia. Na verdade, é que parecia que eu estava lutando contra algo que não sabia o que era. Mas não sei bem explicar do que se tratava, alguma coisa dizia para eu não desanimar. Daí pensava em minha mãe e na família que eu sempre quis ter. Queria ajudar minha mãe, uma vez que ela sempre lutou muito para criar seus filhos. Ela teve uma vida muito sofrida e sei que boa parte desse sofrimento deriva do fato de ter ela de superar muitas dificuldades para criar seus quatro filhos. Além disso, penso em ter filhos e quero que os mesmos tenham orgulho de seu pai, tanto orgulho quanto o que minha mãe deve sentir quando ela diz às suas amigas que seu filho estuda na UFMG e elas lhe dizem ser esse um menino inteligente e esforçado. Outra coisa que passei a pensar durante os estudos foi a questão de ser um rapaz pobre e negro que estudaria na UFMG, para mim isso traria uma elevação de minha auto-estima. Como eu não via muitas pessoas pobres estudarem em uma universidade e, principalmente, quase não via pessoas negras, achava que passar no vestibular da UFMG seria não só uma vitória pessoal, mas de classe e raça também. Verdade é que a única oportunidade de eu fazer um curso superior era em uma instituição pública. Durante esse período de estudo para as provas, tentava convencer algumas pessoas a estudarem comigo, mas as mesmas ou não se interessavam pelos estudos ou não tinham condições para fazê-lo, tanto pela falta de dinheiro para pagar um cursinho quanto pela falta de tempo. Quanto aos meus colegas de bairro, não via entre eles nenhuma intenção no sentido de querer estudar mais que o secundário. Devo ressaltar também que tinha poucos colegas com os quais pudesse ter assuntos menos triviais, pois a maioria deles conversava sobre futebol e outras coisas que considero menos importantes. Aliás, é importante salientar que, a partir da minha percepção sobre esse assunto, vejo que a maioria das pessoas de classe pobre tem em mente que qualificação profissional e ensino escolar, do primeiro ano do ensino fundamental ao terceiro ano do ensino médio, sejam a mesma coisa, quando, na verdade, não passa de pré-requisito para se conseguir um emprego, na maioria das vezes mal remunerado. Quando passei no vestibular, fui muito festejado e logo depois sobrecarregado em responsabilidade também. Acabei servindo, de certo modo, de “novo” exemplo a ser seguido e, a partir de então, virei um ponto de referência positivo. Fiquei muito alegre de ter passado no vestibular e creio que aquelas pessoas que gostam de mim e que haviam acompanhado meu esforço tenham, também, ficado muito contentes. Pelo menos foi a impressão que tive. Fiquei bastante ansioso para o começo dos estudos. Comecei no segundo semestre de 2003. 58 Caminhadas de universitários de origem popular Minhas dificuldades aumentaram mais ainda quando comecei a estudar, pois a conciliação entre trabalho e escola não se dava de forma harmônica. Como resultado obtive um malestar no ambiente de trabalho com meus chefes e uma conseqüente demissão. Essa, se por um lado me liberava para os estudos, por outro me apertava no que se referia ao fator econômico. A última implicação era bastante maléfica, pois em minha casa eu era o que possuía a única renda fixa e, conseqüentemente, era a base de sustento da família, há seis anos. Havia um grande desgaste psicológico, pois teria gastos constantes sem saber de onde tirar os recursos e, ainda, sem condição de manter a casa, os problemas aumentaram. Ao refletir sobre minha trajetória de ingresso na UFMG, bem como sobre a trajetória de outros alunos universitários, inferi que o ingresso na universidade talvez não fizesse parte de nossas vidas. Isso sob o recorte de classe social e pertencimento racial. Assim, o curso superior para pessoas de classe pobre e negra se constituiria, no meu entender, em um “acidente”. Pude notar que o curso superior não fora, na maioria dos relatos a que tive acesso, fruto de um projeto deliberado. Talvez apenas surgisse enquanto resposta à pergunta: “O que fazer depois do ensino médio?”, como foi no meu caso. No mais, vejo que, se a vontade de fazer um curso superior suscitou em muitas pessoas de características sócio-econômicoracias semelhantes as minhas, foram poucos os que conseguiram. Minha manutenção até o presente momento na Universidade Federal de Minas Gerais tem se dado em função do apoio da FUMP (Fundação Universitária Mendes Pimentel) e do Projeto de Extensão Conexões de Saberes na UFMG. A FUMP, nos meus três primeiros semestres, me concedeu, por meio de seu programa de assistência estudantil voltados aos alunos carentes da UFMG, uma bolsa trabalho, mediante a qual recebia uma quantia em dinheiro para exercer trabalhos administrativos em uma das unidades da universidade. Além disso, por alguns meses tive que pegar a bolsa manutenção. Uma espécie de empréstimo subsidiado que a FUMP concede por meio do já referido programa assistencial. Quanto ao Conexões de Saberes na UFMG, projeto criado pelo Governo Federal em 2005, que funciona em 14 universidades e que tem como escopo ajudar a promover a manutenção com qualidade de alunos carentes na universidade, sobretudo os negros, e trabalhar a questão da identidade étnico-racial dos mesmos, além de realizar a conexão entre universidade pública e sociedade, me forneceu uma bolsa socioeconômica a partir do quarto período. Essa última bolsa tem uma importância muito grande, porque, além de me fornecer um apoio econômico, me possibilita conhecer como se realiza uma das instâncias acadêmicas, nesse caso a Extensão. Mesmo recebendo os apoios que descrevi acima, sempre passo por dificuldades, pois o dinheiro que recebo da bolsa socioeconômica mais o empréstimo subsidiado não me são, em seu total, suficientes. Isso se deve ao fato de essa quantia não servir apenas para a minha manutenção acadêmica, mas também para as despesas pessoais, incluindo aí a ajuda de custo dentro de casa. Mas nem tudo são só dificuldades, pois percebo que as possibilidades oferecidas pelo espaço acadêmico, mais as práticas cotidianas da universidade, têm a condição de concretizar as capacidades humanas além de expandi-las de acordo com as qualidades de cada aluno. O que quero dizer é que o menino pobre e negro, e que por esses motivos tem seu direito à cidadania negado pelo sistema social-econômico e cultural vigente em nosso país, destacando nesse caso o impedimento à realização do ensino superior, deve sempre lutar, desde que o queira, mesmo sabendo que a sua luta, pelos motivos que já citei, será mais árdua que a de Universidade Federal de Minas Gerais 59 outros pertencentes à classe média e alta e, na sua maioria, brancos. Creio que a sua luta mais árdua será por isso mais grandiosa e terá como resultado uma enorme vitória. Vitória essa que o possibilitará atuar com mais força e qualidade na contínua batalha pelos seus direitos e dos seus semelhantes dentro dessa sociedade brasileira fortemente hierarquizada, concentradora, antidemocrática e preconceituosa. Everton Correa Alves 60 Caminhadas de universitários de origem popular Uma trajetória permeada por contradições Ter nascido e crescido num bairro “nobre” da zona sul de Belo Horizonte e ser oriunda de uma família de baixa condição socioeconômica pode ser considerado, no mínimo, contraditório. Fui criada num bairro de classe média, numa casa antiga e muito simples, herdada dos meus avós maternos. Nesse local, nunca tive muito contato com os vizinhos, a maior parte das amizades que fiz era com pessoas que estudavam comigo. O meu contato inicial com o espaço escolar foi cedo, pois meus pais trabalhavam e não havia com quem eu ficar. Então, aos cinco anos de idade entrei para a pré-escola. Meus pais, apesar da pouca escolaridade, sempre nos incentivaram a estudar, nunca mediram esforços para que isso fosse possível. Sempre atribuíram ao estudo a chance de um futuro diferente. Sempre estudei em escolas públicas, localizadas na região em que eu moro. Cursei até a 4ª série do ensino fundamental, em uma escola considerada uma das melhores da cidade, onde a maior parte dos alunos era de classe média. Nesse mesmo período, já fazia balé, na condição de aluna bolsista. Aprender a lidar com os vários mundos com os quais convivi foi confuso e difícil, mas na época isso não era claro pra mim. Recordo-me que, aos 11 anos, fui transferida para outra escola pública na mesma região, na qual os alunos eram, em sua maioria, moradores de uma vila/favela próxima. Foi um período de transição complicado, pois, inicialmente, não conseguia me identificar com aquele espaço. Minhas vivências até então faziam com que eu tivesse atitudes e costumes diferentes dos alunos dessa escola. Era estranho entender e, acima de tudo, aceitar os hábitos daqueles alunos. Percebi que, por não ser moradora da vila, eles também não me aceitavam tranqüilamente. Havia um estranhamento recíproco. Eu era uma boa aluna, tinha ótimas notas, estava sempre nas classes consideradas melhores. Lia bastante e acredito que as vivências no balé influenciaram para que isso acontecesse, pois, ao observar as minhas colegas de balé lendo com freqüência, passei a freqüentar mais a biblioteca da minha escola e a ler cada vez mais. Entretanto, à época eu não tinha uma compreensão da importância da leitura. Esse interesse pelos livros era uma forma de me sentir participante daquele ambiente. Esse hábito de ler contribuiu positivamente para minha trajetória escolar. Apesar das boas notas e de não apresentar dificuldades com o aprendizado, não me sentia parte dessa escola. Achei-me de fato pertencente àquele meio na 7ª série, quando comecei a constituir vínculos com os professores e alunos. Fiz grandes amigos que moravam no Morro do Papagaio, uma favela da região, e passei a freqüentar a casa de alguns, a me identificar com aquele espaço. Tal identificação contribuiu para que algumas coisas que estavam obscuras começassem a se esclarecer para mim. Lembro-me que, a partir desse contato, as diferenças socioeconômicas e culturais entre os meios que eu transitava ficaram mais evidentes. Entretanto, transitar entre espaços diferentes continuava sendo contraditório e confuso para mim. Universidade Federal de Minas Gerais 61 Ao tomar contato com ambientes diferentes, percebi ações e práticas adotadas pela escola e por alguns professores, com as quais eu não concordava. Eu, muitas vezes, criticava a relação que os professores e a direção tinham com os alunos. Recordo-me que uma vez fui expulsa de sala de aula, por ter questionado um procedimento adotado por uma professora. Ela me expulsou de sala e disse que eu era muito “topetuda” e que aluno tinha que ficar calado. Acredito que ali não havia espaço para muitos questionamentos. Nessa época, não tinha uma idéia muito clara do que era racismo, mas me lembro que ficava indignada ao perceber que os professores da escola tratavam alguns alunos, sobretudo os negros, de forma diferente. Alunos negros, além de serem identificados como os mais indisciplinados, eram considerados os que mais careciam de atenção. A relação estabelecida entre os professores e os alunos negros era superficial e, ainda assim, conflituosa. Por vezes, parecia ser algo velado, mas em algumas situações chegava a ser explícito. Os professores não abordavam alguns assuntos como discriminação, preconceito e racismo, nem mesmo os consideravam relevantes para a nossa formação escolar ou pessoal. Assuntos acerca de inclusão social, então, nem se cogitava a possibilidade de discutir sobre! No balé, eu era a única negra, pelo menos a única que se reconhecia como tal, por isso sofria um preconceito de forma muito sutil. Alguns preferiam nem me identificar como negra, quando eu me declarava como tal, diziam-me que eu era morena. Soava como uma ofensa dizer que eu era negra. Entretanto, apesar de muitas vezes não me posicionar claramente, talvez para evitar conflitos, sempre tive a consciência que era negra. Ciente da dificuldade enfrentada pelos afro-brasileiros no acesso à universidade pública, sempre esteve presente em meu pensamento a vontade de ingressar no ensino superior em uma instituição pública. As meninas com as quais eu convivia no balé já falavam muito sobre vestibular e estudavam em colégios que as preparavam para passar no vestibular da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Na escola que estudava, vestibular e faculdade eram palavras distantes. No momento, me vem à memória que temas como injustiça e exclusão social sempre me inquietaram bastante e acreditava que sendo advogada resolveria boa parte delas. Por isso, sempre quis cursar Direito. Durante o ensino médio que cursei em uma escola estadual, já se falava sobre vestibular, uma universidade pública já era vista como possibilidade mais próxima. No 3º ano do ensino médio, comecei a intensificar meus estudos, pois me inscrevi para prestar vestibular para Direito na UFMG. Mas não foi suficiente para ser aprovada. Nesse período, ocorreu uma ruptura difícil em minha vida, decidi parar de fazer balé. Mesmo amando a dança, percebi que, após anos freqüentando aquele meio, não estava diretamente inserida ali. Pelo contrário, ora era incluída, ora era excluída. Mas a exclusão acontecia de forma muito discreta, a maior parte das relações que mantinha ali eram superficiais. E quantas vezes, apesar de dançar bem, eu ficava atrás e não tinha um papel de destaque como as outras. Minha concepção sobre aquele mundo de sonhos foi caindo por terra. O fato de o meu pai ter falecido na mesma época influenciou, pois a nossa condição econômica se agravou e eu precisava trabalhar. Foi uma ruptura difícil, mas necessária para alçar novos vôos. No ano seguinte, continuava com a idéia fixa de ingressar no ensino superior em uma universidade pública, não cogitava outra possibilidade e também não havia condições 62 Caminhadas de universitários de origem popular financeiras para permanecer em uma instituição privada. Entretanto, o ingresso numa instituição de ensino superior pública representava um obstáculo a ser superado. Conciliando o cursinho pré-vestibular com o trabalho, ampliei minhas leituras sobre alguns assuntos, dentre eles a educação. Esse fato e o contato com pessoas que cursavam Pedagogia, entre elas uma amiga que fazia o curso na Federal, influenciaram minha escolha para prestar vestibular em Pedagogia. Como eu queria trabalhar com temas como exclusão social, porque não começar pelo campo educacional? Fui aprovada na primeira etapa do exame, mas não passei na segunda etapa. Um pouco frustrada, continuava determinada a cursar o ensino superior e me questionava porque não havia nenhum parente próximo que tinha ingressado na Universidade Federal de Minas Gerais. Por alguns momentos, cheguei a achar que era por não terem se esforçado o suficiente, por não acreditarem em si mesmos. Hoje noto que a questão não é mérito, vai além disso... A sociedade coloca essa situação como se o indivíduo fosse o único responsável por seu sucesso ou fracasso na trajetória escolar, mas não é simples assim. As possibilidades não são iguais para todos; se fossem, poderíamos considerar apenas as aptidões. Por falta de tempo, não foi possível intensificar o ritmo dos estudos, pois trabalhava e estudava, mas após seis meses de pré-vestibular fui finalmente aprovada no curso de Pedagogia da UFMG. O significado que estudar nessa universidade tem pra minha família é incrível, eu represento muitos que não puderam estar aqui, que lhes foi negado esse direito, eles vêem em mim seu sonho realizado. Mas tenho plena consciência que não estou aqui por simples merecimento. Sei do esforço dos meus pais e de toda a minha família para que eu tivesse acesso a uma universidade pública. Após a euforia da vitória, ao ingressar na universidade percebi que o vestibular é a primeira etapa de uma trajetória acadêmica cheia de desafios. Permanecer com sucesso em uma universidade pública no Brasil não é uma tarefa fácil, ainda mais quando se é negra oriunda de camada popular. No primeiro período, enfrentei algumas dificuldades na leitura e produção de textos científicos, o que tornava difícil a realização de atividades acadêmicas. Entretanto, não compreendia com clareza o motivo das dificuldades. Mais tarde é que fui entender que o espaço acadêmico possui um certo distanciamento em relação ao repertório cultural da maioria dos alunos negros de origem popular, dificultando muitas vezes a aquisição de conhecimento e a sua inserção no meio acadêmico. Ciente do quanto o percurso acadêmico é árduo, contar com o apoio de um grupo é algo positivo e motivador. Dessa forma, com a minha inserção no Programa Ações Afirmativas na UFMG, a partir do 2º período, quando fui selecionada para participar do mesmo, me senti fortalecida, sendo esse espaço de auto-afirmação pra mim. A participação no Ações Afirmativas na UFMG tem se constituído numa experiência única em minha trajetória acadêmica e no processo de reconstrução da minha identidade. As atividades oferecidas pelo Programa me instrumentalizaram academicamente, possibilitando uma formação mais sólida. Porém, mais do que isso, o Programa, através de debates e palestras, esclareceu assuntos acerca da questão racial, possibilitando a reconstrução da minha identidade negra. Universidade Federal de Minas Gerais 63 O Conexões de Saberes é mais uma possibilidade de ampliar os horizontes, sinto que através do contato com as comunidades e da reescrita de minha trajetória escolar até o ingresso na universidade tenho a possibilidade de revisitar antigas contradições que nem sempre estão bem resolvidas. Heloíza Helena da Costa 64 Caminhadas de universitários de origem popular A luta É interessante como as coisas acontecem em nossas vidas. Há alguns anos, estudar em uma universidade era apenas sonho, na verdade, meu sonho não era estudar em uma universidade apenas, era estudar na UFMG. Hoje sou membro do Projeto “Conexões dos Saberes” e, dentre tantas outras obrigações, estou incumbido de descrever minha trajetória e, com certeza, minha estória não é diferente dos outros membros do grupo e de outras milhares de pessoas provenientes das camadas populares que hoje se encontram em uma faculdade. Contudo, aprendi que todos temos nossas particularidades, nossos saberes e é por isso que não é apenas um texto, é minha história que ficará registrada aqui. Moro numa favela conhecida como “Morro do Papagaio”, famosa também por se destacar, quase sempre, em páginas policiais. As pessoas honestas e de bem que aqui vivem, algumas cresceram comigo, jogaram bola e fizeram parte da minha infância, juntamente com todos os moradores da comunidade fazem parte da minha vida, pois se torna impossível traçar essa trajetória e não me lembrar dos meus amigos, de minha mãe e de várias outras pessoas que já não estão mais conosco, mas que foram relevantes em minha formação como pessoa, como homem, como ser humano. Sou filho do êxodo, já que minha mãe e sua família vieram do interior de Minas – Raul Soares – e, não tendo condições financeiras, tiveram que morar aqui, onde estamos até hoje. Após alguns anos em Belo Horizonte, minha avó veio a falecer e, um pouco mais tarde, eu nasci. Filho de mãe solteira, a mesma tinha que trabalhar para nos sustentar, eu vivia de casa em casa e, sem a presença de um pai, as coisas eram mais difíceis, digo isso por minha mãe, não por mim, já que a ausência de um pai era uma palavra desconhecida até então. Hoje consigo entender o quanto minha mãe precisou batalhar para criar um filho sozinha, numa época em que as leis trabalhistas não eram respeitadas e que o pobre era tratado como um qualquer, muito pior que hoje. Então, com justiça, digo que a senhora Olinda Julia é até hoje uma mulher batalhadora, guerreira, determinada e com várias outras qualidades que eu gostaria que estivessem em mim. O tempo foi passando e, aos sete anos, fui matriculado na escola ao lado de minha casa, e sempre com boa vontade e mesmo cansada de trabalhar o dia inteiro, não só fora, como também em casa, minha mãe me ajudava a fazer os deveres. E eu ouvia sempre de minha mãe: “Eu não tive chance de estudar, de poder lhe dar uma vida melhor e não quero que você desperdice a sua”. Minha mãe ensinou-me a ser responsável e também me mostrou que eu não precisava mentir, mesmo ela saindo bem cedo para trabalhar eu me arrumava e ia para escola sozinho, por isso hoje tenho orgulho de dizer que ela nunca precisou levantar a mão para mim, pois tenho certeza que todas essas demonstrações de carinho foram relevantes em minha formação como pessoa. Universidade Federal de Minas Gerais 65 Um dia, notei que minha mãe já não podia mais me ajudar nos deveres de casa, pois eu já havia ultrapassado sua vivência escolar, porque infelizmente ela estudou apenas até a quarta série do primário. Aos 14 anos, comecei a trabalhar e até então eu não havia tido nenhum contato com pessoas que não fossem do local onde eu morava. Nesse período, passei a estudar à noite e, após alguns anos, me formei sem maiores dificuldades. Incrível como a palavra formar, no lugar de onde venho, tem tamanha importância e para mim não deixava de ter também, pois significava, na maioria dos casos, o fim dos estudos e o começo da procura por um trabalho “melhor”, aquele que exige o ensino médio, que, todos nós, alunos de escolas públicas e moradores de vilas ou favelas, almejamos. Como dito anteriormente, me formei e a idéia de faculdade era apenas uma coisa vaga, distante, um sonho realmente, já que tanto eu quanto meus amigos sabíamos que era impossível pagarmos uma faculdade particular e a UFMG parecia algo inatingível. Enfim, após o término dos estudos e sem fazer cursinho, consegui a isenção da taxa de vestibular e tentei, sozinho, pois meus amigos, os que moravam próximo de mim e que, naquele mesmo ano, tinham se formado, nem sequer tentaram a isenção para a inscrição. Chegou o dia do vestibular, meu primeiro vestibular e lá estava eu sentado em uma carteira, fazendo a prova de um dos vestibulares mais concorridos do país; não e difícil adivinhar o que aconteceu: naturalmente não passei e isso só serviu para me mostrar que meus amigos estavam certos e que parecia mesmo impossível ser universitário. Durante dois anos, fiquei sem estudar e, nesse intervalo de tempo, sempre ouvia da minha mãe algumas sugestões sobre tentar mais uma vez, ela afirmava que eu era inteligente, que se me esforçasse passaria, com certeza, e ela era a única que acreditava em mim, pois nem eu tinha tanta convicção que poderia um dia passar na UFMG. Matriculei-me no cursinho PréUFMG, criado por estudantes da universidade para pessoas que não têm condições de pagar um valor alto de pré-vestibular. Fiz um ano de cursinho e, mais uma vez, tentei o vestibular da UFMG e, novamente, fui reprovado. Nesse momento, me senti um estranho, uma pessoa de outro mundo, totalmente deslocado e, a partir daí, percebi que eu realmente não era daquele mundo, que, no lugar onde moro, estou no mesmo nível de meus amigos e de todas as outras pessoas que ali estavam e que sequer tocavam no assunto de curso superior. Entretanto, ao lembrar-me de minha mãe decidi que estudaria na UFMG, que daria esse motivo de orgulho para minha mãe e que só sossegaria o dia em que estivesse lá dentro fazendo meu curso de Engenharia, pois é, queria ser engenheiro desde o primeiro vestibular. Matriculei-me no mesmo cursinho do ano anterior e estudando à noite, já que não dava para deixar de trabalhar, voltei às salas de aula e prometi a mim mesmo que no final daquele ano estaria matriculado em uma universidade, qualquer que fosse ela, já que não suportava mais fazer cursinho. O meu combustível era somente a minha heroína – minha mãe. Tinha chegado à conclusão que somente conseguiria dar uma vida melhor a ela, se um dia eu fosse alguém, pois não tinha a mínima perspectiva de melhorar financeiramente e satisfazer alguns de seus sonhos sem estudo, sem um curso superior. Há uma passagem dessa época que me toca muito e que nunca irei esquecer: voltando do cursinho, aproximadamente às 22:30, após sair de uma aula de exercícios de física, comecei a chorar de desespero, pois faltava pouco tempo e eu não estava me sentindo preparado e em prantos me passava um filme pela cabeça, o que eu iria dizer para todo mundo e, principalmente o que eu iria dizer para minha mãe, que tanto confiava em mim. Cheguei 66 Caminhadas de universitários de origem popular em casa e, como sempre, minha mãe me esperando acordada para esquentar o jantar – ela sempre fez e ainda faz questão de fazer isso para mim. Disse a ela que estava com medo de mais uma vez não passar, ela afirmou que eu passaria, que realmente não seria fácil, mas que já era para eu estar acostumado, pois nada em nossas vidas havia sido simples, que eu deveria ter muita fé em Deus, que no final tudo daria certo e que eu apenas deveria fazer a minha parte, deveria me esforçar ao máximo, mesmo quando me sentisse esgotado, não desanimasse. No ano desse vestibular, como eu prometera a mim mesmo que estaria matriculado em um curso superior, fiz nada menos que inscrições em quatro faculdades: PUC, UEMG, CEFET e UFMG. A surpresa veio no final dos concursos, nesse ano eu havia passado em todas as universidades que tentara e, hoje, provavelmente, não estaria aqui escrevendo essas linhas se não tivesse escolhido a universidade dos meus sonhos – a UFMG. Eu nunca vi minha mãe tão feliz em toda a minha vida e isso teve uma importância muito grande para mim, maior do que eu realmente imaginava. Minha namorada colocou faixas na porta da minha casa, minha mãe se incumbiu de dar a notícia aos mais desavisados ou desatentos que não vissem a faixa. Os mais velhos, principalmente, sem terem noção do que era aquilo me perguntavam se eu já era engenheiro e eu explicava que não, que só tinha conseguido passar em uma prova para poder estudar, para mais adiante ser engenheiro. Foi então que notei que, na verdade, não se tocava no assunto de curso superior devido à grande distância, que nós, pobres, somos separados, distância financeira, social e, principalmente, educacional. Entretanto, percebi, também, a alegria que meus amigos e parentes sentiram após saber da minha conquista, que de certa forma também é deles, me senti como um atleta olímpico que traz uma medalha para seu país. No segundo semestre de 2001, eu era um universitário e estava lá sentado assistindo aula como calouro do curso de Engenharia Metalúrgica. No entanto, essa festa toda durou pouco, o primeiro baque foi o fato de eu ter de deixar o emprego, pois meu curso é em horário integral, e o que mais me cortou o coração foi ver minha mãe voltar a trabalhar após já ter se aposentado. O fato de não poder mais ajudar em casa por estudar em uma universidade elitista causou problemas. O primeiro foi de ordem financeira e, hoje, seria quase que impossível pensar em estudar não UFMG se não existisse a FUMP – Fundação Mendes Pimentel –, criada para ajudar alunos de baixa renda a se manterem na universidade. O segundo e mais complicado é que percebi que não conseguia acompanhar a turma nas matérias como deveria, tive muitas dificuldades em todas, mas a disciplina que mais me marcou negativamente, é claro, foi Programação de Computadores, pois eu ainda nem tinha sido apresentado a um computador, mal sabia ligar um e, de repente, me vejo em uma aula, em que eu deveria aprender a programar o sistema de um deles. Quando o desespero estava no auge, conversei com a professora, que, diferentemente da maioria dos professores com os quais tive contato até hoje, foi bastante compreensiva, expliquei-lhe minha situação e ela me ajudou muito. Passado o primeiro período e junto com ele os primeiros sustos, vieram os outros e, da mesma forma, uma matéria mais complicada que a outra e professores não tão compreensivos, contudo um aspecto que foi muito relevante para minha permanência foram as amizades que fiz, independentemente da distância social me lembrarei para sempre, não importa o espaço que nos separa, foi devido a essas amizades que consegui levar em frente o curso, pois já perdi o número de vezes em que fui estudar na casa desses amigos e, por lá, almocei, jantei e passei a noite, para que eles pudessem me ensinar as matérias que tinha dificuldades. Universidade Federal de Minas Gerais 67 Hoje estou no oitavo período, já não tenho os mesmos problemas de antes e estou colhendo os frutos do meu esforço, o fato de estar em uma universidade me deu a chance de ser professor de Física de um pré-vestibular comunitário e ser bolsista do projeto para o qual estou escrevendo este texto. Isso tudo só está acontecendo, única e exclusivamente, porque sou estudante universitário. Sei que ainda terei muitas dificuldades pela frente, tenho consciência que, quando me formar, não disputarei uma vaga de emprego de igual para igual com meus colegas de curso, pois, na maioria dos casos, existem parentes que facilitarão a entrada dos mesmos no mercado de trabalho. Esse fato será mais um, dentre tantas dificuldades que enfrentei, que não mais me assustam. Hoje, posso afirmar que a única forma de mudar nossas vidas e as vidas das pessoas que estão a nossa volta é criando uma nova elite, uma elite que seja consciente, que já tenha passado por dificuldades de todos os tipos e que, assim, acumulará condições de melhorar o país. Júlio Érico Alves de Arruda 68 Caminhadas de universitários de origem popular Entre flores e pedras “meu pai era galdino livre foi queimado meu avô era Zumbi guerreiro foi castrado meu bisavô era bardo pessoa foi ignorado eu sou sambista”12 Sou a terceira cria de meus pais, dona Nilza e senhor Lima. Única filha e a caçula da casa. Meus irmãos Berkeley e Sidney são, respectivamente, dez e sete anos mais velhos que eu. A história de minha família é comum em nosso país: pessoas que vêm do interior para tentar uma vida melhor na cidade. Minha mãe nasceu em Angueretá e meu pai em Lagoa Bonita, duas cidades do interior de Minas Gerais. Cresceram tendo que trabalhar na roça, cuidando de gado, ajudando na colheita. Uma infância marcada por muito trabalho e pouco estudo. Freqüentaram a escola somente até a quarta série do ensino fundamental enquanto ainda moravam no interior. Conheceram-se quando meu pai, já com 27 anos, foi à cidade de minha mãe visitar a família de um amigo. Minha mãe, na época com 16 anos, apaixonou-se à primeira vista por aquele rapaz que parecia tão diferente dos rapazes que conhecia. Ele e sua família já moravam em Belo Horizonte. Casaram-se dois anos e oito meses depois e, desde o começo, tiveram muitos problemas: meu pai ficou desempregado várias vezes, minha mãe não tinha experiência para conseguir um emprego na cidade e começou a apresentar problemas sérios de saúde. Moraram em casas de aluguel em vários bairros de Belo Horizonte. Mais de uma vez estiveram perto de ser despejados. Por um tempo, por falta de dinheiro para pagar aluguel, tiveram que morar na casa de meus avós. Nasci no dia 30 de dezembro de 1983. Meu pai estava desempregado, fazia bicos, e minha mãe costurava para fora. Nessa época, morávamos em um apartamento de aluguel no Bairro Eldorado e recebíamos ajudas de meus tios. Meu pai teve a oportunidade de voltar a trabalhar como barbeiro, profissão que aprendeu com o seu pai e que exercera na roça e no bairro Serra, no inicio do casamento. Em 1992, o dono do apartamento em que morávamos queria aumentar para mais de mil por cento o valor do aluguel. Meu pai não concordou com ele, que entrou na justiça e, em 1993, mudamos do apartamento. Com a morte de meu avô, alguns meses antes, meu pai herdou uma quantia que, juntamente com as economias que minha mãe havia feito, serviu para comprar o apartamento no Novo Riacho, onde moramos hoje. A escassez financeira não impediu que meus pais assegurassem uma boa formação escolar para meus irmãos e eu. Eles tentaram oferecer o melhor. Estudamos em escolas públicas, mas nosso estudo era sempre orientado, seja nos deveres de casa ou nos trabalhos em grupo, seja na presença em reuniões na escola. Acompanhavam cada passo. 12 MACHADO, Jovino. Antena. Livro da Tribo. São Paulo: Editora da Tribo. 2002/2003, p. 383. Universidade Federal de Minas Gerais 69 Quando entrei para a escola, aos seis anos, já sabia ler e escrever e me destacava pela facilidade no aprendizado. O hábito de leitura que herdei de meu pai me ajudou. Minhas notas ficavam entre as melhores da sala. Em 1994, mudei para uma escola mais perto de nossa nova moradia. Conheci novos amigos e, pela primeira vez, senti na pele o preconceito racial. Pelo menos a primeira vez que me lembro nitidamente. Havia ali, como há em todas as escolas, um grupo das meninas mais bonitas, ricas e inteligentes, todas elas brancas. Um dia, ao final do recreio, elas fecharam em círculo ao meu redor e começaram a gritar comigo: “Olha a neguinha que acha que é bonita! Deve ficar o dia inteiro com a cara no livro pra fingir que é inteligente”, entre outras ofensas. Alguns amigos me salvaram puxando-me para fora da roda, pois eu não conseguia me mover. Na idade que eu tinha, não sabia exatamente o que era preconceito, racismo. Senti-me humilhada, ofendida e confusa porque nada havia feito de mal a elas e não merecia aquelas palavras. Ninguém além dos que presenciaram a cena ficou sabendo do que aconteceu. Nem meus pais, nem a professora. O ano foi passando e muitas coisas aconteceram. Lembro-me que, no final do ano, já não guardava mágoa delas. Em 1995, mudei de colégio mais uma vez e uma pessoa viria a me marcar profundamente. No dia da matrícula, estávamos minha mãe e eu na fila, esperando para sermos atendidas. Eu estava dançando, fazendo alguns passos de balé. De repente uma mulher que nunca tínhamos visto aparece e grita: “Essa menina vai ser minha aluna!”. Minha mãe e eu nos olhamos achando engraçado aquela pessoa, cheia de trancinhas com “tererê” nos cabelos, a roupa toda colorida e cheia de bolsas, chegar conversando conosco como se já nos conhecesse há tempos. Ela parou do nosso lado e se apresentou: “Eu sou Ângela, professora de Educação Artística”. Ficamos conversando durante algum tempo até que ela pediu licença para resolver algumas questões com a Diretora. Eu fui mesmo aluna dela durante dois anos. O trabalho que ela fazia era muito bom. Nos mostrou a arte de várias formas. Mexia com nossa imaginação e nosso olhar. Falava-nos muito sobre cultura, história, o homem negro, a mulher negra, racismo, sobre o preconceito de várias formas, sobre identidade. E acredito que foi só aí, por volta dos 11 anos de idade, que comecei a me enxergar como negra. Só aí que me encontrei e achei beleza em ser como eu sou. Não que eu me sentisse totalmente feia, mas, às vezes, queria ser uma daquelas meninas brancas lindas que a gente vê na TV. Hoje vejo o quão importante foi ter conhecido essa pessoa. Ela dizia coisas que incomodam, não era possível ficar indiferente diante daquelas palavras. Esses assuntos geralmente não são discutidos dentro da sala de aula, principalmente a posição que ela defendia. Inclusive, eu percebia que não eram todos que admiravam aquela mulher como eu. Nessa mesma escola, conheci dois professores de história que me ensinaram a enxergar o mundo com olhos críticos. Na minha concepção, a disciplina de história, até então, não passava de “decoreba”, pois fora assim que a minha primeira professora havia me ensinado. Aprendi, então, que precisávamos saber o que aconteceu no passado para poder entender o presente e mudar o futuro. E havia mesmo muita coisa a ser mudada. Em 1999, entrei para uma nova escola onde cursei todo o ensino médio e conheci outra professora de história que também me marcou muito. Assuntos como: reforma agrária, corrupção, educação, entre outros, eram recorrentes nas discussões da sala. Montamos um teatro para a feira de cultura em que o tema era o Movimento dos Sem-Terra. A própria 70 Caminhadas de universitários de origem popular professora atuou no teatro fazendo papel de uma nordestina que se mudara para São Paulo com o marido e os filhos e estava sem lugar para morar, desempregada e sem dinheiro para comprar comida ou voltar para casa. Toda a sala envolveu-se no projeto e fomos muito elogiados por toda a escola. No fim do ano, a professora nos levou para uma visita em um acampamento do MST. Foi enriquecedor o contato com aquelas pessoas que vivem de um movimento social. Em 2001, a escola fez uma parceria com um cursinho pré-vestibular. Conseguimos um desconto e, então, meus pais puderam pagar para que eu freqüentasse o extensivo. Por causa de um grupo de estudo que participei no ano de 1999, decidi tentar vestibular para Psicologia. Nesse grupo, discutíamos sobre o ser humano, e a bases eram a psicologia e a sociologia. Achei muito interessantes as questões levantadas e as teorias que debatíamos. Entender o ser humano passou a ser meu desejo. Meus pais apoiaram-me totalmente, principalmente minha mãe. Descobri, alguns anos depois, que era esse o curso que ela gostaria de fazer. Tentei vestibular para a UFMG, mas não passei na segunda etapa. Nessa época, nem me lembrava mais da primeira vez que pensei em vestibular. Foi por volta de 1997, com treze anos, quando ainda fazia parte de um grupo de dança. “Se eu pudesse dizer o que as coisas significam, não teria necessidade de dançá-las.”13 Minha maior paixão é a dança. Desde que tinha três anos, minha mãe fazia fantasias para que eu pudesse pular carnaval em um baile perto de nossa casa, e na escola queria participar de todas as apresentações. Aos seis anos, pedi para entrar no balé. E essa foi somente a primeira de muitas modalidades que pratiquei ao longo da vida. Participei de festivais em vários lugares, dancei balé por um ano, mas meus pais não tiveram mais condições de me manter. Não tinham nem tempo nem dinheiro. Tive que deixar o balé. Somente aos dez anos pude voltar a uma escola de dança e dessa vez foi o jazz que escolhi fazer. Em pouco tempo, mudei de academia, mas não de modalidade. Foi então que comecei a treinar em um grupo. Às vezes, ficava quatro horas ensaiando as coreografias, a cobrança era grande, mas não reclamava. Fizemos várias apresentações. Lembro-me de uma coreografia que acredito ter sido uma das mais bonitas que dancei, a música era “Meninos de rua” cantada por Chitãozinho & Xororó, falava das crianças que não têm onde morar e acabam por se envolver em crimes e drogas. A primeira vez que apresentamos a coreografia meus pais foram assistir. Minha mãe disse que meu pai não parava de chorar. Aos treze anos, folheando um jornal, vi uma reportagem sobre a Faculdade de Dança da UFRJ. Fiquei encantada. Até então não havia pensado em vestibular. Sabia que meus pais queriam que entrasse para uma universidade, mas não me preocupara com isso. Era algo muito distante. Guardei o jornal e sempre que podia relia aquela matéria e tentava imaginar como seria estar dentro daquela faculdade, as pessoas, o que era estudado. Mas sempre me deparava com uma questão: “Como iria estudar em outro estado?” Não tinha condições financeiras para morar sozinha, e o próprio fato de ficar longe de minha família trazia-me incertezas. Era pouco provável que meus pais permitissem minha partida. 13 DUCAN, Izadora, Livro da Tribo. São Paulo: Editora da Tribo. 2002/2003, p. 212 Universidade Federal de Minas Gerais 71 Nunca toquei nesse assunto com eles. Hoje sei que foi um erro. Em 1999, deixei a escola de dança mais uma vez por falta de condições, mas a dança não me deixou. Alguns anos depois, comecei a ter aulas de dança do ventre com uma amiga, o que acabou ajudando-me no futuro. “Vende a vida inteira pelo pão de cada dia A liberdade bóia, fria.”14 Em 2002, já estava formada no ensino médio. Como não havia passado no vestibular, comecei a procurar emprego. Sem experiência comprovada, ficava muito difícil conseguir um emprego. O dinheiro das aulas particulares que dava era pouco, então, comecei a dar aulas de Dança do Ventre, numa escola infantil para meninas de quatro e cinco anos. Serviu para que eu descobrisse o quanto gostava de trabalhar com crianças. Ficava muito à vontade diante delas e vi que elas também gostavam muito de mim. Mesmo com essas aulas continuei procurando por emprego, até que um cliente de meu pai disse que precisava de alguém para trabalhar como representante de vendas em sua nova loja de suprimentos de informática. Trabalhei para ele durante um mês, sem carteira assinada ou contrato de experiência. Nunca tinha andado tanto em minha vida! Ao fim do mês, o dono da loja disse que não podia me contratar porque precisava estabilizar-se primeiro. Não me pagou nem o dinheiro da passagem que eu havia gastado. Fiquei com muita raiva pelo dinheiro, porém ocupei a cabeça com outros pensamentos: tinha decidido fazer prova para um curso técnico no CEFET, Informática Industrial. Fiz a prova e passei. Comecei o curso achando tudo muito interessante, contudo no fundo pensava: “Vou conseguir trabalhar fechada em uma sala, sentada atrás de uma mesa?” Não ia. O que faço de melhor é lidar com pessoas e não com máquinas. Em junho de 2003, consegui um emprego em uma empresa de call-center. Atendia várias pessoas por dia, não era pessoalmente, mas, mesmo assim, combinava mais comigo. Tranquei o curso do CEFET e decidi entrar para um pré-vestibular. De agosto a dezembro daquele ano, tive que me desdobrar entre o trabalho, que me exigia muito e era estressante pela cobrança, e os estudos para tentar novamente uma vaga na Federal. Nessa época, o que me relaxava era a academia que voltei a freqüentar fazendo musculação e aerobahia. Conversava muito com o instrutor de musculação e ele me dizia que queria fazer o curso de Educação Física para ter mais conhecimento e entender algumas questões da área. E eu que pensava que quem se formasse em Educação Física só poderia ser professor em escola. “...ele disse que chegava lá. Olha aí. Ah, o meu guri, olha aí...”15 No dia em que fui fazer a inscrição pro vestibular me dei conta que não havia pensado qual curso queria fazer. Peguei a folha de inscrição e li o nome de cada curso. Não sei o que me deu, mas parei exatamente em Educação Física. Nunca tinha pensado em fazer esse curso. Até aquele momento. Li na Revista da UFMG sobre o curso e no Manual do Candidato. Achei muito interessante e me lembrei que já havia sido bailarina um dia. “Quem sabe?”, pensei. Marquei o xis e entreguei a inscrição. 14 15 GOMES, Goulart. Assalariado. Livro da Tribo. São Paulo: Editora da Tribo. 2002/2003, p. 148. BUARQUE, Chico, Meu Guri. Almanaque. Rio de Janeiro: Ariola, 1992. 72 Caminhadas de universitários de origem popular Mais tarde, ao chegar em casa, fui conversar com minha mãe sobre minha decisão. Ela questionou o porquê. Disse que professor ganhava pouco e passava fome. E isso tudo só porque decidi não fazer mais o curso que ela ama. Já meu pai disse que qualquer curso na Federal seria ótimo. Mal pude acreditar quando saiu o resultado da segunda etapa. Eu havia passado. Foi muito bom sentir que conseguira algo que mudaria minha vida. E, apesar do susto com a escolha do curso, meus pais ficaram ainda mais felizes que eu. Sabia que quando começasse a estudar não teria mais tempo para o trabalho. Preocupavame o fato de não ter como pagar as despesas: quatro passagens, almoço, xerox, livros. Amigos me diziam para esquecer o problema porque logo que entrasse poderia tentar alguma bolsa ou até mesmo voltar a dar aulas particulares. Deixei o emprego em abril de 2004 e foi bom ter saído, pois toda aquela cobrança já estava me fazendo mal. Comecei minha vida acadêmica muito bem: tive contato com o D.A., comecei fazer aulas de dança folclórica e de salão, conheci várias pessoas muito interessantes entre alunos e professores. Descobri que a sala de aula é o lugar que menos aprenderia dentro desse universo de novidades em que acabara de adentrar. Parecia que aquele seria um ótimo ano. “parto do princípio que todo parto é normal. Nascer de cócoras, na água ou com fórceps é nascimento igual cirurgia computadorizada ou dar à luz entre índios, todos no fim são bem-vindos, morrer é que não é normal”16 A morte de meu pai trouxe tristeza e revolta para minha família e para todos que o conheciam e respeitavam. Vítima da violência e brutalidade, perdeu sua vida por mãos de covardes assassinos. Não sabia que o destino guardava para minha família um fardo tão pesado quanto o que estamos tendo que carregar. O dia doze de dezembro desse ano foi, certamente, o pior dia que tive em toda a minha vida até então. Pouco tempo depois meus dois irmãos perderam o emprego. Minha mãe que já trabalhava como cabeleireira com meu pai há onze anos pensou em fechar o salão, porque a maior parte dos clientes era de meu pai. Mas meu irmão decidiu fazer o curso de cabeleireiro e trabalhar com ela. Quando voltei para o terceiro período, recebi um convite do coordenador do Projeto Brincar, para entrar do projeto e desde então participo de suas atividades; ainda nesse período participei de processos de seleção para conseguir alguma bolsa, mas não passei. No quarto período, fiquei sabendo da existência de bolsas no Ações Afirmativas. Já conhecia o projeto e interessei-me por uma bolsa. Durante o processo de seleção para as bolsas, identifiquei dois trabalhos que mais me interessaram: um filme sobre o brincar de crianças de uma comunidade quilombola; e outro projeto, o Conexões de Saberes, que já fazia um trabalho de mapeamento de grupos culturais juvenis no bairro Icaivera, em Contagem. Consegui uma bolsa no Projeto Conexões. A proposta de fazer um trabalho com a comunidade, reconhecendo que é repleta de conhecimento e respeitando esses saberes, é muito importante dentro da universidade. Através das experiências que tive, com o convívio 16 MEDEIROS, Martha. Livro da Tribo. São Paulo: Editora da Tribo. 2002/2003, p. 14. Universidade Federal de Minas Gerais 73 com pessoas diferentes de mim durante toda a minha vida, aprendi que somente através da troca de idéias é possível haver crescimento. Para o futuro não faço muitos planos, mas tenho muitos sonhos. Tento viver cada dia intensamente, já que não posso saber o que me acontecerá daqui a um minuto. Eu sei que o que mais quero é compartilhar com o maior número de pessoas possível tudo o que aprendi e, assim, aprender cada vez mais. Elisanea Lima 74 Caminhadas de universitários de origem popular Bolsistas que atuam no Icaivera, Contagem. Sala Conexões de Saberes (2006). Faculdade de Educação/UFMG. Foto: Cris Sabino Minha trajetória Entrar para uma universidade era um sonho distante, principalmente para mim, que sempre estudei em escolas públicas, sujeita a meses de greves, alguns professores desinteressados e, quando se interessam, os alunos é que não demonstram interesse algum. Claro que, para toda regra, existem inúmeras exceções, tive alguns professores excelentes, aos quais devo muito pela paciência dedicação e amizade. Minha família, formada por cinco pessoas, sempre foi muito unida, vivíamos de aluguel, o que me permitiu conhecer muitos bairros dessa bela cidade e estudar em várias escolas. Meus pais sempre dialogaram muito comigo e posso afirmar que sempre fui uma boa filha obediente e estudiosa. Meu único problema na escola era o silêncio. Eu era tão calada que as professoras ficavam incomodadas com isso e em todas as reuniões eu era citada. Sinceramente, não sentia necessidade de conversar com os outros alunos da escola e meus recreios eram passados na biblioteca em meio a livros interessantíssimos. Quando cresci, entendi o porquê do meu silêncio, era uma forma de proteção: ao ficar calada, impedia que temas como o meu penteado, meus óculos “fundo de garrafa” ou minha cor fossem citados, não por sentir vergonha, sempre gostei de ser parecida com meu pai, ele é um negro lindo, mas quando se é criança parece que qualquer comentário torna-se doloroso e eu preferia viver sem eles. Quando estava na sexta série, por diversos motivos, como desemprego da minha mãe e aumento no preço do aluguel, tivemos que deixar BH e mudar para Santa Luzia, pois tínhamos um barraco lá. Minha mãe sempre priorizou nossos estudos e a primeira medida foi procurar vagas nas escolas da região. Minha mãe andou vários dias para conseguir vaga nas escolas, as diretoras alegaram até falta de carteira ou que eu não ia acompanhar o ritmo da turma. Fui matriculada na Escola Estadual Geraldo Teixeira da Costa, lá comecei a entender que alto poder aquisitivo e cor da pele fazem diferença nesse país. As alunas mais bonitas e inteligentes, brancas, no caso, sem querer questionar a integridade de professor algum, tiravam as maiores notas. Sempre fui uma aluna muito aplicada e, com muito esforço, consegui acompanhar o restante da turma e tirar notas excelentes. Mas, de repente, tudo que eu fazia estava errado, minha letra era inteligível, minha pronuncia não era das melhores, impressionante que todos esses defeitos surgiram a partir do aumento das minhas notas. O método de ensino dos professores era “excelente”, se você ficasse invisível, não reclamasse de nada e aceitasse todos os absurdos com um sorriso nos lábios, não teria com o que se preocupar. Seria aprovada. Tive muitos problemas nessa escola, dentre eles, o fato de ter sido expulsa da quadra de esportes, pois me recusei a jogar vôlei com bola de basquete. Achei um abuso da parte do professor, pois todos os alunos reclamaram e a única a ser expulsa da quadra fui eu. Universidade Federal de Minas Gerais 77 Na sétima série, fui reprovada mesmo tirando as maiores notas da turma. Foi tão inesperado que eu ri. Não me defendi. Na mesma época, minha mãe se recuperava de uma cirurgia de alto risco que quase lhe custou a vida; meu pai havia sumido no mundo para não ter trabalho conosco e eu e minhas irmãs tivemos que trabalhar até minha mãe se recuperar. Começamos vendendo os livros, os sapatos, as roupas e outras coisinhas. Graças a Deus, ela sobreviveu e esse pesadelo passou. Quando ela se recuperou, meu pai voltou e nem precisou desfazer as malas. Foi convidado a se retirar de nossas vidas, o que fez com grande prazer e, antes de sair, disse que iríamos morrer sem ele para nos ajudar. Conseguimos trocar nossa pequena casa em Santa Luzia, por um barraco numa favela em Belo Horizonte. Nos mudamos porque minha mãe fazia parte da comunidade do bairro e assumiu a liderança nas reivindicações por asfaltos nos bairros mais carentes, rede de esgoto e um hospital melhor. O prefeito não quis conversa. Ela foi ao jornal da cidade denunciá-lo, mas os funcionários não publicaram a matéria, certamente por medo de perder seus empregos. Voltamos para Belo Horizonte e, agora, residíamos no Beco Santa Fé. Quatro mulheres morando num beco. Confesso que tudo era muito estranho. Na primeira noite, passamos sentadas, a casa era tão suja que era impossível dormir. A antiga moradora havia falecido e sua filha preferiu mudar-se de lá, o que possibilitou a troca. Um grande amigo nosso de Santa Luzia, ajudou muito na mudança e, no outro dia, ele voltou para ajudar na limpeza da casa. Infelizmente, esse amigo, depois de um tempo, foi assassinado a facadas pela própria esposa. Bem, existem regras bem básicas para residir em um beco: você nunca vê, ouve ou fala nada para evitar problemas. A violência é maior, o número de grávidas na adolescência, também, e a falta de estrutura das famílias é algo inacreditável, mas não tínhamos condições de nos mudar para outro lugar. Graças a Deus, conseguimos conviver pacificamente com os moradores daqui. Fiquei um ano sem estudar, minhas irmãs foram matriculadas em uma escola próxima a nossa casa, minha mãe conseguiu um emprego e, no outro ano, voltei para fazer o segundo grau. Entramos para a escola por sorteio. Eu e minha irmã fomos para o turno da noite e tivemos que fazer o curso técnico em contabilidade, pois era o único disponível naquele turno. Minha irmã trabalhava em um fliperama e eu fazia uns trabalhos alternativos. Um dia, quando voltávamos para casa a pé, fomos assaltadas. O assaltante levou todo o nosso material escolar e, na semana de provas, xinguei muito. Mas antes perder o material escolar, que a vida. Sinceramente, nossa vida escolar era uma aventura: quase lançaram minha irmã de um viaduto, uma amiga teve o rosto cortado porque se recusou a entregar a mochila e a maioria dos nossos amigos já foi assaltada nas proximidades da escola. Mas tudo na vida tem seu lado positivo... Um amigo da sala, que fazia estágio no Parque Lagoa do Nado me indicou para trabalhar lá. Graças a esse estágio, não parei de estudar e ainda participei, juntamente com minhas irmãs, das várias oficinas de teatro promovidas pelo Centro Cultural. Depois que eu e minha irmã concluímos o segundo grau, ficamos vários meses tentando arranjar emprego, como não conseguimos, nos mudamos para São Paulo. Moramos lá durante oito meses, na casa da minha tia. Minha irmã trabalhava numa fábrica de doces e eu fazia estágio em um Bingo durante a semana e distribuía panfletos nos finais de semana. Tivemos que voltar às pressas de São Paulo, pois nosso barraco havia sido assaltado, levando o pouco que possuíamos, e minha família estava correndo sérios riscos. 78 Caminhadas de universitários de origem popular Em BH, e, novamente, atrás de emprego e aproveitava os finais de semana em oficinas gratuitas realizadas no CCILN (Centro Cultural Inter-regional Lagoa do Nado). Através dessas oficinas, fiz inúmeros amigos, conheci pessoas maravilhosas e, ao contrário da minha infância, eu queria conversar com todas as pessoas ao meu redor. Todos me aceitavam do meu jeito, não precisava mudar para ser amada. Em meio a todas essas descobertas, conheci o pessoal do TNA (Teatro Negro e Atitude), um tempo depois minha irmã começou a fazer parte desse grupo e, para minha surpresa, fui convidada para fazer parte da equipe de apoio deles. Junto ao grupo, tive contato com pessoas que me incentivaram a continuar meus estudos. O TNA promove seminários, fóruns e também tem participação ativa no movimento social negro de BH. Através do teatro, percebi que é possível almejar um futuro mais próspero, pois os jovens da minha idade que residem na favela vivem o hoje como se o amanhã não fosse existir. Não esperam muito da vida e a maioria se conforma com essa opressão sofrida pela população pobre e negra da cidade. Resolvi tentar vestibular e escolhi o curso de Biblioteconomia, perfeito para quem sempre viveu dentro de bibliotecas. Sem ter condição econômica de pagar cursinho pré-vestibular, estudei em casa. Passei na primeira etapa, mas não alcancei a média para a segunda. Fiquei péssima, mas minha família me deu a maior força. Não passei no vestibular e resolvi procurar um emprego. Uma amiga me indicou e, no laboratório em que ela trabalhava, fiz uma entrevista e, no outro dia, fui chamada para integrar a equipe. Não vou mentir, trabalhava lá, mas não gostava nem um pouco. O trabalho era bem gratificante, muitas vidas eram salvas graças ao empenho da equipe em produzir válvulas cardíacas, troncos pulmonares e artérias. Eu era vítima da implicância do pessoal com meu cabelo: “Por que você não faz escova, ia ficar muito melhor”. Comentários como: “Negra quando casa com branco, os filhos que nascem negros ou com o cabelo ‘ruim’ ficam revoltados com a mãe”. Não há como conviver pacificamente num ambiente desse. Não podia sair do emprego, porque tinha que ajudar minha mãe na construção de nossa casa, que estava em estado crítico, quando chovia forte, tínhamos que sair de casa. Agüentei o quanto pude e comecei a passar muito mal de saúde, fui levada às pressas pro hospital e descobri que estava com 15 pedras na vesícula, tinha que operar. Fiquei com medo de ser despedida e fui adiando a cirurgia, até que tive uma crise, fui internada e, após a cirurgia, precisei ficar 45 dias em casa. Resultado, a firma me deixou trabalhar mais um mês e fui demitida. Novamente desempregada, o que fazer? Saí do grupo Negro e Atitude e ingressei em outro grupo de teatro, o Híbrido Imaginário, formado por minha irmã Sandra e meu cunhado Cláudio, dois ex-TNA. Nesse novo grupo exercia a mesma função de apoio do grupo. Nos intervalos, estudava feito uma louca e dei-me uma última chance de ingressar na faculdade. Alguns amigos que faziam cursinho resolveram me ajudar e uma amiga da biblioteca me emprestava livros. Devo muito a eles. Minha segunda tentativa era para o mesmo curso – Biblioteconomia –, só que com o dobro da dedicação. Fiz as provas e passei na primeira etapa. Dessa vez, um amigo me orientou para fazer treinamento de questão aberta (TQA), você tem a oportunidade de melhorar sua redação e ter dicas sobre as questões que provavelmente devem cair na prova. Fiz as provas e consegui, fui aprovada na UFMG, com certeza o caminho mais longo da minha vida foi da entrada do Campus Pampulha, na Avenida Antônio Carlos, até a Praça de Serviços. Li meu nome umas 15 vezes para ter certeza, liguei para minha mãe e meus melhores amigos para dar a boa nova. Entrei na segunda chamada, em agosto de 2004. Universidade Federal de Minas Gerais 79 Maravilha: entrei para a universidade e, agora, o que fazer? Não tenho emprego, meu pai não quer saber de ninguém da minha família e minha mãe trabalha como faxineira. A quem pedir socorro? Busquei apoio na Fundação Mendes Pimentel (FUMP). Para ter acesso a esses benefícios, é preciso ser avaliado através de um questionário preenchido via Internet, depois passar por uma entrevista com o assistente social do curso do candidato. Esse profissional irá determinar a qual nível de classificação você faz parte (nível I, II ou III). Se você for do Nível I, recebe bolsa parcial ou total de isenção da taxa de matrícula semestral, existem também estágios remunerados e bolsas de trabalho. A Bolsa Manutenção é uma dívida que o candidato paga, depois de dois anos de formado, e pode ser negociada a forma de pagamento. Dessa forma, é possível ajudar outras pessoas que não tinham condições de estudar por falta de dinheiro, pois a FUMP se mantém com a contribuição ao fundo de bolsas, reembolso de benefícios e recurso financeiros repassados pela UFMG. Bem, agora que ingressei na faculdade, as dificuldades em casa aumentaram, trabalhava e ajudava minha família com as contas e outras despesas, agora minhas despesas são com a faculdade, não ajudo mais em casa e minha mãe está fazendo milagre com o salário que ela recebe. Os negros aqui são minoria, mas podem fazer toda a diferença, pois existem programas como Ações afirmativas e o Observatório da Juventude, programas de ensino, extensão e pesquisa da FaE (Faculdade de Educação), que desenvolvem pesquisas sobre a situação dos jovens da região metropolitana de BH, dando uma atenção especial aos jovens das periferias, visto que eles, além de se preocuparem com o desempenho acadêmico, precisam também arranjar recursos que impossibilitem sua exclusão do ensino superior. Esses programas têm por meta a criação de oportunidades acadêmicas aos jovens de baixa renda. Além das dificuldades financeiras, existe a surpresa perante o novo, o contato com os textos acadêmicos, a diversidade étnico-cultural, a integração nesse espaço, onde certamente você terá a oportunidade de conhecer todas as “tribos”. Aconselho a não se deslumbrar. Existem pessoas que entram para a universidade e esquecem do passado, buscam desesperadamente uma nova identidade. Aqui na UFMG, tem muita gente boa que luta por um lugar ao sol, que retiram forças do passado para persistirem na trajetória acadêmica. Marizete Aparecida da Silva 80 Caminhadas de universitários de origem popular Não vim até aqui para desistir agora Para iniciar o relato de minha trajetória de vida, acho necessário um breve relato da trajetória de minha mãe. Minha mãe nasceu numa pequena fazenda da região do Triângulo Mineiro, filha de pais negros que tinham mais outros quatro filhos, viviam numa situação difícil. Ela foi adotada por uma família de situação econômica bem definida. Essa família – de brancos – tinha dois filhos legítimos e, juntamente com minha mãe, foram adotadas duas outras crianças negras. É a partir dessa adoção que a trajetória de minha mãe, bem como a minha, muda de rumo, pois agora ela crescia no meio de pessoas detentoras de capital cultural, então teve acesso a uma boa educação, boa formação social, tendo sua formação pessoal fora do convívio da figura estigmatizada da família negra, família pobre. Entretanto, tinha que conviver com o preconceito da sociedade, pelo fato de não ser filha legítima, sem deixar de levar em consideração o fato de ela ser negra, pois naquela época, não tão diferente da atual, não era muito comum negros ascenderem num meio que, historicamente, era de predominância dos brancos. Desde bem jovem, minha mãe já trabalhava e estudava. Convivia em um meio em que sua mãe era professora de Português, então ela se interessou pela língua portuguesa e suas literaturas, terminou o colegial e deu continuidade aos estudos. O caminho foi bem tortuoso, pois, nessa época, ela precisava se deslocar para uma cidade vizinha para estudar logo após trabalhar. Tinha que pagar os estudos, pois já não contava muito com a ajuda da família. Essa situação se agravou ainda mais quando engravidou. Foi em abril de 1984 que eu nasci, minha mãe tinha que se desdobrar para cuidar de mim, trabalhar e estudar. Contava com pouco apoio da família e, com isso, a situação ia se agravando cada vez mais. Ela se formou e não existia vaga para professores recém-formados naquela região. Foi então que, por indicação de uma tia, minha mãe resolveu migrar comigo para o Vale do Jequitinhonha, região tida como uma das mais pobres do estado de Minas Gerais. Lá, minha mãe teria mais facilidade em trabalhar como professora, pois não havia muitas pessoas habilitadas. Morávamos numa pequena pensão, e ali vivemos por algum tempo até aparecer concurso para professores do estado de Minas Gerais. Minha mãe se preparava para a prova para que pudéssemos voltar à região do Triângulo Mineiro, vivíamos longe dos nossos familiares. Então, ela passou no concurso e voltamos para a nossa região de origem. Em retorno, com um emprego estável, morávamos sozinhos. Minha mãe cuidava de mim, desempenhando o papel de mãe e “pai” ao mesmo tempo. O meu pai biológico nunca se interessou por minha existência como filho seu, uma vez que nos conhecemos de vista e até então nunca trocamos palavras. Ele nunca me procurou e nem eu nunca o procurei, mas isso não me abalou psicologicamente na infância, devido à boa criação da minha mãe, que me preparava aos poucos para enxergar de forma natural aquela situação que, às vezes, Universidade Federal de Minas Gerais 81 poderia se tornar problemática. Fui herdeiro do capital cultural de minha mãe com sua formação intelectual e social. Nos anos primários da escola, eu tinha boa convivência com os colegas. Era um aluno aplicado, gostava muito de ler, hábito herdado de minha mãe. Na família, por tradição, tinha muitas pessoas formadas na área de Letras, alguns farmacêuticos e tinha um primo meu que era estudante de Engenharia Civil. Eu me espelhava muito nele, era o exemplo da família. Às vezes, me imaginava naquela situação, sendo visto também como exemplo. Exatamente aos seis anos de idade, defini meu rumo: quero ser engenheiro civil. No meio familiar em que eu crescia, era comum pessoas possuírem curso superior. Minha mãe e eu não tínhamos um padrão econômico alto. Tudo que nos pertencia era fruto do trabalho de minha mãe. Aos poucos, ela comprou um terreno, começou a construir e, então, passamos a morar em casa própria, sempre minha mãe e eu sozinhos. Ela não herdou nenhum bem da família que havia lhe adotado, questão essa foco de conflitos entre os irmãos tanto legítimos quanto adotivos. Minha mãe se absteve de qualquer disputa por bens. Quanto a minha vivência em anos posteriores na escola, prosseguia no mesmo ritmo, sem maiores problemas de relacionamento com os colegas. No decorrer desses anos, sempre convivendo minha mãe e eu somente. Numa certa época, pretendíamos viajar em férias, o ponto de parada seria o Vale do Jequitinhonha, que, em época passada, tinha sido por um instante nosso “porto seguro”, lugar onde convivemos com uma realidade diferente daquela do Triângulo Mineiro, sendo mais pobre, menos abastada de recursos tais como educação, saúde, mas nem por isso deixava de ser uma região de riqueza cultural. Nessa viagem, conheci de verdade a região em que vivi quando tinha dois anos de idade. Identifiquei-me bastante com essa região e pensava em conhecê-la de uma forma melhor. Minha mãe se relacionou com um homem que já conhecia da época passada quando lá morávamos. Foi apenas um relacionamento casual de férias. Voltamos para nossa casa no Triângulo Mineiro. Eu tinha a impressão de que parte da minha vida tinha que transcorrer naquela região à qual eu tinha me identificado. O relacionamento de férias da minha mãe estava por se transformar numa coisa mais sólida, então nos veio a possibilidade de mudar para o Vale do Jequitinhonha. Em princípio, foi uma decisão muito penosa, sair de uma região desenvolvida, convivendo ao lado dos nossos familiares, para uma região tão longínqua e pouco desenvolvida. Por outro lado, eu achava que a gente devia constituir família. Eu não queria ver minha mãe muito presa a mim na figura de mãe solteira, também pela falta de um companheiro. Nos mudamos para o Vale do Jequitinhonha, deixamos para trás todos nossos familiares e fomos construir uma nova vida. Minha mãe pediu transferência para região e continuou sendo professora. Surge então a figura de um pai, que no caso era comerciante, pai de dois filhos, separado. Nos dávamos muito bem, tínhamos uma boa estrutura familiar. Eu começava ali, no Vale do Jequitinhonha, outra parte da minha vida, com muitas novidades, um novo meio de convivência. Morava na cidade de Jequitinhonha, cidade pequena, pacata e muito tranqüila. A região era bem pobre em relação ao Triângulo Mineiro, não contava com um bom acesso à saúde, não tinha educação de nível superior, o que forçava os moradores a buscar, longe, uma faculdade. Sendo afastada dos grandes centros, os moradores da região (em partes de zona rural) tinham que aprender a conviver com a seca, por se tratar duma região com 82 Caminhadas de universitários de origem popular características do semi-árido nordestino, e também havia o problema do desemprego que forçava os moradores tentar, às vezes, sem obter muito êxito, conseguir um emprego numa metrópole. A princípio, essa realidade foi meio impactante para mim, ver de perto o que é uma região que sofre num cenário de pobreza, talvez mais pobreza de políticas públicas que econômicas. Aos poucos, entendia como funcionava a política nacional: “O rico fica cada vez mais rico e o pobre cada vez mais pobre”. Na escola, tinha bom relacionamento com os colegas, não tive nenhum problema de adaptação, tinha boas notas. Fiz todo o meu ensino fundamental e parte do ensino médio na cidade de Jequitinhonha. Sempre me destacava em Português, História, Geografia, Redação, ou seja, matérias da área de humanas. Em compensação, não era tão bom em Matemática, Química e Física, ou seja, nas matérias da área comum à engenharia, que eu tanto sonhava em fazer. Com isso, me via meio que desanimado em dar continuidade a esse sonho. Mas não deixava me abater, queria de qualquer maneira dar continuidade à vontade de fazer Engenharia. No terceiro ano do ensino médio, tive a oportunidade de morar em Almenara e estudar em uma escola particular. Essa cidade ficava próxima a Jequitinhonha. Como não tinha possibilidade de ir e voltar todos os dias, tive que morar em Almenara. Daí, surge um momento difícil, minha mãe não poderia me acompanhar, então aos dezesseis anos saía de casa para morar sozinho. A dificuldade de adaptação era esperada, pois sempre estive junto com minha mãe e agora tinha que conviver apenas com a saudade em tê-la ao meu lado. Lá em Almenara morava com outros meninos de minha idade e mesma situação, morando longe de casa para estudar. Na escola, tive grandes dificuldades de adaptação, pois se tratava de um ensino diferenciado com um maior grau de dificuldade do que as escolas públicas que até então eu havia estudado. Aos poucos, ia me adaptando à situação de morar longe de casa, à nova escola e aos novos colegas também. Minha dificuldade agora residia no seguinte fato: estava terminando o ensino médio e, na região, não existia qualquer faculdade que oferecesse o curso de Engenharia. Então, me via na situação em que viviam os moradores da região, não contando com ensino superior e tampouco de forma mais acessível em cidades vizinhas, trabalhar com a possibilidade de ir para grandes metrópoles, mas essa possibilidade não era cabível para mim naquele momento, pois não tinha uma mínima estrutura financeira para me deslocar. Logo que terminei o ensino médio, fiquei parado em casa, dando um tempo até que a situação se estruturasse melhor. Estudava sempre em casa para não perder o hábito. Nessa etapa, pude sentir de perto a angústia daquele povo que ansiava por obter uma formação superior e era impossibilitado. Essa situação, por momentos, chegou a me desanimar de ir em busca do meu sonho de dar continuidade aos estudos. Surge, então, passados alguns meses de conclusão do ensino médio, a oportunidade de uma moradia em Belo Horizonte, num apartamento da avó de um colega meu. Isso me deu a esperança de buscar o meu sonho, servia como uma injeção de ânimo. E para melhorar a situação, consegui, através de um amigo, um desconto para estudar em um cursinho pré-vestibular. Dessa vez, eu iria para mais longe ainda da minha mãe, só que agora a dificuldade de adaptação vinha em grandes proporções, morar em uma cidade grande, num ritmo totalmente diferente ao que eu era acostumado. Estudava num cursinho longe de casa, como tinha que economizar, andava bastante para não pegar ônibus. Morava num apartamento com mais dois colegas; era um lugar tranqüilo, Universidade Federal de Minas Gerais 83 quanto a essa vivência não tive muitos problemas, pois já tinha me habituado no tempo em que morei em Almenara. Por mais que eu fizesse uma boa economia, os gastos eram altos para minha mãe me custear. Fazer vestibular em faculdade particular estava fora de cogitação, também estava fora dos meus planos, pois o que eu almejava mesmo era poder estudar numa faculdade pública e de qualidade. Quanto ao curso, agora me via meio dividido entre Engenharia Civil e Engenharia Elétrica, mas o que eu tinha certeza era não sair do campo da Engenharia. Nesse tempo, estudava muito em casa, pois tinha que conseguir entrar numa faculdade pública, que eram muito concorridas. Quanto à vivência em Belo Horizonte, para mim não era muito agradável, toda aquela agitação, aprender a conviver com o perigo das ruas, sair de casa preparado para um possível assalto e voltar (se possível) para casa a salvo e com o alívio de poder sentir que o dia terminou com tudo tranqüilo, mas como seriam os dias posteriores? Será que eu voltaria para casa tranqüilamente? Tudo o que eu via nos jornais sobre violência, presenciava na minha vivência em Belo Horizonte, totalmente o oposto do interior onde até então havia morado (Triângulo Mineiro e Vale do Jequitinhonha). Mesmo não gostando e passando por essas dificuldades, eu tinha uma vontade de ir em busca do meu sonho maior do que esse medo que me rondava. A saudade da família era muita, não conseguia ficar um final de semana sequer sem conversar por telefone com a família. Minha mãe me animava muito e sempre estava ao meu lado, sempre falava que eu iria conseguir o que queria: passar no vestibular e também dizia que, se por eventualidade não conseguisse, ainda assim ela me daria o maior apoio. Nessa época, eu não trabalhava, por não ter muitas qualificações, o mercado de trabalho era bem fechado. Minha mãe fazia um sacrifício enorme para me manter estudando. A época do vestibular se aproximava, então veio a hora da escolha do curso, engenharia civil ou elétrica? Analisei todas as estatísticas possíveis sobre os dois cursos tais como: mercado de trabalho, concorrência, o que eu iria estudar, e cheguei à conclusão de que faria engenharia civil. Nessa escolha, levei em consideração a parte de engenharia sanitária e ambiental do currículo da engenharia civil. Quanto a essa parte ambiental, o que me impulsionou foi ver a riqueza potencial natural de que dispunha o Vale do Jequitinhonha e ser tão degradada e sem nenhum investimento por parte do governo. Vi, nessa escolha, a alternativa de poder ajudar aquela região que eu tanto gostava. O vestibular seria no final do ano. Resolvi tentar vestibular na UFMG. Por instantes, cheguei a pensar como seria possível eu, provindo de escola pública do interior, passar num vestibular tão concorrido. Mas devido à confiança e ao apoio que em mim foi depositado pelos meus familiares, tinha boas expectativas em relação ao vestibular. A prova da UFMG da primeira etapa foi no princípio de dezembro. Fiz a prova e sai com total segurança. Até cheguei a fazer outro vestibular no interior de Minas, mas eu queria mesmo era passar na UFMG, não cheguei a passar nesse outro vestibular, mas nem me preocupei muito. O resultado da primeira etapa saiu, acompanhei apreensivo o resultado pelos jornais e, graças a Deus, meu nome se encontrava entre os aprovados para a segunda etapa. A felicidade era visível, mas me contive, pois ainda tinha a segunda etapa. A segunda seria logo após as festas de final de ano, então fiquei estudando durante o natal e ano novo em Belo Horizonte, e não pude ir para a casa da minha família. Eu tinha costume de sempre passar as festas de final de ano com os familiares e 84 Caminhadas de universitários de origem popular agora me encontrava sozinho em Belo Horizonte para poder estudar para a segunda etapa, eu queria aproveitar cada momento antes da prova para me preparar melhor. Fiz a prova e então foram longos trinta dias de espera do resultado, que veio a ser satisfatório. Eu e minha família não podíamos conter a felicidade. Agora eu fazia parte da comunidade acadêmica da UFMG, parte dos meus sonhos já estava sendo realizada, mas para mim, por mais que tivesse me preparado bastante, parecia que eu ainda estava apenas sonhando. Em parte, a indagação que me rondava ia sendo respondida. Sim, é possível um jovem oriundo do ensino público do interior, sem condição financeira elevada, entrar numa universidade pública de qualidade. Dessa vez, mudei de endereço e fui morar numa república de estudantes perto da universidade. Lá, aprendi muito com os moradores veteranos sobre a vivência universitária e suas dificuldades, uma vez que eles também eram do interior e sofreram o impacto de viver em Belo Horizonte sozinhos. Esse tipo de moradia me fez aprender o que devo levar para o resto da vida: o espírito de companheirismo e saber até onde vai nosso espaço e onde começa o do próximo. Comecei o primeiro período e sabia que iria encontrar grandes dificuldades em relação ao curso, mas não imaginava que seriam tantas. As dificuldades eram em relação às disciplinas que geralmente eram muito complicadas. Sem esquecer a dificuldade financeira que ainda persistia, mesmo estudando numa universidade pública. Nessa etapa, ficava pensando como faria para me manter, porque os custos agora davam uma diversificada dos gastos anteriores. Procurei me informar se a universidade tinha algum plano de assistência estudantil, então encontrei a FUMP (Fundação Mendes Pimentel), que presta assistência aos estudantes de baixa renda. Para ter acesso aos benefícios, precisava apresentar documentos para avaliação sobre rendas e gastos familiares, ou seja, questões burocráticas (que realmente são necessárias). Mas, devido a problemas de apresentação de tais documentos, houve atraso para que eu pudesse ter acesso aos benefícios. Eu consegui a liberação dos mesmos no segundo período escolar, então meu primeiro período foi muito apertado. Depois que eu consegui os benefícios, minha vivência em Belo Horizonte foi melhorando, os períodos posteriores foram mais amenos quanto à questão econômica. A assistência a mim prestada pela FUMP foi e tem sido de suma importância. Tenho em mim uma vontade de dar retorno do que recebo de alguma maneira, e essa assistência me mostrou um lado social que aos poucos eu fui me adequando. Foi então que me surgiu a oportunidade de fazer parte de um projeto que tinha como base a interlocução com as camadas populares. Isso me abriu novos horizontes em relação ao campo social, e saber que eu posso, apenas com a vontade de tornar esse meio de convivência um pouco mais igualitário, ajudar a mudar essa realidade. Agora, meu lado social está sendo posto em prática. Apesar de tudo, tento manter a firmeza e ir vencendo aos poucos os obstáculos que me aparecem, tentando, de alguma maneira, recompensar a sociedade que é quem paga para que eu possa estudar numa universidade pública e, no entanto, é quem menos vê um retorno, pois a falta de políticas públicas faz com que o investimento na sociedade não seja feito de maneira satisfatória. Ao longo do curso, as dificuldades me fazem pensar em desistir, mas olho para trás e vejo tudo que me ocorreu, o que aconteceu com minha mãe, com meus familiares, Universidade Federal de Minas Gerais 85 tantas outras dificuldades que foram enfrentadas e vencidas. Eu não vim até aqui para desistir agora. Dificuldades vão existir sempre, sob qualquer circunstância. E quanto à minha caminhada, essa continua rumo à vitória com passos firmes. Minhas metas aos poucos são atingidas. Leonardo Augusto dos Santos 86 Caminhadas de universitários de origem popular Passo a Passo Vou Me Construindo... “Meu problema principal é tentar compreender o que aconteceu comigo. Minha trajetória pode ser descrita como milagrosa, acho eu – uma ascensão a um lugar de que não faço parte. Por essa razão, embora todo o meu trabalho seja uma espécie de autobiografia, trata-se de um trabalho para pessoas que tenham o mesmo tipo de trajetória e a mesma necessidade de compreender.” (Pierre Bourdieu17) Filha de pai analfabeto e mãe que possui a segunda série do ensino fundamental, sou a primeira da família a ter acesso ao ensino superior. Meus pais, sendo agricultores, viveram a maior parte de suas vidas no campo. Quando completei seis anos, eles se mudaram para Pavão, uma pequena cidade de Minas Gerais, com cerca de quinze mil habitantes. Como na maioria das famílias das camadas populares, eu e meu irmão mais novo fomos os mais beneficiados em relação aos anos escolares. Entre os mais velhos, alguns começaram a trabalhar muito cedo, outros cuidavam da casa. Graças a isso, eu e meu irmão mais novo pudemos ir para a escola, na idade correta e estudar sem interrupções. Apesar de o meu primeiro contato com a escola ter sido somente aos seis anos, tive um brilhante desempenho. Desempenho que me fez receber na minha formatura uma bonita homenagem de professores e diretores. Isso gerou em mim uma autoconfiança incrível. Foi uma atitude simples, mas que se refletiria durante toda minha vida escolar. Esses anos escolares foram os mais satisfatórios para mim. É importante mencionar que, em Pavão, por ser uma cidade pequena, havia uma única escola e, obrigatoriamente, nela estudavam o filho do prefeito, dos vereadores, dos fazendeiros, dos professores, juntamente com o filho do agricultor, do pedreiro, da empregada doméstica. Sabemos que nas camadas mais altas o sucesso escolar é algo esperado e quase óbvio, portanto há maior cobrança por um ensino de qualidade, e a presença dos pais na escola é marcante. Já para nós, alunos provenientes de camadas populares, apesar de se saber a importância dos estudos, tal sucesso não é algo cobrado ou imposto, devido às várias condições adversas que se evidenciam em nosso percurso escolar. Acredito que a presença daqueles alunos provenientes de classes mais altas acarretava em um maior empenho dos professores, dos diretores e dos funcionários em oferecer um ensino de qualidade devido à cobrança dos pais. 17 BOUDIEU, Pierre. NOGUEIRA, Maria Alice e CATANI, Afrânio. Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1998. 251p. Universidade Federal de Minas Gerais 87 Na quinta série, havia um sentimento diferente em mim. Eu me esforçava para continuar a tirar boas notas. E no final do ano veio a “minha recompensa”. Havia na cidade uma festa tradicional na qual se premiavam os destaques da cidade. E adivinhe quem ganhou o prêmio na categoria de aluna destaque? Sim, eu ganhei esse prêmio. Apesar de ser um troféu simples, ele teve um valor imensurável para mim. Foi como se eu tivesse ganhado na loteria. E o diretor fez um discurso tão bonito que não houve quem não se comovesse: “É uma prova de que as oportunidades são iguais para todos. Menina de origem humilde que, com certeza terá, um futuro brilhante.” Sempre que conversavam comigo e até no próprio discurso do diretor diziam que eu seria advogada. Será por quê? Acredito que pelo status da profissão. Erraram no palpite. Mas foi somente nesse momento que comecei a perceber o ensino superior e a vê-lo como possibilidade. Esse bom rendimento escolar que se opunha a minha condição socioeconômica me tornou muito conhecida na cidade. Comecei a dar aulas particulares bem cedo. Sempre era aluna da primeira turma da escola e integrante do grupinho dos que tiravam as maiores notas e que, em geral, tinha como membros os mais favorecidos economicamente e socialmente. Os professores, normalmente, agregavam-nos em um só grupo para a realização dos trabalhos e, assim, evitavam que os alunos com um menor rendimento “se escorassem e usufruíssem as boas notas tiradas por nós”. Alegavam que colocar um aluno de alto rendimento com um de baixo rendimento, que convivia com o fracasso escolar, este deixaria a cargo do outro toda a realização do trabalho. A nota era vista, e, infelizmente, ainda é, como prova da aquisição do conhecimento. Percebi que não era uma metodologia eficiente, porque, quando eventualmente ocorria essa mistura, havia uma produção de conhecimento muito grande, talvez devido à linguagem. Muitas vezes, os alunos aprendiam mais com a orientação de outros alunos. Durante os anos em que permaneci na escola, em todo o meu ensino fundamental desenvolvi muitos contatos, uma rede social muito ampla. Isso me possibilitou sonhar cada vez mais com acesso ao ensino superior. E a cada momento que passava, ficava mais convicta de que a educação possibilitar-me-ia uma maior ascensão social. Todos os anos em que permaneci na escola fui premiada como aluna destaque. E o discurso do diretor? Continuava o mesmo... Após o término do ensino fundamental, as elites retiravam seus filhos da cidade e os colocavam em escolas privadas para a conclusão do ensino médio. Eu sabia que continuar no interior dificultaria o meu acesso ao ensino superior. Pensava que numa cidade grande seria mais fácil obter isso e, então, vim para Belo Horizonte para concluir o ensino médio. A partir daí, minha trajetória foi extremamente difícil. Chegando aqui, fui morar com minha irmã e tive de começar a trabalhar. Achar um emprego não foi fácil. Sem experiência e sem alguém para me indicar, meu primeiro emprego foi como balconista em uma padaria. Foi uma fase muito difícil. Acordava às cinco da manhã, começava trabalhar às seis e largava às quatorze horas. Tentava nos horários vagos, após deixar o serviço, fazer cursos a fim de preparar-me para o mercado de trabalho. À noite chegava na escola exausta. Fiz o ensino médio na rede estadual, numa região próxima a favelas. No Brasil, o descaso pela educação pública é impressionante. Em um trabalho que fiz, recentemente, em uma disciplina de prática educativa, tive a oportunidade de voltar à escola onde cursei o terceiro ano do ensino médio. Foi uma experiência extremamente proveitosa. Pude olhar a escola que estudei sob um outro ângulo, não mais na posição de aluna. Assim, consegui desenvolver uma opinião fundada na comparação entre a minha vivência como aluna e uma experiência de pesquisa. Professores extremamente mal pagos, que chegam a trabalhar 88 Caminhadas de universitários de origem popular três turnos, o que prejudica o ensino noturno, principalmente. A grande maioria dos alunos desse turno trabalha. Além de chegarem à escola cansados, em sua grande maioria, por não acreditarem na possibilidade de sucesso escolar, vão à escola para cumprir um protocolo, ter um diploma ou para se divertir. A escola funciona como lazer, um espaço para se encontrar com os amigos. E nas discussões que ouvimos, a preocupação é buscar um único “culpado” pelo fracasso escolar, que, muitas vezes, a escola tem centrado no aluno, principalmente naqueles oriundos das camadas populares, que são vistos como portadores de algum tipo de “desvio” ou “anormalidade”. Acaba-se por atribuir o fracasso escolar à debilidade das capacidades intelectuais e à cultura desviante. A escola e os profissionais da educação não levam em conta a estrutura da escola, a estrutura social do aluno. Faz-se necessário levar em conta esses outros fatores. Discutir o fracasso escolar não consiste em patologizar o aluno. O processo de aprendizagem envolve outras variáveis, tais como: a instituição, o método de ensino utilizado, as relações aluno-professor, os aspectos socioculturais, a história de vida de cada sujeito, dentre outros fatores. Pensando nisso questiono: será que na formulação dos projetos pedagógicos, hoje, os alunos são ouvidos? A escola tem buscado conhecê-los e buscado se adaptar a sua realidade social? Professores enxergam seus alunos como sujeitos únicos, ou ainda os transformam em um número nas chamadas? A relação que o professor tem com o aluno é muito importante. Foi justamente essa peculiaridade na relação professor-aluno que tive no ensino fundamental que me mostrou a possibilidade de construção de um outro caminho. Em busca de uma escola que levasse em conta esses fatores, passei durante o meu ensino médio por três escolas estaduais diferentes. Todas enfrentavam esses problemas. Até mesmo tráfico de drogas ocorria dentro das escolas. Afirmo, sem medo de errar, que foram três anos que não acresceram quase nada em minha bagagem de conhecimento. A única certeza que um aluno do ensino médio, de grande parte das escolas da rede estadual, possui é a defasagem no ensino. Sabia das minhas limitações. Prestar vestibular, após a conclusão do ensino médio, sem preparação, seria inútil. Além disso, pagar pré-vestibular estava aquém das minhas condições econômicas. Na busca por uma estabilidade profissional que me permitisse pagar um cursinho, passaram-se dois anos. Nesse período, comecei a trabalhar em uma escola de educação infantil, o que influenciou muito a escolha do meu curso por Pedagogia. Somente depois disso pude começar a fazer um pré-vestibular, mesmo assim, com ajuda de custo do meu irmão. O que eu ganhava não era suficiente para pagar o pré-vestibular, passagem, lanche e ainda me manter. É interessante como nessa época percebemos a crença na incapacidade que as pessoas da sociedade têm em relação aos alunos provenientes de escola pública. Nunca tive ilusão de prestar vestibular em universidades particulares, pois não daria conta de me manter. Ao dizer que prestaria vestibular somente para a UFMG, muitos reproduziam a ideologia de que lugar de pobre não é na universidade, muito menos em universidades federais, e me sugeriam que fizesse vestibular em uma universidade particular e tentasse uma bolsa. Mesmo que fosse dito com boas intenções, ouvir isso era uma tortura, o que me desencorajava bastante. Como trabalhava durante o dia, aproveitava o final de semana para estudar. Fiz somente um intensivo de agosto a dezembro, não tinha condições de me manter um ano inteiro. Lazer? Nem pensar. Eram oito horas de provas para decidir meses de investimento. Um investimento muito incerto por sinal. A ansiedade era tão grande, que nas noites que antecedia o vestibular não conseguia dormir. Pensava no tempo de dedicação dado aos estudos, no dinheiro gasto. Universidade Federal de Minas Gerais 89 Meus irmãos sempre me apoiaram, desde os meus anos iniciais de estudo, me davam meu material escolar e me incentivavam muito. Quando me mudei para Belo Horizonte, esse apoio e os gastos também aumentaram. Ao mesmo tempo em que me sentia segura com esse apoio, sentia um desconforto muito grande, uma necessidade de passar logo para retribuir esse apoio, realizando o sonho do meu irmão mais velho, que era me ver em uma universidade. Chegado o grande dia, acabei passando na primeira etapa e redobrando os estudos para a segunda, mas não foi dessa vez. Fiquei arrasada. Ia começar tudo de novo. Nesse ano, tentaria UEMG também. Isso diminuiu minha angústia, afinal eram duas possibilidades. Dessa vez, passei nas duas e optei pela UFMG, porque era o meu sonho. Mesmo que passar no vestibular para uma universidade pública fosse um processo mais demorado, não desistiria. Nunca me conformei por não ter tido acesso a uma educação de qualidade. Analisando a história da educação, percebemos que a educação foi sempre pensada pela elite frente a um contexto, com ideologias que visavam ora a adaptação dos indivíduos à sociedade, ora a responsabilização do indivíduo pelo seu fracasso ou pelo seu sucesso, ora pregava a igualdade de oportunidades. Hoje percebo que esse último tópico foi extremamente presente em minha trajetória escolar. Essa é uma das críticas que faço ao meu ensino fundamental, embora meus professores e diretor tenham influenciado muito na minha entrada no ensino superior. Acredito que, com o tratamento que me deram, fui a única beneficiada, fazendo com que muitos alunos oriundos das camadas populares se responsabilizassem pelo seu fracasso escolar, legitimando assim a desigualdade social. Ao chegar à universidade, percebi muitas semelhanças entre o ensino fundamental que cursei e o ensino superior. Fazendo uma analogia, percebo que ambas possuem um ensino de qualidade. No entanto, a forma de receptividade, a produção do conhecimento será muito diferente em virtude da condição socioeconômica do indivíduo. No caso do ensino fundamental, uma criança que anda quilômetros e quilômetros para chegar à escola, com fome e ainda tem o dever de assimilar a cultura da elite, terá o mesmo rendimento escolar que uma outra que é bem nutrida, com pais detentores de uma alta escolaridade e altamente familiarizados com a cultura cobrada na escola? É o mesmo questionamento que faço em relação ao ensino superior. Estamos, sim, em uma universidade altamente conceituada, que busca formar cidadãos críticos, no entanto, ainda temos problemas. As pessoas que possuírem alto capital econômico, cultural, simbólico e social sempre estarão em melhores condições, quase sempre usufruíram as melhores oportunidades. Acredito que as pessoas provenientes das camadas populares que entraram na universidade anos atrás sofreram muito mais para se manter no ensino superior. Hoje, já estamos em melhores condições. Penso como sofreram as pessoas para chegar no estágio atual, na busca de serem respeitados culturalmente e mostrar que esse espaço, essa universidade também é nossa por direito. Nem sempre a escola foi vista como um espaço sociocultural de formação. Em relação a isso e a outros fatores, tivemos um grande avanço e uma das provas da concretização dessa luta é o Projeto Conexões dos Saberes, do qual tenho imenso orgulho de integrar. Quero usufruir, potencializar o máximo a minha formação. O projeto tem buscado oferecer-nos isso e até mesmo ajudado na construção de nossa identidade, que é um processo extremamente complicado. Ter um espaço onde posso afirmar minha cultura, minha história de vida como tão importante quanto a cultura dominante é um privilégio. O fato de o processo de seleção para este projeto focalizar alunos de origem popular e que se auto declaram 90 Caminhadas de universitários de origem popular negros ou pardos tem contribuído muito para minha formação acadêmica, mais do que isso, no Conexões achei pessoas com algo em comum: a dura caminhada para chegar à universidade. Tenho certeza que uma semente foi plantada no coração de cada componente desse grupo: a busca incessante por uma universidade menos elitista e mais próxima da realidade social dos alunos das camadas populares. Sempre tive medo de simplesmente passar pela universidade. Hoje, sinto que tenho vivido intensamente a passagem pela academia e, sem dúvida, esse projeto tem sido um dos propulsores dessa vivência. Antes sonhava com a conclusão do meu curso de graduação. Hoje, vejo o mestrado e o doutorado como possibilidades. E, para finalizar, somente mais uma declaração: de toda minha história de vida, nada, absolutamente nada me atrai mais do que o conhecimento, em busca desse, para mim, não há limites. Maria Aparecida Rodrigues Universidade Federal de Minas Gerais 91 Algumas notas sobre minha trajetória e permanência na UFMG “Brilhar como estrela... Brilhar como um farol... Gente é para brilhar... Esse é o meu slogan... Brilhe! Mesmo que sua vida se torne um inferno.” (Maiakoviski, 1952) Sonhar, acreditar e manter uma estranha mania de ter fé naquilo em que se realmente acredita! Idéias tão simples, mas que evocam sentimentos intensos. E talvez sejam esses fatores os que motivam as pessoas possuidoras de uma maior inquietude de alma a lutar para alcançar aquilo que tanto sonham e desejam. Não se deixando levar por uma série de determinismos que rondam a realidade cruel e desigual em que está imersa a nossa sociedade. Acreditar que é possível alcançar aquilo que se sonha, em muitos casos, move indivíduos que vivem em ambientes sem muitas perspectivas rumo a caminhos inimagináveis pelos seus pares. E posso dizer a vocês que faço parte desse grupo que ousou sonhar um dia e, além disso, lutou, e luta, para que os sonhos virem realidades palpáveis. E nas linhas abaixo, contando um pouco da minha historia, exponho, algumas percepções acerca da realidade na qual vivo. Ser um estudante universitário é o objetivo de boa parte dos jovens, porém nem todos conseguem alcançar o lugar que lhes é seu por direito, visto que o direito à educação é garantido pela nossa constituição. Em alguns casos, continuar os estudos, sobretudo em uma universidade publica, não passa de um mero sonho para alguns. Algo triste, mas real. Infelizmente, muitos jovens sonham com a universidade, mas não acreditam que chegar lá é possível, e acabam por desistir no meio do caminho. São tantas as causas desse trágico fenômeno social, poderia citar inúmeras de ordem econômica ou social, como se não bastasse essa realidade excludente, há uma outra mais perversa ainda. Pois, uma vez que atingido o sonho universitário, as dificuldades de manutenção na universidade passam a ser o novo desafio. Visto que arcar com os custos provenientes desse novo cenário, na grande maioria dos casos, é algo completamente fora da realidade de estudantes egressos das camadas mais populares. E é nesse cenário descrito acima que me situo sócio-histórico e economicamente. Oriundo de uma família simples, minha educação básica se deu numa escola pública de boa qualidade. Havia problemas, mas a vontade e a qualidade dos professores superavam todas as deficiências naquela escola. O projeto pedagógico adotado pela coordenação conseguiu equalizar todas as deficiências existentes na escola e, graças a um comprometimento dos professores, 92 Caminhadas de universitários de origem popular funcionários, pais e alunos, a experiência rendeu bons frutos. Ao menos no caso da turma com que me formei, boa parte dos estudantes, hoje em dia, faz algum curso em universidades públicas ou particulares. E se tive uma boa base educacional que facilitou a minha vida no ensino médio, devo grande parte disso aos meus primeiros mestres, que foram muitos, sempre me incentivando a continuar estudando, dizendo que eu tinha potencial, mesmo que às vezes eu não acreditasse muito nisso. E quão grande foi a minha emoção quando tive a oportunidade de contar, aos poucos com que eu ainda tinha contato, que havia passado no vestibular da UFMG. Percebi o quanto eles ficaram satisfeitos e orgulhosos com o meu feito. E não só o meu, mas os de outros colegas que também conseguiram vencer esse desafio. Nunca vivi em um ambiente em que houvesse conforto financeiro. Às vezes, tinha vontade de ter algumas coisas, mas não podia, porque o orçamento familiar não comportava. Mas essa situação não era um fator limitante, visto que há determinadas coisas que dinheiro algum pode comprar. Refiro-me aos meus amigos, pessoas as quais eu devo muito e sempre serei grato. Não só por me ajudarem nos momentos de maiores dificuldades, mas por me proporcionarem ocasiões impares em minha vida, e que eu jamais me esquecerei. Os tempos da escola, do futebol no fim de semana, os passeios ao sitio ou as simples conversas noites adentro nas esquinas do bairro, essas que foram fundamentais nos momentos de maior dificuldade, inclusive na minha primeira reprovação no vestibular. A cumplicidade estabelecida entre nós foi nosso apoio mútuo. E mesmo que hoje em dia nós não tenhamos o mesmo contato, pelo fato de que cada um está dando rumo a sua vida, sinto que vivenciar esse ambiente nos meus tempos de adolescência – época conturbada por natureza – me ajudou, com efeito, a me tornar a pessoa que sou hoje. Coisas assim nos motivam a seguir lutando e rompendo os desafios que a vida nos impõe. Ainda mais o fato de saber que há pessoas que confiam em nós, que acreditam em nosso potencial e torcem para que alcancemos o sucesso. Acho que as privações educaram a minha alma em algum sentido, pois viver com limitações nos ensina a descobrir caminhos, para poder suprir nossas necessidades, e nos instiga a nos superar cada vez mais para alcançarmos nossos desejos. Toda essa vivência é realmente importante para a formação de nossa consciência, pois as experiências ensinam muito a quem se permite aprender com elas. O trabalho se iniciara em minha vida cedo, logo quando fui cursar o meu segundo grau. Isso porque, na busca de um ensino de melhor qualidade, optei por estudar no centro. E com tal escolha, tive de arcar com os custos. Na medida em que não poderia exigir dos meus pais que eles me financiassem, sabendo que eles não teriam condições para tanto. Isso não foi de todo ruim, amadureci muito com essa experiência nova. As possibilidades que a vida nos oferece é algo que me encanta, mas temos de trabalhar para vivenciar essas possibilidades, e foi isso que sempre busquei fazer em minha vida. Afinal de contas, “nenhum vento ajuda quem não sabe até que ponto deseja navegar”. Eu tinha plena convicção de que somente poderia alcançar os meus objetivos com muito trabalho e dedicação, e a certeza de que perseverando é que se consegue aquilo que se quer. E que na vida tem de se ter objetivos, se não os tivermos, qualquer lugar nos serve, como já dissera Skakespeare. Trabalhar e estudar ao mesmo tempo não foi nada fácil. O cansaço era um inimigo muito forte. Isso, é claro, além da falta de tempo para estudar, que era outro inimigo. Sempre busquei maneiras de compatibilizar ambas as coisas e, com muito esforço, consegui conciliar as tarefas. As responsabilidades que adquiri durante essa fase da minha vida me trouxeram uma perspectiva nova e reforçaram a minha vontade de continuar os meus estudos após o segundo Universidade Federal de Minas Gerais 93 grau. Nesse momento, percebi que, para conseguir alcançar meus objetivos, a continuação de meus estudos era fundamental. O contato com a realidade do mercado de trabalho reforçou ainda mais essa necessidade. As pessoas com as quais trabalhava naquela época sempre me falavam da importância dos estudos para quem quer vencer na vida, e elas sempre acreditaram no meu potencial e me incentivaram para que eu investisse na continuação dos estudos. Não só nesse instante, mas como em boa parte de minha vida, não posso deixar de ressaltar a importância de meus pais nesse processo. A educação que me deram, muito rígida, às vezes, motivo de algumas brigas, inclusive. Nem sempre temos a compreensão de que eles somente querem o nosso bem com as suas ações. Por mais que não concordemos com elas por algumas vezes, temos de reconhecer que eles têm grande importância em nossas vidas e devemos creditar aos nossos pais todo o nosso sucesso. A rigidez com que eu fui criado, pautada na ética do trabalho, conduziu-me à disciplina, que é um elemento importantíssimo nas atividades de estudo, ao respeito pelas pessoas, à responsabilidade e à paciência, que muito embora me escape às vezes, mas é fundamental quando queremos exercer alguma tarefa, sobretudo quando exige uma concentração mais profunda, como é o caso do estudo. Todo o acúmulo de experiências que tive durante essa fase de minha adolescência foi bastante importante para que pudesse tomar as minhas decisões. Acho que o amadurecimento, mesmo com todas as suas implicações, foi importante, sobretudo, para que eu tomasse consciência da importância e da responsabilidade que temos de ter para com a vida. Na medida em que o tempo foi passando, o vestibular foi se incorporando ao meu cotidiano com maior intensidades e, nas rodas de conversas com os amigos, esse tema era recorrente. Senti um pouco de medo. A idéia do fracasso não me agradava muito, além disso, uma boa parte de minha vida ali se definira. Então, aquele momento era demasiado especial e exigiria de mim muita atenção e dedicação aos estudos. A relação trabalho e estudo ficou complicada e, para enfrentar as provas mais bem preparado, precisava de mais tempo para estudar, tempo esse que o trabalho me tomava. Nesse instante, tomei uma decisão importante: larguei o trabalho e me dediquei aos estudos. Mais uma vez, minha família foi fundamental nesse processo, me dando apoio nessa tomada de decisão. Dediquei-me intensamente aos estudos, e quanto mais a prova se avizinhava maior era a sensação de medo e excitação. Na primeira vez que tentei, infelizmente não consegui ser aprovado na UFMG. Tinha optado pelo curso de Ciências Econômicas, e não passei por uma margem de pouquíssimos pontos. Como alento, eu tinha conseguido passar no vestibular da PUC/MG, para o mesmo curso. Infelizmente, não tinha condições me manter, bem como a minha família não teria condições de me sustentar em uma universidade particular. Sem dúvida, esse foi um dos momentos mais difíceis de minha vida. Lidar com o quase não me foi tarefa das mais fáceis, pois, como Luis Fernando Veríssimo bem o define, “Ainda pior que a convicção do não, e a incerteza do talvez, ou a desilusão de um quase. É o que mais me incomoda, que me entristece, que me mata trazendo tudo que poderia ter sido e não foi. Quem quase ganhou ainda joga, quem quase passou ainda estuda, quem quase morreu ainda está vivo, quem quase amou não amou. Basta pensar nas oportunidades que escaparam pelos dedos, nas chances que se perdem por medo, nas idéias que nunca sairão do papel por essa maldita mania de viver no outono”. Não tive forças para reagir a esse baque. Afinal, tinha me sacrificado de tanto estudar, e vi a minha chance se esvair por causa de meio décimo a menos na prova de matemática. 94 Caminhadas de universitários de origem popular Por mais equilibrado que eu fosse e tentasse não transparecer toda a fragilidade daquele momento, desabei ante aquela situação desconfortável. Tudo o que eu menos desejava, me foi imposto de maneira cruel pelo destino. Eu não estava preparado para lidar com aquela situação, por mais que eu considerasse que ela poderia acontecer. Nesse momento, eu não queria saber de nada, nem de meus amigos, nem de minha família. Nada tinha muito sentido naqueles dias tenebrosos de verão. Tenho a mais absoluta certeza de que o que me manteve vivo naqueles dias confusos foram quatro motivos que eram mais fortes se comparadas a qualquer sentimento de derrota pelo o qual eu estava passando: o apoio da minha família, o apoio de meus amigos, a certeza de que a pessoa que eu mais amava estaria comigo e a certeza de que eu não poderia me dar por vencido, pois se o fizesse estaria desistindo de meus sonhos e de mim mesmo. E como disse no inicio, aquela estranha mania de ter fé, por mais cético que eu estivesse naquele momento, somada ao apoio das pessoas mais próximas a mim, que, com dificuldade, quebraram a redoma de gelo na qual eu havia me encerrado e que me deram a maior força. Aos poucos, consegui recuperar a minha capacidade de enxergar além do fracasso e aprender com as lições que ele me deu para que em um futuro muito próximo, quando me defrontasse com aquela situação novamente, não cometesse os mesmos erros. Então, munido dessa força e apoiado por meus pais e amigos, recomecei toda caminhada. Com ânimo redobrado. Afinal, acreditar naquilo que se sonha, como já disse, pode modificar a vida de uma pessoa. Encarar meus medos foi o pior dos desafios, pois a cada instante em que parava para estudar, toda aquela sorte de sentimentos que senti no ato de minha reprovação – descrédito, incompetência, dentre outros – rondavam minha alma. Com o apoio de todos, consegui ir adiante. E baseado em minha experiência, gostaria de dizer às pessoas que, mesmo se encontrando no meio de uma tempestade, completamente sem perspectivas, em momento algum desistam de lutar por aquilo que acreditam, recuem se for o caso, mas nunca se dêem por vencidas, jamais. O ano se passou, retomei minha confiança e as provas novamente se aproximavam. Não me intimidei, enfrentei-as de peito aberto, pois tinha consciência de que aquele seria um grande passo em minha caminhada. Veio a primeira etapa e eu a superei. Durante a preparação para a segunda etapa, tive o total apoio dos professores do pré-vestibular no qual estudei e dos amigos que lá fiz, o que me deu mais confiança ainda para fazer os testes finais do vestibular. No dia em que tomei contato com a noticia de que eu tinha passado no vestibular, quase não acreditei. Deram-me a noticia pelo telefone, e eu tinha uma necessidade enorme de ver o meu nome na lista de aprovados. A ansiedade era tamanha que eu nem percebi como me deslocara de minha casa até a universidade, só me dera conta disso na hora em que eu me aproximava da área em que estavam sendo divulgadas as listas de aprovados e todas as minhas lembranças de quando tinha ali pisado pela ultima vez vieram à tona. O cenário não é dos mais interessantes, um misto de sensações de alegria e tristeza se confundem, entre aqueles que foram ditos aprovados e os que não o foram. Porém aquele instante para mim foi único e eu vou tê-lo comigo pelo resto de minha vida. Posso até passar em outros vestibulares, mas o primeiro é inesquecível. Mais orgulhoso fiquei em tomar contato com meus familiares e amigos e contar-lhes a boa nova. Eles acompanharam toda a minha dedicação e o meu sofrimento ao longo de todo o tempo em que estive envolvido com as provas do vestibular e sabiam o quanto esse Universidade Federal de Minas Gerais 95 momento era importante para mim. Nunca vou esquecer das manifestações de contentamento de meus amigos e familiares quando me cumprimentavam. Acho que eles compartilharam da mesma alegria que eu sentira naquele instante, a cada abraço todo o peso que estava em minhas costas se aliviava mais um pouco. E acho que todos eles entenderam minha mensagem, que, por mais difícil que seja lutar para que os sonhos virem realidades palpáveis, vale a pena acreditar e lutar para que isso aconteça. Após aquele momento, se iniciara uma nova etapa de minha vida, a universidade, para mim, era um misto de sensações antagônicas. Um local desejado, porém oculto, onde eu teria de me relacionar com conteúdos completamente novos e com pessoas completamente desconhecidas, com trajetórias de vida completamente diferentes. Um mundo novo se abria em meu horizonte e eu tinha de me adaptar àquela nova realidade com a qual tanto sonhara. A minha maior dificuldade, desde então, até que não se dera na esfera do conhecimento, como eu temia. Ao contrário, tive alguma facilidade em lidar com os conteúdos até o presente momento, talvez as pessoas e a falta de uma melhor estrutura financeira tenham sido os meus maiores inimigos. Bem, a princípio, pensava eu estar num ambiente em que as pessoas compartilhassem de pontos em comum, mediante a diversidade que se via em minha sala. E, de fato, eu estava certo. Havia, como há, muitas semelhanças entre os indivíduos que compõem a classe da qual faço parte. Com o passar dos períodos, as pessoas se revelaram muito diferentes do que pareciam à primeira vista. Com isso, o clima passou a ser um pouco mais tenso, visto que o choque de idéias tomou uma magnitude considerável e as pessoas, a meu ver, não sabem diferenciar uma critica a um pensamento de uma critica à pessoa. Além disso, com a formação dos grupos, fato característico em qualquer agrupamento humano, em que as pessoas tendem a se aproximar daquelas com as quais compartilham uma gama maior de afinidades, as coisas ficaram piores ainda. Não quero me deter muito nesse tema, por enxergar nele uma fraqueza de espírito tamanha, que não vale a pena tratá-lo com maior profundidade. Mas o meu maior desafio estava em minha manutenção na universidade, pois passada toda a euforia do vestibular e com o começo das aulas comecei a enxergar que não conseguiria manter meu curso se não arrumasse rapidamente uma forma de ganhar algum dinheiro. Meus pais, por mais que se esforçassem não poderiam agüentar as contas por muito tempo. Isso me preocupou bastante no inicio, pois não sabia como resolver essa situação que se tornava mais grave pelo fato de meu curso ter a grande maioria das aulas no período diurno. Uma grande ajuda institucional que tive foi o acesso aos benefícios concedidos pela Fundação Universitária Mendes Pimentel (FUMP). Por mais que as pessoas tencionem a criticar o seu modus operandi, é inegável a sua atuação junto àqueles estudantes menos favorecidos na manutenção de seus estudos. Graças ao acesso ao seu subsidio, consegui mitigar bastante os meus problemas de ordem financeira. Porém, ainda faltava o principal, que era o dinheiro para custear, no mínimo, o meu deslocamento de casa para a universidade. Nesse ponto, graças a Deus, consegui um estágio na biblioteca do Colégio Técnico, no período da noite. Tal fato me deu maior segurança para continuar levando os meus estudos, agora sem a preocupação financeira excessiva. Durante sete meses, trabalhei na biblioteca, e esse foi um tempo suficiente para juntar alguma grana e me preparar para alguma eventua-lidade. Busquei uma alternativa bastante interessante para minimizar os meus custos com passagem de ônibus: juntei uma grana e comprei uma bicicleta. Algo que não era muito caro e resolvia os meus problemas. E de uns tempos para cá tenho feito essa experiência, por sinal, bastante 96 Caminhadas de universitários de origem popular saudável, pois nunca gostei da idéia de andar de ônibus, bem como de ficar refém do tempo em um engarrafamento. Com a minha bicicleta, ganhei em qualidade de vida e economizo alguns recursos para reinvesti-los em outras áreas. A única coisa que me aflige atualmente é que, com o passar do tempo, surgiram algumas contradições dentro do curso e da universidade que acabaram por minar algumas expectativas que eu tinha. E nesses momentos, passam a surgir algumas inseguranças quanto ao futuro. Visto que, no meu caso, estou estudando, visando a ampliação de minha bagagem cultural e de conhecimento, mas também uma melhor condição de vida. E, às vezes, me vejo numa situação complicada, e a idéia de (re) opção de curso me ronda, mas ainda não é, por enquanto, uma realidade concreta. Afinal, uma formação de qualidade provavelmente ira condicionar uma vida pós-academia mais saudável. Há um tom de agradecimento nesse texto, mas acho que isso em alguma medida é necessário. Pois a construção dessa atual realidade não foi algo somente consolidado pela minha pessoa. Mas por todas essas outras que citei e outras que não citei por não me lembrar, que sempre, de forma direta ou não, me ajudaram; seja com uma palavra de conforto nos momentos difíceis, com um dinheiro emprestado para o lanche, com uma boa conversa para distrair um pouco. Espero ter conseguido transmitir aos leitores a mensagem de que é possível tornar sonhos em realidades. Basta que acreditemos em nosso potencial, mesmo diante das maiores dificuldades que possam surgir em nosso caminho. Finalizo citando Pierre Bourdieu, que, num pensamento, conseguiu resumir o que senti ao entrar para UFMG e, às vezes, sinto ao olhar o meu passado: “Meu problema principal é tentar compreender o que aconteceu comigo. Minha trajetória pode ser considerada como milagrosa – acho eu – uma ascensão a um local de que não faço parte. Por essa razão, embora todo o meu trabalho seja uma espécie de autobiografia, trata-se de um trabalho para pessoas que têm o mesmo tipo de trajetória e a mesma necessidade de compreender”. Referências bibliográficas VERÍSSIMO, Luis Fernando. Comédias da vida privada: 101 crônicas escolhidas. 13 ed. Porto Alegre: L & PM, 1995. 326p. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 5 ed. São Paulo: Perspectiva, v. 21, n. 3, 1999. 361p. SHAKESPEARE, William; CAMPOS, Geir. Macbeth. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, [1970] 141p. CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. 24 ed. São Paulo: Cultrix, 2003. 447p. SABINO, Fernando. O encontro marcado. 62 ed. Rio de Janeiro: Record, 1992. 285p. MAIAKOVISKI. W. Como hacier versos. 30 ed. Barcelona: Editorial Juventud, 1952, 119p. Matheus Costa Alves Pereira Universidade Federal de Minas Gerais 97 Memória em fragmentos “A memória do passado pode produzir visões perigosas... A rememoração dos fatos é uma forma de nos distanciar dos fatos dados, um modo de ‘mediação’ que quebra por curtos momentos o poder destes mesmos fatos.” (Marcuse18) Esta frase do filósofo Marcuse soa reveladora e perturbadora. Reveladora por chamar a atenção para algo a princípio sem muita importância: a memória. Perturbadora por mostrar o poder mobilizador do rememorar. Depois que a li, comecei a compreender por que tenho muito apreço por escritores das décadas de 60 e 70 do século XX. Justamente pelo poder de produzir visões perigosas. Esses autores falam de esperança, mudança, felicidade, justiça e, principalmente, são um convite ao mover-se. Hoje, está em moda uma apatia generalizada, um individualismo exacerbado, uma inércia nojenta. “Não adianta”. Sinceramente, não tenho mais paciência quando me dizem isso. Por enquanto, discuto e tento convencer a pessoa da inutilidade de sua posição. Mas daqui a pouco – e isso tem ocorrido com mais freqüência – vou conversar com quem não seja tão apático-antipático. Tenho que escrever sobre minha formação, para isso é necessário rememorar e aí sei lá quais visões aparecerão. Talvez seja melhor começar com um pequeno panorama de meu percurso escolar. Pois foi um dos – e ainda é – eixos estruturadores de minha vida. Quando pequenino, fiz o pré-escolar em Sete Lagoas. A escola se chamava Doce Lar, uma escola da rede particular. Nessa época, era filho único e minha família se resumia a mim, meu pai e minha mãe. O desemprego não rondava à porta de nosso lar. Dessa primeira infância não me recordo de muita coisa da fase escolar, mas lembro-me de pessoas: avôs, primos e um grande amigo de escola – iríamos nos tornar novamente colegas, em outra escola, dez anos mais tarde . Depois andei por Vila Velha, no Espírito Santo, antes de retornar a Sete Lagoas e fazer o antigo primário. Dessa época, tenho menos lembranças ainda, as únicas coisas de que me recordo são que o desemprego mostrou sua cara e o alcoolismo também. Minha primeira irmã já tinha nascido e eu detestava aquele lugar. Freqüentei ali uma escola, nem me lembro o nome, e nem quero, não aprendi nada, fiquei não sei quantos meses de greve, sem aula. Além do mais, como bom mineiro, gosto de montanhas, não de mar. Mar, apenas nas férias, esporadicamente. Para morar, o bom mesmo são as montanhas. Cursei o primário numa escola pública no mesmo quarteirão de casa. Fiz um bom primário. Na 4ª série, segui um caminho diferente do restante de minha turma, que, em sua MARCUSE, Rubem Alves. Dogmatismo e tolerância. São Paulo: Editora Loyola, 1981. 98 Caminhadas de universitários de origem popular maioria, foi para o Estadual – grande escola no centro da cidade. Ao contrário, fui para o Dom Silvério, uma escola particular da diocese. Estava influenciado por alguns amigos que lá estudavam e aproveitei a oportunidade, incentivado pela minha família – que se sacrificou, mas me colocou no colégio – e por um grande amigo, padre Geraldo, alguém que sempre incentivou meus estudos. O Dom Silvério com certeza foi um dos momentos marcantes em minha vida. Não só pelos bons estudos, pelas dificuldades financeiras em me manter na escola, mas, sobretudo, pelos amigos que fiz, dos quais falarei adiante. O início da segunda etapa do ensino fundamental foi um sufoco. As mensalidades eram um tormento. Se não fossem o Padre Geraldo, que tantas vezes pagou a mensalidade, e minha “cara-de-pau” em ir conversar inúmeras vezes com o diretor para pedir descontos e prazos para pagamento, não teria uma boa educação como tive. Nas 7ª e 8ª séries – ufa! – bolsa integral. Dois anos sem preocupação com as mensalidades. De conversas com o diretor e com a Diocese, saíram 50% de cada lado. O problema agora era outro: os livros. Eram caros, mas nos virávamos – eu e minha família. Corre daqui, corre de lá, xerox, empréstimo e assim foi. No ano seguinte, um novo e velho tormento: as mensalidades. A escola sofreu mudanças na diretoria, e o desconto já não foi total. Mas como já estava no ensino médio e tinha uma história naquela escola, minha família lá me manteve. A maior dificuldade eram os livros, como sempre, muito caros. Acho até que se deveria criar uma bolsa livro, como há bolsa família, bolsa escola e outras mais, ou, então, transformar o auxílio paletó dos deputados federais em livros para as escolas e para a população, afinal de contas, qual é a finalidade de um paletó num país tropical? Porém, se dava um jeito: xerox, empréstimo, visita à casa de algum colega, ficar sem estudar de maneira alguma. No final do 3º ano, houve um fato interessante, que poderia ter sido trágico, mas não foi. Formei-me devendo mais de R$ 800,00 de mensalidade. Tinha passado no vestibular para filosofia em São João Del-Rei e estava me preparando para a segunda etapa da UFMG. Fui conversar com o novo diretor financeiro da escola (que mais uma vez havia passado por renovação de diretoria). Estava preparado para “chorar” um parcelamento da dívida em módicas prestações, afinal tinha passado no vestibular e iria embora, teria despesas e a mensalidade atrasada era um empecilho. Aí, veio a surpresa. Da conversa com o diretor, veio a extinção da dívida e quase consegui, ainda, arrumar um lugar para morar em São João. É que o diretor era padre e tinha contatos naquela cidade. Bem, fim de dívida, fim do ensino médio, início da faculdade de Filosofia. Não em São João, mas na UFMG, passara na segunda etapa. Mas a universidade é um outro assunto. Quero falar de coisas mais interessantes, coisas da memória poética. ****** Se você conseguiu ler até aqui, vou confessar uma coisa. Houve um texto preparatório, para fins de treinamento, que fiz antes deste. Como tudo o que escrevo, achei no início que aquele texto preparatório estava bom e poderia continuar na mesma trilha, mas passado um tempo eu o reli e percebi que estava horrível. Pareceu-me um texto muito “dolorido”. Faltava falar de coisas mais alegres. Compartilho da mesma idéia de Espinosa e Comte-Sponville19, filósofos, “é melhor a alegria que a tristeza, melhor falar das virtudes que dos vícios”. Então, pensei ser oportuno falar das coisas boas de minha trajetória. 19 COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado das grandes virtudes. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995. Universidade Federal de Minas Gerais 99 Rubem Alves20 diz que temos uma memória poética. Nela está guardada a nossa saudade, tudo aquilo que amamos. A saudade – esta palavra intraduzível, que só a língua portuguesa possui – capta o que de melhor há em um momento, em uma pessoa, em uma realidade. Ela capta tudo isso através da memória poética. Falarei daquilo que amei e amo, ou seja, daquilo que é essencial. Toda minha trajetória – da infância ao momento presente – foi permeada pela amizade. Mas perceba, amizade num sentido bem lato, largo, no sentido da palavra grega philía (amizade). Em tal sentido, está incluído, por exemplo, a família, a relação com irmãos/irmãs, mãe, pai, primos/as, tias/os, e aqueles os quais chamamos comumente de amigos. Lembro-me do meu primeiro amigo na escola, ainda no pré-escolar. Já disse anteriormente que voltamos a ser colegas de turma dez anos depois. Pois é, como esquecer as sextas, quando íamos, eu, Rangel, Paulinho e Lelê, para a casa do Grande. A desculpa era o exercício, por menor que fosse. Na verdade, o bom era o pingue-pongue, o “winning eleven”, o encontro, a barulheira. Até hoje procuramos manter contato na medida do possível, já que um foi para São João Del-Rei, outro para Diamantina, outros para Belo Horizonte (inclusive eu) e um permaneceu em Sete Lagoas. E como esquecer os meus amigos mais antigos – o padre Geraldo e o Léo. Eu e o Léo éramos coroinha no Santuário da Adoração, o padre Geraldo era um dos padres da igreja. Vão-se mais de dez anos. O Léo sempre esteve presente nas comemorações e nas horas tristes. Foi ele quem veio correndo avisar que o resultado da segunda etapa da UFMG tinha saído. Por ele soube que passei. E o padre Geraldo, um segundo pai, alguém que sempre incentivou os estudos. Até pouco tempo, quando ele quase foi embora para Portugal, esteve olhando naquele país se existiam boas faculdades, caso eu ou o Léo quiséssemos estudar por lá. E por falar em pais, disso não posso reclamar: tive dois “pais” e três “mães”, uma bênção. Não posso me esquecer da família – grande expressão de amizade. Entretanto, entendam bem, família não se reduz a pai, mãe e irmãos/irmãs. Família é aquele núcleo estruturado de pessoas que amamos e estão muito próximas – comumente seus componentes vivem sob o mesmo teto. Aí, nesse conceito bastante amplo, é que se enquadra a minha família. Inicialmente, éramos uma família à moda antiga: pai, mãe e irmã. Depois que ocorreram aquelas principais coisas destruidoras de família: desemprego e alcoolismo é que minha família dilatou. Isso se deu no nosso retorno a Sete Lagoas, após um tempo em Vila Velha. A família cresceu e fomos para casa da avó. Além de pai, mãe e irmã, agora éramos também avó, madrinha, prima, algum tempo depois, outra irmã, e atualmente um afilhado, filho de minha prima. Uma família brasileira atual: matriarcal. Interessante. Só agora, devido a estudos relacionados à questão do feminino na cultura, na filosofia e na religião, me dou conta de que esse princípio (o feminino) esteve e ainda está muito presente em minha vida. Devemos prestar mais atenção e vivenciar mais o feminino, princípio estrutural do ser humano, responsável pela dimensão do cuidado, da vida, do sentimento, da visão holística, da escuta, da erótica e da ternura. Quem sabe, assim, possamos ser mais ternos e cuidadosos com os outros, com a natureza e, por que não, com nós mesmos. Dos amigos feitos no período universitário, falarei logo abaixo. Nesse momento, me vêm à cabeça Aristóteles, Cícero e Jesus. Aristóteles dizia ser a amizade condição de felicidade, sem amigos a vida seria um erro, afinal para que conseguir riquezas, bens, alegrias, vitórias se não puder compartilhá-las com alguém? Cícero, filósofo romano do sécul I a.C, dizia ser 20 ALVES, Rubem. Retratos de amor. São Paulo: Editora Papirus, 2002. 100 Caminhadas de universitários de origem popular a vida sem encanto se não tivermos amigos. E me recordo de Jesus, numa interpretação de Simone Weil, quando faz do mandamento “amai-vos uns aos outros como eu vos amei” o mandamento da amizade. Espero ter sido mais alegre e ter suscitado em você leitor boas e saudosas memórias poéticas de amizade. ****** Sem amizade é realmente impossível viver com prazer. Isso se aplica a qualquer realidade ou etapa em sua vida – pelo menos comigo é assim. Recordo-me do início da vida universitária, 1º período e metade do 2º – como a universidade era um “saco”. Não que eu não gostasse da filosofia – ou o que é muito comum no curso, tivesse sido “desencantado” pelo academicismo esdrúxulo e nada erótico –, mas faltava algo, um “lugar de repouso”. Nessa fase inicial, ainda não residia na moradia universitária – local onde me encontro até hoje – morava na casa dos pais de um conhecido. Não eram más pessoas; ao contrário, me receberam e trataram muito bem. No entanto, não sei bem o porquê, ali não brotou a amizade. Coisa esquisita, às vezes, há todas as condições, todo um contexto favorável ao surgimento de uma bela amizade e, entretanto, ela não ocorre. Acho isso misterioso e fascinante. Gosto de pensar ser esse “clic” da amizade – do amor de maneira geral, já que a amizade tal como a paixão e a caridade são formas de amor – o momento que popularmente dizemos “Deus olhou para baixo”, ou como na história “A menina e o pássaro encantado”21, em que o pássaro chega inesperadamente com novas cores e outros belos cantos. Talvez seja esse instante mágico indecifrável, por isso de difícil conceituação, perceptível, simbolicamente, pelas rosas, ternura, olhar, afago, abraço, sorriso etc. A vida universitária andava apática. Mas, depois que me mudei para a moradia universitária, ela melhorou. Novos ares, novas amizades. Passei a me integrar com a universidade, a cidade e as pessoas. Foi uma surpresa muito agradável ir para o apartamento 201A. Contarei essa história desde o começo. Quando passei no vestibular da UFMG, foi uma grande alegria, só que havia um problema: onde morar? Por sorte tinha conhecido uma pessoa que havia entrado para o seminário, cujos pais moravam em Belo Horizonte. Ele então conversou com seus pais, que me aceitaram como novo morador. Fiquei naquela casa durante seis meses. Depois, fiquei sem casa no primeiro mês de 2003, quando a universidade havia entrado em recesso e até o início das aulas, por mais uma semana, quando fui sorteado para Moradia Estudantil do bairro Dona Clara. Havia sido sorteado para essa moradia, mas queria mesmo era ir para moradia do bairro Ouro Preto, afinal, todos faziam propaganda de lá e eu nem sabia da existência dessa outra moradia no bairro Dona Clara. Minha intenção era ficar o menor tempo possível naquele lugar e depois pedir transferência para a moradia mais famosa. Bem, quando cheguei ao apartamento 201A, tive um certo choque, pois dos moradores era o único da área de humanas, contra cinco engenheiros e um físico. Pensava: “isso não vai dar certo”. Felizmente, estava errado. Foi uma bela surpresa, um grande presente para aquele ano que tinha começado um pouco conturbado e com incertezas de onde moraria. Já se vão mais de dois anos em convivência com Sérgio, Willian, Thiago, Vandeir, Sílvio e Juarez. Posso dizer que a vida universitária não teria graça se eu não estivesse no apê 201A. Lugar onde a “piadinha vale mais que a amizade” – frase-lema criada pelo Willian – e por isso sustentadora da amizade e da convivência. Claro, há perturbações, mas nada que uma festa não resolva. 21 ALVES, Rubem. A menina e o pássaro encantado. São Paulo: Edições Loyola, 1992 Universidade Federal de Minas Gerais 101 Dentre as amizades, não poderia deixar de mencionar “o pessoal da filosofia”. Partilha de alegrias ao longo do curso. Vínculos que se formaram para além dos muros e espaços físicos da universidade. As falas sisudas de alguns filósofos seriam insuportáveis sem as conversas irônicas e prazerosas com esse “pessoal”. Lúcia, Sônia, Júlio, Washington, Joel, Fagner e João são pessoas de quem recordarei com muita alegria, sempre. E gostaria de lembrar de um modo todo terno da Lu – graça inesperada, a mais bela flor na estação de uma vida. Quanto às dificuldades da vida universitária, elas não são poucas: falta de dinheiro, família distante, correria, xerox, um mundo de coisas jogadas sobre sua cabeça e você que se vire. Mas não as levarei comigo, não as amo, não terão espaço na memória poética. Evidentemente não serão descartadas, todas as dificuldades são aprendizagens. Porém, só sentirei saudades – e isso é o que conta – dos momentos alegres. E se esse texto lhe for útil em algo, que seja para lhe suscitar amáveis lembranças. Estou no 8º período de Filosofia. Revisitando a memória desses anos, tomo consciência de três coisas: tolerância, Educafro e fé. Penso ser a filosofia importante ainda hoje, pois ela tem contribuições significativas a dar e, a meu ver, a mais importante atualmente é a tolerância. Essa virtude – que longe de ser uma passividade, uma aceitação de tudo – é um dos alicerces da boa e pacífica convivência. Ao investigar a origem de determinados pensamentos, atitudes e sua multiplicidade e variabilidade no decorrer histórico, acho que nos tornamos mais suscetíveis às diferenças, ao encanto do “múltiplo multicor da realidade”. Agora, se a filosofia não for uma prática de vida, tal como a quer o academicismo, joguemo-la fora. Sinceramente, não sei como alguns conseguem dissociar filosofia e vida, devem estar doentes. É tragicômico quando alguém estuda, por exemplo, Nietzsche, e não se inclina a viver a filosofia, preferem apenas estudá-la. Não procuro nos acadêmicos, sábios conselheiros, exemplos de vida, só não os quero algozes da filosofia (exagero, mas é preciso para chamar a atenção). Nesses mais de três anos, com o auxílio da filosofia, tenho tentado ser mais tolerante. Confesso que nem sempre fui adepto do “múltiplo multicor da realidade”, a idéia de um pensamento único e absoluto já me fascinou por muito tempo. A bem dizer, a idéia de Verdade me enfeitiçou. Hoje, tento me curar desse mal, não que devamos abandonar essa idéia, isso seria um erro, mas reconhecê-la como múltipla, deficitária. A Verdade absoluta é uma perigosa ideologia. Acreditar nela é correr o risco de nos tornarmos fundamentalistas, “bushianos” e totalitários. É melhor, talvez, adotarmos um caminho negativo com relação à Verdade, substituir a pergunta “o que é? pela “o que não é?”. Se encantar mais pela beleza e pela bondade. Outro evento significativo foi a adesão ao Educafro – Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes – pré-vestibular comunitário. Proporcionou-me um novo contato com a realidade a partir da perspectiva racial. Não que não seja patente a multiformidade racial e a discriminação em nosso país, mas participar desse movimento me fez mudar de ponto de vista, atinar para as sutilezas. Além disso, aí tive a oportunidade de trabalhar dando aulas de filosofia, a chance de transformar o conhecimento em prática. A Educafro me empolga porque não é somente mais um cursinho pré-vestibular, é um projeto de cidadania. As dificuldades não são pequenas, os índices de evasão são altos, a falta de professores é freqüente, mas caminhamos. Oxalá continuem as perseguições e as desconfianças, sinal de que “incomodamos”. A inércia e a apatia passam longe. 102 Caminhadas de universitários de origem popular Acho que nem preciso comentar: eu era um “rato” de igreja. Essas memórias carrego com alegria. Graças a essa formação, pude estudar em boa escola, ter amigos e entrar para a universidade. Até hoje, um dos assuntos que mais me empolgam são os relacionados à religião. Procuro entender esse desejo pela Transcendência. E me entristeço quando vejo os fundamentalismos, tanto dos religiosos (se é que se pode falar realmente de um religioso fundamentalista – isso é uma contradição de termos) quanto dos ateus (quando aqueles “sabetudo”, na ânsia de destruir o apelo pela Transcendência, se fecham ao diálogo, coitados, não repararam no maior apelo pela Transcendência: o Amor). Em relação à fé, algo realmente esquisito aconteceu. Enquanto muitos na filosofia se tornam céticos, descrentes e relativistas, comigo se deu o contrário. Não direi: “minha fé aumentou”, mas nas questões religiosas acho que melhorei um pouco. Sempre fui ligado à igreja, à religião, porém era um pouco fundamentalista, adorava apontar os erros doutrinários dos outros – como fui estúpido. Graças a Deus, isso tem passado, esse ranço de “caçador da verdade”, como se à fé importasse a verdade, melhor é a beleza e a bondade. Vou contar os “remédios” que estão me curando: filosofia, ipês roxo e amarelo, principalmente, teologia da libertação de Leonardo Boff, Rubem Alves, Libânio, dentre outros, diversidade e Amor. Já me chamaram de ateu, eclético, sonhador, herege, e tudo isso é muito bom. Não consigo imaginar porque a fé tem de ser algo pesado, indigesto, solene. A idéia da fé e de um Deus leve, sorridente e erótico é muito mais fascinante, humana e divina. Menos contrição e mais erótica. Se a fé não souber rir de si mesma, todos os ataques contra ela serão legítimos. A grande riqueza da religião, da fé e da teologia, a meu ver, é a capacidade imaginativa, o simbólico, a bela cena. Crie sua imagem, aquilo que te comove, que tal a imagem de um nenê mamando, uma criança correndo dos cachorros, um amigo bebendo e contando “causos” numa mesa de boteco, uma mãe dando um gostoso abraço de reencontro, ou a imagem da pessoa amada seguida do silêncio e do pensamento “como eu te amo”, e outras legítimas imagens de Deus. ****** Melhor parar por aqui. Provavelmente você percebeu como este texto está fragmentado, foi intencional. Tenho tentado escrever o menos “duro” e “tratadístico” possível, ser mais agradável; não consegui, paciência! No entanto, se você leu até aqui já me agradaria muito se essas poucas palavras pudessem despertar belas imagens e bons pensamentos. Rodrigo Marcos de Jesus Universidade Federal de Minas Gerais 103 Grupo Conexões de Saberes da UFMG (2006). A mãe e o menino No que concerne à produção de um texto de memórias, penso ser melhor falar da vida toda; do resumo de uma vida toda. Porque o simples pensamento da transcrição de cada instante da vida é inapreensível. Para cada instante, uma linha; para cada acontecimento, um parágrafo... É algo que está além... É algo que não deve ser tocado! Nasci. Interessa-me dizer que nasci no dia vinte e três de setembro de mil novecentos e oitenta e cinco, pois esta data é importante para mim, para os amigos mais próximos e para qualquer texto que fale de minhas memórias. A compreensão dessa importância está no caminho que segue por estas linhas. Ah! Além disso, sou belo-horizontino, mineiro e brasileiro. No que diz respeito ao meu nascimento, delineia-se um primeiro fardo, não para mim naquele instante, mas para a pessoa que seria meus braços e pernas, meu pai e minha mãe – minha mãe. Ressalta-se que o meu nascimento não foi, em si, um fardo para minha mãe, mas o acontecimento que lhe foi paralelo e concomitante, sim. Ocorre que na época, meu pai, branco, cursando administração na PUC-MINAS, e minha mãe, parda ou amarela – são tantas as classificações criadas para cor de pele que não poderei definir uma cor para minha mãe, pois não sei em qual ela se encaixaria –, vinda do interior, trabalhando de enfermeira, tiverem um namoro de cinco anos, mas que não teve caráter sexual, pelo fato que minha mãe não o queria. Segundo minha mãe, no único episódio de relação sexual que tiveram, ela engravidou. O atroz rapaz e a ingênua moça, dessa união dá-se luz: eis que surjo. Imediatamente após o meu nascimento, apresentou-se à minha mãe um desafio que é muito comum a jovens mães em nosso país: cuidar de um filho sozinha. Fica uma ressalva: minha avó sempre disse à minha mãe o que minha mãe por vias não muito “felicitosas” conheceu: a família de seu namorado não gosta de você, eles têm vergonha! Dessa relação que se formava, mãe e filho, conta um pouco de tudo o que sou hoje. Inicia-se o desenvolvimento da história. Nos pontos em que remeto a minha primeira infância – quando falo remeter, segue uma linha de pensamento que passa pelo intermédio da memória de minha mãe e é fruto das histórias que sempre me conta. Ficaremos agora sabendo que, pelo fato de minha mãe não ser “bem dotada” financeiramente e meu pai não se prestar a ajudar-nos, nem fisicamente, forçou minha mãe a me deixar aos cuidados alheios, de uma senhora, para trabalhar e nos manter. Morávamos no bairro Novo Progresso, perto da família de meu pai, a distancia de uma casa. Mas poucos foram aqueles que se interessaram pela minha presença e pela batalha que minha mamãe estava travando para cuidar de mim. Pois, então, voltando meu respeito para a referida senhora do parágrafo anterior, que cuidou de mim, posso afirmar, foi muito carinhosa, muito simpática e prestativa. Mas mesmo assim e por isso mesmo, eu sei, mãe é mãe. É nessas horas em que reflito sobre a coragem de minha mãe. E quando se pensa que suas opções se acabaram, arranje outras, se novas não lhe aparecem. De tudo que minha tenra infância me conta, esse é o maior motivo para minha alegria. Minha mãe é meu único herói e minha maior heroína, eu encontro força na força dela. Universidade Federal de Minas Gerais 107 Seguindo o rumo de minha criação, desenvolve-se nova situação de fundamental importância. Depois que saímos do bairro Novo Progresso, fomos morar no bairro Dom Bosco, fixo importante friso em relação à questão de mudanças – o nosso nomadismo. Nesse local, ainda muito jovem, tive a única experiência de convívio com a família de minha mãe. Éramos todos negros, exceto minha mãe, se analisarmos negro somente como cor da pele. Morávamos em três cômodos, minha avó, minha mãe, eu, minhas quatro tias e minha prima, que estava sob a tutela de minha mãe, por causa da morte de outra tia, que morava na roça. Com relação àquelas irmãs de minha mãe, posso dizer que uma tomava remédios controlados pelo fato de ter disritmia e as outras duas, notadamente as mais novas, tinham uma vida mais festeira, o que resultou em novas bocas para se alimentar dentro daquele lar. A instabilidade era a característica daquela casa, mas quando se acha que algo está ruim, sempre pode piorar um pouco. Aconteceu que minha avó morreu, eu era tão novo que não tenho recordações de seu rosto, gostaria de tê-las. Ademais, notava-se que, a partir da morte de minha avó, uma guerra se estabelecia dentro de casa. Os frágeis laços de união que ainda persistiam esvaíram-se. E, em seqüência, cada uma seguiu seu caminho. Essa tomada de rumo foi um divisor de águas na vida de todos, ela refere-se muito ao que todos da família são hoje. Pode-se dizer, com certeza, que a maior sorte foi a nossa. Minha prima que também tomou o caminho junto conosco, em pouco tempo, rumou para respirar novos ares, mais puros, junto com o pai e irmãos na roça. Às minhas tias apenas fome, miséria, acampamentos sem terra, mais crianças, mortes, doenças, bebidas, cigarros... Tudo o que faz o coração humano sofrer e endurecer para poder enfrentar, sem chorar, essas adversidades novamente. Quando se escolhe um caminho, também se escolhem as pedras, os inimigos, os amigos, as flores, as lágrimas e os sorrisos. Para finalizar as relações com familiares, apresento agora a família de meu pai. Quando se ocorre a cisão de nossa família, tomamos um rumo e fomos morar em outro local ainda no bairro Dom Bosco, onde uma senhora, que tenho como segunda mãe e que cuidou de mim e de minha prima, sempre nos alertava sobre como seria ruim para mim a relação com a família de meu pai. Tentando me alertar, como fez minha avó com minha mãe anos atrás. O que tenho a contar sobre a minha família por parte de pai? Digo que foi mais importante que a família de minha mãe para a formação de meu caráter. Convivi com eles da época em que entrei para a escola até meu terceiro ano do ensino médio. Na família de meu pai, existe uma maioria de homens, meus primos, todos numa mesma faixa de idade que eu. Sempre fui muito influenciado por eles e naqueles anos eu queria ser como eles – hoje eu os respeito muito. Porém havia o “célebre costume” de me lograrem canções do tipo: de manhã tomo café, no almoço coca-cola, de tarde vou ao zoológico dar banana ao chimpanzé e à noite como feijoada. Se me lembro bem, esta música irremediavelmente me fazia chorar e, por vezes, senti raiva de minha própria pele, percebendo-a como sendo o motivo da chacota contra mim. Não me achava diferente e queria ser igual para não ser o bode expiatório. Os mais velhos diziam para que eu aprendesse: o racismo está em você e é lógico que essas palavras nada tinham de preconceituosas. O problema residiu no fato de que eu acreditava merecer a aceitação deles e, por causa disso, submetia-me à tamanha humilhação. Eu me rebaixei, colocando em boas palavras, eu abaixei a cabeça, fechei os olhos, tampei os ouvidos e fingi, por ingenuidade, que o racismo estava em mim, não nas palavras e cantigas que me eram oferecidas com tanta gratidão. 108 Caminhadas de universitários de origem popular Minha vida seguiu seu rumo. Aquela infância foi esquecida, “recalcada”, e as pessoas mudaram seu jeito de lidar com minha pessoa, vamos dizer que eu era mais respeitado. Na adolescência, voltamos a morar no bairro Novo Progresso em outra casa, não era aquela de minha primeira infância, mas também se situava bem próxima da casa de meus parentes por parte de pai. Eu estudava no colégio IMACO, do qual falarei mais adiante. Nas horas vagas, visitava a casa desses familiares para passar o tempo. Lá aprendi a ouvir a música que eles ouviam, a tentar usar as roupas que eles vestiam, a querer conviver com as pessoas que eles conviviam, numa última tentativa de obter sucesso com minhas ambições da infância. Como passava muito tempo lá, minha presença às vezes era um incômodo, principalmente para os mais velhos. Quanto aos mais novos, simplesmente me deixavam de lado, sozinho. Algumas poucas vezes, conseguia sair com eles e isso me fazia sentir ótimo – a minha cabeça continuava baixa. Na verdade, a minha força sempre esteve ao meu lado e eu não conseguia ver. Minha mãe, novamente, me acordou, abriu meus olhos, numa espécie de ressurreição da fênix. Ela já não suportava mais as humilhações, espelhadas no meu ânimo ao chegar em casa depois de um dia sozinho à procura de uma companhia que nunca viria. E por causa dos burburinhos que giravam em torno de minha pessoa quando ela visitava a casa desses parentes. Lembro-me que briguei muito com minha mãe por causa deles, não me arrependo disso. Mas agora sei que ela estava certa quando me avisava, junto com minha segunda mãe, que boa coisa não daria daquela relação com esses parentes. Mas quando se escolhe um caminho... Agora nos mudaríamos para o bairro Castelo, para uma casa própria. Estávamos distantes das duas famílias, poderíamos trilhar nosso caminho, mais tranqüilos. Nunca tive ou terei raiva do que me aconteceu, todo acontecimento, assim como todo parágrafo pode nos ensinar grandes lições. Voltemos ao tópico que apareceu de passagem em um dos parágrafos acima. O colégio IMACO. Para essa linha de pensamento, retrocede-se um pouco no tempo das memórias, até a minha segunda permanência no bairro Novo Progresso. Como não falar do colégio onde passei minha adolescência inteira? Fui a passeatas, a festas e pouco estudei. O colégio, assim como muitos da rede pública, tinha a “peculiaridade” de ser dominado por gangues. Sofri muito na quinta e sexta séries com isso. Mas já na sétima série, me enturmei com alguns garotos que viviam naquele mundo das gangues. Não mexia com drogas, não traficava, também nem sei se eles faziam isso – mas acho que uns poucos sim. Comentarei sobre tal fato mais à frente, pois seus casos têm especial importância – mas fiquei folgado, se é que me entendem, era a nossa opinião que valia. Não tinha o costume de fugir das brigas, é lógico que não as procurava, me mostrava cauteloso para esses assuntos. O que mais me marcou na experiência do IMACO foi, sem dúvida, a relação de vida ou morte que alguns daqueles colegas viviam – acho que de forma especial em suas relações com o tráfico de drogas. Fiquei sabendo da morte de dois, que foram baleados em emboscadas feitas por inimigos do tráfico. Quanto a um terceiro colega, também bastante próximo, o vi em uma cadeira de rodas. Tinha virado um vegetal antes de completar dezoito anos. Aquelas cenas e aquelas notícias abalavam muito a todos da escola. Para mim, era um misto de medo e enfrentamento da realidade. Todos que os conheciam sabiam que mais hora menos hora algo desse tipo poderia acontecer. Muitos já nem se impressionavam, diziam que para eles aquilo era a rotina. Suas mortes se mitificavam à medida que novas gerações iam entrando ao colégio e cada vez mais o colégio também ganhava fama de violento. Universidade Federal de Minas Gerais 109 O menino e o homem O meu pequeno conhecimento de filosofia conta-me que advém à formação de um homem sua maioridade, seu esclarecimento, Aufklärung. Kant, ao falar isso, toma que o homem maior é tutor de suas próprias ações. Ele reconhece sua realidade, podendo então interagir com ela. Espero estar caminhando para encontrar uma realidade. O trecho tem início no terceiro ano do ensino médio. Foi no terceiro ano que resolvi fazer Psicologia, não sabia muita coisa sobre a área, mas acreditava que poderia ajudar as pessoas com essa profissão. Minha mãe, meus familiares e meus colegas se opuseram à minha opinião, alegando que não haveria mercado de trabalho e que Psicologia é curso de louco. A opinião deles quanto aos cursos que deveria fazer girava em torno daqueles de sempre, cujo status fazia-os aparecer antes de qualquer outro curso: Medicina, Direito e Engenharia. Acho Medicina um curso muito bom, não só pelo status, mas pela própria profissão em si, a disciplina que ela requer, mas minha dúvida, se é que existiu, coexistiu entre Psicologia e Ciências Sociais. No primeiro vestibular, fiquei na primeira etapa, fiz cursinho no pré-vestibular, PRÉUFMG, o cursinho que, segundo muitos, seria aquele dos menos abastados financeiramente. Mas foi graças a ele que, no ano seguinte, consegui passar na UFMG, deixando claro que o “graças” equivale a uns trinta por cento nas causas que me levaram a estar na Federal. A minha segunda tentativa foi de particular importância. Pela primeira vez, senti o quanto valia o trabalho de minha mãe, não que não soubesse de seu valor, mas que não lhe tivesse atribuído o devido valor. Sempre estive alheio a essa questão, voltado para o convívio no colégio. Além disso, o dinheiro, quando pedido, era-me sempre garantido. Perdi, talvez, por causa disso, a noção do “suor” que via embutido em cada nota daquelas que recebia. Nesse ano, pedi para minha mãe que trabalhasse, novamente, por mim, de forma que eu somente estudasse e não tivesse preocupações, em especial, com as necessidades de trabalhar – como era pedido por meu pai e por familiares. O meu pedido foi novamente concedido, minha mãe trabalhou como nunca para manter meu sonho intacto. Eu queria satisfazer meu objetivo, minha ambição de ser aluno da UFMG, de dar para minha mãe o sossego que ela me deu para estudar. Queria vê-la viajando, namorando... Feliz. Isso me motivou muito, era a confiança que minha mãe depositava em mim. Minha heroína me dava a chance de provar para ela minhas capacidades. Provar principalmente para mim mesmo, pois sempre achei que não deveria provar nada a ninguém, nem mesmo para minha mãe. Mas, nesse momento, eu quis provar a ela – que sou o maior investimento da vida dela – que seria um investimento válido e estaria disposto a ser válido. Se me lembro bem, eu me dizia: “Todos possuem suas capacidades e eu possuo as minhas”. Independentemente de quais sejam elas, tenho que confiar nelas. Vou conseguir chegar lá. E cheguei! Descobria naqueles instantes e quando fazia a prova – eu queria tirar cento e vinte – o quanto é válida sua autoconfiança, sua coragem de encarar desafios, por maiores que eles lhe pareçam ser. E que nem todo o esforço que você fizer será suficiente para garantir a realização de seus desejos. Quando passei no vestibular, foi uma festa em minha casa. Para minha mãe, finalmente, eu era o “homenzinho da mamãe”, eu estaria crescendo a partir daquele momento, finalmente. Vários amigos e familiares me felicitaram, foi muito bom. O mais interessante é que ninguém teve coragem de cortar meu cabelo, que vinha crescendo desde o início do ano. Ainda bem, meus amigos acham meu cabelo muito bonito. É interessante também notar que, desde quando se deu o meu sucesso no vestibular, via-se aumentar o feixe de esperança dos mais próximos para conseguir o mesmo. 110 Caminhadas de universitários de origem popular O primeiro período. A impressão inicial que tive da universidade é a de um espaço cheio de maravilhas e benfeitorias, de festas e de alegria. É bem verdade, a universidade viabiliza e possui essas virtudes. Mas essas maravilhas são reservadas a apenas uma parte daqueles que formam seu corpo, excluem-se “os outros”. Continuando minha trajetória, agora dentro da faculdade, se apresentaram em meu caminho duas decepções, além da que me refiro nas palavras acima, cuja idéia diz respeito a todo um processo de exclusão “velada”, que existe dentro da universidade. A primeira decepção refere-se ao diálogo. Encontrei em minha sala muitas pessoas abertas e dispostas ao diálogo. Mas, na tentativa de interagir com outras pessoas, senti-me por muitas vezes acuado, envolto em um panorama que não era o meu e que tendenciosamente e forçosamente me excluía. Não me caberia a busca da conversa, da interlocução, pois essas não seriam necessárias. Na nossa sala, isso também aconteceu, houve uma cisão entre grupos, uma espécie de pobres e ricos; bonitos e feios; fúteis-alienados e sócio-compromissados. Via-se que as pessoas não conseguiam se relacionar pelo simples fato de serem diferentes. Ir em busca da diferença? Não! As pessoas estavam indo em busca de seus iguais para afirmarem sua individualidade e singularidade, para conseguirem apoio. Digo, da intolerância. Depois de reconhecê-la teoricamente, não esperava, como em minhas primeiras expectativas ao entrar para a universidade, reencontrá-la com tanta força no espaço onde ela deveria ser execrada. Decepciona-me muito a distância que existe entre teoria e prática dentro da universidade. Esperava ver grandes práticas de benefício social dentro desse ambiente. A segunda decepção fala de minhas atitudes. O que o crivo da universidade mudou em mim. Como contado anteriormente, minha cor nem sempre foi um fator que me impelisse alegria. Minha infância foi racista contra meu próprio eu, com o ideal de ser alguém que não era. Necessitava não me sentir humilhado. Acho que, como me foi apresentado o racismo quando ainda era criança, de forma desvelada, fiquei menos responsivo aos “gracejos” de cunho racial. Vamos dizer que passei a levar as coisas mais na “esportiva”. Porém o fato de estar na faculdade e demonstrar interesse por áreas de atuação social e política mostraram-me, com o desenrolar das pedras do tempo, que não tinha tomado a principal atitude para ter esses interesses. Necessitava ter uma posição política, em que eu tivesse o costume de me atribuir igualdade de direitos e deveres. Não tivesse o que temer e não procuraria me rebaixar. Isso no que concerne a minha realidade intrínseca. Deve-se assumir o que te torna diferente e dar-lhe honra, dar-se o respeito que se acha merecido. E retribuir com o mesmo respeito àqueles que lhe atribuírem valor. Há um grande valor em assumir a si mesmo e suas peculiaridades sem ter medo dos desafios que a realidade te impõe. Finalmente, a causa inicial de minha decepção, ter renegado minha cor, seus valores, sua história, tornou-se motivo de orgulho para mim. Porque o fato de não possuir uma postura em que eu valorizasse minhas diferenças e me atribuísse igualdade de direitos, se tornou ponto de força, para que eu mudasse essa atitude e olhasse mais criticamente e dignamente para o meu passado. Redimi o erro, tomando-o como aprendizado. Negro não é só raça é cultura... Que estava em meu sangue e na minha pele assim que nasci. Como renegar a mim mesmo. Essa talvez tenha sido a maior lição de minha vida, só não digo que é, pois não sei tudo em relação ao meu futuro. Por fim, encerro minha trajetória dando novo rumo às minhas expectativas, pois mudei mais do que esperava em tão pouco tempo. Talvez eu faça mestrado, talvez faça música, talvez tente medicina, direito, engenharia ou ciências sociais, talvez eu faça alguma coisa... Paulo Henrique Reis de Sena Universidade Federal de Minas Gerais 111 Minha trajetória acadêmica “Antes de iniciar minha trajetória acadêmica, considero necessário lembrar que a minha intenção ao escrevê-la não é escrever um método de conduzir uma trajetória, mas apenas descrever como procurei desenvolver a minha até o momento.” Minha escolarização até aqui ocorreu exclusivamente no ensino público, desde a educação infantil até o ensino superior, onde curso Odontologia, na Universidade Federal de Minas Gerais. E, por falar em educação infantil, considero importante recorrer à memória, mesmo que difusa, dessa fase por onde iniciei as primeiras letras, pois isso contribuirá para compreender o trajeto da minha vida escolar. Hoje não tenho todas as lembranças, mas possuo algumas que, no decorrer deste texto, me trarão outras, de forma que as informações possam ser enriquecidas e acessadas por todos os leitores. A primeira situação que me vem à memória é de quando fugi da escola. Esse fato ocorreu no primeiro dia de aula, quando iniciava o pré-primário na Escola Estadual Sinval Rodrigues Coelho, onde todos os meus irmãos concluíram o ensino médio. Essa escola fica próxima a minha casa, no bairro Vila Isabel, na cidade de Governador Valadares. A fuga ocorreu por causa de um desentendimento com um colega da classe que me deixou muito furioso. Prova disso é que saí correndo de onde estávamos, no pátio da escola, e fui em direção ao portão, que para minha felicidade estava aberto. No momento em que cheguei em casa, minha mãe olhou-me assustada e perguntou o que havia acontecido. Respondi que não queria mais ir para a escola. Alguns minutos depois, uma funcionária da escola veio até a minha casa e conversou com minha mãe sobre essa atitude. Tive algumas dificuldades para me familiarizar com o ambiente escolar, creio que seja normal, pois é um ambiente novo, com pessoas novas, com as quais o aluno passa a conviver diariamente, e com uma considerável carga horária, porém aos poucos fui adaptando. Meu irmão mais velho, que estudava na escola no mesmo período matutino, também teve uma contribuição nessa socialização, pois era sempre a quem eu recorria em determinadas situações: seja para sair mais cedo, como também nas confusões que eu aprontava. Nós, alunos do pré-primário, ficávamos reunidos no pátio da escola, pois, devido às poucas salas existentes na escola e à grande demanda que a escola possuía, eram várias turmas durante os turnos matutino, vespertino e noturno. Quando fui para a primeira série – turma C –, lembro-me que ainda escrevia as letras do lado oposto, fato que ao recordar, hoje, crio a hipótese de que ser canhoto talvez o justifique. Nessa turma, passei por uma experiência inusitada, a professora ficou tão marcada nessa minha trajetória, que até hoje me lembro do nome dela, mas, por questões éticas, 112 Caminhadas de universitários de origem popular prefiro chamá-la de Bravonilda. Das atividades prazerosas, se existiam eu não me lembro, mas da pressão a que os alunos eram submetidos, isso eu me recordo. Era constante a professora colocar alunos de joelhos, tanto atrás da porta, por conversar durante a aula, como também ao lado da carteira, por não acompanhar a leitura da cartilha. O aluno tinha que ficar atento à leitura do colega e, caso não acompanhasse, quando chegasse a sua vez, tinha que ficar de joelhos. É importante ressaltar que escrevendo essas memórias tenho como objetivo questionar a forma e o despreparo que muitos profissionais da educação apresentam e, mesmo assim, vão lidar com formação. Com isso, são responsáveis por algumas barreiras apresentadas por alunos de escolas públicas, como, por exemplo, não gostar de estudar e não ter perspectiva quanto à educação. Lembrando que isso não é uma justificativa, apenas um dentre tantos outros fatores comuns ao ambiente escolar, sobretudo público, onde está presente uma maioria de alunos das camadas populares. Entretanto, tive a oportunidade de conhecer a outra face da educação, onde estão presentes excelentes profissionais que realmente mostram-se preocupados com a aprendizagem do aluno e com sua participação na sociedade em geral. Nas séries seguintes dessa fase escolar, hoje conhecida como educação básica, tive alguns professores que também deram aula para meus irmãos mais velhos e, desse modo, eram familiares para minha mãe, a protagonista que participava das reuniões: por indisciplina, final de bimestre, contribuições etc. Por falar em contribuição, considero relevante mencionar esse ato, pois era um fator que muito incomodava meus pais, que muitas vezes eram chamados à escola ou alertados através de bilhetes encaminhados com pedido de alguma contribuição. Hoje, com um conhecimento ampliado, posso ver que isso se deve ao descaso que as escolas públicas, em especial as estaduais, enfrentam, pois o retrato que tenho na memória é da precariedade. Às vezes, na escola faltava estêncil, folhas de ofício, sem falar nas carteiras impróprias para o uso. Fazendo uma análise da minha vida escolar, retrato que a participação maternal foi mais intensa. Meu pai, embora ajudasse em algumas tarefas conhecidas como dever de casa ou para casa, acredito que em nenhuma oportunidade compareceu a reuniões ou quando era necessária a presença de um responsável. Isso não fazia dele um pai omisso, pois me lembro, como se fosse hoje, dele dizendo que tínhamos obrigação de estudar porque ele não teve oportunidade e não queria deixar que nós, os filhos, perdêssemos essa oportunidade que nos era oferecida. Eu e meus irmãos – Ramon, Roberto e Rodrigo – concluímos o ensino médio. Uma característica comum a nós, os quatro filhos do Agostinho, era o trabalho presente durante a fase de escolarização. Tanto eu como meus irmãos fomos inseridos no mercado de trabalho antes mesmo de terminar o ensino médio. Característica muito freqüente na vida dos estudantes das camadas populares. O chefe da minha família diz sempre que nos dias de hoje está muito difícil conseguir um bom emprego e, sem ensino médio, está quase impossível. Acrescento, nessa situação, que está difícil até mesmo com o ensino superior. O ingresso nessa modalidade de ensino nem era cogitado. Meu pai, que durante muito tempo trabalhou como auxiliar de expedição de uma fábrica reformadora de pneus, não tinha uma remuneração que permitisse tal feito. Hoje, ele encontra-se aposentado. Retomando ao ensino fundamental, lembro-me também que tive muita dificuldade na aprendizagem da tabuada. Decorá-la foi muito difícil; tal ato era necessário e cobrado de nós alunos. Hoje, fazendo uma análise crítica do meu passado, vejo que não somente Universidade Federal de Minas Gerais 113 a metodologia ficou na memória, como também alguns nomes, brincadeiras que realizávamos durante o recreio, as risadas de algum fato engraçado, como quando íamos assistir aos alunos que iam fazer educação física. Tudo isso era muito divertido, sem esquecer das merendas escolares, que era a hora mais aguardada. Nesse processo de formação intelectual, passei por transformações quanto à metodologia de estudo. Nas séries seguintes, já não era um professor para lecionar todos os conteúdos, mas sim um por disciplina. E, por falar em disciplina, comecei a aprender várias outras, como História e Geografia, e o melhor: passei de telespectador para ator, pois antes apenas assistia às aulas de educação física, agora participava delas embora fossem realizadas com precariedade, pois a escola possuía deficiência em material esportivo e a quadra também necessitava de uma reforma. Outro ponto importante foi o início do estudo de uma língua estrangeira, estudar inglês, mesmo que básico, foi muito prazeroso na minha vida escolar. Nessa fase, também tive a oportunidade de conhecer outra cidade além da minha, pois realizamos uma excursão, na sexta série, para a cidade de Ipatinga, situada a mais ou menos 110km de Governador Valadares. Além de explorá-la, conhecemos o Parque Estadual do Vale do Rio Doce – maior remanescente contínuo de mata atlântica em Minas Gerais –, sem falar nas inúmeras lagoas presentes no parque. Lembro-me que essa excursão causou grande repercussão na escola, pois realizamos inúmeras atividades para concretizá-la, foram bingos, festas e gincanas. O ensino médio foi meio que conturbado no início, pois mal iniciou o período letivo e houve uma paralisação dos professores. Essa ação foi muito constante em minha trajetória, onde professores aderiam à greve. Eles lutavam por melhores condições de trabalho e melhor remuneração e, hoje, posso perceber que isso ainda acontece e também é uma situação freqüente nas universidades públicas brasileiras. É lastimável como o profissional da educação, sobretudo pública, é desvalorizado no país, assim como os alunos. O fator tempo em muito atrapalhou meu processo de escolarização, pois, devido às inúmeras greves que ocorreram, era expressivo meu despreparo para entrar numa universidade. As dificuldades na área das exatas sempre seguiram minha trajetória. Prova disso foi quando prestei o meu primeiro vestibular concorrendo a uma vaga na Universidade Federal de Juiz de Fora, em 2000. Nesse ano, o mesmo de minha formatura no ensino médio, iniciei uma maratona de estudos a fim de suprimir o déficit de conhecimento educacional que muitos de nós, alunos de escolas públicas, sobretudo estaduais, apresentamos. E essa deficiência pôde ser comprovada quando fui realizar as provas de matemática e física desse vestibular, percebi o quanto tinha que aprender dos variados conceitos dessas disciplinas. Porém não possuía recurso para estudar em cursinhos em minha cidade. Com isso, após realizar esse vestibular continuei apenas trabalhando. Trabalhava em um consultório odontológico, desde a oitava série do ensino fundamental, onde primeiramente lavava carros, depois comecei fazendo serviços bancários e, depois, realizei tarefas de atendente de consultório. Esse foi um dos motivos que me levou a escolher o curso que estou atualmente. Quando prestei vestibular para UFMG pela primeira vez, tentei uma vaga no curso de Pedagogia. Segundo o manual do candidato, o profissional de Pedagogia formado na UFMG está apto a lecionar as disciplinas básicas da educação, como também orientação e supervisão pedagógica. Essas possibilidades despertaram a minha atenção. Para realizar o vestibular daquele ano, pedi demissão do emprego em Governador Valadares e vim morar em Belo Horizonte, na casa dos meus tios: Geraldo e Maria 114 Caminhadas de universitários de origem popular Aparecida. No entanto, após dois meses e meio do cursinho que era destinado à camada popular, a Federal entrou em greve e decidi voltar para minha cidade para controlar os gastos. Com isso, continuei estudando em casa. No ano seguinte, a universidade decidiu por fim à greve e, com isso, realizei o vestibular da primeira etapa. E quando saiu o resultado, fiquei muito emocionado e comecei a estudar muito para a segunda etapa. Ao realizar essas provas, fiquei muito ansioso para o resultado final e nem conseguia dormir direito. Um domingo de manhã, meu primo me liga dizendo que tinha saído o resultado final da UFMG e que era para eu conferir o resultado, que, segundo ele, parecia que eu havia passado. Eu fiquei muito emocionado, assim como minha família, pois era o primeiro a entrar na universidade. Depois de aprovado, comecei a buscar os benefícios da FUMP, sem eles não teria como me manter em Belo Horizonte e, no decorrer do curso, embora estivesse gostando muito do conteúdo trabalhado, fui informado através de amigos que existia a possibilidade de reopção de curso. No início, eu me perguntei, o que será isso? Re-opção de curso é um critério utilizado nessa instituição que dá a oportunidade ao aluno regularmente matriculado a concorrer a vagas remanescentes de outros cursos, mesmo que esse outro não seja de área afim. Para isso, o aluno precisa ter, no ato da inscrição, trinta e cinco por cento do curso concluído e também apresentar justificativa, rendimento semestral global suficiente e outros critérios que são diferentes para cada colegiado da universidade. Com isso, consegui uma vaga no curso de Odontologia da UFMG. Quando esse fato ocorreu, eu estava certo de que não haveria mais dificuldades, porém estava enganado. Odontologia é um curso caro é requer muitos gastos. Hoje, para cursá-lo, conto com o apoio da FUMP – Fundação Universitária Mendes Pimentel –, que me concede auxílio moradia, desconto refeição, auxílio médico-odontológico, entre outros. Foi através da FUMP que hoje faço parte do Conexões de Saberes. Minha participação no Projeto Conexões de Saberes está sendo muito importante para minha graduação e também para meu crescimento pessoal. Até o presente momento, recebi informações teóricas e metodológicas quanto à realidade do país, tanto em níveis sociais quanto educacionais, percebendo que é preciso amenizar as diferenças existentes. Com relação à bolsa que nos é concedida, auxilia-me na graduação com algumas despesas relacionadas ao curso e possibilita-me a estudar uma língua estrangeira. Reginaldo Ferreira Silva Universidade Federal de Minas Gerais 115 Pequeno recorte Filha de mãe-solteira, apesar de ter sido registrada e assistida pelo meu pai, sempre carreguei esse rótulo estigmatizador perante a sociedade e a minha família, principalmente, pois, a meu ver, parece que ser filha de mãe solteira já acarreta uma espécie de predestinação social. O seu futuro é pré-traçado da pior forma: você vai ser um “gauche na vida”, vai escolher os caminhos mais tortuosos e vai ser transformar em um ser medíocre qualquer. Contudo, acho que fui uma surpresa, no mínimo exótica, para muitas pessoas que se julgaram, arbitrariamente, melhores e mais dignas do que eu. Sempre, durante toda a minha trajetória, freqüentei espaços e convivi com pessoas que me impulsionaram, mas convivi também com pessoas que me ofereciam gratuitamente mensagens derrotistas. A grande ironia é que a maioria dessas mensagens vinha de uma ala da minha própria família. Alguns parentes, realmente, achavam que eu ia me perder na vida, pois, além de não ter uma boa estrutura familiar, aos moldes do que é estabelecido, nasci com um “tom de pele” desfavorável. Porém, sempre usei esses atos negativos como elementos impulsionadores da minha vencida caminhada. Todas as escolas que freqüentei tiveram papéis importantíssimos e necessários para a minha formação, tanto acadêmica como de cidadã consciente. É prazeroso lembrar-me do período do jardim de infância, quando estudava em uma escolinha chamada “Instituto Santa Isabel”. Nesse espaço, fui muito feliz e estimulada a pensar, de uma forma ingênua, é claro, no meu futuro. As mensagens positivas que as professoras escreviam no meu caderno, por verdadeiramente acreditarem em mim, enchiam-me de garra e coragem para enfrentar alguns coleginhas que desde cedo se mostravam racistas. As mensagens eram um pouco clichês – “Você vai brilhar!”, “Continue assim!” –, mas durante muito tempo, às vezes até hoje, serviram para me incitar. Quando visito as memórias desse período de felicidade, lembro-me de uma pessoa conhecida como “Vovó Moema”, que sempre me apoiou, encorajou minha mãe a continuar lutando pelo um bom futuro, tanta para mim quanto para a minha irmã Taís. “Vovó Moema” era uma senhora sábia e serena, que me atentava para a “necessidade de ter estudo na vida”. “É isso mesmo, minha filha, tem que estudar para ser alguém”. Ela sempre pedia para eu escrever e ler meus poeminhas nas festas de dias das mães, páscoa, natal. Acho que é um pouco por isso que escolhi fazer Letras! Até chegar no curso de Letras da UFMG, passei por um estágio que considero super importante: passar pelo Centro Federal de Ensino Tecnológico – CEFET. Nessa instituição, cursei o curso de Turismo e Lazer durante dois anos, concomitantemente com o ensino médio. Nesse lugar, conheci pessoas que me iluminaram, que me mostraram como seria importante e necessário ingressar na vida acadêmica. Uma das figuras mais memoráveis era meu professor Rogério Barbosa – ele nem sabe que significou muito para mim –, que dava aulas de literatura brasileira de uma forma mágica e única, representando o modelo de tudo aquilo que eu queria ser quando “crescesse”: uma pessoa sábia, bem articulada e informada e um grande mestre 116 Caminhadas de universitários de origem popular daquilo que se propõe a fazer. Hoje me orgulho de estudar na UFMG, mesma instituição que ele também estuda como doutorando. E isso é muito fantástico, tem-se a sensação que o sonho se realizou! No CEFET, a forma de ensino e as pessoas eram bem diferentes das quais eu estava acostumada. Durante as aulas, os professores instigavam os alunos a pensar por si só. E os alunos eram engajados, viajados, leitores de Cervantes e isso tudo me assustava e amedrontava. Mas, ao mesmo tempo, me dava coragem para ler Dom Quixote e construir um pensamento próprio sobre as mínimas coisas. Contudo, esse processo não foi tão fácil como essa descrição. Quando pegava um livro e não conseguia entender ou quando não tinha o mesmo raciocínio “super lógico” do restante da classe, me sentia uma provinciana boba, sem nenhuma base cultural. Pois, diferentemente dos colegas de sala, não dispunha de uma biblioteca em casa, meus familiares não liam esse tipo de literatura, minha realidade era muito diferente e bem menos azul. Não lia Monteiro Lobato e nem ia a teatros infantis. Depois desse impacto, percebi que essas barreiras de capital cultural iriam fazer parte de toda minha vida pessoal e, principalmente, acadêmica. Hoje, não me acho mais provinciana e já nem me importo em não ter lido os vários contos de infância. Procuro construir o meu saber sem me preocupar e comparar com outras pessoas, pois cada um tem uma história e uma vivência diferentes. A Sofia é outra pessoa, também professora de literatura, que fez parte de todo meu processo. Ela sempre acreditou em mim, sempre respeitou o meu pouco saber e me ensinou “as entrelinhas de um poema”. Quando revivo essas lembranças, tenho sempre a sensação de que tudo se convertia para eu fazer Letras! Entrei na UFMG. Foi uma sensação surreal, me abstrai de tudo, mas mais surreal foi passar no curso de Formação de Atores da UFMG, mais conhecido como Teatro Universitário. Ali, sim, eu me abstraí do mundo real e passei três maravilhosos anos da minha vida convivendo com pessoas como Fernando Limoeiro, mestre de teatro e que me ensinou que essa arte é um ofício digno como qualquer outra profissão. Também conheci a pessoa que eu considero meu mestre, o Linares, um argentino que me mostrou os prazeres do bem atuar, foi com ele e com uma alemã, Inês Linke, que eu descobrir o que é ser um bom profissional das artes cênicas, ter amor e ética em seu trabalho. No TU sofri minha “metamorfose ambulante”, juntamente com 17 colegas e verdadeiros amigos. Chegamos perdidos, mas não confessamos. Queríamos achar caminhos. Unidos ao acaso num curso de três anos, permanecemos a lágrimas e suor... Saímos perdidos, mas agora querendo nos perder, para assim nos encontrar no outro. Confesso! Entrar numa escola de arte foi fundamental para minha formação, tanto intelectual e social, quanto para vida como cidadã. Na verdade, entrei primeiro no Teatro Universitário, só depois passei no vestibular para o curso de Letras. O TU ajudou-me muito, mostrou-me o quanto é preciso ser uma atriz inteligente e capaz de entender, compreender e expressar o que um texto dramático quer dizer, o quanto quer passar para o público. E, para isso, tornam-se necessários estudo, dúvidas, perguntas e muitas leituras. A partir dessa nova descoberta, decidi que queria unir literatura e teatro, e é isso que eu quero para minha vida, é dessa forma que quero me encontrar e tocar no outro. Hoje, sinto-me inteira (encaminhada), com uma identidade – negra – mais forte e “sem correntes em meus pés, vôo como um passarinho”. Sinto-me feliz, basta – com os dois suportes da minha vida: mãe e irmã. Só quero construir meu destino, plantar meu pequeno jardim com girassol e não perder de vista a minha paz. Soraya Martins Patrocínio Universidade Federal de Minas Gerais 117 Trajetória acadêmica: a reconstrução de uma história “Você não sabe o quanto eu caminhei. Pra chegar até aqui Percorri milhas e milhas antes de dormir. Eu não cochilei.” (Cidade Negra) No Brasil, o contexto de exclusão social em que crianças e jovens afrodescendentes estão inseridas promove, em seu desenvolvimento escolar e social, características tais como: baixa auto-estima, limitada percepção de mundo e perspectivas pouco criativas quanto ao seu futuro. Através de uma análise de fatos históricos, é possível entender de onde se originou a inferioridade que muitos – consciente ou inconscientemente – atribuem ao negro. A abolição da escravatura ocorreu em 1888, sem que essa parcela da população estivesse preparada para enfrentar o mercado de trabalho, o que acarretou desemprego, subemprego, marginalidade. Sendo assim, a cor preta sempre foi associada à posição inferior – social, econômica, intelectual.22 Nesse contexto em que predomina o mito da democracia racial, poucos são os que conseguem romper com os preconceitos, os complexos e as carências, obtendo assim uma visão diferenciada e estratégica de sua própria trajetória. Digo estratégica, pois esta expressão sempre esteve presente durante todo o percurso que tracei da escola pública à Universidade Federal de Minas Gerais. Portes define estratégias como o “conjunto de práticas e atitudes ideológicas ou morais que – consciente ou inconscientemente – cada grupo social põe em prática com uma determinada finalidade.”23 Certamente, alguns elementos de minha infância poderão ajudar na compreensão dessa estratégia, visto que o processo de socialização primária marca o contato da criança com os valores sociais e com a sociedade, influenciando seu caráter. Nasci no dia 3 de novembro de 1983, no bairro Serra, em Belo Horizonte. Minha mãe biológica foi uma pessoa ausente e quanto a meu pai não o conheci, pois foi assassinado, aos 26 anos, em Caldas Novas. Ainda bebê, minha mãe me deixava na casa de seu tio em Santa Luzia, casado pela segunda vez com uma esposa que não podia ter filhos. Cresci em um ambiente conturbado, minhas mães discutiam muito, o caso chegou ao juizado de menores, onde escolhi ficar com o casal. Fui criada por eles como filha única. Eram pessoas idosas, simples, vindas do interior de Minas Gerais. O papel dos idosos no país também deve ser citado, pois, no Brasil, o co22 23 REIS FILHO, 1995. p. 10. PORTES, 1993. p. 14. 118 Caminhadas de universitários de origem popular nhecimento dessas pessoas e as experiências por elas vivenciadas muitas vezes não alcançam a devida valorização, mas a interação entre jovens e idosos pode beneficiar a ambos, e a troca de experiências de vida tem um papel de orientação para os jovens. Com eles, aprendi grandes valores, a maneira como compreendiam a sociedade e as injustiças que sofriam contribuíram para que eu desenvolvesse uma visão crítica da mesma. Meu pai, depois de trabalhar muito tempo como mineiro, foi aposentado, mas continuava trabalhando como pedreiro. Saudosista, contava com orgulho sua participação nas obras de construção do campus Pampulha da UFMG. Minha mãe passava e lavava roupas pelas casas do bairro. Ambos tinham o costume de me levar para o trabalho. Lutaram muito para que eu pudesse crescer saudável, tiveram a ajuda de alguns amigos, para que eu sempre estivesse na escola e disso sempre fizeram questão. O papel da escola A escola pública brasileira enfrenta diversos problemas: a violência crescente, a desvalorização dos professores, a depredação de seu patrimônio etc. Mesmo assim, alguns alunos por ela se apegam e a escola passa a ser vista como o local ideal, onde podem adquirir o conhecimento necessário para uma educação contínua. No estudo de Portes sobre as trajetórias e estratégias escolares de alunos oriundos das camadas populares, o “gosto pela escola” é indicado como uma das estratégias dos alunos entrevistados. O autor afirma que: “O espaço da escola deixa de ser só um espaço opressor e pode ser reapropriado criativamente, ressignificado em função das necessidades trazidas para este espaço”24. Faço parte desses alunos apegados à escola, que se desesperava em ter que deixá-la para ficar em casa ou em qualquer outro lugar. Assim, em meio aos muros da escola, passei a infância e a adolescência sonhando com um futuro melhor. Na escola, me descobri e tive as potencialidades apontadas e desenvolvidas. Pode parecer meio piegas, mas sou de fato apaixonada pela escola, pelo aprender, através do qual chegamos a uma das coisas mais importantes da trajetória humana sobre essa terra, o conhecimento. Adquiri, nesse espaço, uma visão crítica com relação a minha condição, visualizava um mundo cheio de desigualdades e sentia suas conseqüências, essa situação gerava em mim uma certa revolta e tristeza. Terminei o ensino fundamental com uma mentalidade diferente da maioria de meus colegas: enquanto muitos pensavam na formatura do ensino médio, eu pensava na continuidade dos estudos. Os elogios dos professores me fizeram superar o pessimismo e conformismo que, às vezes, pairava sobre as turmas que pertenci. Bem, poderia desenvolver uma ode aos mestres, pois a participação de cada um deles em minha trajetória foi singular e relevante. Reconheço-me como resultado do trabalho e da dedicação de cada um deles. Através de suas palavras, experiências e, às vezes, até repreensões, amadureci enquanto aluna. Seus conselhos e o apoio nas horas de desespero, desânimo ou desapontamento ficarão nas páginas dessa história singular. 24 PORTES, 1993 pág .180. Universidade Federal de Minas Gerais 119 “Vamos lá poderosa, você pode, basta querer”. “Você vai longe, é o meu orgulho”. “Isso aqui é pouco para você, não se acomode, não desista”. “Você vai passar de primeira e sem cursinho”. “Quero ver você brilhar”. “Você dá um show e a universidade vai te conhecer”. Poderia ficar citando frases e mais frases dessas pessoas maravilhosas que fizeram de suas profissões um ato de amor e que são desvalorizadas e afrontadas e, mesmo assim, prosseguem espalhando seu conhecimento, elas foram e sempre serão o que eu quero ser. A passagem de alguns colegas pelo ensino médio foi marcada por muitos problemas, pois muitos tiveram que trabalhar para ajudar as famílias ou até mesmo se manter. A participação dos pais na trajetória escolar de alguns colegas do ensino médio foi variada, alguns pais não acreditaram em seus filhos, outros fizeram de tudo para apoiá-los e os ajudaram a formular estratégias de superação das dificuldades em que se encontravam. Ainda de acordo com Portes, as ações e práticas das famílias populares em relação à escolarização dos filhos são complexas, diversas e parecem não obedecer a nenhum paradigma pré-estabelecido. Convenci meus pais a me ajudarem a participar do Programa de Seleção por Etapas – SEI da Universidade Federal de Ouro Preto. Pensava que seria um estimulo a continuar estudando em casa, pois não teria condições de cursar um pré-vestibular. O programa consistia em realizar provas ao final de cada série do ensino médio, o total de pontos seria somado e equivaleria à primeira etapa do vestibular. O programa não possuía isenção de taxas o que se tornou um grande empecilho, abandonei-o no 3º ano para prestar o vestibular 2003 da UFMG, onde fui isenta da taxa de inscrição. Nas camadas populares, é comum terminar o ensino médio, seja científico ou profissionalizante, e ingressar no mercado de trabalho, por isso muitos buscam acelerar esse percurso através de cursos rápidos, é a famosa “caça ao diploma”, onde o importante é ter o diploma, mas o conhecimento necessário para se candidatar a um vestibular não é adquirido, por isso é grande o abismo existente entre o ensino médio e a universidade. A inserção em ações coletivas Cada jovem, especialmente o proveniente das camadas populares, apresenta desde criança a busca por identidade, o que acaba encontrando através da inserção em ações coletivas e estas se fazem presentes em cada fase de sua vida. Uma ação coletiva muito relevante em minha trajetória foi o esporte, joguei futebol dos 10 aos 18 anos e, durante esse período, características como persistência e disciplina foram adquiridas e aprimoradas. A falta de estrutura para a prática esportiva tão comum nas regiões menos privilegiadas foi um dos problemas enfrentados com o apoio de várias pessoas. Por isso, são necessários investimentos dos vários setores da sociedade para que essas atividades sejam desenvolvidas, principalmente, nas periferias, onde a violência, o desemprego e a escassez de oportunidades desestimulam os jovens. Minha participação em ações coletivas se constituiu, também, em atividades variadas, ligadas predominantemente às instituições religiosas. Na União Espírita Mineira, fui uma das crianças beneficiadas pelo movimento Kardecista em suas atividades assistenciais. Na Convenção Batista Mineira, foi intensa a participação em atividades destinadas aos jovens e adolescentes, sempre ligadas a uma de suas igrejas locais. Nos esforços despendidos até o alcance de minha meta principal – a universidade –, confirmo a grande contribuição dos valores e conceitos adquiridos na religião. 120 Caminhadas de universitários de origem popular Cristã, isso sempre foi visto por mim como muito mais que professar uma crença, parte essencial de meu estilo de vida, é o segredo do meu equilíbrio e foi esse equilíbrio que me permitiu estar tranqüila e confiante nas duas e difíceis etapas do vestibular. Mais que isso, foram tais concepções que me fizeram permanecer acreditando no sonho, a universidade, mesmo quando era desacreditada por alguns. Weber25 aponta como característica principal da modernização a intensificação do processo de racionalização, que tem como uma de suas conseqüências a secularização, ou seja, os valores religiosos são retirados do centro da vida das pessoas. Mesmo diante desse contexto, existem pessoas que se apegam a tais valores e, através desses, conseguem atingir um alto grau de motivação e autoconfiança, e tais características são por mim apontadas como positivas durante as etapas do vestibular. A mobilidade social A inserção na vida acadêmica proporciona ao aluno carente uma elevação de seu status social. Ele passa a ser um sinal da mobilidade social, dele próprio com relação a seus pais (mobilidade social intergeracional) e com relação a sua própria geração (mobilidade social intrageracional). Nesse contexto, reafirma sua posição enquanto agente de mudanças e formador de opiniões. Esse sujeito prestígio, importante indicador de status social, obtido através da elevação da escolaridade. Isso pode ser constatado através da observação das posições ocupadas por seus pais e avós. Portanto, o jovem universitário oriundo das camadas populares é um marco no processo de elevação do status familiar. Dentre os descendentes de meus avós, lavradores no interior de Minas, eu sou a primeira, e por enquanto a única, a freqüentar uma universidade federal, mas creio que esse marco pode influenciar e encorajar parentes a atingirem a mesma meta. Opção pelo curso Foi durante uma aula de Informática, que ouvi falar sobre a área de Ciência da Informação, gostei de sua característica interdisciplinar. A opção pelo curso de Biblioteconomia, no meu caso, vai muito além das explicações depreciativas, geralmente apresentadas por alguns vestibulandos, é mais do que buscar um diploma, é minha estratégia. Meu pai, após um dia de trabalho cansativo, costumava me trazer alguns livros que encontrava nas obras ou no caminho para casa. Lembro-me da alegria e curiosidade que tinha ao receber cada um. Certamente esse contato contribuiu para que eu me tornasse autodidata e esse foi meu diferencial em relação aos colegas de classe, estava sempre à frente das explicações, por vezes interrompidas pelos desinteressados da turma, o que o professor tentava ensinar em sala eu já havia aprendido no silêncio do meu quarto com meus “professores pessoais”. Por incrível que possa parecer, minha história com esse tipo de suporte de informação não foi o que mais influenciou na escolha do curso, e sim as novas possibilidades de atuação propostas aos profissionais da área, dentre as quais destaco a gestão da informação em contextos digitais, tais conhecimentos foram adquiridos nas aulas de informática no SESC–LACES de Santa Luzia. 25 WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: 1967. 233p. Universidade Federal de Minas Gerais 121 O contato com a universidade e o choque cultural Certamente, o primeiro contato com a universidade foi muito marcante. Destaco como principal elemento a diversidade de pessoas, de crenças, convicções filosóficas e religiosas que encontrei e que por mim são respeitadas. Minha condição socioeconômica é o segundo elemento a ser destacado, pois do início até o fim da vida acadêmica (se é que tem fim) serei por ela influenciada. Graças à atuação da Fundação Mendes Pimentel – FUMP, muitas de minhas dificuldades financeiras foram superadas e prossigo na vida acadêmica. A inserção no mundo acadêmico é um acontecimento que muda concepções de mundo e comportamentos. Confesso que passei por momentos de euforia e depressão ao entrar na universidade. Euforia, por estar conhecendo coisas novas e poder ver o mundo como alguém que está sobre “os ombros de um gigante”, e depressão, pelo sentimento de que me distancio, físico e culturalmente, das pessoas com as quais passei a infância e a adolescência. Mas é preciso se posicionar diante de tal “desconstrução cultural”, sabendo que “a conseqüência de assumir ‘a aventura do curso longo’ implica desvalorização da origem que a escola impõe, distanciando-se os filhos progressivamente de seus pais, se não os distanciando através do processo de negação gradativa da origem de classe, diante de um meio social diferente do de origem” (PORTES, 1993: p. 157). A inserção no projeto conexões de saberes Minha participação no Projeto Conexões de Saberes consolida uma fase de reconhecimento e valorização de minhas origens, pois, de fato, “não se nasce negro, o sujeito torna-se negro através da recuperação de sua história pessoal, o que é possibilitado pelo resgate da história de seus antepassados, representados fundamentalmente por sua herança cultural e religiosa, num processo contínuo de identificação com suas raízes” (Tornar-se negro de Neuza Santos Souza, 1983. REIS FILHO, 1995: p. 26). Nesse sentido, venho resgatando minha história de mulher negra oriunda de classe popular. A proposta do Conexões nos leva a uma reflexão profunda sobre a condição do aluno universitário que tem que “nadar contra a corrente”, superando a condição socioeconômica desfavorável, uma sociedade preconceituosa e um sistema de ensino superior público elitizado, sabendo que é preciso disseminar coragem, persistência e estratégias aos que ainda se encontram na luta para transpor o abismo entre ensino médio e ensino superior. O projeto, ainda, pressupõe reflexões sobre o jovem como sujeito social, proporcionando estudos na área da sociologia da juventude. Hoje, me encontro em meio a um fascinante processo de (re)construção de minha identidade étnica. Considero tal processo empolgante, pois me reconheço plenamente como negra que sou e posso visualizar e relacionar essa condição com a sociedade de maneira mais crítica. O encontro com outros universitários que apresentam trajetórias semelhantes é muito enriquecedor, certamente é algo que jamais esquecerei em minha vida acadêmica. 122 Caminhadas de universitários de origem popular Conclusão Minha história de vida e trajetória escolar, brevemente relatada aqui, é uma expressão de que os esforços, os investimentos e até mesmo os sacrifícios de pais, alunos e professores promovem resultados surpreendentes quando são devidamente valorizados. As estratégias adotadas se resumem na visão da escola como instituição capaz de oferecer ao aluno as informações necessárias para mudar sua trajetória de vida, cabendo a este utilizar ou não as informações de maneira eficaz. Reconheço que o progresso escolar, em mim tão evidente, não foi uma conquista individual, mas coletiva. Referências bibliográficas TURNER, Jonathan H. Sociologia: conceitos e aplicações. São Paulo: Makron Books, 1999. v. 21, n. 3 [May 1996]. REIS FILHO; José Thiago; AZERÊDO, Sandra Maria da Mata. Universidade Federal de Minas Gerais. Trajetórias e estratégias escolares do universitário das camadas populares. Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Minas Gerais. 1993. PORTES, Ecio Antônio. Universidade Federal de Minas Gerais. Ninguém atravessa o arco-íris: a subjetividade na história de negros e negras pobres. Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Minas Gerais. 1995. Juliana H. de Assis Pinto Universidade Federal de Minas Gerais 123 A formiguinha e o elefante Meu nome é Vanderlucia, sou negra, pobre, do interior de Minas Gerais, faço faculdade de Letras na UFMG. Nas ocasiões em que tive de me apresentar dessa maneira, normalmente, as pessoas se surpreendem e me pedem pra contar como consegui o feito de estudar na Federal. Quando decidi tentar o vestibular da Federal, não imaginava o impacto que isso causaria em minha vida. A universidade pública está tão idealizada no nosso imaginário, quando a co-nhecemos; porque tem aqueles que não fazem idéia do que sejam essas instituições; que pensar um dia estudar em uma delas é sonho. E partir na realização do mesmo é delírio. Infelizmente, a universidade federal é vista como um santuário sagrado onde apenas os escolhidos podem freqüentar. E ser escolhido quer dizer ter estudado em colégios de ótima qualidade para ter chance de passar no vestibular e ter dinheiro suficiente para se manter dentro da universidade durante a graduação. Portanto, eu não era uma escolhida. Muitos me apoiaram por amizade, poucos por acreditarem ser possível eu passar. Não os culpo por isso. A verdade é que nem eu acreditava isso ser possível. Ia fazer a prova por haver ganhado a bolsa num curso pré-vestibular da cidade e meus pais se dispuseram a pagar as inscrições. Mesmo porque a preocupação maior na época era em começar a trabalhar; e foi nessa procura por emprego que tive essa oportunidade. Foi um dos fatos que mudaram o rumo da minha vida. Sonhava, sim, um dia fazer um curso superior; mas depois de haver economizado e ter um emprego no qual ganhasse o suficiente para manter os estudos. E pensando na questão de me manter foi que, desde o início, dispus a fazer o vestibular para uma universidade federal, já que ainda não tinha condições de pagar qualquer mensalidade. Estudar para o vestibular me fez refletir o futuro de uma nova maneira. A começar pela diferença de planos, comparados com os dos meus colegas de sala de aula. Alguns planejavam fazer o curso superior na região onde morávamos, normalmente estes já trabalhavam e tinham como pagar as mensalidades; outros que, como eu, ainda não estavam empregados, pensavam em trabalhar e, dali a algum tempo, voltar a estudar. Com a bolsa, minha estratégia para o futuro foi alterada e meus objetivos modificados. Sentia afastar-me dos meus colegas por causa desse novo rumo que minha vida estava tomando e tinha a impressão de que me achavam prepotente por estar ambicionando tanto. Afinal, ter boas notas numa escola estadual não é indício de aprovação no vestibular. A preocupação em mostrar resultados àqueles que me conseguiram a bolsa fez com que diminuísse a atenção aos meus colegas de sala e a direcionasse ainda mais para os estudos. Passei a não ter muito que conversar com eles. Chamavam-me atenção noticias de jornais e revistas, porque poderia ser uma questão que cairia na prova. Conversas amenas, sem compromisso, ficaram difíceis para mim e meu círculo de amizades restringiu bastante. 124 Caminhadas de universitários de origem popular Muitos colegas afastaram-se e alguns amigos continuaram juntos, e esses me davam apoio para não me abalar com o distanciamento dos outros. O fato de não trabalhar também foi um complicador da minha situação no prévestibular, pois passou a afetar, inclusive, o relacionamento com conhecidos que, como não sabiam que eu era bolsista no cursinho, comentavam o quanto deveria ser difícil para os meus pais me manterem estudando. Apesar de saber a razão, de poder freqüentar as aulas sem piorar a situação em casa; ainda assim, incomodava a impressão de que pensavam que eu estava ambicionando algo que não era pra mim. Por isso, passei a sair sempre atrasada de casa, para não ter tempo de conversar com ninguém pelo caminho e me enfadar com os comentários dos outros. A bolsa no cursinho também me deixava apreensiva, porque, como disse anteriormente, não acreditava ser capaz de passar no vestibular. Então, preocupava-me o fato de ao final do ano frustrar as expectativas que foram depositadas em mim. Frustrar meus pais, professores e um professor em especial, que foi quem me deu a bolsa. Era muito complicado continuar a estudar pensando que se está perdendo tempo, dando prejuízo e ocupando a vaga de uma pessoa que provavelmente se sairia bem melhor que eu. O medo de decepcionar essas pessoas era muito grande. Comecei a questionar se valia mesmo a pena me impor tamanha pressão na expectativa de um objetivo, que nem mesmo eu acreditava conseguir. Quis desistir. Mas isso nunca me foi permitido. Desde o início de minha vida escolar, tive que superar situações adversas e continuar. Em 1991, quando entrei na escola, havia quatro alunos negros em sala de aula. Eu era a mais tímida, a que tinha a pele mais escura e o cabelo mais crespo. Nos primeiros dias de aula, sofri com os estigmas preconceituosos dos colegas de sala e já não sentia tanto entusiasmo em ir à escola. Minha mãe convenceu-me de que tinha o direito de estar ali, tanto quanto qualquer um deles naquele ambiente e exigiu que mostrasse meu valor, fizesse com que me respeitassem. Desde então, era a aluna mais ativa e mais presente na escola. Procurava sempre tirar as melhores notas e, com isso, ganhei a amizade e o respeito dos colegas e professores. Deixei de lado a timidez porque aprendi, muito rápido, que ser inteligente e tímido não resolve o problema das estigmatizações. Adquiri aquilo que chamam de inteligência institucional: participava das traquinagens dos colegas, não a ponto de perder a simpatia do professor, e satisfazia as vontades do mesmo, não a ponto de não ser mais confiável para os colegas. Eu consegui ser popular, ser respeitada e negra dentro da escola e em todos os lugares que freqüentava. Por causa dessa minha nova postura, descobri que não existem impedimentos insuperáveis e alguns deles são até interessantes para tornar a caminhada mais emocionante. Aprendi que ser negro em nossa sociedade exige muito de sua capacidade de imposição e paciência. Ser bom na maioria das vezes não é suficiente, você precisa ser o melhor para ser notado. É preciso, também, muita presença de espírito para conseguir relevar certos comportamentos preconceituosos e, assim, não perder o espaço, que com dificuldade consegue-se adquirir. Não é necessário fingir que não percebeu a atitude preconceituosa, mas é importante reconhecer o momento de responder a ela. Vou descobrindo e me aperfeiçoando nessa “arte” a cada dia. Sou católica e na minha paróquia cantava no coral das crianças, era “Cruzadinha” – um grupo de crianças que aprendia mais sobre Eucaristia e lia com muita freqüência na Universidade Federal de Minas Gerais 125 igreja. Participava muito ativamente das demais atividades da comunidade, por isso era bastante conhecida. À medida que ia crescendo, percebia que minha popularidade só ia aumentando e que havia algo de diferente em mim. Chamava mais a atenção que outros que participavam do mesmo grupo e faziam as mesmas atividades. Nunca fui dirigente de nenhum movimento dentro da comunidade a qual pertencia, portanto sempre havia alguém que exercia a mesma função que eu e, no entanto, não eram tão aclamados. Tudo que fazia era comentado, leitura, apresentações, recitais... Sempre vinham até mim para cumprimentar. E eu ficava a questionar o porquê. Será que eu aparecia mais que as outras pessoas? Vim a descobrir que sim. Um dia após uma reunião na qual tive de falar sobre o nosso grupo e o que fazíamos pela comunidade, uma senhora loira veio cumprimentar-me porque, segundo ela, “fiz tudo tão direitinho, mesmo sendo uma pessoa de cor”. Na ocasião, não soube o que lhe responder. Mas pelo menos tive consciência do quanto a minha negritude fazia diferença na visão a meu respeito da comunidade. Eu apareço e apareço muito! Por tudo isso, não me era permitido desistir do desafio que me haviam proposto: a universidade. No cursinho, também era uma das poucas negras; portanto também aparecia muito lá! O interessante é que lá isso não fazia muita diferença. O comportamento das pessoas não mudava com a minha presença. Acho que não era considerada uma concorrente forte para eles. Havia até muita simpatia, achavam-me corajosa e esforçada por tentar vestibular na Federal. Quando chegou a época das provas, começamos a nova maratona: buscar conhecidos onde pudesse ficar durante os dias de prova. As pessoas que me receberam foram muito generosas e torciam verdadeiramente para que eu passasse. Foi muito bom. E vi-me na obrigação de passar no vestibular também por causa delas. O dia 30 de janeiro de 2004 foi declarado, por mim, o dia do alívio! Passei no vestibular. Costumo dizer que, maior que a felicidade de passar, é o alívio; no meu caso principalmente. Fiz valer a pena o investimento dos meus pais, a bolsa no cursinho. Podia trabalhar. Foi minha mãe quem disse que eu havia passado. Ela me deu um abraço, uma rosa e falou: “Minha formiguinha está lá”. Durante todo o período do pré-vestibular, essa era a frase que eu sonhava ouvi-la dizer. As pessoas que sabiam que eu havia feito a prova não me perguntavam se eu havia passado, acho que para não me constranger... Aos mais chegados, eu contei. Não fiz muito alarde com minha aprovação, porque, na ocasião, minha avó estava doente. Não havia clima para festas. As pessoas ficavam sabendo por outros que comentavam e foi assim que virei a lenda do bairro. Os vizinhos me tratavam com deferência e sempre me congratulando pelo meu feito. Já estava começando a ficar complicado falar com as pessoas, porque já não me viam como parte da comunidade, mas como um ser especial que havia elevado o nome do bairro. A minha próxima tarefa depois de passar foi provar para a comunidade que eu não havia mudado e que minha forma de pensar e de agir continuavam as mesmas. Quando tinha oportunidade, falava mais com as pessoas sobre as provas e sobre a universidade, ia desmistificando. Era um pouco difícil, porque eu ainda não havia começado a estudar e, para mim, a universidade também estava idealizada. Mas ainda assim, o mito das provas impossíveis de serem feitas conseguiu ser superado. Finalmente estava reaproximando e criando uma nova perspectiva para os jovens que me conheciam. 126 Caminhadas de universitários de origem popular Depois que passei, fomos cuidar para que tivesse onde morar. Minha generosíssima tia ofereceu-me sua casa para morar e foi ela também quem me conseguiu um emprego em Belo Horizonte. Fui ser babá de uma criança de cinco meses, uma experiência novíssima e muito boa para mim: levantou minha auto-estima e ajudou-me a firmar melhor na cidade em que moraria, pelo menos, nos próximos quatro anos. Eu trabalhava de segunda a sexta, de oito às dezessete horas, e depois ia para casa da minha tia. A vinda para Belo Horizonte foi tranqüila. Fui muita bem recebida por meus tios em sua casa e era tratada como se fosse sua filha. Mas, ainda assim, não impediu que eu sentisse falta da minha casa. Fiquei especialmente preocupada com minha irmã menor, pois cuidava dela desde que nasceu e foi muito difícil deixar de levá-la para escola, ensinar os deveres, brincar... Meus pais fizeram muita falta. Precisei muito de minha mãe para falar sobre o trabalho, os novos amigos, os novos problemas. Precisei de todos para conversar sobre tudo. A nova cidade tinha novos comportamentos e me exigia novas posturas, que eu não sabia se estava preparada para assumir. Iniciaram as aulas em agosto e o primeiro dia foi de muitas e contraditórias emoções, foi a alegria de estar finalmente dentro da Faculdade de Letras da UFMG. Durante as aulas, foi crescendo o medo que eu tinha desde quando passei no vestibular: de não dar conta intelectualmente de prosseguir os estudos. A primeira aula foi de literatura e a maioria dos autores que o professor e meus colegas comentavam, eu não havia lido. Tive certeza de que aquilo não era pra mim e a sensação melhorou um pouco quando uma outra colega me disse que estava se sentindo da mesma maneira. Foi bom saber que eu não era “o único peixinho fora d’água”. Mas, no decorrer da semana, a tristeza aumentou, pois não teria tempo para estudar tudo o que me era exigido. Saia do trabalho direto para faculdade em um ônibus, normalmente, lotado que atrasava minha chegada. Às vezes, tentava estudar depois de chegar da aula, mas não conseguia e nos fins de semana, normalmente, ia para minha cidade ou passava estudando em casa. Não conseguia estudar muito porque pensava estar incomodando, afinal, todos evitavam fazer barulho para que eu estudasse e isso me incomodava bastante. Outra coisa que também preocupava era o horário de voltar para casa. Por voltar sozinha, além do risco de ficar na rua até tarde, minha tia não dormia enquanto eu não chegava. Meus pais também estavam preocupados com minha segurança e diversas vezes questionavam se eu não achava melhor voltar para casa. Eu não queria voltar! O dinheiro não dava para pagar as passagens de ônibus e gastava muito com viagens para minha cidade, visto que minha irmã sentia muita a minha falta, principalmente no início, quando fui para Belo Horizonte. Meu dinheiro quase não dava para lanches, xerox e transportes. Tive, então, que recorrer à FUMP. Eu já havia sido classificada como carente de nível 1 na Fundação, mas ainda não usufruía nenhuma das possibilidades de assistência a que tinha direito. Primeiro, porque trabalhava o dia todo e não tinha tempo, e segundo, porque ainda não havia tido uma necessidade fremente de sua intercessão. Mas o fato de eu morar tão longe e, alguns meses depois, após o início das aulas, perder o emprego, me fez solicitar uma vaga na moradia universitária. Consegui a vaga em novembro e, logo em seguida, a FUMP também me encaminhou a uma bolsa-trabalho, na qual permaneci até conhecer o Conexões de Saberes na UFMG, em fevereiro de 2005. O Projeto Conexões de Saberes foi um divisor de águas em minha vida universitária. Na universidade, eu me sentia sozinha por minha diferença de trajetória e de objetivos dentro da faculdade. A grande maioria dos meus colegas tinha uma historia de vida bem diferente da Universidade Federal de Minas Gerais 127 minha. Muitos não passaram por dificuldades financeiras ou diferenças raciais e, se passaram, tinham receio de comentar a respeito. Quando li o convite do Conexões em busca de bolsistas negros e que fossem beneficiários da FUMP, me identifiquei, obviamente, com esse perfil e, principalmente, com a proposta de diálogos entre universidade e comunidade. Meu objetivo na faculdade é buscar uma maneira de aproximar os meus conhecimentos adquiridos no ambiente acadêmico à realidade da comunidade de onde me originei e, dessa maneira, crescer acadêmica e socialmente. Não quero substituir meus saberes, quero melhorálos. Ao mesmo tempo, pretendo, dentro da academia, fazer com que os colegas entendam minha presença na universidade; não uma questão meritória exclusivamente, mas um direito conquistado e que deveria ser estendido a todos. Afinal, foi graças a toda uma mobilização – família, escola, comunidade – que consegui entrar nessa instituição. Mas entendo que, se não fosse também o engajamento nas atividades da comunidade tanto religiosa quanto escolar, provavelmente não teria a oportunidade de conhecer o caminho até a universidade federal. É interessante que o jovem pobre não precise, necessariamente, “impor sua presença” para que o ensino superior lhe seja apresentado como uma proposta de futuro. A universidade deve ser apresentada como uma possibilidade em potencial, tanto quanto o curso técnico, o concurso público ou os currículos que são deixados nas agências de empregos. No Conexões, conheci pessoas que possuem trajetórias coincidentes com a minha, isso quer dizer que não sou um caso isolado ou exótico. E, no mais, todos nós percebemos que nossa trajetória não é marcada pelo mérito, muito mais por um envolvimento e fatos reunidos que contribuíram para tomarmos a decisão por um curso superior e acreditarmos, mesmo que fracamente como eu, que era possível alcançar a Federal. Hoje sou muito orgulhosa de ser aluna da Universidade Federal de Minas Gerais e sou mais consciente de minha responsabilidade social, do quanto o fato de ser universitária mudou as perspectivas dos jovens de minha comunidade. Sei que todos eles não irão seguir carreira acadêmica, mas aqueles que a desejarem saberão que não é impossível alcançar. Meu desempenho acadêmico é satisfatório, o que quer dizer que ser de origem humilde não é ser menos capaz intelectualmente. Portanto, se não fossem os mitos em torno do curso superior, a má qualidade do ensino público e o alto valor das inscrições para o vestibular, não existiriam desculpas para todos não tentarem um curso superior público. Quem sabe algum dia essa realidade não muda. Quem sabe... Vanderlucia Aparecida da Costa 128 Caminhadas de universitários de origem popular Vida de comum “Não basta saber, é preferível saber aplicar; não é bastante querer, é preciso saber querer.” (Goethe) Acaso ou não, surge, aos 25 de janeiro de 1983, um Wallace, nome estrangeiro, mas bem brasileiro. Filho de um metalúrgico aposentado por “invalidez”, chamado Antônio Luciano, e de uma dona de casa chamada Marta. Recebi, desde o início, os cuidados mais primorosos que uma mãe pode dar a um filho. Não tínhamos muita coisa, aliás, praticamente nada, pois meus pais haviam acabado de chegar à Santa Luzia, indo morar por algum tempo com minha avó, também recém-chegada a essa cidade. Com o passar do tempo, meus pais conseguiram um lugar para morar, no qual surgiu uma construção simples, nada mais que três cômodos. O bairro era recente e sem infraestrutura, e sua ocupação se deu de forma lenta. Meu pai recebia um salário mínimo, o que o levou a fazer alguns trabalhos temporários, os chamados “bicos”, e minha mãe, para ajudá-lo, passou a trabalhar como lavadeira. Em suas atividades, ela sempre se manteve por perto, ao meu lado, sem nunca descuidar das leituras que me dava por motivo de alfabetização. Após eu terminar de ler as estórias, ela sempre me pedia para contá-las com as minhas próprias palavras e, por fim, me perguntava o que tinha entendido sobre as respectivas estórias. Embora meus pais tenham estudado somente até a 4ª série do ensino fundamental, eles possuíam em si, seja por iluminação ou razão, um forte desejo de me conduzir por um caminho diferente nessa vida. A questão dos estudos era sempre incentivada como meio de evitar que eu, no futuro, viesse a sofrer inúmeras privações como o subemprego e a fome. A educação seria um dos meios para o acesso às vantagens disponíveis àqueles que possuem uma situação socioeconômica privilegiada. Meus pais sentiram esses problemas em sua juventude e, mais ainda, quando nasci, percebendo que, se não pudessem se realizar intelectual e socialmente quando jovens, poderiam refletir em mim esse desejo contido. A minha pessoa refletida no futuro simbolizaria a vitória deles, mesmo que indiretamente, trazendo, então, um sentimento de dever cumprido, de função materna e paterna realizada em sua mais alta plenitude. Fui matriculado na Escola Estadual Senador Modestino Gonçalves, considerada uma das melhores da cidade. Nessa instituição, pude, de fato, começar a aprender a viver em sociedade e fora do círculo familiar, aliás, aprendizado infinito, devido às diversidades de idéias, personalidades, raças e culturas que se encontram no decorrer da vida. Foi a partir daí, ao entrar na escola, que passei a apreender determinados valores extrafamiliares, que, embora não soubesse devido à pouca idade, representavam a síntese do viver social. A atenção demasiadamente cortês dos funcionários a alguns colegas por serem filhos de Universidade Federal de Minas Gerais 129 pessoas “importantes” era um exemplo desse modelo social de conduta. Na realidade, o que me mantinha nas primeiras salas era apenas a minha dedicação aos estudos que se refletia em boas notas e reconhecimento dos professores. Inclusive o momento é até oportuno, pois, se existem pessoas que podem influenciar o futuro de um indivíduo, posso dizer que o meu foi também influenciado pelos professores. Do primário ao fundamental, tive três professoras que marcaram meu processo de educação devido à dedicação que tiveram comigo. Sempre se mantiveram imparciais nos momentos de conflitos com outros colegas, sem jamais privilegiar um ou outro, além de não dispensarem preocupação diante das dúvidas que tinha. Elogiavam e repreendiam didaticamente, no momento certo, não somente eu, mas todos os que compunham a sala de aula. Características essas, simples e corriqueiras, na realidade representam muito para uma criança em formação, uma vez que a mesma possui, como referência principal, apenas o professor em um ambiente coletivo estranho. Esse período foi tranqüilo, marcado pelas festas escolares ufanistas nas respectivas datas comemorativas nacionais e pelo ritmo tradicional de estudo. Porém, não posso deixar de relatar aqui uma frase proferida pela mãe de um amigo meu e que ficou marcada em minha memória: “Meu filho tem que estudar duas vezes, uma porque é preto e outra porque é pobre”. Essa frase sintetizava uma realidade e reforçava a necessidade dos estudos como um dos meios de quebrar a barreira da desigualdade socioeconômica, situações próprias desse país. Sem grandes percalços terminei a primeira etapa do ensino fundamental e o deslocamento para uma nova escola representaria um novo contexto e uma nova forma de enxergar o mundo. Fui matriculado em uma escola particular que acabara de surgir, por influência de um amigo de meu pai e com a promessa de pagamento parcial das mensalidades. Isso só foi possível pelo fato de esse amigo ser um dos donos da escola. Dessa forma, com as parcelas da mensalidade bem reduzidas, comecei uma nova saga, e digo saga não pelo simples dizer, mas pelo fato de ser dentre todos o único que não tinha pai rico. E isso começou a se refletir na compra do material escolar, em que os livros não eram em si livros, mas sim apostilas que eram renovadas a cada bimestre!!! As pessoas eram diferentes, falavam de coisas que eu pouco conhecia e relatavam acontecimentos que se encontravam fora de minha esfera de vida. Viagens, carros, computador e, quando ia à casa de alguns deles para fazer os famosos trabalhos escolares, via o quanto eram diferentes, com suas casa gigantescas e todo um estilo de vida completamente diferente do meu. Fiquei nessa escola por um ano, até chegar a data para o recebimento de matrícula em uma escola pública, a fim de conter os gastos dos estudos na escola particular. Sendo assim, em 1995 fui matriculado na Escola Estadual Professor Domingos Ornelas, um colégio grande e com um fluxo de alunos bem maior que a antiga escola. Comecei na sala 4, onde a turma apresentava grande diversidade, contendo desde alguns alunos mais novos, como eu, até alunos maiores e mais velhos. As conversas não eram sobre viagens ou computadores, mas sim sobre as pessoas de seus bairros, brigas entre grupos rivais e reclamações sobre o aumento das passagens de ônibus. Praticamente não me enturmei, me viam como um “CDF” ou seja, um inimigo mortal, um devorador de livros que deveria servir de chacota. Isso de certa forma me ajudou a vê-los com outros olhos e perceber as diferenças ali presentes e que, hoje, acredito fazerem sentido. Alguns viviam em famílias com pais separados ou cujo ambiente era repleto de brigas, não so130 Caminhadas de universitários de origem popular brando espaço para o mínimo de diálogo, o que refletia em uma auto-estima negativa ou na falta de qualquer tipo de esperança com relação ao futuro. Não levavam quase nada a sério e nem viam sentido nos estudos, queriam, na realidade, era se livrar dos muros escolares e passar o tempo jogando videogame nos estabelecimentos que proliferavam ao redor dos colégios. Quando passei para a sétima série, fui deslocado para a primeira sala, o que me mostrou um ambiente bem diferente daquele em que estava. As conversas não eram sobre brigas na rua ou sobre questões de “sobrevivência urbana”, do tipo “fica esperto senão!?!?”, mas sim sobre bandas de música, questões escolares ou familiares. Nesse local, acabei por me integrar a um grupo de alunos que possuíam características mais próximas não só economicamente, mas também ideologicamente. Éramos um pequeno grupo de quatro “Zés”, como mais tarde um professor ironicamente nos intitulou. Discutíamos acerca daquilo que observávamos, como o modelo de funcionamento da escola, suas deficiências e virtudes. Especulávamos até sobre uma possível escola ideal. Política, sociedade, alguns aspectos econômicos, enfim, tudo aquilo que acreditávamos que o Brasil ou a cidade estava fazendo de errado. Alguns assuntos referentes às aulas estendiam-se em conversas pelo corredor e, não encontrando respostas muito satisfatórias, passamos então a buscar, na biblioteca, algum livro que pudesse nos ajudar. As horas de recreio e educação física eram os momentos mais propícios para dar uma vasculhada nos livros de história, filosofia e sociologia. Constantemente éramos denunciados pelo “crime de matar aula em uma biblioteca”, vindo, mais tarde, ordens para lavrar ocorrência aos alunos que fossem pegos em ato tão abominável. Foi nessa época que tive em mãos o primeiro livro que eu li com profundo interesse: O Príncipe, de Maquiavel. Comecei também a participar de alguns grupos de teatro que se formavam na escola para posterior apresentação nos eventos que se realizavam no auditório. Em meio a essas atuações, as pessoas me perguntavam o que tanto fazia na biblioteca, me criticavam taxando-me de louco, aliás, não só eu, mas meus outros colegas também eram rotulados. Como justificativa, afirmávamos que era melhor do que ficar “voando pelo pátio da escola”, expressão que significava nada mais, nada menos, que ficar sem fazer nada, disperso e sem destino. Dentre todos os professores, apenas uma que ministrava a disciplina de Historia, cujo nome é Helena, conseguiu aflorar nos alunos um interesse pelos estudos, vindo a marcar talvez a vida de todos até a conclusão do ensino médio. Era uma pessoa democrática e aberta ao diálogo que procurava sempre contextualizar os assuntos atuais às aulas. Sempre que podia procurava sacudir a apatia dos alunos e até mesmo do restante da escola. Tanto que nessa mesma época, devido aos seus esforços, o colégio foi escolhido para fazer um documentário na Rede Minas de Televisão, fato que mobilizou a todos. Como as vagas para participação nas filmagens eram poucas, ocorreu um grande sorteio no qual fui incluído, o que me proporcionou conhecer os bastidores de uma televisão. O documentário foi sobre o movimento estudantil durante a instauração da ditadura militar, as reuniões clandestinas, as perseguições e mortes de estudantes que eram presos. Reconstituímos os ambientes universitários e as roupas da época, incorporando os personagens de corpo e alma. Aquele acontecimento reforçava ainda mais o desejo de entrar na universidade, fazendo com que eu me imaginasse em um campus, embora não conhecesse a UFMG. Universidade Federal de Minas Gerais 131 Desse acontecimento, concluí que o mundo era muito mais vasto do que o cotidiano em que vivia, que a tecnologia era díspar em relação àquela presente no colégio e que as pessoas possuíam um conhecimento e uma eloqüência que não tinha visto até então. Já na 8ª série, às vésperas de concluir o ensino fundamental, para poder então prosseguir o ensino médio no mesmo colégio, meus pais me propuseram que eu tentasse fazer as provas do CEFET e COLTEC. Isso não só me animou, pelo fato de estar desanimado com o ensino que tinha, como pôs em evidencia a grande disparidade entre o ensino que tive e o ensino necessário para ser aprovado nas respectivas instituições. Enfim, não tinha alternativa, senão tentar recuperar e construir parte do conhecimento que faltava. Fiz um curso preparatório utilizando algumas apostilas emprestadas, enquanto ainda terminava a 8ª série, porém no final acabei por ficar como excedente e tendo que continuar os estudos no mesmo colégio em que me encontrava. Estranhamente, não houve menção de entrega de diplomas e nem festa de formatura, provavelmente já estavam acostumados ao fato de os alunos sempre continuarem na mesma escola após terminar o ensino fundamental. Na realidade, não me preocupava muito com isso, aproveitei as férias como sempre fazia, ajudando meu pai nos locais em que trabalhava ou em casa, que ainda não tinha terminado de ser construída. No ensino médio, continuei com a mesma turma que havia trabalhado os anos anteriores, na realidade não havia muitas mudanças de pessoas de uma sala para outra, era um modelo um pouco rígido. Surgiam alguns alunos novos provenientes do turno da noite, mas eram muito poucos. Nessa época, poucos professores atentavam os alunos para o vestibular e aqueles que o fizessem eram surpreendidos com uma resposta simples: “Ah, o vestibular está longe” ou, então: “E se eu não quiser fazer o vestibular?” Essas palavras evidenciavam talvez uma displicência quanto ao futuro, expressa pela frase “viva o presente” ou “o que importa é o hoje”. Aliás, creio que essas frases, ditas por muitos, não possuem nenhum sentido para quem tem que lutar diariamente para sobreviver, uma vez que sempre estará pensando no futuro incerto e nebuloso, tentando criar os meios para se libertar das misérias impostas por uma minoria que mata lentamente o país e sua população. Nada mais que uma ideologia imposta, para a manutenção de uma realidade, ou seja, impedir que os “comuns” possam abrir os olhos diante da perversa realidade brasileira e lutar para uma efetiva melhoria de suas vidas. De fato, nada havia mudado, os jovens ali presentes não se importavam muito com as questões sociais, políticas e econômicas, e mesmo aqueles que sofriam diretamente as mazelas do sistema apenas se limitavam a aceitar e criar os mais diversos meios para garantir a mínima sobrevivência, embora tivessem a consciência de que era preciso mudar tal situação. Por que a apatia? Por que o desprezo pelo ensino? Por que o povo para fazer festa em fevereiro se reúne aos milhares nas ruas, pulando e dançando, mas para se manifestar contra atos ilícitos da política não consegue reunir nas ruas nem dez mil pessoas? Por que não pensar em uma justa e poderosa nação? Essas perguntas foram se construindo à medida que o tempo passava e, apesar de não encontrar respostas, acreditava que em algum lugar elas estariam mais acessíveis. Novamente, a universidade era o local mais apropriado. Nessa época, meus pais tiveram a oportunidade de fazer uma viagem para Pirapora com alguns parentes, o que me levou a conhecer um pouco as diferentes culturas de Minas Gerais. Lá pude perceber um pouco da dinâmica da região, em que o turismo é o carro chefe da economia. As pessoas possuem um estilo bem diferente e característico, ou seja, um estilo de vida centrado no artesanato, que é muito bonito, e um ritmo de vida completamente desvinculado dos valores capitalistas da cidade grande, pautado na competição e na correria por 132 Caminhadas de universitários de origem popular resultados cada vez mais expressivos. O que será que se passa na cabeça daquelas pessoas do interior? O que elas acham sobre a vida? Tão longe do aglomerado urbano com sua violência moral, psicológica e física, certamente devem ter uma esperança maior sustentada por uma fé inabalável. Retornei mais reflexivo e até mais assustado para continuar na luta do dia-a-dia. Algum tempo depois, fui convidado a participar de um grupo teatral. Aprendemos algumas técnicas de expressão procurando superar o medo e a timidez, chegando inclusive a ensaiar uma peça que seria apresentada, se não fossem por questões políticas que interferiram no andamento do que havia sido projetado. Passar de série representava mais uma incerteza do que uma alegria, uma vez que o ensino médio representava o fim de uma seqüência natural de vida para a maioria dos jovens. O ensino superior é visto por muitos como uma parte da vida cujo direito estaria somente nas mãos de poucos, um espaço restrito somente àqueles que detêm o poder. Na minha sala, apenas sete pessoas manifestaram o interesse de fazer o vestibular logo após concluir ensino médio, enquanto que os outros diziam que fariam após algum tempo, depois de conseguir um trabalho e juntar algum dinheiro. A UFMG era uma possibilidade que parecia muito distante, o marketing sobre o vestibular era gigantesco, o que provocava um certo desânimo generalizado. Por fim, me formei com um sentimento de alegria e esperança. Era como algo que preenchia um vazio, uma espécie de energia que me impulsionava ao novo. Nesse período, já travava contato com alguns amigos na minha cidade de origem – Sabará –, em que muito brevemente se iniciaria um projeto de educação musical na Sociedade Musical Santa Cecília. Como estava de férias, resolvi passar um tempo na casa de minha avó, enquanto participava do projeto, atitude muito proveitosa, pois permitiu que eu conhecesse novas visões de mundo. No tempo em que participei, quase um ano, muitos passaram pelo projeto e deixaram suas marcas. A realidade dos jovens era praticamente a mesma, sendo que encontravam na música uma forma de se expressar, de se aliviar diante de uma sociedade capitalista que cobra produtividade e, ao mesmo tempo, atribui a esse mesmo jovem o estigma de problema ambulante. A música proporcionava uma espécie de afastamento dos problemas sociais e econômicos, um momento, mesmo que pequeno, para descansar da realidade cujo futuro praticamente não se projeta mais. Pensava em ficar só três meses em Sabará, para depois voltar e estudar em um curso pré-vestibular, mas acabei fazendo o planejado na minha querida cidade. Os fatores que me levaram a isso foram até estratégicos, pois a passagem do ônibus de Sabará para Belo Horizonte é muito mais barata que a de Santa Luzia, além do tempo de viagem ser menor. O dinheiro economizado não podia ser gasto sem consciência. A escolha de um curso não é fácil. Definir uma profissão é o mesmo que definir sua mentalidade, práticas e interesses para o resto da vida. À medida que o tempo passava, tinha que intensificar os estudos, e as reuniões do projeto estavam ameaçadas pelo excesso de funções que o maestro exercia, o que muitas vezes o impossibilitava de dar aulas. Por causa disso, ficamos dois meses parados, o que colaborou para o meu retorno à Santa Luzia. Alguns meses depois acontece a primeira etapa do vestibular da UFMG, na qual prestei para o curso de Ciências Sociais. Passei para a segunda etapa, porém fiquei como excedente. Isso me lembrou a época em que realizei as provas do CEFET e COLTEC, em que também havia ficado como excedente, levando-me à indignação. Mas, tudo bem, decidi começar tudo de novo, enquanto ajudava meu pai no trabalho, de modo que o dinheiro que ganhava servia para pagar a passagem do Universidade Federal de Minas Gerais 133 ônibus. Resolvi, então, nessa nova tentativa, escolher o curso de Ciência da Informação, ciente das dificuldades das provas e com um pouco de experiência proveniente do vestibular passado. O ambiente do curso pré–vestibular me mostrou uma nova dinâmica jamais imaginada, pois ali eu via um objetivo final claro por parte de todos, cujo meio para alcançá-lo só se daria através do estudo. Esse novo modo de vida jamais seria imaginado no colégio em que estudava. Novamente, fui prestar o vestibular, conseguindo passar para a segunda etapa, cuja aprovação se deu em meio a grande alegria. Enfim, um sonho cultivado desde a infância tornou-se realidade, coroação de um longo esforço. Eis, então, que chegou o grande dia. Na recepção aos calouros, fui surpreendido por fervorosos discursos em um embate entre movimento estudantil revolucionário, DCE e próreitorias, o que me deixou um pouco desorientado. Nos meses que se seguiram, a adaptação foi difícil, a noção de espaço ficou abalada e o ritmo de vida era completamente diferente. O volume de textos para ler tornou-se imenso, sendo que a sala de xerox constantemente era visitada. A cultura universitária me era estranha e posso dizer que hoje ainda é, pois não consegui sintetizar sua essência. O racionalismo que eu imaginava não parece existir ou, pelo menos, ainda não o enxerguei. Talvez esse frenesi ideológico, imaginado na academia, seja fruto somente das sociedades indispostas consigo mesmas e pré-revolucionárias, o que não acontece no Brasil. Paira no ar, na maioria das vezes, uma certa apatia, uma aceitação dos fatos. Não consegui ver nenhum objetivo comum ser traçado em nível de sociedade, tendo a universidade como o meio que potencializará a formação de cidadãos realmente comprometidos e interessados com o futuro do país. Uma sociedade e um país não se sustentam por muito tempo sem a elaboração de um objetivo comum por parte de seus habitantes e, se a universidade é o local que formará os futuros governantes dessa nação, temo que não estejamos nos esforçando o suficiente para responder à demanda daqueles que custeiam a sobrevivência do Estado brasileiro. Talvez eu esteja sendo por demais hermético em minhas observações e tentando encontrar um cartesianismo para vida. E foi em meio a essa “paisagem mental” que surgiu a possibilidade de fazer parte do Projeto Conexões de Saberes: diálogo entre a universidade e as camadas populares. A possibilidade de alcançar as respostas para as perguntas que um dia ousei fazer está bem próxima. Não sou um gênio, nem um privilegiado, apenas procuro ajudar a construir um mundo diferente daquele que vejo e sinto. Wallace Marcelino Pereira 134 Caminhadas de universitários de origem popular Singularidades compartilhadas: aspectos de uma trajetória “Toda memória é coletiva. A memória individual afirma-se dentro dos quadros de uma memória social que se orienta por marcos (...), que estabilizam e enquadram o acontecido e o vivido.”26 A compreensão do processo que envolve a minha trajetória acadêmica é algo sobre o qual reflito já há algum tempo, especialmente a partir de um momento específico dessa trajetória – o da participação no Programa Ações Afirmativas na UFMG. Essa experiência fez com que se tornasse mais evidente, para mim, a recorrência de experiências similares às minhas nas vivências de colegas negras e negros. Alguns aspectos comuns – a origem social, os obstáculos e as formas criadas para superação dos mesmos, as expectativas em relação à universidade e o confronto com um sistema de valores muitas vezes conflitantes com os de origem, a identificação étnica e racial – me chamam especialmente a atenção. Esses elementos adquirem um sentido novo, na medida em que me vejo, assim como a meus pares, representada nos dados estatísticos que vieram à tona, nos últimos anos, no Brasil, e que dão conta da explicitação do racismo como algo imanente ao histórico de perpetuação das injustiças sociais no país27. Muito embora as distorções no processo de construção da cidadania decorrentes de uma estrutura social impregnada desde a origem por uma mentalidade segregacionista28 já sejam há muito conhecidas e denunciadas pelos movimentos sociais negros, a discussão recente do problema parece representar uma outra etapa do esforço por eliminação do racismo e de suas conseqüências para a sociedade brasileira. O elemento novo parece ser a busca por um enfrentamento político mais prático da questão, por meio, inclusive, da implementação de políticas públicas de promoção da igualdade de condições para as populações não atendidas no exercício pleno dos direitos de cidadania, pelas práticas universalistas. 26 Texto de Eliana Regina de Freitas Dutra. Inventários do cotidiano de uma “Famiglia” – histórias de vida e memória das cidades: Notas de Pesquisa. 27 As narrativas de Nicolau Sevsenco (1984) e José Murilo de Carvalho (1948) acerca da constituição da cidadania no Brasil, com o advento da República, oferecem dados relevantes para reflexão sobre a história do racismo no Brasil. 28 Sobre desigualdade racial no Brasil cf. PAIXÃO, Marcelo. Desenvolvimento humano e relações raciais, sobre racismo e racismo no Brasil; SEYFERTH, Giralda. O beneplácito da desigualdade: breve digressão sobre o racismo; HENRIQUES, Ricardo. Silêncio – o canto da desigualdade racial. Universidade Federal de Minas Gerais 135 No presente artigo, busco, a partir do resgate de experiências que marcam minha trajetória acadêmica, reconhecer e reelaborar uma memória pessoal. Esse processo envolve uma dimensão social, por meio das experiências coletivas de sociabilidade, e as inquietações que me surgem do contexto presente, no qual passo a redefinir meus horizontes no que tange ao significado da vida acadêmica na minha formação profissional e pessoal. Identidades compartilhadas – trabalho e educação Identifico-me como mulher, negra e moradora de uma das mais antigas favelas da cidade de Belo Horizonte – o Aglomerado Santa Lúcia, conhecido também como Morro do Papagaio29. Sou filha de descendentes de negros e indígenas oriundos da Região de Araçuaí, no Vale do Mucuri, Minas Gerais. Tive três irmãos homens, todos mais jovens que eu. Dois deles tornaram-se vítimas fatais de uma trajetória de rua, em que foram envolvidos, em decorrência de um contexto social marcado pela desigualdade. Dentre os meus familiares, sou a primeira pessoa a ter acesso a um curso superior, o que para alguns desses começa a ser um referencial. A maior parte de meus estudos30 foi realizada em escola pública e o horizonte de acesso a um curso superior, durante muito tempo, foi limitado não por uma “opção” minha ou da minha família, mas em função de algo que interpreto como um direito negligenciado. Dito de outra forma, casos particulares como esse remetem à dimensão de como se tem pensado a educação no Brasil, ao longo do tempo; revela as lacunas de um sistema que prescinde da criação de política pública consistente, democrática e eficaz para a educação. Somam-se a esse quadro outras condições. Eram mais prementes, talvez, as preocupações que afetavam minha família – de modo muito semelhante ao que ocorre com muitas outras famílias brasileiras, com as quais partilhamos circunstâncias socioeconômicas precárias. Para minha mãe e meu pai, apresentava-se a urgência em prover o sustento de si e dos quatro filhos, o que significava, literalmente, “trabalhar para comer”; a crescente demanda de tentar “resgatar” os filhos mais novos de uma situação de risco – o envolvimento com drogas e o afastamento paulatino e quase sem retorno da escola e de outros espaços de sociabilidade, considerados mais “saudáveis”, tais como a igreja, a catequese, grupos culturais e outros; enfim, o peso dos traumas psicológicos em que essas circunstâncias implicavam para toda a família. Diante de tudo isso, o próprio fato de que pelo menos um dos filhos permanecesse na escola já representava uma vitória. A despeito do “gosto pelo estudo”31, do fato de que a escola representasse para mim um espaço alternativo, que me proporcionava o prazer de descobrir coisas novas e úteis, no 29 A história desse que é hoje conhecido como Aglomerado Santa Lúcia, a partir de denominação do poder público, remonta, pelo menos, às primeiras décadas de existência da cidade de Belo Horizonte. Uma das moradoras mais antigas, conhecida como Dona Santa, nasceu numa das comunidades que compõe o Aglomerado, a Vila Estrela. Ela está, hoje, com 88 anos e é filha de um antigo funcionário, descendente de escravos de uma fazenda que ocupava a região que compreende, atualmente, além do Aglomerado, os bairros adjacentes do Santo Antônio, Cidade Jardim, São Bento, Santa Lúcia e São Pedro, dentre outros. O aumento populacional acentuou-se a partir das décadas de 1940 e 1950, sendo o fenômeno do êxodo rural apontado como fator preponderante da constituição do lugar, a partir de relatos de antigos moradores. Muitos vieram do interior de Minas, em função da busca por emprego e/ou da necessidade de tratamento médico. 30 Estudei em escolas estaduais durante todo o período que compreende o atual ensino fundamental. O ensino médio foi cursado em uma escola filantrópica. 136 Caminhadas de universitários de origem popular qual eu me sentia realizar, e do qual não estaria disposta a abrir mão, um curso superior só começou a tornar-se projeto em minha vida ao final do ensino médio. Lembro-me, dentre outros, do meu professor de História, André Luiz Teixeira, que se preocupava tanto em fazer despertar nos seus alunos trabalhadores perspectivas distintas daquelas que os limites sociais e econômicos impunham em relação à vida profissional e à formação humana. Foi por iniciativas dele, como a de nos ensinar a fazer um fichamento e a de apresentar textos mais complexos32, ou o seu interesse em que exercitássemos o senso crítico, que comecei a atentar para a possibilidade, ainda esmaecida, de que um curso superior fizesse parte da minha vida. Naquele momento em que acontecia também o meu envolvimento com alguns movimentos sociais, comecei a entender que isso era um direito – o direito à educação, previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos e ratificado pelo governo brasileiro na Constituição33. Nesse sentido, mesmo quando a opção de uma pessoa não for a vida acadêmica ou a formação profissional por intermédio da experiência acadêmica, cabe a ela escolher, contanto que lhe seja assegurado o suporte do direito à educação de qualidade, desde o ensino básico. E o que eu percebi que faltava em minha trajetória escolar e de vida era a possibilidade dessa escolha. Assim como para os vários colegas com quem convivi durante a maior parte de minha experiência como estudante – por mais “paradoxal” que pudesse parecer, pois, afinal, vivemos numa democracia! Outro aspecto que marcou e continua marcando esse processo de escolarização é o trabalho. Aos 11 anos, foi preciso que eu assumisse o lugar da minha mãe em seu emprego. A partir de então, até os 17 anos trabalhei como empregada doméstica, para ajudar no sustento da família. Depois disso, trabalhei como atendente na secretaria da paróquia da comunidade e também como recepcionista de um escritório político. A experiência do trabalho, a despeito das limitações que me apresentava aos estudos – especialmente em relação à necessidade da divisão do tempo entre trabalho, estudo e as outras atividades –, foi fundamental. Por meio dela é que aprendi a compreender, respeitar e a ressignificar minha história; a transformar obstáculos em oportunidades; a reconstruir identidades ao perceber afinidades e/ou incongruências dessa minha experiência com a dos outros. A indignação, por exemplo, que se constituía à medida que aumentava a percepção sobre as injustiças sociais, foi transformada em estímulo construtivo na participação em ações coletivas como as dos movimentos sociais comunitários. As circunstâncias sociais me impeliram para o trabalho “precocemente” e me podaram algumas oportunidades para minha formação escolar/acadêmica. As vivências decorrentes de tal fato fizeram com que me percebesse diante do desafio de superar esses limites e entender que esse processo não se dá de forma isolada. Os elementos que destaco nesse esforço de construção da memória de minha trajetória acadêmica cruzam-se, complementam-se e despontam nesta narrativa como reveladores ou, antes, como “testemunhos” de uma experiência coletiva. Aqui, retomo a afirmação da historiadora Eliana Dutra, apresentada na epígrafe deste texto, para analisar uma experiên31 A expressão foi utilizada por Écio Pontes, em sua dissertação de mestrado, intitulada Estratégias escolares – a insubordinação aos determinantes, para qualificar um dos aspectos do perfil dos entrevistados (Cf. p. 178). 32 Um dos textos era “Revolução de 1930 – a dominação oculta”, de Ítalo Tronca. 33 Artigo 26º Declaração Universal de Direitos Humanos: “Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução técnicaprofissional será acessível a todos, bem como a instrução superior (...)”. Universidade Federal de Minas Gerais 137 cia pessoal que se dá a conhecer, por meio do exercício da memória, como intrinsecamente matizada por processos relacionais. Percebo, então, que a construção da minha identidade implica o reconhecimento de vivências historicizadas e que, por isso, pode ser concebida como fruto de uma ação contínua que envolve apreensão do mundo por meio de ações e relações dialéticas com a sociedade. O mundo a partir do Morro As transformações mencionadas acima se deram, também, a partir de um outro tipo de experiência, que influenciou fortemente minha decisão pela vida acadêmica: a participação em movimentos sociais, a partir da percepção de que viver numa comunidade de favelas constituía algo especial em minha vida. Na adolescência, comecei a entender que ver o mundo a partir do Morro é diferente de vê-lo da perspectiva da janela de um apartamento, como aquele, situado no lado oposto ao Aglomerado Santa Lúcia, no Bairro São Bento, aonde eu ia, às vezes, acompanhando minha mãe ao trabalho. Incomodava-me o fato de que as imagens da favela emergiam para o outro, não favelado, de maneira geral, apenas sob o prisma da degradação. A história daquele lugar e de sua gente não estava registrada na memória da cidade – negligência que explicita bem como a cidade relaciona-se com a favela34. A não inclusão da memória da vida social dos habitantes dos espaços não circunscritos na planta inicial da capital mineira, nos documentos que registram a memória da cidade35, está em consonância com a tendência histórica de exclusão social desses personagens, sem os quais, paradoxalmente, a mesma capital não teria sido erguida. Os habitantes do Morro não foram tomados, na cultura política vigente em boa parte da história da cidade, como sujeitos na memória coletiva oficial. Contudo, existiram, desde sempre, sobrevivendo em condições ainda subumanas36. Há décadas, atuam na contramão da exclusão, forjando conquistas em prol da melhoria da qualidade de vida local. A história do Aglomerado Santa Lúcia, como a de quase todas as comunidades de favela da cidade, é marcada pelas iniciativas coletivas de organização social com esse objetivo. Desde aquela época, então, eu reconhecia minha história na história dessa comunidade. Ali, onde faltava “tudo” e, ao mesmo tempo, onde se construíam todas as possibilidades. Onde a solidariedade e a persistência na luta pela vida se me apresentavam como valores de referência frente à vida ameaçada pela negligência histórica. 34 Maria Auxiliadora Faria (1985) oferece um panorama do contexto em que se dá a relação da cidade de Belo Horizonte com os espaços não planejados na Planta original da capital (Cf. FARIA, M. A. Belo Horizonte: espaço urbano e dominação política...). 35 Em 2002, cento e cinco anos, após a construção de Belo Horizonte, não havia, em dois dos principais órgãos do poder municipal que tratam da memória da cidade – o Museu Histórico Abílio Barreto e o Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte –, um trabalho sistematizado em relação à memória dos bairros de periferia da cidade. O que temos encontrado são documentações esparsas, que, acreditamos, possam contribuir, juntamente com relatos e outras fontes a serem construídas junto a moradores da comunidade, para a constituição de um projeto de valorização da memória local. Esse trabalho tem sido feito por meio da parceria da comunidade com o Projeto Conexões de Saberes na UFMG. 36 Em 1995, o I.Q.V.U. (Índice de Qualidade de Vida Urbana) apontava o Santa Lúcia como o pior lugar para se viver em Belo Horizonte. O Índice considerava as demandas sociais de cada região analisada e a oferta real de equipamentos públicos. 138 Caminhadas de universitários de origem popular A partir da busca por um referencial de religiosidade – na Igreja Católica local –, tive acesso aos vários grupos do movimento social comunitário. No Aglomerado, a Igreja desempenha, de modo peculiar – talvez pela característica de ser constituída por forte participação da comunidade –, um papel “catalisador” fundamental na atuação social. Isso é atestado, por exemplo, por meio das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, com forte atuação nas décadas de 1970 e 1980, que se caracterizavam como movimentos internos da Igreja. Também pela experiência de participação da Paróquia na Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da comunidade, criada, em parceria com outros grupos locais, em 1995, e em diversas iniciativas similares. A participação na constituição e no funcionamento da Comissão de Direitos Humanos deu-se em decorrência da minha atuação nas pastorais da Paróquia Nossa Senhora do Morro e expandiu-me os horizontes. A discussão dos Direitos Humanos a partir da perspectiva da cultura e da discussão sobre racismo e identidade racial foi fundamental para minhas escolhas futuras. Hoje, trabalho com um grupo de teatro da comunidade – o Grupo do Beco –, como produtora cultural, porque acredito no poder de transformação social que esse trabalho apresenta37. Considero impossível pensar a sociedade e agir sem ter em conta a relevância da dinâmica das relações raciais no Brasil no processo de construção da cidadania. A presença e o contato com algumas pessoas, parceiras e parceiros nessas lutas, têm sido, desde então, extremamente significativas: Sílvia Lorenso, Márcia Maria, D. Miltes, Hamilton Borges, os jovens Nilo e Curumim, Pe. Mauro Luiz, Pe. Enrique Porta, Marilda, D. Divina, D. Santa, Nil César, minha mãe – pela disponibilidade em aprender com a vida e as pessoas... Todas elas e, de forma abrangente, o conjunto daquela comunidade me ensinam a ler o mundo e as relações entre saberes de forma muito específica. Carrego comigo, por assim dizer, todo esse referencial. Da mesma forma, as procissões, as passeatas, os “Encontros da Juventude Negra e Favelada”, o movimento “Morroarte”, o samba, o rap e o chorinho, que reunia no extinto “Bar do Adão”, na Vila Estrela, a turma boêmia do Sr. Nozinho, da D. Ninica, D. Maria e tantos outros e outras; a seresta que me acompanhava pelo caminho desde a Rua Sertaneja, na Barragem; a Casa da Fazendinha e a presença particularmente emocionante de sua moradora, D. Izabel; a construção da Praça de Esportes da Barragem; as conversas com D. Miltes, Sílvia; a fala estimulante do Zé Pedro, sobre as batalhas por melhorias na comunidade, nas décadas de 1960 e 1970; todas as crianças que nasceram e todas as que morreram.... O valor da vida! O destemor com que a juventude dos anos 1990 enfrentava o abuso de autoridade da polícia e a força da crença na defesa do direito a uma vida com qualidade e respeito. Toda a nostalgia dos bailes do Zé Pedro e do Zacarias, os quais nunca freqüentei, mas que me lembram meu irmão e tantos outros jovens que se maravilhavam com a música black soul que embalava tantas experiências... As gincanas, os encontros dos grupos de jovens; as velas que iluminavam as noites de procissão e os velórios; as bandeirinhas brancas da Caminhada pela Paz e as placas que iluminavam a esperança de tanta gente: “PAZ”. 37 O principal trabalho do Grupo do Beco é uma montagem baseada na vida das mulheres moradoras do Morro do Papagaio, denominada “Bendita a voz entre as mulheres”. A escolha do tema deu-se em função da compreensão acerca da relevância das mulheres na vida das comunidades de favela. Buscouse produzir, a partir do olhar dessas mulheres, um espetáculo teatral concebido como instrumento de fomento a uma visibilidade diferente, positiva, do Morro. Universidade Federal de Minas Gerais 139 O conflito faz parte, mas é como se disséssemos de nossa incansável resistência à banalização da morte e da vida. A festa... A quadrilha, os fogos, as Guardas de Congado, encontros culturais diversos, o teatro do Grupo do Beco, que se institui como uma experiência ímpar na cidade, buscando transformar, por meio da arte, as relações entre a cidade e a favela... As vivências produzidas pelo Beco sedimentam um modo distinto de interpretar o “real”. Mais que objetos de estudo, são elementos que fazem parte da história e da vida de pessoas, reunidas em uma coletividade heterogênea e fascinante. A opção pelo curso de História foi orientada, em grande medida, por essa experiência. Na ocasião, meu entendimento era o de que a História seria um instrumento de ampliação das possibilidades de “promoção” social, por tratar-se de um curso na área das ciências humanas e pela especificidade de poder ajudar a interpretar a realidade por meio do estudo das mudanças, das singularidades das ações humanas no tempo e no espaço; também pela contribuição dessa disciplina para a abordagem da memória. Esse aspecto, especialmente, me chamava a atenção pela relação memória–história–identidade. Assim, eu via uma possibilidade concreta de vincular a experiência comunitária e o curso escolhido. Concluí o ensino médio, em 1997, na Escola Marista, instituição filantrópica que funcionava na estrutura do Colégio Marista Dom Silvério de Belo Horizonte. Ao fim dessa etapa, recebi, junto com dois outros alunos da escola, uma bolsa parcial de estudos no Pré-Universitário Marista, por meio da qual estudei mais um ano, prestei vestibular para a UFMG e passei. A expectativa em relação ao ingresso na universidade não envolveu tanta ansiedade porque eu compreendia aquilo como mais uma etapa de experiência, tão importante quanto os outros processos que vivenciara até então e que não se desprendiam das minhas práticas, a despeito da necessidade, logo apresentada, de adequação a um processo novo que me exigiria, novamente, conciliar tempo, trabalho e adaptação a uma rede de “códigos” que até então não faziam parte das minhas experiências. Do outro lado do Morro Ao ingressar na UFMG, me vi diante de um grande desafio: o de permanecer no curso e fazê-lo com competência, o que significava dar conta de cuidar da minha formação profissional de forma competente sem, contudo, dispor de todos os recursos necessários. Além disso, havia uma demanda pessoal por estabelecer um vínculo entre as atividades sociais que eu já desenvolvia e a minha trajetória acadêmica. É que o sentido, para mim, da formação acadêmica, sempre esteve inscrito na indissociabilidade desta com uma bagagem que abarca minha história, minhas referências culturais de origem, o contexto social. Acredito que os desafios e os caminhos que se podem acessar para que essa formação tenha relevância e desdobramentos na sociedade surgem dessa interlocução. Durante algum tempo, vivi o desafio de construir um projeto de formação em que aquela perspectiva de vincular a vida fora da academia e a produção no interior da universidade fosse contemplada. Esse momento apresentou, ademais, desafios que envolveram desde a busca por lidar com conflitos originados em problemas familiares – a trajetória dos meus irmãos, na qual esse direito à educação, dentre outros, havia sido podado, culminando com a morte de dois deles –, até o confronto de valores e posturas a partir do contato com um mundo distinto do meu. Comecei a perceber, efetivamente, a contradição de um espaço que se projeta público e democrático, mas do qual não par140 Caminhadas de universitários de origem popular ticipavam de forma justa todos os segmentos sociais. Vivi também, naquele momento, o dilema, partilhado com tantos outros estudantes, de querer estudar e não ter dinheiro para algo elementar como transporte... Um referencial importante para a construção de novas estratégias para a efetivação dessa opção pela formação acadêmica foi a possibilidade de discutir o tema racial por meio dos projetos, debates e cursos do Programa Ações Afirmativas. De maneira especial, ressalto a relevância do novo tipo de sociabilidade de que passei a participar – na verdade um reencontro transformado com minha identidade. Partilhar e construir experiências com outras pessoas com as quais pude me identificar têm-se constituído como oportunidade de fortalecimento de identidades e reelaboração das perspectivas acadêmicas. Mais uma vez, o horizonte é redimensionado. Ampliar a formação tornou-se o novo objetivo, sempre vinculado ao intuito inicial de fazer dialogar saberes. A perspectiva de continuidade, com a pós-graduação, passa a consolidar-se com maior clareza e força a cada experiência. A recente experiência de interlocução com o Aglomerado Santa Lúcia, por meio do Projeto Conexões de Saberes na UFMG, tem sido fundamental para que novos projetos, referenciados naquele intuito inicial e sempre presente nessa trajetória de interação entre as experiências comunitária e acadêmica, sejam mais bem delineados. Mas essa é uma outra parte da história... Referências bibliográficas CAPELATO, Maria Helena Rolim; DUTRA, Eliana Regina de Freitas. Representação política: o reconhecimento de um conceito na historiografia brasileira. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; MALERBA, Jurandir. Representações: contribuições a um debate transdisciplinar. Campinas/SP: Papirus, 2000 (Col. “Textos do Tempo”). BRASIL. Constituição da Republica Federativa do Brasil, 1988. Brasília: c1989. CARVALHO, José Murilo de. A Primeira República. In: Pontos e bordados – escritos de história e política. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998 (p. 87-153). _____. Entre a liberdade dos antigos e a dos modernos. In: Pontos e bordados – escritos de história e política. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998 (p. 83-106). DECLARAÇÃO universal dos direitos humanos. 2. ed. Piracicaba: Ed. UNIMEP, 2001. DUTRA, Eliana Regina de Freitas. Inventários do cotidiano de uma “Famiglia” – histórias de vida e memória das cidades: Notas de Pesquisa. Varia História, Belo Horizonte, n. 20 Mar/99, p. 37-44. FARIA, Maria Auxiliadora. Belo Horizonte: espaço urbano e dominação política (uma abordagem histórica). Revista do Departamento de História da UFMG. Belo Horizonte – Novembro/1985. GERÊNCIA DE PATRIMÔNIO – Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. “Casarão da Barragem Santa Lúcia” – Processo de Tombamento n. 01 004 713 96.49 HENRIQUES, Ricardo. Silêncio – o canto da desigualdade racial. In: Org. Ashoka Empreendedores Sociais e Takano Cidadania. Racismos Contemporâneos. Col. Valores e Atitudes. Rio de Janeiro: Takano Ed., 2003. Universidade Federal de Minas Gerais 141 I.Q.V.U/BH – Índice de Qualidade de Vida Urbana de Belo Horizonte – www.pbh.gov.br. PAIXÃO, Marcelo J. P. . Rio de Janeiro: DP&A Editora/LPP-UERJ, 2003. PONTES, Écio Antônio. Trajetórias e estratégias escolares dos universitários de camadas populares. Dissertação FAE. Belo Horizonte: Faculdade de Educação da UFMG, 1993. SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina – mentes insanas em corpos rebeldes. Ed. Brasiliense, São Paulo: 1984. SEYFERTH, Giralda. O beneplácito da desigualdade: breve digressão sobre racismo. In: Racismo no Brasil. São Paulo: Editora Peirópolis/ABONG, 2002. Josemeire Alves Pereira 142 Caminhadas de universitários de origem popular Encontro Nacional Conexões de Saberes (2005). Recife, PE. Foto: Rodrigo Ednílson de Jesus Posfácio Ao longo da leitura deste livro, viajamos por vidas, angústias, superações, aprendizagens e sonhos. Pudemos ver, em cada história, o protagonismo de jovens negros e negras de origem popular e um pouco de sua luta cotidiana para superar barreiras socioeconômicas e raciais. Vimos relatos de diferentes formas para acessar o direito de estudar em uma universidade pública de qualidade, como a Universidade Federal de Minas Gerais. Também encontramos, nas narrativas, um pouco das dificuldades diárias enfrentadas por estes/as estudantes para se manter em uma universidade orientada por uma pretensa igualdade, mas que enxerga de forma turva a realidade de seus alunos, invisibilizando-os. A garantia de permanência nesse espaço tão almejado e pelo qual tanto lutaram se fez, como nos mostram as narrativas, com muita coragem, dedicação, trabalho e com a adoção de diferentes estratégias, tais como a mobilização de familiares, amigos, professores e parentes, entre outros. Além dessas estratégias, percebemos, em alguns desses depoimentos, a importância de organismos de assistência estudantil, como a FUMP/UFMG – Fundação Mendes Pimentel, parceira do projeto. A orientação da elaboração das trajetórias de vida e escolarização e o convívio cotidiano com os protagonistas dessas mesmas trajetórias no interior do projeto Conexões de Saberes têm possibilitado melhor compreensão das especificidades, demandas e expectativas de jovens estudantes de origem popular, que, contrariando todas as expectativas, conseguiram garantir uma vaga na UFMG. Participando do projeto Conexões de Saberes na UFMG: diálogo entre a universidade e as comunidades populares, estes jovens estudantes oriundos de espaços populares, auto declarados pretos e pardos, com histórico de participação em movimentos populares e classificados como estudantes de baixa-condição socioeconômica pela Fundação de Assistência Estudantil da UFMG, configuram o perfil de público do projeto. Desde o inicio das atividades do projeto, em contraposição à insistência estereotipante da classificação negativa, socialmente imposta, os bolsistas apontavam as positividades de sua condição. A atuação junto a movimentos sociais em suas comunidades, em poucos casos, tinha um caráter assistencialista. A motivação predominante estava ancorada no anseio de modificar as comunidades em que viviam, algumas delas vistas, por eles e/ou pelos outros, como violentas e sem perspectiva. No processo formativo desenvolvido no interior do Conexões, estimulamos um intenso debate acerca de formas de atuação social. Em detrimento de uma intervenção assistencialista, que tende a reforçar a representação inferiorizada dos sujeitos que “sofrem” a ação, construímos, juntos, possibilidades de uma interlocução com as comunidades populares, primando pelo diálogo e por formas de construção conjunta do processo. Para além disso, debatemos vários textos que discutiam políticas de reconhecimento e afirmação da identidade negra e outros que discutiam políticas públicas e protagonismo juvenil. Universidade Federal de Minas Gerais 145 Tal formação tem um impacto grande na construção gradativa do respeito e da forma parceira para se relacionar com as comunidades, bem como a percepção e responsabilidade de ser participante nessa trajetória de luta, gerando uma concepção de trabalho focada no respeito aos vários saberes do mundo social. O auto-reconhecimento da identidade negra e de origem popular trouxe à tona, para boa parte dos bolsistas do projeto, algumas questões que antes não estavam colocadas: as reflexões acerca do significado de ser um(a) estudante negro(a), de origem popular, dentro de uma universidade pública brasileira, a percepção da existência de trajetórias similares e a possibilidade de se aliançar a esses estudantes. A formação desenvolvida no interior do grupo, como descrita em alguns depoimentos, é entendida como positiva e, segundo a maioria dos bolsistas, auxilia na reelaboração de conhecimentos. Muitos jovens tornaram-se referência, dentro e fora das salas de aulas, no que se refere a assuntos e discussões emergentes no campo acadêmico: relações raciais, democratização do ensino superior, Ações Afirmativas etc. Segundo uma das bolsistas, esse é um ponto extremamente positivo, na medida em que possibilita um apronfudamento teórico sobre os assuntos, aumentando sua auto-estima e confiança dentro de sala de aula, ao mesmo tempo em que a leva a pensar sobre sua identidade étnico-racial. Por outro lado, nos informa que esse referencial também pode criar dificuldades e marcas, especialmente dentro da sala de aula, na medida em que os bolsistas às vezes são rotulados como especialistas naquela temática, e somente naquela. Esse processo de descoberta, criação e re-criação identitária se dá de forma coletiva. Assim, as semelhanças e, também, as diferenças possibilitam a criação de um referencial dentro do projeto e entre os envolvidos. De forma geral, o processo formativo adotado no interior do projeto tem oportunizado colocar em prática aquilo que se aprende nos respectivos cursos. O contato com outras áreas de conhecimento, principalmente quando os assuntos são abordados de forma a garantir a explicitação de vários olhares sobre a questão, o trabalho em grupo e a organização do tempo, os tem auxiliado também dentro de sala de aula. Falar em público, lidar com tensões e diferenças de opiniões e orientações e a escrita de textos acadêmicos têm se tornado tarefas menos traumáticas, segundo os bolsistas. Outro elemento fundamental na formação dos estudantes foi à viagem a Recife, em outubro de 2005, para participar do I Seminário Nacional do Projeto Conexões de Saberes, oito meses após o inicio em Minas Gerais. Essa participação representou, segundo os próprios bolsistas, um marco fundamental no projeto. Para muitos, a primeira viagem interestadual e, com importância fundamental para os mineiros, o primeiro encontro com o mar. As repercussões da viagem, tanto na vida pessoal quanto no desenvolvimento do projeto, foram pontos recorrentes durante a avaliação de final de semestre do Projeto Conexões na UFMG, ocorrida no mês de dezembro de 2005. Muitos bolsistas explicitaram a importância do contato e da percepção das diferenças regionais, a possibilidade de troca com estudantes de outros estados, elemento que têm nos ajudado a construir a dimensão e importância de um projeto como este. A interação intensiva, possibilitada pelas trinta e seis horas de viagem compartilhadas de Belo Horizonte a Recife, potencializou aproximações, descobertas, construções e desconstruções de imagens. As repercussões da viagem ajudaram a tornar cada vez mais claro, tanto para os bolsistas quanto para a coordenação, que os momentos de formação, de discussões e de reuniões não 146 Caminhadas de universitários de origem popular são suficientes para alcançarmos as conexões que sempre tivemos como princípio. As interlocuções que temos desenvolvido, junto às comunidade, com movimentos sociais e grupos populares são momentos educativos de fundamental importância. Durante o processo, reflexões acerca dos elevados custos das atividades acadêmicas, do investimento financeiro e do dispêndio de tempo por parte dos estudantes, sobretudo daqueles matriculados em cursos integrais, têm sido constantes. Para aqueles estudantes de origem popular, conciliar os estudos com o trabalho é quase sempre um imperativo. As famílias, em especial as mães, parecem desempenhar papel fundamental no auxílio a essa trajetória, realizando, às vezes, esforços incompatíveis com sua situação socioeconômica. Nem sempre é suficiente. A dedicação efetiva aos respectivos cursos, conjugada com as atividades desenvolvidas no Projeto Conexões e, muitas vezes, somada com outras fontes de renda complementar (empregos temporários em sua maioria), torna ainda mais laboriosa a trajetória desses jovens. O resultado desse arranjo complexo acaba expressando uma contradição: os jovens que, inicialmente, foram selecionados em função de sua história de envolvimento com movimentos sociais acabam, gradativamente, afastando-se dessa atuação de origem. Além das dificuldades financeiras, relacionadas à manutenção bem-sucedida em um curso da UFMG, que de forma paliativa tem sido minorada pelo recebimento da bolsa de extensão, o tempo de dedicação e conciliação de estudos e atividades tem se destacado como um dos grandes entraves do pleno desenvolvimento das atividades. Acreditamos, enfim, que a divulgação dessas trajetórias, com todas as dificuldades que expressam e, sobretudo, com as várias formas de superação dos obstáculos, pode ajudar a universidade a se conhecer melhor e a utilizar esse conhecimento para pensar e construir-se como uma nova universidade, que seja capaz de mostrar que, para além do aluno padrão, existem pessoas que buscam na universidade novas possibilidades de inclusão e participação nas mudanças essenciais que transformarão o mundo em um lugar melhor. Luiz Carlos Felizardo Junior Rodrigo Ednilson de Jesus Belo Horizonte, verão de 2006 Universidade Federal de Minas Gerais 147