“Amores Transtornados- Mulheres Que Matam.” Daniela Escobari Este trabalho que aqui apresento está ainda se constituindo e parte da minha experiência clínica em escutar pacientes que passaram pela perda de um objeto de amor. Ouvi pacientes nas duas posições: a de mulheres que perderam seus maridos e a de filhos destas mulheres que testemunharam e viveram as conseqüências destas perdas. Decidi optar por este viés de escuta porque penso que a forma como o processo de luto pela perda do objeto é realizada, ou não, por uma geração, não é sem conseqüência para a outra. O que observei na clínica e que aqui tentarei descrever é o que chamei de assassinato do corpo do morto. Uma forma de matar o morto, ou matar um corpo que não está mais lá, de modo a não deixar nenhum resíduo significante do objeto amado. Adianto que em minha experiência pude notar que o sujeito que perde seu cônjuge e quer matar o morto oferece ao clínico maior dificuldade no tratamento, uma vez que está sob a égide de um mecanismo denegatório. Já o filho, testemunha, mas também assujeitado às conseqüências desta perda, parece apresentar maiores possibilidades de reconstruir o assassinato. Não se ouvia mais o violão. Desde a morte de seu marido Afonso, Clotilde não cantava mais. Casou, mudou e não deixou endereço como dizem. Levou os filhos para a Bahia e com seu novo marido quis recomeçar a vida. Os filhos eram descritos como constante fonte de problema. A maternidade era descrita como uma loteria, na qual não tinha sido sorteada, apesar de descrever-se como excelente mãe. Apesar de reconhecer o forte temperamento do novo marido, sentia-se 1 impotente diante dos freqüentes confrontos entre seus filhos e o mesmo. Durante as brigas Clotilde pensava em como tinha tido sorte em encontrar um homem que quisesse ser padrasto e substituir o pai morto dos meninos. No entanto, apesar dos esforços, os filhos continuavam a apresentar problemas e acabavam por perturbar a harmonia familiar. O menino, na adolescência bebia muito e passou a usar muitas drogas. Neste sentido, na opinião da mãe, foi até melhor que não tenha casado, estudado e ficado morando com a mãe e o padrasto. Afinal, o filho era um bebê que não saberia cuidar-se por aí. A outra menina também se drogou, parou de estudar e marcou todo seu corpo com tatuagens. Nunca casou. Que marcas eram essas que queria instituir em seu corpo? A mais velha, minha paciente, era a mais arredia no discurso da mãe. O padrasto que os chamava de burros e oligofrênicos recebia por parte desta intensas reações, fosse para defender os irmãos, a mãe ou a si mesma. Nas discussões por que a mãe nunca intercedia pelos filhos? Contra o que de fato o padrasto estava brigando? A convivência piorou muito quando a filha começou a fazer análise. A filha em análise casou, estudou e teve filhos. É através da reconstrução feita por minha paciente, durante os seus muitos anos de análise que tento contar esta estória. Nas sessões, a paciente consegue com muita dificuldade construir a memória do pai falecido, para somente então dar-se conta de que eram exatamente as insígnias do pai nela existentes que eram o núcleo de suas desavenças com a mãe. Falo aqui de um longo período em que esta paciente sai da análise praticamente como uma sobrevivente, do ponto de vista psíquico, muitas vezes oscilando entre ocupar o lugar de louca, oligofrênica que a ela e aos irmãos eram outorgados. 2 A difícil simbolização do pai morto foi agravada em grande parte, durante a análise vim a saber, pelo fato de que Afonso raramente era mencionado após a sua morte. O papel da análise foi o de possibilitar esta filiação. A paciente pôde construir em análise o forte laço com a figura paterna e reconhecer em si os traços que ela herdara, até mais que seus irmãos (em função da sua posição de filha mais velha e mulher). É importante ressaltar que todas as memórias ligadas a Afonso foram recalcadas nesta família: os parentes do lado paterno foram cortados; não havia nenhuma foto de Afonso na casa, seu nome não era mencionado e no lugar do pai surge outro homem, que entra na dinâmica familiar disputando o lugar de mais um filho. Ao honrar o pai através de conquistas fálicas, a paciente indispunha-se ainda mais com a mãe. No entanto, a paciente ao desenterrar as relíquias do pai dentro de si mostrava que Afonso havia existido e que ainda existia dentro dela. Aqui fica claro que a dor de Clotilde é incomensurável. Ao perder o seu amor ela calouse e não pôde mais ser musica. Nem ela, nem ninguém. Sem Afonso o mundo inteiro deveria calar-se. Ao cessar a música para a mãe, a dança da maternidade com os filhos se interrompe. O lugar dos filhos, minha paciente inclusa, fica sendo a tumba, junto com o pai. A criança que sobra da relação anterior é muitas vezes insuportável para quem sobrevive. No caso clínico descrito, me pergunto: como não haver anuência do padrasto neste assassinato se o apagamento do passado pode ser interpretado como uma oferta de amor, na lógica de, se o morto não existe, nunca existiu e nem os seus frutos, aqui somos somente eu e você? Assim, a função paterna que poderia se constituir a partir do deslizamento do significante pai acaba por não se concretizar. Diana Corso escreveu 3 sobre o famoso casal Nardone em que o pai e a madrasta são acusados de matar a filha. Ela nos lembra que para alguns casais, o filho é um zumbi, um morto-vivo que ameaça devorar sua fantasia de começar de novo, de zerar a vida num novo idílio com outra mulher, ou corrói sua pretensa liberdade pelo simples fato de existir. Aqui recorro à tragédia grega de Medéia apresentada por Eurípedes e escrita em 431 a.C. Na peça ela diz: “ó malditos filhos de hedionda mãe, pereçam com o pai e desapareça toda a casa” (p. 112). Aqui podemos observar a partir de Medéia, este movimento que chamo de assassinar o morto, uma vez que ao assassinar os filhos ela tenta se desfazer de qualquer traço significante que o morto tenha deixado. Ainda, ao matar os filhos, Medéia resolve que Jasão não ficaria com a completude que provavelmente lhe atribuía. Neste sentido, Medéia não pôde renunciar ser A Rainha, ou quem sabe A Mulher, como nos diria Lacan. Cito uma outra frase de Medéia: Meu grande pecado, eu o cometi no dia em que deixei a casa paterna, confiando nas palavras de um grego... Sim, Medéia abandona sua pátria, mata seu irmão e se torna uma estrangeira. Como não aludirmos à ilusória noção moderna de o sujeito poder se reinventar, refazer-se do zero, começar de novo? Entre parênteses comento que este movimento se articula a um estudo prévio que realizei acerca de pessoas que saíram de seus países em alguns casos de modo a manter a imagem narcísica uma vez constituída e a qual não queriam perder. Medéia oferece-se assim destituída de qualquer traço paterno ou herança de sua vida prévia. Neste sentido, estaria a tragédia metaforizando a condição feminina de ausência de significantes que dêem conta da existência da mulher, ou dito de outra forma, estaria Medéia ofertando a si mesma em sua falta-a-ser para ser completada pelo e através do 4 amor? Será por isso que Medéia se auto-entitula hedionda mãe? É possível que ao chamar-se de hedionda, Medéia esteja referindo-se ao despedaçamento do seu ser experienciado pela perda do amor. Neste sentido, esta saída psíquica estaria bastante em linha com o que nos diz Lacan: “nas concessões que faz a um homem a mulher cede em seu corpo, sua alma e em seus bens”. De qualquer forma, a heroína da tragédia já inicia sua vida com Jasão pelo viés de uma reinvenção de si mesma, em condição de absoluto empobrecimento. Ele é tudo para ela. O amor bastou a Medéia, mas não a Jasão. Ele foi leal não a ela, mas a objetos que iam para além de seu acordo amoroso. Inclusive, para os gregos a verdadeira norma da cultura é a da polis. O que confirma o que Freud dizia de que as mulheres estavam menos aptas para o mundo social. Sabemos também que o dito instinto materno não é intrínseco a mulher. Um exemplo disto é a constatação feita pela Associação Americana Antropológica de que mais de 200 crianças são mortas por ano nos Estados Unidos e que três a cada cinco são executadas pelos seus próprios pais e de que 49 das mulheres sentenciadas a morte 11 delas mataram os próprios filhos. O caso clínico e a peça de Medéia vão de encontro ao que desde Lacan nos foi enunciado: que estamos lidando com a posição do sujeito em relação ao significante maternidade. Ainda, sabemos com a psicanálise que a castração do ponto de vista simbólico trata de uma lei ética, o que significa que um símbolo na cadeia pode ser substituído por outro. A castração simbólica interdita o incesto e por isso possibilita 5 uma série de outras coisas. O objeto amado neste caso não precisaria ser absoluto, aquele que vem tamponar a falta. No entanto, como o objeto, sob a égide da demanda é um emblema fálico, uma extensão, um apêndice do corpo, ao ocorrer uma perda, esta adquire características de falta no corpo: o pênis, os dentes, o marido, o filho. Quando esta falha simbólica ocorre, a mãe é somente imaginária e o filho um pedaço de seu corpo, portanto, não há mais mãe. São significantes na cultura que ao não serem respeitados, sustentados, mandam o ser humano de volta ao mundo natural. O amor aqui sob o signo da demanda, exige completude e, portanto gozo. Medéia ao abandonar seu passado e abraçar outro junto a Jasão é como se dissesse: eu dei minha vida por este homem! O mesmo pode ser lido em casos clínicos em que o signo para algumas mulheres pode ser o de ser a mulher de um homem. Nesta equação aquele que dá tudo por amor pode cobrar tudo por amor. Inclusive a vida. Na cultura, exemplos não faltam e estampam as páginas de jornais. Desde os exemplos anônimos aos mais ilustres como o caso Doca Street, Pimenta, Anna Karenina. Aqui matar, matarse, matar os filhos se equivalem no objetivo de causar a dor, acusar, se vingar do outro, eliminar o outro que deixou um buraco, uma falta não simbolizada. Em seu livro Maneiras trágicas de matar uma mulher, Nicole Loraux, nos fala sobre o imaginário na Grécia antiga, onde a protagonista da tragédia As Suplicantes, de Eurípides, Evadne, se lança à pira onde foi queimado seu marido Canapeu, para com ele morrer. Evadne diz: “misturarei meu corpo ao de meu marido na chama ardente, repousando unida a ele, carne contra carne”. Em alguns casos, a perda do amor e o conseqüente assassinato do corpo do morto, podemos pensar, seria a forma de evitar uma outra morte- A morte da criança 6 maravilhosa enunciada por Serge Leclaire. Ele diz: “a criança maravilhosa é antes de tudo a nostalgia do olhar materno que a converteu no esplendor extremo, majestoso como o menino Jesus, luz e jóia que brilha com poder absoluto”. Ao assassinar o morto, Clotilde evita matar a Clotilde-de-Afonso, a única que pode existir. No entanto, ao não aceitar que algo precisa morrer, outra morte se anuncia: a de qualquer desejo, vida ou criação. Para encerrar gostaria de propor retornarmos a mais um mito, este fundamental para a psicanálise, o de Édipo, para insistir na questão deste assassinato, que talvez consista no assassinato de uma rede simbólica que permitiria o sujeito sua inscrição numa genealogia. Para tal, gostaria de lembrar que Jocasta se enforcou quando Édipo descobriu o segredo sobre sua própria origem, segredo este que era a própria maternidade dela. Freud se referiu a Jocasta como a Mãe- esposa atingida pela cegueira, ou poderíamos dizer aqui, que Jocasta é a mãe da denegação; aquela que não quer saber. Em As Erínias de uma mãe, Conrad Stein se pergunta: “Como Jocasta não pôde reconhecer as cicatrizes nos pés feridos de Édipo? Irreconhecimento de signos que deveriam ter saltado aos olhos... a ignorância atribuída a esta mulher se nos apresenta com máscara do seu poder de não se render ä evidencia”. Penso que não reconhecendo os pés feridos de Édipo, Jocasta evita ter que reconhecer a cumplicidade ao marido na tentativa de assassinar o próprio filho quando bebê. É como se a tragédia nos informasse incessantemente o que assistimos cotidianamente na clínica: de que um certo assassinato dos filhos se faz necessário para que a união entre um homem e uma mulher possa acontecer. 7 Stein nos diz ainda: “Por hoje, eu não saberia lhes dizer por que a incapacidade de reconhecimento, a cegueira por um lado, e o fato de estar em poder de Erínias, por outro, se apresentam de modo quase equivalente como duas representações do ódio”. (p.45). O que Freud vai formular como a sombra do objeto caiu sobre o ego, Stein irá acrescentar que não se trata somente de uma depreciação, mas do ódio em si: “o ódio de uma mãe caiu sobre mim, de onde resulta que eu me odeio, como que um irreconhecimento da imagem perseguidora perversa que trazemos em nós”. Ferenczi nos diz em A criança mal acolhida e sua pulsão de morte, que a inscrição da criança no desejo de um outro é crucial para a constituição do narcisismo primário que protege a criança da “tendência para a autodestruição” (p.48). Aqui, então, se me for possível aproximar a figura de Jocasta muito mais ao papel de A mulher, Medéia, ou da mãe neste caso clínico como a amante passional, pergunto: Como proteger-se do filicídio se é justamente a inscrição no narcisismo materno de uma mãe que impede o filho da autodestruição? Talvez a trajetória edípica de cada um de nós possa contar um pouco o fim desta estória. 8 Bibliografia EURÍPEDES. Medéia. In: Medéia. Hipólito. As Troianas. Tradução de Mario da Gama Kury. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor, 1991. FERENCZI, S.(1929) A criança mal acolhida e sua pulsão de morte. In Obras Completas Vol. IV. São Paulo: Martins Fontes, 1992 LACAN, J. Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993 LECLAIRE, S. Mata-se uma criança: um estudo sobre o narcisismo primário e a pulsão de morte. Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1977. STEIN, C. (1988) As Erínias de uma mãe. Ensaio sobre o ódio, SP: Escuta. LORAUX, N. Maneiras trágicas de matar uma mulher, tradução Mario da Gama Cury, Jorge Zahar Editor, 1985, Rio de Janeiro. CORSO, D. http://wp.clicrbs.com.br/terradonunca/ AMERICAN ANTHROPOLOGICAL ASSOCIATION http://aaanet.org/ 9