CONCEITOS CIENTÍFICOS EM DESTAQUE
Fundamentos e Aplicação da Flotação como
Técnica de Separação de Misturas
Luciana Massi, Sandro Rogério de Sousa, Cecília Laluce e Miguel Jafelicci Junior
Flotação é uma técnica de separação que envolve conceitos de química de superfícies, mas que pode ser
abordada de forma clara e simples por professores de Ensino Médio, fugindo das concepções errôneas sobre
o processo presente na maioria dos materiais didáticos. Este artigo tem como objetivo servir de suporte aos
professores interessados em ilustrar suas aulas de separações de misturas com uma técnica extremamente
eficiente, que trabalha diversos conceitos de química e biologia, e tem ampla aplicação em processos industriais
que permeiam o nosso cotidiano.
separação de misturas, flotação, aplicação da flotação
Recebido em 27/11/06, aceito em 19/9/07
20
A
flotação é uma técnica de
separação de misturas que
consiste na introdução de
bolhas de ar a uma suspensão de
partículas. Com isso, verifica-se que
as partículas aderem às bolhas, formando uma espuma que pode ser
removida da solução e separando
seus componentes de maneira efetiva. O importante nesse processo
é que ele representa exatamente o
inverso daquele que deveria ocorrer
espontaneamente: a sedimentação
das partículas. A ocorrência do fenômeno se deve à tensão superficial
do meio de dispersão e ao ângulo
de contato formado entre as bolhas
e as partículas (DeSousa e cols.,
2003).
A tensão superficial é a responsável pela formação das bolhas e pode
ser entendida como uma espécie
de película que envolve os líquidos,
semelhante à existente na gema do
ovo. Isso explica porque, quando
viramos um copo molhado, algumas
gotas permanecem presas à sua superfície ou porque uma torneira mal
fechada consegue segurar a gota
de água até certo limite de tamanho
antes que esta caia na pia. A justificativa para esse fenômeno está no
fato de que as moléculas situadas no
interior de um líquido são, em média,
sujeitas à força de atração igual em
todas as direções, ao passo que as
moléculas situadas, por exemplo, na
superfície de separação líquido-ar,
estão submetidas à força de atração
não balanceada ou não equilibrada,
o que resulta numa força preferencial
em direção ao interior do líquido, indicada na Figura 1. O maior número
possível de moléculas se deslocará
da superfície para o interior do líquido
e a superfície tenderá a contrair-se.
Isso também explica porque gotículas de um líquido ou bolhas de gás
tendem a adquirir uma forma esférica
(Jafelicci Jr e Massi, 2007).
Figura 1: Diagrama esquemático comparando as forças de atração entre moléculas na
superfície e no interior de um líquido.
A seção “Conceitos científicos em destaque” tem por objetivo abordar, de maneira crítica e/ou inovadora, conceitos científicos de interesse dos professores de Química.
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Fundamentos e Aplicação da Flotação como Técnica de Separação de Misturas
N° 28, MAIO 2008
Ao colocarmos um líquido em
presentes no sistema, que preferem
contato com uma superfície, temos
permanecer no meio líquido em vez
que considerar duas possibilidades
de aderir à superfície da bolha de ar
de interação: o líqui(Venditti, 2004).
do se espalha bem
Para uma adesão
A aplicação na separação
na superfície (como
satisfatória,
são nede minerais é o emprego
bebida alcoólica em
cessários
ângulos
de
mais convencional da
copo de vidro) ou o
contato
de
pelo
meflotação, seguido de seu
líquido tende a se
nos 50° a 75°, enquanuso na recuperação de
manter no formato
to que, para uma boa
corantes em indústrias de
de gota (como uma
adesão às bolhas,
papel, tratamento de água
gota de chuva no
o ângulo de contato
e esgoto.
pára-brisa engordudeve ser preferencialrado de um carro).
mente superior a 90°.
Na realidade, o que observamos é
E como esse ângulo pode rapidamente
reflexo da afinidade entre as superfíser modificado por fatores, tais como
cies: aquelas que se mantém como
substâncias gordurosas na superfície
gotas de maneira a diminuir o máximo
e materiais tenso-ativos, torna-se pospossível o contato entre a água e a
sível também controlar as condições
superfície são chamadas hidrofóbipara a flotação, tendo em vista que
cas, enquanto aquelas em que obsernem sempre a partícula desejada é
vamos o espalhamento do líquido e
hidrofílica.
têm afinidade à água são chamadas
Além da natureza físico-química
hidrofílicas. O ângulo formado entre
da superfície, o tamanho da partícula
as superfícies, indicado na Figura 2,
também é fator limitante do processo,
conhecido como ângulo de contato
pois para ser arrastada, a partícula
(θ), pode ser usado como uma medideverá ter dimensões próximas das
da da hidrofobicidade/hidrofilicidade
coloidais. Colóides são sistemas
do sólido. Esse ângulo permite a
dispersos constituídos de partículas
quantificação dos vários graus de
com pelo menos uma dimensão
afinidade intermediários entre esses
entre 1 a 1000nm ou 10 a 10000mm,
dois casos extremos.
mas a base dessa classificação
No entanto, como esses parâpelo tamanho da partícula admite a
metros de superfície explicam que
simetria esférica, o que nem sempre
no processo de flotação algumas
é o caso. Partículas que têm esse
partículas aderem às bolhas de ar
tamanho em uma dimensão (forma
preferencialmente em relação a oude disco) ou em duas dimensões
tras? A explicação está no fato de
(forma de agulha), mas que são muito
que a superfície dessas partículas
maiores em outras dimensões, tamé hidrofóbica, fazendo com que a
bém se comportam como colóides.
tensão superficial da água expulse
Essa flexibilidade permite que vários
a partícula do líquido e promova a
sistemas sejam classificados como
adesão da partícula na superfície da
coloidais e possibilita o emprego da
bolha de ar. O que não ocorre com
flotação como técnica de separação
os outros componentes hidrofílicos
de misturas em vários processos
com ângulos de contato pequenos
industriais.
(a)
(b)
Figura 2: Superfícies hidrofílicas (a) apresentam ângulo de contato menores que 90°,
enquanto superfícies hidrofóbicas (b) apresentam ângulos maiores que 90°.
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Aplicação da flotação em processos
industriais
Em 1886, Carrie Everson, estudando química e metalurgia com seu
marido, por meio da experimentação,
descobriu a possibilidade da ocorrência da flotação e registrou a patente
do processo. No entanto, as patentes
mais disputadas, que envolveram
grandes somas de dinheiro (Laine,
1928), referem-se à aplicação do processo inicialmente na separação mineral e na extração do cobre a partir da
calcopirita (CuFeS2). Nesse processo,
o mineral é pulverizado e combinado
com óleo, água e detergentes. As
partículas de sulfetos esmagadas e
moídas são molhadas por óleo, mas
não por água. Então o ar é borbulhado
através da mistura; o sulfeto mineral
recoberto de óleo adere à bolha de ar
e flutua na superfície com a espuma
formada; e o resíduo não desejado,
pobre em cobre, chamado de ganga,
deposita-se na parte inferior. A remoção da espuma é bastante simples e
a separação das partículas bastante
eficiente (Atkins e Jones, 2001).
A aplicação na separação de
minerais é o emprego mais convencional da flotação, seguido de seu
uso na recuperação de corantes em
indústrias de papel, tratamento de
água e esgoto. Pesquisas recentes
ampliaram o uso da flotação em
processos tais como despoluição de
rios, separação de plástico e até mesmo separação de microrganismos.
A Figura 3 mostra o tanque de flotação por ar disperso de projetos de
purificação de água. A flotação por ar
disperso utilizado nos projetos de despoluição, como nos lagos dos parques
do Ibirapuera e da Aclimação, no município de São Paulo, e nos córregos
que abastecem esses lagos, engloba
as etapas de separação do lixo trazido
pelas chuvas; introdução de substâncias na água que reduzem a acidez
e iniciam o processo de coagulação
dos poluentes; injeção de oxigênio
por baixo do tanque que arrasta as
partículas sólidas para a superfície,
onde uma draga coleta todo o lodo
formado no processo e o encaminha
para as estações de tratamento de
esgoto (Sabesp, 2006).
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contaminantes (flotação seletiva), como
atualmente é feito para o enriquecimento
de minérios de baixos teores.
Abordagem da flotação em livros
didáticos
Figura 3: Tanque de flotação de uma estação de tratamento de água mostrando espuma
esbranquiçada na parte superior do sistema de fases e água límpida na fase inferior
após a flotação. A água purificada é coletada abaixo da espuma. (fonte- http://www.
enprotec-usa.com/html/airphotos.html)
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Figura 4: Células da levedura Sacharomyces cerevisiae aderidas à bolha de ar. (Cecília
Laluce e cols. em Walker, G.M., Yeast: physiology and biotechnology, New York: John
Wiley & Sons, 1998, p. 131)
O processo de reciclagem do
plástico PET (polietileno tereftalato)
também foi viabilizado graças ao
processo de flotação. O maior problema na reciclagem desse polímero
era não conseguir separá-lo do PVC
para reutilizar o PET já que os dois
são muitos parecidos e, muitas vezes,
ocorria a contaminação cruzada. Para
tornar possível a flotação, foi necessário o uso de um agente surfactante
que modifica a superfície do PET,
fazendo com que ele apresente mais
afinidade pela água do que o PVC.
Dessa forma, os dois materiais são
picados, lavados e colocados em
solução aquosa com o surfactante.
Em seguida, as bolhas geradas no
sistema carregam o PET, deixando
o PVC na solução (Agencia USP de
notícias, 2006; Maria e cols., 2003).
Recentemente observamos também
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o emprego do processo de flotação na
separação de microrganismos, uma vez
que a célula, pelas suas dimensões,
pode ser considerada um biocolóide.
A foto da Figura 4 mostra as células na
bolha de ar. Estudos recentes no Brasil
(DeSousa, 2007) tentam viabilizar essa
técnica para separação de leveduras
no processo de produção de álcool.
Como sabemos, esse processo envolve
a adição de leveduras aos tanques de
cevada ou caldo de cana e, atualmente,
a separação das células de leveduras
é feita nas indústrias utilizando-se
centrífugas – por meio da aplicação de
rotações muito rápidas, esses equipamentos depositam as partículas (células) no fundo do recipiente submetido
à rotação. No entanto, a aplicação da
flotação em destilarias faria com que a
levedura produtora de álcool fosse seletivamente separada dos organismos
Muitos livros didáticos, apostilas
e sites educativos trazem a flotação
como um exemplo de técnica de
separação de misturas. No entanto,
a abordagem desse tópico é limitada
e, freqüentemente, apresenta erros
conceituais. Podemos identificar as
confusões a partir dos exemplos de
aplicação da técnica presentes nesses materiais.
Alguns materiais didáticos trazem
a separação de areia em água como
ilustração do processo de flotação.
Nesse caso, observamos a confusão
dessa técnica com a sedimentação,
que apenas em alguns casos é uma
etapa anterior à inserção de bolhas e ao
arraste de partículas por flotação. Em
outros textos, a flotação aparece ilustrada pela separação de serragem em
água, como se o arraste espontâneo
da serragem fosse igual ao observado
na flotação. Até mesmo o transporte
de madeira nos rios foi citado como
exemplo de flotação. Nesses casos,
a flotação surge como uma separação de substâncias de densidades
diferentes, na qual a introdução de um
líquido de densidade intermediária (a
água) promove o arraste do material
menos denso para cima (serragem)
e do mais denso para baixo (areia),
segundo o princípio de Archimedes.
Com base nas definições do processo
apresentadas neste artigo, ressaltamos
que só podemos classificar um processo de separação de misturas como
uma aplicação da técnica de flotação
quando observamos a inserção de
bolhas de ar no meio líquido seguida da
adesão de partículas à bolha, que leva
ao arraste das partículas para a superfície do líquido e permite a separação
das fases, sendo que essas partículas
devem necessariamente ter dimensões
coloidais para que seja possível que as
bolhas de ar carreguem as partículas.
A flotação é uma técnica de separação de misturas amplamente
empregada, mas pouco discutida na
sala de aula. Acreditamos que sua
abordagem no ensino de Química
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possa ser expandida com a ampliação do conceito, admitindo a possibilidade da discussão de propriedades
de química de superfícies com os
alunos de Ensino Médio.
Agradecimentos
Aos professores Nito Angelo
Debacher, da Universidade Federal
de Santa Catarina, e Maria Elisabete
Darbello Zaniquelli, da FFCL de Ribeirão Preto - Universidade de São
Paulo, pelas valiosas considerações
sobre o artigo.
Luciana Massi, licenciada em Química pelo Instituto
de Química/UNESP-Araraquara, é mestranda em
química analítica na área de Ensino de Química pelo
Instituto de Química de São Carlos/Universidade
de São Paulo. Sandro Rogério de Sousa, licenciado
em Química pela UNESP, doutor em biotecnologia
pela Universidade de São Paulo, é pós-doutorando
do Instituto de Química/UNESP-Araraquara. Cecília
Laluce, licenciada e bacharel em Química, doutora
em ciências pela UNESP, pós-doutora em genética
clássica de leveduras pela Universidade do Colorado (USA), é docente do Instituto de Química da
UNESP-Araraquara. Miguel Jafelicci Junior (jafeli@
iq.unesp.br), bacharel em Química pela UNESP,
mestre em química de colóides e de superfícies
pela Universidade de Bristol (Inglaterra), doutor em
ciências (físico-química) pela USP, é docente do
Instituto de Química da UNESP-Araraquara.
Referências
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de custo na separação de plástico
favorece reciclagem. Disponível em
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dicas2.php?id=19>. (Acesso em
14/07/2006).
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DESOUSA, S.R. Flotação de microorganismos. Disponível em <http://
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DESOUSA, S.R.; OLIVEIRA, K.F.;
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Para saber mais
CURSO de Educação à Distância em
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JAFELICCI JUNIOR, M.; VARANDA,
L.C. O mundo dos colóides. Química
Nova na Escola, São Paulo, nº 9, maio,
1999.
Abstract: Fundamentals and applications of flotation as mixtures separation technique. Flotation process is a separation technique that regards surface chemistry concepts and can be considered
by high school teachers in a clear and simple way. Teachers can avoid didactic material misconceptions appearing on textbooks about flotation. This paper reports on the support to the teachers
for illustrating their classes on mixtures separation through an efficient separation technique, working different concepts in chemistry and biology. Moreover, flotation process is largely applied in
many industrial separation processes concerning our every day life.
Keywords: mixtures separation, flotation, surface chemistry
Nota
Metodologia de Ensino de Química via Telemática
(MEQVT) é uma disciplina regular do programa de Licenciatura em Química da Faculdade de Educação da USP e
é ministrada a distância para estudantes de universidade
públicas de todo o Brasil. A maior parte das atividades é
prática e utiliza o computador e a internet como mediadores do ensino de química.
Ao longo do curso, serão desenvolvidas atividades
de ensino para a educação básica, estágio em escolas
e pela internet, reflexões e discussões sobre o ensino de
química e as TIC.
Ao cursar MEQVT, você usa o meio para através dele,
falar sobre ele na organização do ensino. Para acompanhar o curso, além de participar de aulas a distância,
você terá de criar e aplicar atividades de ensino, elaborar
relatórios, relatar visitas, participar de fóruns interagir com
professores e alunos.
O curso será oferecido no segundo semestre de 2008.
Para maiores informações acesse www.lapeq.fe.usp.br
Equipe MEQVT
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