Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014
V Enebio e II Erebio Regional 1
REGULARIDADES DISCURSIVAS NO ENSINO DE CIÊNCIAS: O QUE É/DEVE
SER A FORMAÇÃO DE PROFESSORES EM CIÊNCIAS BIOLÓGICAS?
Leticia Terreri (INEP/PPGE/UFRJ)
Marcia Serra Ferreira (PPGE/FE/UFRJ – Bolsista CNPq e JCNE/FAPERJ)
Resumo: Neste trabalho, temos por objetivo interpretar regularidades discursivas que
ordenam a formação inicial de professores em Ciências Biológicas no país. Realizamos um
levantamento bibliográfico de textos publicados em quatro periódicos nacionais, entre 2003 e
2013. A análise dos 16 artigos selecionados se deu amparada em uma abordagem discursiva,
em diálogo especial com Michel Foucault. Identificamos que a defesa da articulação entre
teoria e prática, da necessidade de superação do modelo ‘3+1’, da importância da reflexão,
bem como a presença de um discurso que focaliza as falhas e as ausências, constituem regras
discursivas que delineiam o que pode ou não ser dito e feito no âmbito da pesquisa e das
ações para a formação docente, merecendo problematização e questionamento.
Palavras-chave: Currículo; Discurso; Ensino de Ciências; Formação Inicial de Professores;
Ciências Biológicas.
Introdução
Este trabalho se insere no contexto de uma pesquisa de doutorado em andamento 1, no
âmbito de um estudo mais amplo denominado ‘Sentidos das relações entre teoria e prática em
cursos de formação de professores em Ciências Biológicas: entre Histórias e Políticas de
Currículo’ 2, ambas focalizando a formação inicial de professores nas Ciências Biológicas.
Elas vêm sendo desenvolvidas no ‘Grupo de Estudos em História do Currículo’, que é parte
do ‘Núcleo de Estudos de Currículo’ da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NEC/UFRJ), no
qual uma série de investigações vêm sendo produzidas na interface entre o campo do
Currículo e os ‘Ensinos de’, articulando a História e as Políticas de Currículo com a Formação
de Professores e as Teorias Sociais do Discurso, com destaque para Michel Foucault.
Nele, realizamos um levantamento dos textos produzidos no campo do Ensino de
Ciências, no período de 2003 a 2013, que focalizam a formação inicial de professores nas
1
Estamos nos referindo ao projeto de pesquisa ‘O PIBID da CAPES/DEB e de todos nós interessados nos
discursos curriculares da formação de professores em Ciências Biológicas’, desenvolvido pela primeira autora
desse texto e que foi parcialmente financiado pela CAPES e FAPERJ.
2
Projeto de pesquisa coordenado pela segunda autora com recursos do CNPq e da FAPERJ.
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Ciências Biológicas, no intuito de compreender os discursos que vêm significando essa
formação no país. Tanto o levantamento quanto a análise produzida foram amparadas em uma
abordagem discursiva, em diálogo especial com Foucault (2012) e alguns de seus
interlocutores no campo educacional e, em especial, no campo do Currículo (FERREIRA,
2013 e no prelo; FISHER, 2012; SOMMER, 2007; VEIGA-NETO, 2012).
Como premissa, entendemos que os discursos sobre o que é ou sobre o que deve ser a
formação inicial de professores em Ciências Biológicas não estão dados, de forma
naturalizada. De modo distinto, tais discursos são produzidos e hegemonizados, configurando
regimes de verdade nos quais somos todos enredados e os quais são produzidos por meio de
lutas e disputas constantes pela fixação de sentidos e significados. Essas lutas se dão “em
torno das definições de quais conhecimentos e racionalidades devem ser considerados válidos
socialmente, em um movimento que necessariamente envolve relações de poder”
(FERREIRA, no prelo, p. 2), orientando o que pode ou não pode ser dito em determinados
contextos. A partir daí, buscamos identificar as regularidades discursivas que ordenam os
espaços e os tempos do ensinar e aprender a ser professor de Ciências Biológicas, e tomamos
os enunciados e discursos produzidos na pesquisa no Ensino de Ciências como “construções
sócio-históricas e culturais que produzem e hegemonizam significados sobre quem somos e
sobre aquilo que sabemos” (FERREIRA, no prelo, p. 2).
Em diálogo com Foucault (2012), adotamos uma noção de discurso para além da fala ou
da escrita. De forma distinta, o discurso deve ser compreendido e interpretado como prática,
sendo a prática discursiva definida como um conjunto de regras anônimas, determinadas no
tempo e no espaço, que definem as condições de exercício da função enunciativa (FOUCAULT,
2012). Para Foucault (2012), o discurso pode ser entendido, também, como um sistema de
relações que compõem formações discursivas, as quais abrangem um sistema de dispersão que
possui certa regularidade. A regularidade discursiva é o que agrega enunciados dispersos, criando
séries e uma unidade discursiva dentro de uma formação discursiva. As regras, as unidades e
séries formadas não estão dadas, mas são interpretadas e construídas pelo olhar e o fazer do
pesquisador, situado em determinado momento no tempo e no espaço. Podemos dizer, então, que
estamos mais fortemente interessadas nas regras das práticas discursivas e nas regularidades dos
discursos que constroem as coisas do mundo, do que nas próprias coisas do mundo em si. É nessa
perspectiva que foram produzidas as próximas seções do presente trabalho.
Opções metodológicas
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Para dar conta do nosso objetivo, optamos por seguir alguns passos do caminho
trilhado por Casariego, Lucas e Ferreira (2011) que, ao traçarem um mapa da recente
produção brasileira sobre o tema da ‘formação inicial e continuada de professores’ no ensino
das disciplinas escolares em ciências 3, optaram por levantar as pesquisas socializadas em
quatro periódicos nacionais voltados para o Ensino de Ciências, no período de 2000 a 2010,
buscando compreender como foram construídos os estudos nesse campo. Os periódicos foram
selecionados de acordo com a qualificação (A1 e A2) que possuem junto à Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), na área de avaliação de ‘Ensino’.
Foram eles: (1) ‘Ciência & Educação’; (2) ‘Ensaio: Pesquisa em Educação em Ciências’; (3)
‘Investigações em Ensino de Ciências’ (IENCI); (4) 'Revista Brasileira de Pesquisa em
Educação em Ciências' (RBPEC). Optamos por utilizar os mesmos periódicos como fontes de
estudo devido ao reconhecido papel que estes desempenham na socialização dos
conhecimentos científicos na área do Ensino de Ciências.
Na intenção de estabelecer um recorte temporal de 10 anos (2003 a 2013), utilizamos
os critérios adotados por Casariego, Lucas e Ferreira (2011) para continuar o levantamento
das autoras, traçando um panorama mais geral dos trabalhos publicados nos quatro periódicos
já mencionados, entre 2011 e 2013, que abordam a formação de professores, inicial e
continuada, em diversas áreas do saber. Assim, analisamos os títulos e palavras-chaves de
todos os artigos publicados nesses últimos três anos (2011 a 2013), tomando como referência
as expressões ‘formação de professores’, ‘formação inicial’, ‘formação continuada’ e
‘formação inicial e continuada’. Somando os trabalhos encontrados por nós à aqueles
encontrados por Casariego, Lucas e Ferreira (2011), chegamos ao quantitativo apresentado na
Tabela 1. Esse mesmo quantitativo pode ser observado em termos de distribuição por
periódico, como mostra a Tabela 2.
3
ANO
TOTAL
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
9
6
6
3
6
7
2
2
33
33
FORMAÇÃO
INICIAL
5
2
2
3
3
1
13
15
FORMAÇÃO
CONTINUADA
2
2
1
2
4
2
1
7
5
FORMAÇÃO DE
PROFESSORES
1
2
3
3
12
11
FORMAÇÃO INICIAL
E CONTINUADA
1
1
1
2
Referindo-se às disciplinas escolares Biologia, Ciências, Física e Química.
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2013
21
6
9
6
0
TOTAL
128
50
35
38
5
Tabela 1 – Distribuição dos artigos por temática entre 2003 e 2010 (CASARIEGO, LUCAS & FERREIRA,
2011) e entre 2011 e 2013.
ANO
TOTAL
RBPEC
CIÊNCIA & EDUCAÇÃO
ENSAIO
IENCI
2003
9
2
2
1
4
2004
6
2
4
2005
6
2
2
2
2006
3
2
1
2007
6
1
2
3
2008
7
3
1
3
2009
2
1
1
2010
2
2
2011
33
5
13
8
7
2012
33
7
16
4
6
2013
21
2
12
4
3
TOTAL
128
27
54
21
26
Tabela 2 – Distribuição dos artigos por periódico entre 2003 e 2010 (CASARIEGO, LUCAS & FERREIRA,
2011) e entre 2011 e 2013.
Após esse primeiro mapeamento, buscamos também nos títulos, palavras-chave e
resumos, os trabalhos que focalizavam, especialmente, a formação inicial de professores em
Ciências Biológicas/Biologia. Os dezesseis textos selecionados 4 foram lidos na íntegra e
interpretados como acontecimentos discursivos que fazem parte de uma população de
acontecimentos no espaço do discurso em geral. Na análise, buscamos escapar da fácil
“interpretação daquilo que estaria ‘por trás’ dos documentos procurando explorar ao máximo os
materiais, na medida em que eles são uma produção histórica, política; na medida em que as
palavras são também construções; na medida em que a linguagem também é constituidora das
práticas” (FISCHER, 2012, p. 74). Tomamos cada trabalho, então, como documento e assumimos
as críticas colocadas por Foucault (2012, p. 7) ao percebê-lo não como “a linguagem de uma voz
agora reduzida ao silêncio: seu rastro frágil mas, por sorte, decifrável”, nem buscando interpretar
se diz a verdade ou o seu valor expressivo. Em diálogo com Ferreira (2013), consideramos os
textos como produções discursivas que não mais representam outra realidade, não precisando ser
decifrados. De forma distinta, eles foram compreendidos “como monumentos, isto é, em sua
espessura própria, na materialidade que os caracteriza” (MACHADO, 2009, p. 154).
4
Almeida & Farias (2011); Baptista (2003); Castro & Lima (2013); Diniz & Campos (2004); Feitosa, Leite &
Freitas (2011); Freitas (2011); Guimarães & Inforsato (2012); Justina, Meglhioratti & Caldeira (2012); Mendes
& Munford (2005); Nascimento & Rezende Jr. (2010); Rosa, Weigert & Souza (2012); Silva & Krasilchick
(2013); Silveira (2004); Teixeira (2003); Teixeira & Oliveira (2005); Villani, Franzoni & Valadares (2008).
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Tomar o documento como monumento implica trabalhá-lo no interior, definindo, no
próprio tecido documental, unidades, conjuntos, séries e relações, bem como operar sobre a
positividade dos discursos, os ditos, a superfície dos textos, descrevendo os enunciados a partir de
seus acúmulos e suas exterioridades, e não a partir de qualquer fundamento transcendental e/ou
lógica interna (FERREIRA, 2013). Nesse movimento, em diálogo com Sommer (2007) e Ferreira
(2013), olhamos para os textos acadêmicos, buscando perceber o que tem estado na ordem do
discurso, focalizando as regularidades discursivas que permeiam os sentidos produzidos para a
formação inicial de professores nas Ciências Biológicas, sancionando ou interditando a produção
e a circulação de determinadas práticas discursivas.
Consideramos que tais regularidades são produzidas no âmbito da pesquisa no Ensino
de Ciências, terreno de práticas e lutas discursivas, que estão implicadas no ordenamento da
própria pesquisa, bem como das salas de aula, regulando a formação e as práticas docentes.
Assim, compreendendo os discursos como práticas sociais produzidas em meio a relações de
saber-poder que organizam a realidade, partimos da hipótese de que há certa ordem do
discurso que implica em regimes de verdade nesse contexto específico de práticas sócioculturais, as quais são circunscritas por regras que sancionam ou interditam a produção e a
circulação de determinados sentidos para a formação inicial de professores. Passamos à
abordagem de tais aspectos na próxima seção, refletindo sobre a produtividade e os efeitos de
verdade das práticas discursivas, a capacidade das mesmas de ordenar os espaços e tempos da
formação inicial de professores em Ciências Biológicas e de delimitar o que pode ser dito e o
que está interditado no âmbito das pesquisas no Ensino de Ciências.
Regularidades discursivas na formação de professores em Ciências Biológicas
A análise dos artigos selecionados nos permitiu perceber uma diversidade e uma
pulverização de objetivos, de questões de estudo e de problemas de pesquisa, bem como de
referenciais teórico-metodológicos, o que pode se referir ao fato de que tais pesquisas foram
desenvolvidas no âmbito de programas de pós-graduação igualmente variados, como bem
apontam Casariego, Lucas e Ferreira (2011). Mesmo assim, foi possível identificar
enunciados que perpassam os diversos textos e que, por isso, consideramos regularidades
discursivas que regulam e ordenam a pesquisa e a formação inicial de professores na área.
Interpretamos, por exemplo, que o discurso em defesa da articulação entre a teoria e a
prática pode ser considerado uma regularidade que circunscreve muitos dos textos analisados,
tais como os de Diniz & Campos (2004), Teixeira & Oliveira (2005), Almeida & Farias
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(2011), Rosa, Weigert & Souza (2012) e Castro & Lima (2013), entre outros, sendo produzido
por séries de enunciados distintos, em contextos também distintos, que nem sempre mantém
uma continuidade, uma articulação ou uma coerência entre si.
Sobretudo nos trabalhos publicados até meados dos anos 2000, tais como em Batista
(2003), Teixeira (2003), Diniz & Campos (2004), Silveira (2004) e Teixeira & Oliveira
(2005), é possível perceber a presença de enunciados que reforçam a importância da
reflexão/reflexão sobre a ação, da investigação e da noção de professor-pesquisador para
pensar a formação docente, aspectos que seriam possibilitados e possibilitariam, em uma via
de mão dupla, a articulação entre a teoria e a prática. Esses trabalhos estão amparados em
autores como Donald Schön e Kenneth Zeichner, que veicularam discursos que significaram a
produção acadêmica sobre a formação e o trabalho docente, especialmente, nos anos de 1990.
Foi possível perceber, também, o diálogo de alguns autores, como é o caso de Teixeira
(2003), com documentos oficiais brasileiros que incorporam debates acadêmicos, como as
Resoluções CNE/CP 1/2002 5 e CNE/CP 2/2002 6, que defendem a superação do modelo da
racionalidade técnica, também conhecido como ‘3+1’, e a necessidade de um ‘novo’
paradigma para a formação docente, tendo como um de seus pilares a necessidade de
articulação entre teoria e prática e a valorização da dimensão prática na formação inicial
docente (TERRERI, 2008). Tal diálogo pode ser evidenciado no seguinte trecho de Teixeira
(2003), que analisou o processo de iniciação à pesquisa em educação em Ciências,
desenvolvido no curso de Licenciatura em Ciências Biológicas da UESB/Jequié/BA:
O projeto do novo curso introduziu uma série de inovações, procurando
romper com o tradicional modelo de formação 3+1, que reduz a formação
de professores, na maioria das vezes, aos conteúdos científicos (FURIÓ e
GIL-PÉREZ, 1989 7). Um dos princípios elementares foi proporcionar aos
alunos o contato com disciplinas de formação pedagógica desde o início do
curso, articulando teoria e prática e as preocupações com o ensino de
conteúdos na escola básica. Outro princípio foi tomar a prática como
dimensão curricular, desde o início do curso, articulando-a com a teoria, e
por fim, estimular uma concepção de formação de professores caracterizada
pela pesquisa, vista como instrumento de modificação das posturas
pedagógicas conservadoras e de busca constante por alternativas didáticas
voltadas para formação de indivíduos críticos e reflexivos, capazes de
atuarem autonomamente na sociedade contemporânea, conhecendo a
5
BRASIL. Resolução CNE/CP 1/2002. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de
Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena.
6
BRASIL. Resolução CNE/CP 2/2002. Institui a duração e a carga horária dos cursos de Formação de
Professores da Educação Básica, em nível superior.
7
FURIÓ, C.; GIL-PÉREZ, D. (1989). La didáctica de las ciencias en la formación inicial Del profesorado: una
orientación y un programa teóricamente fundamentados. Enseñanza de La Ciencias, 7 (3), 257-65.
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realidade e enfrentando os problemas sociais (TEIXEIRA, 2003, p. 2, grifos
nossos).
Para autores como Teixeira & Oliveira (2005) e Rosa, Weigert & Souza (2012), a
articulação entre a teoria e a prática pode contribuir para a construção de um currículo mais
coerente com a realidade da sala de aula da Educação Básica. Teixeira & Oliveira (2005, p. 3)
apontam que “a separação, e mesmo oposição, entre teoria e prática é frequentemente
denunciada pelos educadores, ao mesmo tempo em que é explicitado o desejo de buscar novas
formas de relacionamento entre estas duas dimensões da realidade”, e defendem que “a visão
de unidade expressa a síntese superadora da dicotomia entre teoria e prática, sendo condição
fundamental para a busca de alternativas na formação do educador”. As autoras concluem que
na formação docente, de forma geral, “há uma grande separação na abordagem desses dois
pólos, tornando o currículo fragmentado” e que, no caso investigado, “não há diálogo entre o
Instituto de Ciências Biológicas e a Faculdade de Educação, o que torna óbvia a existência
desta dicotomia” (TEIXEIRA & OLIVEIRA, 2005, p. 15).
Concordamos que a articulação entre a teoria e a prática é um aspecto relevante a ser
debatido, mas nos parece uma raridade discursiva a problematização do que é considerado
teoria e prática. Temos defendido ser importante questionar quê teorias e quê práticas devem
estar articuladas, de forma que tal questionamento esteja embasado epistemologicamente
(TERRERI, 2008). Consideramos que esta é uma discussão de extrema relevância para fazer
avançar a reflexão e as propostas para a formação de professores em Ciências Biológicas
(TERRERI & FERREIRA, 2013). Em alguns trabalhos, os autores criticam a dicotomia, mas,
ao considerarem a prática e a teoria como dois polos distintos, dicotomizam o próprio olhar
investigativo. Em Teixeira & Oliveira (2005), por exemplo, os questionários elaborados para
a coleta de dados abordam a teoria e a prática de forma dicotômica, associando a primeira ao
saber de referência produzido na universidade e a última ao saber escolar, produzido na
escola. Diferentemente, assumimos a importância de olhar para a teoria e para a prática como
faces de uma mesma moeda, que são mutuamente constitutivas e que estão presentes e
constituem toda e qualquer ação de formação docente, assim como de pesquisa.
Consideramos, ainda, que é raridade, em muitos estudos, uma reflexão acerca das
relações entre tradição e inovação nas Licenciaturas em Ciências Biológicas. Trabalhos como
os de Batista (2003), Teixeira (2003), Diniz & Campos (2004), Villani, Franzoni & Valadares
(2008) e Guimarães & Inforsato (2012), ao defenderem a necessidade de superação do ‘3+1’ e
da dicotomia entre teoria e prática, deixam de reconhecer que, desde o início dessa formação
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no país, muitas inovações vêm se hibridizando com as tradições curriculares. Em Terreri &
Fernandes (2013), consideramos que tal raridade discursiva fragiliza os argumentos e
análises, uma vez que deixam de ser reconhecidos, por exemplo, aspectos sócio-históricos que
vêm contribuindo de forma expressiva para movimentos curriculares que provocam
transformações quanto ao quê e como ensinar a ser professor de Ciências Biológicas.
Em diálogo com Ferreira (2005 e 2007) e Terreri (2008), entendemos que a formação
docente nas universidades vem sendo ressignificada e hibridizada historicamente e que a
incorporação de determinadas inovações, muitas vezes exige uma espécie de “invenção de
tradição”. Assim, concordamos com Goodson (1995, p. 27) quando, no diálogo com
Hobsbawm (2002), defende que “a elaboração de currículo pode ser considerada um processo
pelo qual se inventa tradição”, sendo a tradição inventada:
Um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou
abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam
inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o
que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado.
Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um
passado histórico apropriado (HOBSBAWM, 2002, p. 9).
Assim, defendemos a necessidade de olharmos para os currículos da formação de
professores em Ciências Biológicas como um híbrido cultural, um espaço-tempo onde há
tensões entre distintas tradições, mas onde a opção possível estará sempre na fronteira em que
é preciso negociar (MACEDO, 2006), onde as relações entre o ‘velho’ e o ‘novo’, entre
tradições e inovações são híbridas e ambivalentes, onde o ‘novo’ é “resultado de negociações
entre o passado e o presente” e “produto de elementos de antigas tradições ressignificadas
pela influência de ‘novos’ elementos que sugerem uma renovação” (TORRES, 2009, p.34).
Outro discurso recorrente em alguns trabalhos analisados, que também regula a
problematização acadêmica, bem como as ações na formação de professores em Ciências
Biológicas, é o que denominamos ‘discurso da falta ou da ausência’, presente em trabalhos
mais recentes, como os de Almeida & Farias (2011), Justina, Meglhioratti & Caldeira (2012),
Guimarães & Inforsato (2012), Silva & Krasilchik (2013) e Castro & Lima (2013). Tais
trabalhos se concentram em destacar falhas conceituais ou dificuldades metodológicas
presentes entre os licenciandos ou entre professores em exercício e apontam como solução
para a formação docente – e até para a Educação Básica – o preenchimento de tais lacunas.
Almeida & Farias (2011, p. 482), ao realizarem uma revisão teórica sobre a natureza
da Ciência na formação de professores voltada para o ensino de Ciências, em diálogo com
outros autores, destacam que a maioria dos professores sustenta ideias inadequadas sobre o
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tema, as quais estariam “próximas a posições predominantes no início do século passado e
que estão fundamentadas em posturas empíricas indutivistas ingênuas provavelmente
herdadas da própria cultura escolar (VILDÓSOLA-TIBAUD, 2009 8)”, devido à falta de uma
reflexão crítica e uma educação científica que se limita a uma simples transmissão de
conhecimentos já elaborados, o que “ocultaria características essenciais da atividade
científica, vindo a contribuir para reforçar algumas deformações, como a suposta “exatidão”
da ciência. Nesse sentido, apontam a “necessidade de modificar a epistemologia “espontânea”
do professorado, sabendo-se que a mesma pode se constituir num obstáculo capaz de bloquear
as iniciativas de renovação do ensino de ciências” (ALMEIDA & FARIAS, 2011, p. 482).
Justina, Meglhioratti & Caldeira (2012, p. 65), ao investigarem as concepções acerca
da relação entre genótipo e fenótipo de estudantes da Licenciatura em Ciências Biológicas,
evidenciam “a presença de ideias pautadas na relação restrita ao gene e ambiente, sem
considerar o organismo e sua história de vida”, defendendo que “se queremos mudar a prática
do professor quanto ao ensino de genética, precisamos melhorar o seu conhecimento
científico específico. Nesse sentido, as licenciaturas em Ciências Biológicas não podem
prescindir de atividades que possibilitem uma forte base conceitual da Biologia” (JUSTINA,
MEGLHIORATTI & CALDEIRA, 2012, p. 72). As autoras concluem que:
Face aos avanços científicos e tecnológicos e as dificuldades no ensino da
área de genética, é imprescindível que a formação inicial de professores
proporcione aos estudantes uma visão sistêmica dos seres vivos, em que a
molécula de DNA seja concebida como um componente, entre outros, na
intrincada rede de interações celulares e orgânicas (JUSTINA,
MEGLHIORATTI & CALDEIRA, 2012, p. 72).
Silva & Krasilchik (2013), por sua vez, ao analisarem como os licenciandos lidam
com o ensino de temas controversos, sobretudo a metodologia a ser utilizada em sala de aula,
concluem que os licenciandos conseguem perceber conflitos éticos em diversos casos, mas
não explicitam as estratégias de como abordá-los e que, portanto, a formação inicial pouco
tem contribuído na instrumentalização dos futuros professores no exercício de tomada de
posição e o convívio com a divergência. Nesse contexto, as autoras destacam “a importância
da Bioética na socialização do debate científico e como um valioso instrumento metodológico
no ensino de Ciências” (SILVA e KRASILCHIK, 2013, p. 379). Ao lado de Ferreira, Gabriel
e Monteiro (2012, p. 3), consideramos que esse texto – assim como outros analisados –, ao
8
Vildósola-Timbaud, X. (2009). Las actitudes de profesores y estudiantes, y la Influencia de factores de aula en
la transmisión de la naturaleza de la ciencia en la enseñanza secundaria. Tesis doctoral, Universidad de
Barcelona.
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destacarem “as deficiências das escolas, de professores e alunos, além de prescrições sobre os
caminhos a serem trilhados para a superação das mesmas”, abordam os currículos da
formação de forma coisificada, restringindo as propostas à proposição de ‘novas’
metodologias, abordagens e/ou formas de selecionar e organizar os conhecimentos no
contexto das disciplinas acadêmicas. É como se o preenchimento de tais lacunas pudesse dar
conta da complexidade da formação de professores nas Ciências Biológicas em nosso país.
Considerações finais
A partir das regularidades discursivas apresentadas, destacamos a necessidade de
aprofundamento do debate e da reflexão sobre alguns aspectos que estão na ordem do
discurso, seja a defesa da articulação entre teoria e prática, da necessidade de superação do
modelo ‘3+1’ e da importância da reflexão, seja a frequência de um discurso que focaliza as
falhas e as ausências na formação inicial de professores em questão. Na intenção de
aprofundar esse debate, ao lado de Ferreira (no prelo), Ferreira, Gabriel & Monteiro (2012) e
Terreri & Fernandes (2013), consideramos que a ampliação do diálogo com o campo do
Currículo pode trazer contribuições significativas, ajudando-nos a desnaturalizar as políticas e
práticas curriculares, entendendo-as como sócio-históricas, culturais e discursivas.
Baseando-nos em Veiga-Neto (2012, p. 274), destacamos a necessidade de visitarmos
os porões do campo do ‘Ensino de’, bem como os da formação de professores nas Ciências
Biológicas, sem cairmos em uma simples militância, mas exercendo um “ativismo mais
produtivo, por mais limitado e modesto que seja”. O autor nos chama a atenção para a
necessidade de manter a vigilância epistemológica e a hipercrítica, sendo a primeira, cunhada
por Santos (1991 apud VEIGA-NETO, 2012, p.274), caracterizada pelo cuidado permanente,
teórico, metodológico e conceitual, em relação a tudo o que for pensado e dito, e a segunda,
cunhada por Veiga-Neto (1995 apud VEIGA-NETO, 2012, p. 274), uma crítica não
metafísica, que não conta com pressupostos universais, mas é autoreflexiva, difícil e
incômoda, mas sempre humilde, aberta e provisória.
Referências Bibliográficas
ALMEIDA, A. V. de & FARIAS, C. R. O. A Natureza da Ciência na formação de
professores: reflexões a partir de um curso de licenciatura em Ciências Biológicas.
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