Discurso feminino pós-colonial em Pauline Melville: perfil das personagens Marietta e
Rosa Mendelson
Jordana Cristina Blos Veiga XAVIER (G-UFGD)1
Dra. Leoné Astride BARZOTTO (UFGD)2
RESUMO: A obra The Ventriloquist's Tale (1997), da autora guianense Pauline Melville,
possui uma narrativa riquíssima no quesito escrita feminina pós-colonial, trazendo em si
personagens femininas polêmicas e emblemáticas que, de certa forma, mostram uma força e
resistência tamanha contra o poder patriarcal imperialista. Esta pesquisa enfoca-se no perfil
de duas das personagens femininas, Rosa Mendelson e Marietta, de naturalidades opostas –
uma europeia e outra ameríndia – que tem seus destinos cruzados pelo infortúnio penetrar da
cultura ocidental (europeia / branca / masculina) nas tribos uapixanas localizadas na Guiana e,
ainda, pelo fato de ambas terem em comum, num determinado momento, o mesmo homem:
Chofy Mckinnon. O romance é dividido em três partes e a investigação limitar-se-á na
primeira e terceira parte da obra, em que as duas personagens são citadas.
PALAVRAS-CHAVE: Discurso feminino; Pós-colonialismo; Pauline Melville.
1. Ginocrítica
Anteriormente, uma tradição literária feminina era, à primeira vista, algo quase
impossível, devido à predominância do patriarcalismo. Muitas obras de autoria feminina que
foram diminuídas e renegadas a lixo emergiram e, a partir do século 18, a literatura se torna
uma obra feminina. Elaine Showalter é uma das fundadoras da crítica feminista
contemporânea, pois conceitua a “ginocrítica” como uma modalidade predominante
feminina/feminista a partir do seu lócus de estudo nos Estados Unidos ao perceber, em termos
acadêmicos, o texto escrito por mulheres, sobre mulheres e para mulheres. Showalter se
intitula como inventora do termo “ginocrítica”, que investiga como a escrita de autoria
feminina é diferente da escrita de autoria masculina na linguagem, no enredo, nos temas, no
uso de metáforas ou de imagens. A ginocrítica consiste numa prática de crítica literária
centrada na mulher, privilegiando as críticas de mulheres em relação a textos escritos por
mulheres, como já dito. Assim, esta mobilidade de investigação será o fomento utilizado no
seguinte trabalho.
Para uma análise nesse perfil teórico-conceitual, nada melhor que um romance escrito
por uma autora que experimentou 'ser mulher' nas savanas na Guiana ao ver de perto a
transição pós-colonial, uma vez que a obra de Pauline Melville 'escava' mulheres ameríndias,
europeias, híbridas, transitórias, com inspiração real ou pura ficcionalidade, para expressar o
potencial de criação diegética onde está envolto o universo feminino como um todo desde os
1
Jordana Cristina Blos Veiga Xavier, orientanda do PIVIC. Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD.
[email protected]
2
Leoné Astride Barzotto, Prof.ª Dra. Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD.
[email protected]
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primórdios da humanidade. Logo,
a capacidade de dar voz a um povo para afirmar sua identidade são de
grande importância aos escritores e críticos pós-coloniais. [...] Parece que a
heteroglossia do romance expressa melhor a representação dos povos póscoloniais. [...] Os Estudos Pós-coloniais destacam as várias e diferentes
vozes no romance. (BONICCI, 2005, p.50-51)
Ao abordar o subalterno, o que para muitos escritores pós-coloniais foi um grande
desafio, para a autora enquanto mulher e para fazer a outra (índia, analfabeta, duplamente
colonizada) ser ouvida há um discurso de duas vozes, uma vez que apresenta a voz da
estrutura dominante e a voz da estrutura silenciada.
2. Melville e a obra The Ventriloquist’s Tale
Pauline Melville nasceu na Guiana e, atualmente, mora em Londres. Filha de pai
ameríndio guianense e mãe inglesa, morou quase toda sua vida na Inglaterra, mas passou
grande parte de sua infância e adolescência na Guiana. Publicou seu primeiro livro, ShapeShifter (1990), que reúne uma coletânea de contos que trata da vida pós-colonial no Caribe,
esse lhe rendeu o Prêmio Commonwealth Writers. A História do Ventríloquo (The
Ventriloquist’s Tale, 1997) é seu primeiro romance. Por ele recebeu o Prêmio Whitbread e o
Prêmio Orange. Também publicou The Migration of Ghosts. Seu último livro é Eating Air
(2009). A obra de Melville ocupa lugar na suposta Terceira Onda Feminista que, alguns
alegam, surgiu no início dos anos 1990, nos Estados Unidos. Os itens na agenda da “Terceira
Onda Feminista” incluem a teoria queer, a conscientização da negra, o pós-colonialismo, a
teoria crítica, o transnacionalismo, a interpretação pós-estruturalista de gênero e de
sexualidade.
Pauline parte de uma perspectiva pós-colonial e crioula e lança mão de novas
possibilidades para explorar o potencial criativo dentro de limitações impostas pelo discurso
colonial (LEONÉ, 2008). Melville, de certa forma, faz uma conexão entre sua história
pessoal e suas histórias de ficção.
O romance (The Ventriloquist’s Tale, 1997) é dividido em três partes, tomando lugar na
Guiana e narrando histórias místicas, ora em tempo “real” ora num passado mais distante, dos
ameríndios uapixanas. Apesar de serem mestiços, catequizados os ameríndios ainda vivem
em aldeias com chão de terra batida. A primeira parte conta-nos a história do mestiço Chofy
Mckinnon que, depois de descobrir que os negócios com o gado não vão nada bem, por conta
de uma infestação de morcegos-vampiros que andam atacando o rebanho, vai para
Georgetown trabalhar para mandar dinheiro à família. Junto com ele, leva sua tia Wifreda –
uma idosa da tribo que sabe muitas histórias – a mesma vai tratar seu problema de cataratas.
Em Georgetown, Chofy conhece uma pesquisadora inglesa por quem se apaixona.
Rosa vem para Guiana pesquisar sobre o escritor inglês Evelyn Waugh que, no passado,
passou algum tempo na tribo com os Mckinnon, motivo pelo qual Chofy desperta interesse
dela. Porém, a única pessoa que se lembra e pode revelar alguma informação para a
pesquisadora é tia Wifreda (que nesta altura repousa após ser operada de um olho). Não
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demora muito para que Chofy e Rosa virem amantes, levando o índio a esquecer
completamente a mulher e o filho que deixou em Muco-Muco.
Rosa não é a única que está na região investigando algo, Michael Wormoal é um
expert em mitologia comparativa entre os índios sul-americanos. Ele acaba conhecendo-a no
hotel onde ambos estão hospedados e a entrega uma cópia do artigo de sua pesquisa que, em
certo momento, cita o mito do eclipse (relacionado com incesto). Um mito que tia Wifreda
gostaria de esquecer.
Na segunda parte, o narrador volta ao tempo para retomar a história de Danny
Mckinnon e Beatrice Mckinnon, irmãos de sangue e amantes. Eles foram separados pelo
padre Napier por terem cometido tal “pecado mortal” quando o padre estava colocando suas
atividades evangelísticas em prática, catequizando os índios.
Os Mckinnon herdaram este sobrenome do branco escocês Alexander Mckinnon,
casado com Zuna e Maba (as duas eram irmãs, wapixanas), oferecidas pelo pai ao branco –
depois de ter conquistado confiança ao longo do tempo em que passou com a tribo. Com
Zuna, teve Wifreda, mas antes (com Maba) teve Beatrice e Danny, dentre outros filhos.
Segundo o ventríloquo, Wifreda sempre teve as vistas fracas; Beatrice foi descrita como a
mais bela e comunicativa em relação às outras; Danny era habilidoso e formoso e Maba e
Zuna eram figuras valentes, habilidosas prestativas. Levando a vida de acordo com seus
costumes e crenças (exceto Alexander que era um tanto quanto ateu e cético) os Mckinnon, o
resto da tribo e toda a redondeza, certo dia, recebem a presença do padre, Napier, a fim de
fundar igrejas, batizar e catequizar todos os indígenas.
Para finalizar a narrativa, o ventríloquo volta ao lugar onde tia Wifreda está em
repouso. Chofy está com ela e, pela primeira vez, escuta a avó contar a história de Beatrice e
Danny. Chofy volta a se encontrar com Rosa Mendelson no hotel e desta vez sai com ela e
acaba conhecendo algumas pessoas do meio social da pesquisadora. Alguns deles estão
explorando a reserva de onde Chofy vem. Para impressionar, ele acaba revelando o
significado do seu nome que – por engano – acaba sendo interpretado como “explosão” na
língua wapixana.
O filho de Chofy acaba sofrendo um acidente por conta das explorações que estavam
acontecendo perto de sua casa. Houve uma explosão que o deixou com ferimentos graves e,
mais tarde, leva o garoto a falecer. Antes da morte do garoto, Marietta o leva para Gorgetown
no hospital e vai à procura do marido (que há tempos não dá notícia). A mulher encontra o
marido nos braços de Rosa, o que a deixa mais amargurada com a situação. Mesmo assim o
casal volta para a tribo para enterrar o filho e acabam ficando por lá e, com o tempo, tudo vai
voltando ao normal e o caso de amor que aconteceu em Georgetown acaba adormecendo.
O narrador acaba revelando parte de seu nome depois de comentar sobre os
acontecimentos e acaba comentando sobre as dificuldades de ser um indígena (com suas
palavras) em meio a um lugar que por ora está se “globalizando”.
3. Contextualizando os estudos culturais e pós-coloniais
O objeto cultural, ao longo do tempo, sofreu muitas mutações; ora relevantes, ora
irrelevantes e totalmente comerciais. Já a análise desse objeto permanece até hoje (com
prioridade) no mundo, abordando aspectos principais tais como: gênero, raça, entre outras
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novas alteridades. No fim do século XX e no começo do século XXI, o Materialismo Cultural,
o Novo Historicismo, os Estudos Feministas (hoje Estudos de Gênero) e os estudos Póscoloniais viram um conjunto coeso de crítica acadêmica tentando efetivar as mudanças
políticas em plena globalização. Esses estudos versam sobre uma análise e uma estética,
segundo Bonnici (2005), que têm por objetivo compreender a realidade e as condições em
que certos setores da humanidade se encontravam e se encontram excluídos pelos detentores
da hegemonia colonial.
O termo pós-colonial passou a ser usado, segundo Santos (2005), para designar essas
interações nas sociedades culturais e nos círculos literários. O prefixo “pós” tem sido fonte de
discussões constantes entre os críticos por seu sentido primeiro indicar “depois” do
colonialismo, enquanto os estudos pós-coloniais abrangem, principalmente, as articulações
“entre” e “através” dos períodos históricos politicamente definidos, do pré-colonial, passando
pelo colonial, estendendo-se às culturas pós-independência e, mais recentemente, ao
neocolonialismo de nossos dias.
[...] a partir da última década do século XX que o pós-colonialismo passou a
constituir um dos principais discursos críticos da humanidade, ao lado de
teorias como o pós-estruturalismo, a psicanálise e o feminismo. [...] Se por
um lado a crítica pós-estruturalista da epistemologia ocidental e a teorização
das diferenças/alteridade cultural são indispensáveis à teoria pós-colonial,,
filosofias materialistas, como o marxismo, parecem suprir as bases da
política pós-colonial. [...] Edward Said, que representa a primeira fase da
teoria pós-colonial [...]. (SANTOS, 2005, p.346)
Segundo Santos (2005), Said valoriza os intelectuais do Terceiro Mundo, que como
ele, Spivak, Bhabha e outros, migraram para a metrópole, por sua “viagem para dentro”, e
reconhece seu mérito como figuras opositoras, expresso na forma pela qual se apropriam do
discurso dominante da metrópole para voltá-los contra o ocidente e desconstruir suas
tentativas de dominar as regiões de onde eles vêm. No entanto, por “cruzar fronteiras”, o
intelectual abrigado na metrópole escapa dos impasses que aprisionam alguns intelectuais
nacionalistas. Said enfatiza a possibilidade de, vivendo entre dois mundos, atuar como
mediador entre eles, e enfatiza essa interrelação.
Uma das estratégias pós-coloniais mais eficazes consiste em produzir um
tipo de texto - uma crítica cultural, enfim - que acuse a barbárie inerente e
fundante dos textos monumentais do colonizador. [...] do ponto de vista do
texto cultural gerado ou enunciado diretamente pelos grupos sociais
submetidos ao poder colonial (ou neo-colonial), busca-se ressaltar sua
capacidade cognitiva de devolver uma imagem do colonizador construída a
partir da experiência do grupo dominado. (CARVALHO, 1999, p.16)
As teorias pós-coloniais influenciaram o discurso feminista que, outrora, não tinha
relação com o pós-colonialismo. Ora, enquanto a cultura europeia e suas potências se
ocupavam em invadir e dominar novas colônias, a luta pelos direitos civis das mulheres e
suas conquistas nas obras literárias (em especial no início do século XX) deram resultados a
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favor da teoria feminista. Quanto aos países pós-coloniais em relação ao feminismo, as
mulheres se posicionam de forma que recusam a cultura do colonizador adotando os rumos
de Calibã. O feminismo torna-se uma metáfora do colonialismo, uma vez que a mulher na
colônia representa a mulher como colônia.
Os conceitos de linguagem, voz, discurso, silêncio e imitação começam a
ser usados por autores feministas (como Duras e Irigaray) para investigar o
discurso entre o patriarcalismo e a condição da mulher (Greene & Kahn,
1985:100). O conceito seminal da relativização da literatura canônica pode
servir como exemplo. À semelhança das conclusões do pós-colonialismo, o
feminismo descobre que o valor estético da literatura hegemônica não está
no próprio texto e, portanto, não é universal. (BONNICI, 2000, p.154)
Tratando do olhar pós-colonial, segundo José Jorge de Carvalho (1999),
o projeto fundamental dos teóricos pós-coloniais latinoamericanos de antes
era a tarefa da descolonização. Essa tarefa foi deixada de lado, por um bom
tempo, com o crescimento da nossa absorção do olhar universalizante da
Antropologia europeia e, mais recentemente, norte-americana. [...] O ponto
central que está por trás do olhar pós-colonial é lutar, como diz Mignolo, por
um deslocamento do locus de enunciação, do Primeiro para o Terceiro
Mundo. (CARVALHO, 1999, p.9)
Mulheres que viveram em colônias brigaram pela própria emancipação e a do país. A
emancipação feminina continua sendo uma luta no período pós-colonial e um desafio para
que a mulher, outrora duplamente colonizada, possa continuar sendo agente de sua história. O
objetivo dos discursos pós-coloniais e do feminismo, então, baseia-se na integração da
mulher marginalizada, objetificada pela sociedade.
4. Marietta e Rosa
A obra de Melville, como já foi pontuado anteriormente, foge dos padrões literários
eurocêntricos e nos apresenta a literatura do ponto de vista do Outro (neste caso os
uapixanas/colonizados/não-europeus/não-brancos), isso se dá desde a escolha dos
personagens principais até a disposição do cenário. Dentre esses personagens, Marietta e
Rosa nos chama atenção na trama por serem de diferente etnia, cultura, intelecto, posição
social (pois uma representa o colonizador e a outra o colonizado) e terem em comum o „ser‟
mulher. Ambas se encontram num dado momento no romance e dividem o mesmo homem:
Chofy, um mestiço que acaba sendo seduzido pelo padrão de beleza europeu.
Marietta é ameríndia, duplamente colonizada, vítima do patriarcalismo, casada com
um mestiço, não se encaixa no modelo de beleza de Rosa, mas é feliz onde vive e preza pela
família e cultura de seu povo. Diferentemente de Mendelson, ela ainda não passa por um
período de descolonização enquanto mulher, mas se posiciona com resistência em muitas
ocasiões.
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Marietta era uma mulher vibrante, cheia de vigor, que trabalhava sem parar.
[…] Ocupada com os pratos, curvava a figura robusta, baixota, de um balde
a outro. Faltavam-lhe dois dentes da frente, mas isso nunca a impedira de
sorrir. A pele era de um marrom-escuro avermelhado. Usava o cabelo negro
numa trança frouxa. Quase sempre cantava pela casa, mas agora mal se dava
conta do que fazia. Estava transtornada por causa da discussão. Estavam
brigando assim havia meses. (MELVILLE, 1999, p. 23)
Como resultado do penetrar europeu dentro de sua própria casa, pois Chofy é um
mestiço, o marido não segue totalmente a cultura indígena, embora não sustente algo
puramente sentimental com ele, ela não se sente confortável com a situação que estão
vivendo. Antes da ida de Chofy à Georgetown, eles têm uma ultima aproximação.
Uma noite antes da partida, Marietta tinha acabado de deitar na rede quando
ouviu a voz do marido chamando do outro quarto.
“Cadê minha querida?”
“Estou aqui, Chofy, e eu amo você”, ela respondeu do escuro. Depois foi até
ele, um tanto tímida, atravessando a noite palpável, para deitar-se a seu lado
numa cama composta por um velho colchão apoiado em cima de caixas e
caixotes, e ali fizeram amor pela primeira vez em meses, sentindo-se
enferrujados, sem prática, um pouco constrangidos e felizes. (MELVILLE,
1999, p. 32)
Após a partida de Chofy, Marietta demonstra independência em relação ao marido,
acha até mais fácil a vida na tribo sem a presença dele depois de longos períodos de silêncio
pontuados por discussões que caracterizavam os últimos tempos do casamento e, de certa
forma, ficar longe dele lhe causou alívio. Este sentimento em Marietta demonstra-nos o
posicionamento dela em relação à mestiçagem de Chofy e os aspectos da cultura dominante
impregnados nele em sua forma de lidar com ela e com os aspectos culturais tribais. Logo
depois que o casal perde o filho, Marietta se desliga do marido mostrando sua indiferença e
mais uma vez mostrando sua resistência.
Marietta fazia as tarefas todas, cuidava da roça de mandiocas, mas Chofy
sabia que a vida esvaíra de dentro dela. [...] Quando Chofy e Marietta
estavam limpando o mato, um dia de manhã, Marietta virou-se para ele e
disse: Se quiser, podemos nos separar. A voz saiu sem a menor inflexão,
desinteressada. (MELVILLE, 1999, p. 310)
Rosa Mendelson é uma pesquisadora, branca, europeia, provinda de uma cultura
judaico-cristã, mas se intitula cética, marxista e bem resolvida. Seu romance com Chofy tem
início por interesse, afinal seu maior anseio, durante a relação, é ir até as Savanas no
Rupununi de onde o ameríndio veio.
O livro a descreve da seguinte maneira:
O cabelo era um arbusto de cachos negros e ásperos em volta da cabeça. […]
o pai dela era um judeu russo, o que explicava as maçãs do rosto largas e a
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boca rasgada. Os olhos eram azuis, oblíquos e grandes, sonhadores e um
tanto saltados. […] Era alta e usava jeans. (MELVILLE, 1999, p. 42-43)
[…] Você acredita em superstições?
Em hipótese alguma. Rosa sentou-se na cama, fingindo-se ultrajada. Nem
em religião. Sou uma racionalista convicta. (MELVILLE, 1999, p. 266)
A pesquisadora representa a mulher branca/europeia num patamar mais elevado em
relação à mulher ameríndia, pois já experimenta uma certa desalienação cultural-patriarcal
não se enquadrando mais no papel estigmatizado da mulher dona de casa / submissa /
marginalizada, que está passando pelo processo de descolonização feminina, mas
experimenta (assim com Marietta) vestígios da cultura patriarcal que faz uma abjeção da
mulher, tratando-a como objeto, em alguns casos, puramente sexual. Esse episódio é possível
observar no seguinte trecho em que Chofy se dirigi à Rosa quando estão voltando das savanas.
Os olhos de Chofy tinham encolhido na cabeça. Ele cantava alto, numa
espécie de cântico: Estou com uma ereção. Onde é que eu ponho? Sempre
de olho em Rosa. As pessoas riam. […] Rosa tentou cochilar. Chofy
estendeu o braço, agarrou seu cabelo e puxou-lhe a cabeça. Ela se esquivou.
Estou com uma ereção. Onde é que eu meto? Os passageiros caíram na
gargalhada. (MELVILLE, 1999, p. 57)
Neste trecho temos dois tópicos relevantes a serem percebidos, primeiro como Chofy
se refere à Rosa de maneira brutal, invadindo seu espaço – representando bem a abjeção da
mulher e, segundo, como ele se dirige ao colonizador (representado por Rosa) adotando
Calibã, utilizando sua língua nativa. Ao mesmo tempo em que Rosa representa a colônia (a
mulher) também representa o colonizador (europeu) e isso é bem visível em sua relação com
Chofy.
Ainda lançando mão desta parte do romance, o trecho que segue o episódio anterior
retrata um pouco da reação dos ameríndios aos olhos do dominante:
Àquela altura estavam indo a uma velocidade vertiginosa.
Nós vamos morrer. Nós vamos morrer, cantava o caminhão inteiro de índios
para as estrelas acima. Para Rosa, era como se todos tivessem desistido da
esperança e abraçassem a destruição com um abandono descuidado, felizes
com o perigo, com a inevitabilidade da aniquilação. (MELVILLE, 1999, p.
58)
Podemos ver em alguns trechos do romance a marca do neocolonialismo no discurso
de um conhecido de Rosa, que também é pesquisador, confessando seu interesse mor em
conviver e deter os conhecimentos mais íntimos da cultura ameríndia, esses trechos retratam
o quanto o regime colonialista ainda está impregnado de certa forma nas supostas ex-colônias
e, podendo ser transferido também, na relação do patriarcalismo e a mulher.
Mas você próprio também contamina os índios, quando passa uns tempos
com eles. (Rosa)
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Receio que esteja certa. Nós tentamos apenas observar, mas só com nossa
presença alteramos as coisas. […] Nós, os europeus, temos acesso a todos os
livros e documentos que faltam a eles. E o que faço com esse conhecimento?
Torno-me um catedrático e enriqueço as culturas europeia e norte-americana
com ele. (Wormoal – Rosa)
Você faz o conhecimento parecer uma nova forma de poder colonialista.
(Rosa)
Mas é claro que sim. A informação é o novo ouro. Você, como pessoa
versada no assunto, devia saber disso. Meu conhecimento sobre os índios é
uma forma de possuí-los – admito. Nós lutamos pelo território intelectual.
Mas é melhor que roubar-lhes as terras, não é mesmo? (Wormoal – Rosa)
(MELVILLE, 1999, p. 77)
Portanto, o encontro das duas personagens (Marietta e Rosa) não acontece apenas no
ambiente físico quando Marietta encontra Chofy e Rosa no hotel em Georgetown, mas
também, no momento em que ambas são usadas por um mesmo homem, quando são vítimas
enquanto mulheres e, não obstante, na influência que Rosa exerce sobre Chofy (agora
representando o colonizador e o ameríndio o colonizado) refletindo negativamente e
diretamente na vida de Marietta.
5. Considerações Finais
A História do Ventríloquo retrata a resistência da Guiana pós-colonial de forma
esplêndida, dando ênfase também à mulher e mostrando a sua participação nesta transição.
Apenas recentemente que as pesquisas mostram a contribuição da mulher nativa contra o
colonialismo, revelando o quanto o poder masculino tem restringido a fortuna da história da
participação feminina na luta anticolonial e a extensão dessa lacuna na historiografia. As
mulheres tiveram papel destacado em todas as lutas contra o colonizador, porém menos
visíveis que os homens. Mas ainda não foi atingida, de modo geral, a descolonização da
mulher, alguns fatores colonizadores ainda predominam como ideologias nacionalistas, o
fundamentalismo religioso, o sistema, ou seja, a questão cultural com suas particularidades de
acordo com sua localização no globo.
A alteridade nas obras pós-coloniais revela o binarismo existente nelas mesmas, em
que os opostos se encontram para formar uma realidade de diversidade de culturas, ideias,
indivíduos em constante mutação. O sujeito pós-colonial apresenta alteridade, principalmente,
pelo próprio penetrar do colonizador no território desconhecido e ao julgar o outro como
inferior, colonizado, assim como os europeus fizeram por todo o globo e os americanos
retomam em nossos dias.
A literatura pós-colonial mostra certas características e técnicas literárias. A
narrativa desenvolve estratégias que causam impacto no leitor e o
distanciam das convenções literárias da literatura eurocêntrica, que foi
imposta como universal e aplicável para todos. Os escritores pós-coloniais
enfrentam uma batalha textual em que reescrevem e reinterpretam as
narrativas escritas por representantes das potências colonizadoras cujos
objetivos foram de se manter no centro e marginalizar o nativo. (BOCCINI,
2005, p.12)
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Referências
CARVALHO, José Jorge de. O Olhar Etnográfico e a Voz Subalterna. 1999. Disponível em:
http://vsites.unb.br/ics/dan/Serie261empdf.pdf
BONNICI, Thomas. Conceitos-chave da teoria pós-colonial. Maringá, PR: Eduem, 2005.
MELVILLE, Pauline. The Ventriloquist’s Tale. New York: Bloomsbury, 1997.
__________. A história do ventríloquo. Trad. Beth Vieira. São Paulo: Companhia das Letras,
1999.
SANTOS, Eloína Prati dos. Pós-colonialismo e Pós-colonialidade. In Conceitos de
Literatura e Cultura. FIGUEREDO, Eurídice, organizadora. Juiz de Fora: UFJF, 2005.
BONNICI, Thomas. O pós-colonialismo e a literatura: estratégias de leitura. Maringá, PR:
Eduem, 2000.
CARVALHO, José Jorge de. O Olhar Etnográfico e a Voz Subalterna. 1999.
BARZOTTO, Leoné Astride. Interfaces culturais: The Ventriloquist’s Tale & Macunaíma.
Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Letras (Estudos Literários) da
Universidade Estadual de Londrina. Londrina, 2008.
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