Discurso feminino pós-colonial em Pauline Melville: perfil das personagens Marietta e Rosa Mendelson Jordana Cristina Blos Veiga XAVIER (G-UFGD)1 Dra. Leoné Astride BARZOTTO (UFGD)2 RESUMO: A obra The Ventriloquist's Tale (1997), da autora guianense Pauline Melville, possui uma narrativa riquíssima no quesito escrita feminina pós-colonial, trazendo em si personagens femininas polêmicas e emblemáticas que, de certa forma, mostram uma força e resistência tamanha contra o poder patriarcal imperialista. Esta pesquisa enfoca-se no perfil de duas das personagens femininas, Rosa Mendelson e Marietta, de naturalidades opostas – uma europeia e outra ameríndia – que tem seus destinos cruzados pelo infortúnio penetrar da cultura ocidental (europeia / branca / masculina) nas tribos uapixanas localizadas na Guiana e, ainda, pelo fato de ambas terem em comum, num determinado momento, o mesmo homem: Chofy Mckinnon. O romance é dividido em três partes e a investigação limitar-se-á na primeira e terceira parte da obra, em que as duas personagens são citadas. PALAVRAS-CHAVE: Discurso feminino; Pós-colonialismo; Pauline Melville. 1. Ginocrítica Anteriormente, uma tradição literária feminina era, à primeira vista, algo quase impossível, devido à predominância do patriarcalismo. Muitas obras de autoria feminina que foram diminuídas e renegadas a lixo emergiram e, a partir do século 18, a literatura se torna uma obra feminina. Elaine Showalter é uma das fundadoras da crítica feminista contemporânea, pois conceitua a “ginocrítica” como uma modalidade predominante feminina/feminista a partir do seu lócus de estudo nos Estados Unidos ao perceber, em termos acadêmicos, o texto escrito por mulheres, sobre mulheres e para mulheres. Showalter se intitula como inventora do termo “ginocrítica”, que investiga como a escrita de autoria feminina é diferente da escrita de autoria masculina na linguagem, no enredo, nos temas, no uso de metáforas ou de imagens. A ginocrítica consiste numa prática de crítica literária centrada na mulher, privilegiando as críticas de mulheres em relação a textos escritos por mulheres, como já dito. Assim, esta mobilidade de investigação será o fomento utilizado no seguinte trabalho. Para uma análise nesse perfil teórico-conceitual, nada melhor que um romance escrito por uma autora que experimentou 'ser mulher' nas savanas na Guiana ao ver de perto a transição pós-colonial, uma vez que a obra de Pauline Melville 'escava' mulheres ameríndias, europeias, híbridas, transitórias, com inspiração real ou pura ficcionalidade, para expressar o potencial de criação diegética onde está envolto o universo feminino como um todo desde os 1 Jordana Cristina Blos Veiga Xavier, orientanda do PIVIC. Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD. [email protected] 2 Leoné Astride Barzotto, Prof.ª Dra. Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD. [email protected] 240 primórdios da humanidade. Logo, a capacidade de dar voz a um povo para afirmar sua identidade são de grande importância aos escritores e críticos pós-coloniais. [...] Parece que a heteroglossia do romance expressa melhor a representação dos povos póscoloniais. [...] Os Estudos Pós-coloniais destacam as várias e diferentes vozes no romance. (BONICCI, 2005, p.50-51) Ao abordar o subalterno, o que para muitos escritores pós-coloniais foi um grande desafio, para a autora enquanto mulher e para fazer a outra (índia, analfabeta, duplamente colonizada) ser ouvida há um discurso de duas vozes, uma vez que apresenta a voz da estrutura dominante e a voz da estrutura silenciada. 2. Melville e a obra The Ventriloquist’s Tale Pauline Melville nasceu na Guiana e, atualmente, mora em Londres. Filha de pai ameríndio guianense e mãe inglesa, morou quase toda sua vida na Inglaterra, mas passou grande parte de sua infância e adolescência na Guiana. Publicou seu primeiro livro, ShapeShifter (1990), que reúne uma coletânea de contos que trata da vida pós-colonial no Caribe, esse lhe rendeu o Prêmio Commonwealth Writers. A História do Ventríloquo (The Ventriloquist’s Tale, 1997) é seu primeiro romance. Por ele recebeu o Prêmio Whitbread e o Prêmio Orange. Também publicou The Migration of Ghosts. Seu último livro é Eating Air (2009). A obra de Melville ocupa lugar na suposta Terceira Onda Feminista que, alguns alegam, surgiu no início dos anos 1990, nos Estados Unidos. Os itens na agenda da “Terceira Onda Feminista” incluem a teoria queer, a conscientização da negra, o pós-colonialismo, a teoria crítica, o transnacionalismo, a interpretação pós-estruturalista de gênero e de sexualidade. Pauline parte de uma perspectiva pós-colonial e crioula e lança mão de novas possibilidades para explorar o potencial criativo dentro de limitações impostas pelo discurso colonial (LEONÉ, 2008). Melville, de certa forma, faz uma conexão entre sua história pessoal e suas histórias de ficção. O romance (The Ventriloquist’s Tale, 1997) é dividido em três partes, tomando lugar na Guiana e narrando histórias místicas, ora em tempo “real” ora num passado mais distante, dos ameríndios uapixanas. Apesar de serem mestiços, catequizados os ameríndios ainda vivem em aldeias com chão de terra batida. A primeira parte conta-nos a história do mestiço Chofy Mckinnon que, depois de descobrir que os negócios com o gado não vão nada bem, por conta de uma infestação de morcegos-vampiros que andam atacando o rebanho, vai para Georgetown trabalhar para mandar dinheiro à família. Junto com ele, leva sua tia Wifreda – uma idosa da tribo que sabe muitas histórias – a mesma vai tratar seu problema de cataratas. Em Georgetown, Chofy conhece uma pesquisadora inglesa por quem se apaixona. Rosa vem para Guiana pesquisar sobre o escritor inglês Evelyn Waugh que, no passado, passou algum tempo na tribo com os Mckinnon, motivo pelo qual Chofy desperta interesse dela. Porém, a única pessoa que se lembra e pode revelar alguma informação para a pesquisadora é tia Wifreda (que nesta altura repousa após ser operada de um olho). Não 241 demora muito para que Chofy e Rosa virem amantes, levando o índio a esquecer completamente a mulher e o filho que deixou em Muco-Muco. Rosa não é a única que está na região investigando algo, Michael Wormoal é um expert em mitologia comparativa entre os índios sul-americanos. Ele acaba conhecendo-a no hotel onde ambos estão hospedados e a entrega uma cópia do artigo de sua pesquisa que, em certo momento, cita o mito do eclipse (relacionado com incesto). Um mito que tia Wifreda gostaria de esquecer. Na segunda parte, o narrador volta ao tempo para retomar a história de Danny Mckinnon e Beatrice Mckinnon, irmãos de sangue e amantes. Eles foram separados pelo padre Napier por terem cometido tal “pecado mortal” quando o padre estava colocando suas atividades evangelísticas em prática, catequizando os índios. Os Mckinnon herdaram este sobrenome do branco escocês Alexander Mckinnon, casado com Zuna e Maba (as duas eram irmãs, wapixanas), oferecidas pelo pai ao branco – depois de ter conquistado confiança ao longo do tempo em que passou com a tribo. Com Zuna, teve Wifreda, mas antes (com Maba) teve Beatrice e Danny, dentre outros filhos. Segundo o ventríloquo, Wifreda sempre teve as vistas fracas; Beatrice foi descrita como a mais bela e comunicativa em relação às outras; Danny era habilidoso e formoso e Maba e Zuna eram figuras valentes, habilidosas prestativas. Levando a vida de acordo com seus costumes e crenças (exceto Alexander que era um tanto quanto ateu e cético) os Mckinnon, o resto da tribo e toda a redondeza, certo dia, recebem a presença do padre, Napier, a fim de fundar igrejas, batizar e catequizar todos os indígenas. Para finalizar a narrativa, o ventríloquo volta ao lugar onde tia Wifreda está em repouso. Chofy está com ela e, pela primeira vez, escuta a avó contar a história de Beatrice e Danny. Chofy volta a se encontrar com Rosa Mendelson no hotel e desta vez sai com ela e acaba conhecendo algumas pessoas do meio social da pesquisadora. Alguns deles estão explorando a reserva de onde Chofy vem. Para impressionar, ele acaba revelando o significado do seu nome que – por engano – acaba sendo interpretado como “explosão” na língua wapixana. O filho de Chofy acaba sofrendo um acidente por conta das explorações que estavam acontecendo perto de sua casa. Houve uma explosão que o deixou com ferimentos graves e, mais tarde, leva o garoto a falecer. Antes da morte do garoto, Marietta o leva para Gorgetown no hospital e vai à procura do marido (que há tempos não dá notícia). A mulher encontra o marido nos braços de Rosa, o que a deixa mais amargurada com a situação. Mesmo assim o casal volta para a tribo para enterrar o filho e acabam ficando por lá e, com o tempo, tudo vai voltando ao normal e o caso de amor que aconteceu em Georgetown acaba adormecendo. O narrador acaba revelando parte de seu nome depois de comentar sobre os acontecimentos e acaba comentando sobre as dificuldades de ser um indígena (com suas palavras) em meio a um lugar que por ora está se “globalizando”. 3. Contextualizando os estudos culturais e pós-coloniais O objeto cultural, ao longo do tempo, sofreu muitas mutações; ora relevantes, ora irrelevantes e totalmente comerciais. Já a análise desse objeto permanece até hoje (com prioridade) no mundo, abordando aspectos principais tais como: gênero, raça, entre outras 242 novas alteridades. No fim do século XX e no começo do século XXI, o Materialismo Cultural, o Novo Historicismo, os Estudos Feministas (hoje Estudos de Gênero) e os estudos Póscoloniais viram um conjunto coeso de crítica acadêmica tentando efetivar as mudanças políticas em plena globalização. Esses estudos versam sobre uma análise e uma estética, segundo Bonnici (2005), que têm por objetivo compreender a realidade e as condições em que certos setores da humanidade se encontravam e se encontram excluídos pelos detentores da hegemonia colonial. O termo pós-colonial passou a ser usado, segundo Santos (2005), para designar essas interações nas sociedades culturais e nos círculos literários. O prefixo “pós” tem sido fonte de discussões constantes entre os críticos por seu sentido primeiro indicar “depois” do colonialismo, enquanto os estudos pós-coloniais abrangem, principalmente, as articulações “entre” e “através” dos períodos históricos politicamente definidos, do pré-colonial, passando pelo colonial, estendendo-se às culturas pós-independência e, mais recentemente, ao neocolonialismo de nossos dias. [...] a partir da última década do século XX que o pós-colonialismo passou a constituir um dos principais discursos críticos da humanidade, ao lado de teorias como o pós-estruturalismo, a psicanálise e o feminismo. [...] Se por um lado a crítica pós-estruturalista da epistemologia ocidental e a teorização das diferenças/alteridade cultural são indispensáveis à teoria pós-colonial,, filosofias materialistas, como o marxismo, parecem suprir as bases da política pós-colonial. [...] Edward Said, que representa a primeira fase da teoria pós-colonial [...]. (SANTOS, 2005, p.346) Segundo Santos (2005), Said valoriza os intelectuais do Terceiro Mundo, que como ele, Spivak, Bhabha e outros, migraram para a metrópole, por sua “viagem para dentro”, e reconhece seu mérito como figuras opositoras, expresso na forma pela qual se apropriam do discurso dominante da metrópole para voltá-los contra o ocidente e desconstruir suas tentativas de dominar as regiões de onde eles vêm. No entanto, por “cruzar fronteiras”, o intelectual abrigado na metrópole escapa dos impasses que aprisionam alguns intelectuais nacionalistas. Said enfatiza a possibilidade de, vivendo entre dois mundos, atuar como mediador entre eles, e enfatiza essa interrelação. Uma das estratégias pós-coloniais mais eficazes consiste em produzir um tipo de texto - uma crítica cultural, enfim - que acuse a barbárie inerente e fundante dos textos monumentais do colonizador. [...] do ponto de vista do texto cultural gerado ou enunciado diretamente pelos grupos sociais submetidos ao poder colonial (ou neo-colonial), busca-se ressaltar sua capacidade cognitiva de devolver uma imagem do colonizador construída a partir da experiência do grupo dominado. (CARVALHO, 1999, p.16) As teorias pós-coloniais influenciaram o discurso feminista que, outrora, não tinha relação com o pós-colonialismo. Ora, enquanto a cultura europeia e suas potências se ocupavam em invadir e dominar novas colônias, a luta pelos direitos civis das mulheres e suas conquistas nas obras literárias (em especial no início do século XX) deram resultados a 243 favor da teoria feminista. Quanto aos países pós-coloniais em relação ao feminismo, as mulheres se posicionam de forma que recusam a cultura do colonizador adotando os rumos de Calibã. O feminismo torna-se uma metáfora do colonialismo, uma vez que a mulher na colônia representa a mulher como colônia. Os conceitos de linguagem, voz, discurso, silêncio e imitação começam a ser usados por autores feministas (como Duras e Irigaray) para investigar o discurso entre o patriarcalismo e a condição da mulher (Greene & Kahn, 1985:100). O conceito seminal da relativização da literatura canônica pode servir como exemplo. À semelhança das conclusões do pós-colonialismo, o feminismo descobre que o valor estético da literatura hegemônica não está no próprio texto e, portanto, não é universal. (BONNICI, 2000, p.154) Tratando do olhar pós-colonial, segundo José Jorge de Carvalho (1999), o projeto fundamental dos teóricos pós-coloniais latinoamericanos de antes era a tarefa da descolonização. Essa tarefa foi deixada de lado, por um bom tempo, com o crescimento da nossa absorção do olhar universalizante da Antropologia europeia e, mais recentemente, norte-americana. [...] O ponto central que está por trás do olhar pós-colonial é lutar, como diz Mignolo, por um deslocamento do locus de enunciação, do Primeiro para o Terceiro Mundo. (CARVALHO, 1999, p.9) Mulheres que viveram em colônias brigaram pela própria emancipação e a do país. A emancipação feminina continua sendo uma luta no período pós-colonial e um desafio para que a mulher, outrora duplamente colonizada, possa continuar sendo agente de sua história. O objetivo dos discursos pós-coloniais e do feminismo, então, baseia-se na integração da mulher marginalizada, objetificada pela sociedade. 4. Marietta e Rosa A obra de Melville, como já foi pontuado anteriormente, foge dos padrões literários eurocêntricos e nos apresenta a literatura do ponto de vista do Outro (neste caso os uapixanas/colonizados/não-europeus/não-brancos), isso se dá desde a escolha dos personagens principais até a disposição do cenário. Dentre esses personagens, Marietta e Rosa nos chama atenção na trama por serem de diferente etnia, cultura, intelecto, posição social (pois uma representa o colonizador e a outra o colonizado) e terem em comum o „ser‟ mulher. Ambas se encontram num dado momento no romance e dividem o mesmo homem: Chofy, um mestiço que acaba sendo seduzido pelo padrão de beleza europeu. Marietta é ameríndia, duplamente colonizada, vítima do patriarcalismo, casada com um mestiço, não se encaixa no modelo de beleza de Rosa, mas é feliz onde vive e preza pela família e cultura de seu povo. Diferentemente de Mendelson, ela ainda não passa por um período de descolonização enquanto mulher, mas se posiciona com resistência em muitas ocasiões. 244 Marietta era uma mulher vibrante, cheia de vigor, que trabalhava sem parar. […] Ocupada com os pratos, curvava a figura robusta, baixota, de um balde a outro. Faltavam-lhe dois dentes da frente, mas isso nunca a impedira de sorrir. A pele era de um marrom-escuro avermelhado. Usava o cabelo negro numa trança frouxa. Quase sempre cantava pela casa, mas agora mal se dava conta do que fazia. Estava transtornada por causa da discussão. Estavam brigando assim havia meses. (MELVILLE, 1999, p. 23) Como resultado do penetrar europeu dentro de sua própria casa, pois Chofy é um mestiço, o marido não segue totalmente a cultura indígena, embora não sustente algo puramente sentimental com ele, ela não se sente confortável com a situação que estão vivendo. Antes da ida de Chofy à Georgetown, eles têm uma ultima aproximação. Uma noite antes da partida, Marietta tinha acabado de deitar na rede quando ouviu a voz do marido chamando do outro quarto. “Cadê minha querida?” “Estou aqui, Chofy, e eu amo você”, ela respondeu do escuro. Depois foi até ele, um tanto tímida, atravessando a noite palpável, para deitar-se a seu lado numa cama composta por um velho colchão apoiado em cima de caixas e caixotes, e ali fizeram amor pela primeira vez em meses, sentindo-se enferrujados, sem prática, um pouco constrangidos e felizes. (MELVILLE, 1999, p. 32) Após a partida de Chofy, Marietta demonstra independência em relação ao marido, acha até mais fácil a vida na tribo sem a presença dele depois de longos períodos de silêncio pontuados por discussões que caracterizavam os últimos tempos do casamento e, de certa forma, ficar longe dele lhe causou alívio. Este sentimento em Marietta demonstra-nos o posicionamento dela em relação à mestiçagem de Chofy e os aspectos da cultura dominante impregnados nele em sua forma de lidar com ela e com os aspectos culturais tribais. Logo depois que o casal perde o filho, Marietta se desliga do marido mostrando sua indiferença e mais uma vez mostrando sua resistência. Marietta fazia as tarefas todas, cuidava da roça de mandiocas, mas Chofy sabia que a vida esvaíra de dentro dela. [...] Quando Chofy e Marietta estavam limpando o mato, um dia de manhã, Marietta virou-se para ele e disse: Se quiser, podemos nos separar. A voz saiu sem a menor inflexão, desinteressada. (MELVILLE, 1999, p. 310) Rosa Mendelson é uma pesquisadora, branca, europeia, provinda de uma cultura judaico-cristã, mas se intitula cética, marxista e bem resolvida. Seu romance com Chofy tem início por interesse, afinal seu maior anseio, durante a relação, é ir até as Savanas no Rupununi de onde o ameríndio veio. O livro a descreve da seguinte maneira: O cabelo era um arbusto de cachos negros e ásperos em volta da cabeça. […] o pai dela era um judeu russo, o que explicava as maçãs do rosto largas e a 245 boca rasgada. Os olhos eram azuis, oblíquos e grandes, sonhadores e um tanto saltados. […] Era alta e usava jeans. (MELVILLE, 1999, p. 42-43) […] Você acredita em superstições? Em hipótese alguma. Rosa sentou-se na cama, fingindo-se ultrajada. Nem em religião. Sou uma racionalista convicta. (MELVILLE, 1999, p. 266) A pesquisadora representa a mulher branca/europeia num patamar mais elevado em relação à mulher ameríndia, pois já experimenta uma certa desalienação cultural-patriarcal não se enquadrando mais no papel estigmatizado da mulher dona de casa / submissa / marginalizada, que está passando pelo processo de descolonização feminina, mas experimenta (assim com Marietta) vestígios da cultura patriarcal que faz uma abjeção da mulher, tratando-a como objeto, em alguns casos, puramente sexual. Esse episódio é possível observar no seguinte trecho em que Chofy se dirigi à Rosa quando estão voltando das savanas. Os olhos de Chofy tinham encolhido na cabeça. Ele cantava alto, numa espécie de cântico: Estou com uma ereção. Onde é que eu ponho? Sempre de olho em Rosa. As pessoas riam. […] Rosa tentou cochilar. Chofy estendeu o braço, agarrou seu cabelo e puxou-lhe a cabeça. Ela se esquivou. Estou com uma ereção. Onde é que eu meto? Os passageiros caíram na gargalhada. (MELVILLE, 1999, p. 57) Neste trecho temos dois tópicos relevantes a serem percebidos, primeiro como Chofy se refere à Rosa de maneira brutal, invadindo seu espaço – representando bem a abjeção da mulher e, segundo, como ele se dirige ao colonizador (representado por Rosa) adotando Calibã, utilizando sua língua nativa. Ao mesmo tempo em que Rosa representa a colônia (a mulher) também representa o colonizador (europeu) e isso é bem visível em sua relação com Chofy. Ainda lançando mão desta parte do romance, o trecho que segue o episódio anterior retrata um pouco da reação dos ameríndios aos olhos do dominante: Àquela altura estavam indo a uma velocidade vertiginosa. Nós vamos morrer. Nós vamos morrer, cantava o caminhão inteiro de índios para as estrelas acima. Para Rosa, era como se todos tivessem desistido da esperança e abraçassem a destruição com um abandono descuidado, felizes com o perigo, com a inevitabilidade da aniquilação. (MELVILLE, 1999, p. 58) Podemos ver em alguns trechos do romance a marca do neocolonialismo no discurso de um conhecido de Rosa, que também é pesquisador, confessando seu interesse mor em conviver e deter os conhecimentos mais íntimos da cultura ameríndia, esses trechos retratam o quanto o regime colonialista ainda está impregnado de certa forma nas supostas ex-colônias e, podendo ser transferido também, na relação do patriarcalismo e a mulher. Mas você próprio também contamina os índios, quando passa uns tempos com eles. (Rosa) 246 Receio que esteja certa. Nós tentamos apenas observar, mas só com nossa presença alteramos as coisas. […] Nós, os europeus, temos acesso a todos os livros e documentos que faltam a eles. E o que faço com esse conhecimento? Torno-me um catedrático e enriqueço as culturas europeia e norte-americana com ele. (Wormoal – Rosa) Você faz o conhecimento parecer uma nova forma de poder colonialista. (Rosa) Mas é claro que sim. A informação é o novo ouro. Você, como pessoa versada no assunto, devia saber disso. Meu conhecimento sobre os índios é uma forma de possuí-los – admito. Nós lutamos pelo território intelectual. Mas é melhor que roubar-lhes as terras, não é mesmo? (Wormoal – Rosa) (MELVILLE, 1999, p. 77) Portanto, o encontro das duas personagens (Marietta e Rosa) não acontece apenas no ambiente físico quando Marietta encontra Chofy e Rosa no hotel em Georgetown, mas também, no momento em que ambas são usadas por um mesmo homem, quando são vítimas enquanto mulheres e, não obstante, na influência que Rosa exerce sobre Chofy (agora representando o colonizador e o ameríndio o colonizado) refletindo negativamente e diretamente na vida de Marietta. 5. Considerações Finais A História do Ventríloquo retrata a resistência da Guiana pós-colonial de forma esplêndida, dando ênfase também à mulher e mostrando a sua participação nesta transição. Apenas recentemente que as pesquisas mostram a contribuição da mulher nativa contra o colonialismo, revelando o quanto o poder masculino tem restringido a fortuna da história da participação feminina na luta anticolonial e a extensão dessa lacuna na historiografia. As mulheres tiveram papel destacado em todas as lutas contra o colonizador, porém menos visíveis que os homens. Mas ainda não foi atingida, de modo geral, a descolonização da mulher, alguns fatores colonizadores ainda predominam como ideologias nacionalistas, o fundamentalismo religioso, o sistema, ou seja, a questão cultural com suas particularidades de acordo com sua localização no globo. A alteridade nas obras pós-coloniais revela o binarismo existente nelas mesmas, em que os opostos se encontram para formar uma realidade de diversidade de culturas, ideias, indivíduos em constante mutação. O sujeito pós-colonial apresenta alteridade, principalmente, pelo próprio penetrar do colonizador no território desconhecido e ao julgar o outro como inferior, colonizado, assim como os europeus fizeram por todo o globo e os americanos retomam em nossos dias. A literatura pós-colonial mostra certas características e técnicas literárias. A narrativa desenvolve estratégias que causam impacto no leitor e o distanciam das convenções literárias da literatura eurocêntrica, que foi imposta como universal e aplicável para todos. Os escritores pós-coloniais enfrentam uma batalha textual em que reescrevem e reinterpretam as narrativas escritas por representantes das potências colonizadoras cujos objetivos foram de se manter no centro e marginalizar o nativo. (BOCCINI, 2005, p.12) 247 Referências CARVALHO, José Jorge de. O Olhar Etnográfico e a Voz Subalterna. 1999. Disponível em: http://vsites.unb.br/ics/dan/Serie261empdf.pdf BONNICI, Thomas. Conceitos-chave da teoria pós-colonial. Maringá, PR: Eduem, 2005. MELVILLE, Pauline. The Ventriloquist’s Tale. New York: Bloomsbury, 1997. __________. A história do ventríloquo. Trad. Beth Vieira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. SANTOS, Eloína Prati dos. Pós-colonialismo e Pós-colonialidade. In Conceitos de Literatura e Cultura. FIGUEREDO, Eurídice, organizadora. Juiz de Fora: UFJF, 2005. BONNICI, Thomas. O pós-colonialismo e a literatura: estratégias de leitura. Maringá, PR: Eduem, 2000. CARVALHO, José Jorge de. O Olhar Etnográfico e a Voz Subalterna. 1999. BARZOTTO, Leoné Astride. Interfaces culturais: The Ventriloquist’s Tale & Macunaíma. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Letras (Estudos Literários) da Universidade Estadual de Londrina. Londrina, 2008. 248