Machado leitor de Alencar, entre outros João Roberto Maia Escola Politécnica Joaquim Venâncio (Fiocruz) Resumo: Além de ter sido conhecedor de parte importante da tradição literária e filosófica ocidental, e com ela dialogar em sua obra ficcional, Machado de Assis foi, como se sabe, leitor cuidadoso e arguto da então incipiente tradição literária brasileira, sobre a qual escreveu importantes textos críticos. Interessa notar que “Instinto de nacionalidade” é, em parte, tributário do modo como José de Alencar situa o problema da nacionalidade em “Benção paterna”, prefácio a Sonhos d’ouro. São intervenções críticas que postulam o entendimento de que a nacionalidade é um problema, uma experiência histórica a exigir sondagens para além da visão pitoresca tradicional. Palavras-chave: Machado de Assis – José de Alencar – crítica – nacionalidade literária Uma questão fecunda para o debate sobre Machado de Assis diz respeito ao lugar do escritor fluminense na literatura brasileira de seu tempo, principalmente sua relação com os escritores que lhe foram contemporâneos ou seus predecessores imediatos. Sabemos que a literatura machadiana se nutriu, entre outras, da tradição literária inglesa, com autores como Shakespeare, Fielding, Sterne principalmente, da literatura e filosofia francesas, com Stendhal, Voltaire, Xavier de Maistre, Pascal. Na outra ponta, nutriu-se também da modesta, àquela altura, contribuição nacional para o romance. Numa passagem muito importante de Formação da literatura brasileira, Antonio Candido afirma que uma das razões da grandeza de Machado é o seu esforço de acumulação literária, ou seja, seu empenho em estudar, entender, assimilar a obra de seus predecessores, Alencar, Macedo e outros, buscando dar continuidade e revitalizar o que havia de positivo no legado literário nacional (ainda que incipiente, precário) à luz de outra concepção estética e de uma compreensão muito mais conseqüente da estrutura social brasileira. Tal indicação de Candido será muito fecunda para a teoria de Roberto Schwarz a respeito da importação da forma do romance europeu em Alencar, em relação ao qual, nesse aspecto, Machado marca diferença substantiva, que resulta da releitura do compatriota e de ajustes locais a que submete o figurino da ficção realista européia, vinculado este ao ideário liberal, à afirmação dos direitos individuais ou universais (Ao vencedor, as batatas e Machado de Assis: um mestre na periferia do capitalismo). Nesta exposição colocarei em pauta apenas algumas notações que estão presentes em importantes textos críticos de nosso autor sobre a literatura brasileira. De modo conseqüente, são posições críticas que balizaram a criação artística do próprio Machado, o que pode proporcionar campo a estudos atentos à importância da visão de conjunto, com que é possível testar relações entre gêneros e momentos distintos da obra, como já apontava José Aderaldo Castello, num livro de 1969, Realidade e ilusão em Machado de Assis – a necessidade de compreensão articulada da produção machadiana. Ainda mais especificamente, o presente texto dará prioridade a “Notícia da atual literatura brasileira – instinto de nacionalidade”, lendo-o como tributário, em parte, do modo como José de Alencar situa o problema da nacionalidade em “Benção paterna”, prefácio ao romance Sonhos d’ouro. São intervenções críticas que postulam que a nacionalidade é um problema, uma experiência histórica a exigir sondagens para além da visão pitoresca tradicional. Antes faço uma verificação sumária da acuidade crítica de Machado de Assis em outro importante artigo que trata das letras pátrias: “A nova geração” (1879). Ao dar notícia do surgimento de uma nova geração poética, o crítico aponta de saída, na contracorrente do ímpeto dos novos que desdenham os predecessores românticos locais, a importância do lento, difícil processo de acumulação literária, a atenção fundamental que se deve dar à tradição literária em formação. Um pouco de consideração reflexiva, impondo-se ao entusiasmo, daria aos moços a consciência segundo a qual “a extinção de um grande movimento literário não importa a condenação de tudo o que ele afirmou; alguma coisa entra e fica no pecúlio do espírito humano”. Em linha com essa observação, o crítico não deixa esquecer que há, entre os novos, alguns que a musa romântica, “aquela grande moribunda”, gerou (Assis, 1997, pp. 29-30). Vejamos agora o Machado leitor atento e arguto de José de Alencar, não apenas da ficção deste mas dos textos críticos do Alencar polemista, entre os quais um dos mais destacados é “Benção paterna” (1872). Um aspecto que já foi bastante ressaltado no debate sobre José de Alencar é o propósito, que animou o escritor, de viabilizar uma visão interpretativa da história da vida brasileira, em sua “gestação lenta”; propósito que se depreende nas diferentes dimensões espaciais e temporais observáveis no conjunto de sua produção romanesca, além de estar explicitamente afirmado no prefácio de Sonhos d’ouro. Alencar atribuiu a seus romances a tarefa de interpretar o processo histórico brasileiro, procurando abarcar ficcionalmente passado e presente, cidade e campo, litoral e sertão. Acoplam-se aqui uma tentativa de compreender historicamente o Brasil e o empenho de elucidar a própria obra em perspectiva de sistematização. Trata-se de um autor refletido, cuja obra está dotada de significativa autoconsciência ficcional. Autor que soube atar atividade crítica e produção ficcional, assinalando modos de ver que lançam luzes sobre a tarefa de fazer literatura nas condições de país periférico. O prefácio é uma intervenção no debate sobre os próprios romances do escritor, um texto que polemiza, mas sob a forma de um terno diálogo entre o criador Alencar e sua cria, o livro Sonhos d’ouro. Não escapa ao leitor a ironia própria desse modo indireto de responder a seus críticos, sem nomeá-los. Aliás, a ironia é uma das marcas do prefácio, recurso que deixa a nu a debilidade de boa parte das críticas que motivaram a intervenção do romancista cearense no debate. Há resposta aos críticos que o acusam de ser um escritor “comercial”, de objetivar principalmente o lucro. Há referência à estreiteza de concepções moralistas de certa crítica a respeito do gênero romance, o que remete àquele “estado de timidez envergonhada” do romance, de que fala Antonio Candido (“Timidez do romance”): aquela necessidade que o gênero conheceu de se autojustificar. O ponto alto do texto são as observações acerca da nacionalidade em terreno literário. Para início de conversa, ao antever que seu romance seria acusado de estar “desbotado do matiz brasileiro”, Alencar mira uma concepção fraca de literatura nacional que a reduz a “picante sabor da terra” (Alencar, 1951, p. 12). O ânimo de não respaldar tal visão pitoresca e superficial está alicerçado no entendimento bem mais complexo da nacionalidade, de que o ponto de vista matizado do autor dá exemplo. Diga-se que ele não deixa de fazer finca-pé na defesa da autonomia literária brasileira, aspiração presente no debate, entre nós, em concepção programática, desde a década de 1820, a partir da intervenção do francês Ferdinand Denis. Essa postura alencariana está patente na disposição de polemizar com a perspectiva portuguesa refratária à existência de uma literatura brasileira, assim como está presente na crítica, feita com bom humor, ao passadismo de portugueses e puristas locais para os quais “uma literatura nossa (...) é aquela que existia em Portugal antes da descoberta do Brasil” – o foco crítico, quanto à última questão, a que não falta boa dose de ridículo, está numa concepção do literário que constituiria uma espécie de veto à sociedade contemporânea. Note-se que, não obstante a defesa da literatura pátria (ou justamente por defendê-la), o escritor toma distanciamento crítico do programa patriótico, não sancionando o insulamento literário nacional, afastando-se daqueles que “professam a nacionalidade como uma religião” (Idem, p. 13). Após expor como sua obra ficcional se organiza relativamente à “gestação lenta do povo americano” e ao período posterior à independência política, Alencar reconhece lucidamente a situação do país dependente culturalmente. Nas condições de “uma sociedade nascente” impõe-se a necessidade de continuar a integrar a nossa cultura a padrões culturais do Ocidente. O autor de Iracema tem na devida conta a preocupação com a importação das formas artísticas, o problema da dependência cultural, a compreensão da mescla cultural – uma ordem de problemas que coloca na pauta diversas possibilidades de inter-relações entre culturas e sociedades, que vão da subserviência à reelaboração de formas em alto nível, disciplinada pelo filtro da experiência local, nacional. Dentro do mesmo programa de fazer emergir a especificidade nacional encontram-se também, com propósitos e rendimentos próprios, as histórias ambientadas na cidade. A ficção urbana, incluída em tal projeto, desvela a fisionomia da sociedade brasileira como, nos termos do escritor, “indecisa, vaga e múltipla”, em razão do “amálgama de elementos diversos”, nacionais e estrangeiros. A compreensão dessa sociedade nos maiores centros urbanos, principalmente no Rio de Janeiro da época, exigia a consideração da mescla cultural – a forte presença de culturas européias, além da portuguesa, especialmente a francesa. Nesse sentido, em “Benção paterna” Alencar defende seus romances urbanos de análise psicológica, descartando a literatura pitoresca como a única via para o romance nacional. Uma perspectiva que dá centralidade à concepção de que o valor nacional não pode ser reduzido aos livros indianistas, àquele já referido “picante sabor da terra”. Diga-se que ele continuava a afirmar a importância desse filão para a sua obra no mesmo prefácio, mas combatia as opiniões que teimavam na exclusividade ou prevalência do nativismo de convenção. No fim das contas, “Benção paterna” sinaliza a necessidade de firmar um ponto de vista brasileiro, no terreno da literatura, a respeito das transformações da civilização brasileira, sem parte com ingenuidades de certo patriotismo. O artigo de Machado de Assis, “Notícia da atual literatura brasileira – instinto de nacionalidade”, traz a data do ano que sucedeu aquele em que Alencar deu à luz seu prefácio. As afinidades entre os dois textos são grandes, permitem a continuidade da reflexão e uma interlocução crítica, ainda que não explicitada no escrito machadiano. O problema a examinar, no artigo de Machado, é o da presença ostensiva do que chama justamente de “instinto de nacionalidade”, a aderência da literatura da época ao que se reconhece como especificamente nacional. A visada, desde o início e em outros momentos do texto, é instruída pelo senso dos contrários, o que favorece o exame do problema por diferentes ângulos. De certa perspectiva, a onipresença da aspiração nacional é “sintoma de vitalidade e abono de futuro” (Assis, 1997, p. 17). Por outro flanco, todavia, a mesma disposição tem vigência irrefletida, na medida em que toma os aspectos nacionais como critério todo-poderoso de validação estética. O objeto principal do texto é a aspiração a uma literatura nacional, a “uma literatura mais independente”, para usar os termos do autor. Como vimos, o mesmo problema tem lugar central na perspectiva de Alencar. Também aqui Machado parte de duas posições polarmente contrárias, ressalvando a cota de verdade e pertinência de ambas, para sublinhar a insuficiência da opção unilateral por uma delas. A reação à poesia indianista pretendeu afirmar que o tema do índio não deveria ter importância para a poesia – nas palavras do crítico, visava-se excluir ilicitamente “o elemento indiano da nossa aplicação intelectual”. O outro modo de ver, cativo de equívoco extremo-oposto, é o que postula ser aquele tema “um exclusivo patrimônio da literatura brasileira” – postura cuja conseqüência pode resultar na opinião “que só reconhece espírito nacional nas obras que tratam de assunto local, doutrina que, a ser exata, limitaria muito os cabedais da nossa literatura” (Idem, p. 19). Como para o confrade cearense, posições exclusivistas como estas significam, no fim das contas, déficit de conhecimento e correspondente perda de força artística. De passagem, anoto que o exemplo escolhido por Machado como negação do exclusivismo do tema nacional, Gonçalves Dias, atesta a argúcia do leitor de poesia que ele foi. São precisas suas observações sobre o poeta maranhense, cujos poemas e dramas, na sua maior parte, não obedecem a enquadramentos nacionais, sem prejuízo da força de sua poesia indianista. Na contramão de uma postulação central do nacionalismo literário, a saber, a convergência entre o âmbito temático e o âmbito nacional, está a amplitude do temário de Gonçalves Dias, o qual abarca ambientes, paisagens e épocas que não se coadunam ao princípio programático de dar expressão a particularidades nacionais. Entre outros exemplos, estão suas peças de teatro ambientadas no Portugal e na Itália do século XVI ou seus poemas que exploram veio orientalista, como “Agar no deserto” e “Zulmira”, e a glosa de temas medievais portugueses como nas Sextilhas de Santo Antão. O romance brasileiro da época, pontua o crítico, “busca sempre a cor local”. Os costumes do interior, que avultam em nossa prosa de ficção, sintomaticamente “são os que conservam melhor a tradição nacional”. Logo em seguida Machado caracteriza os costumes da capital do país e de algumas cidades brasileiras em termos que retomam a consciência da mescla cultural presente nas observações de Alencar: costumes “muito mais chegados à influência européia, [que] trazem já uma feição mista e ademanes diferentes”. Também não lhe escapa que o “romance puramente de análise” é, entre nós, raríssimo (Idem, p. 22). Não custa lembrar que àquela altura, anterior aos grandes romances machadianos da maturidade, a ficção urbana de Alencar e a defesa que o escritor faz deles em “Benção paterna” constituem esforços consideráveis para suprir a lacuna apontada. Machado foi grande leitor do romance alencariano ambientado na Corte, como atesta a reapropriação que fez de um dos bem realizados exemplos, Lucíola, que tem cenas e caracteres reescritos nas Memórias póstumas de Brás Cubas 1 . E a partir do período da maturidade machadiana a cena literária brasileira contará com um escritor cujos recursos permitiam colocar em outro patamar a vertente urbana de nossa ficção O discernimento da irrelevância que há na opção pelos traços epidérmicos da nacionalidade literária tem vigência também no olhar crítico lançado à poesia que faz da cor local a razão de sua existência, a qual pode não ir além de “uma nacionalidade de vocabulário” (Idem, p. 27). A trilha proposta por Machado para escapar do nacionalismo estrito que contamina e empobrece a produção literária está, como sabemos, no cultivo de “certo sentimento íntimo”. Situarei sumariamente o que nosso autor propõe aqui no contexto de recepção de sua obra. Em relação aos primeiros críticos, aponto uma questão que já entre eles ganhou destaque e que se tornou de longo curso, pois freqüenta ainda hoje o debate: a relação ente o local e o universal na ficção machadiana. Como afirma Roberto Schwarz (“Duas notas sobre Machado de Assis”), o tratamento da cor local por Machado fora do esquadro da literatura brasileira da época pareceu a alguns uma impropriedade (o que se valorizava era a cor local convencional, o pitoresco, os elementos de identificação já bem reconhecidos como tais: a natureza, os costumes tidos como nacionais etc.). Entre 1 Ver a análise de Roberto Schwarz no já citado Machado de Assis: um mestre na periferia do capitalismo. eles, Silvio Romero assinalou o desdém que há na obra de Machado pelo povo brasileiro. Do ângulo dos que queriam superar o provincianismo daqueles críticos nacionalistas, o universalismo da obra era o ponto importante a ressaltar como sinal de adiantamento do autor em relação a seus pares. Entre os universalistas, sem prejuízo de suas contradições, estava José Veríssimo, que anotou a preocupação fundamental de Machado com a alma humana. O ponto comum entre as duas perspectivas é a escassez e debilidade do dado local nas narrativas machadianas. E de passagem, lembremos que um intelectual tão arguto como Mário de Andrade, em artigo de 1939, reprovava o nãobrasileirismo do escritor fluminense (“Machado de Assis”). Não há dúvida que a questão da feição irrelevante da matéria local está superada por estudos que mostram o contrário. Assim, não há mais sentido em pôr esse problema em pauta do mesmo modo como faziam os localistas e universalistas de outrora. A crítica vai chegando a um consenso a respeito da necessidade de considerar o Machado universal e o Machado que se encarrega da notação apuradíssima dos desconcertos locais. O passo adiante, já dado pelas melhores interpretações, está na combinação dos âmbitos. Na verdade, o próprio autor de Quincas Borba já havia dado régua e compasso para o esclarecimento de aspectos decisivos de sua obra no texto que é objeto desta exposição e custou a ser compreendido. Ele fala daquele “sentimento íntimo” que daria ao artista a possibilidade de pertencer a seu tempo e a seu país mesmo quando falasse de assuntos relativos a outras épocas e lugares. O vínculo fundamental do sentimento íntimo à condição situada do artista é, por um lado, o antídoto contra o universalismo abstrato (posição segundo a qual não importam as fronteiras nacionais, as assimetrias entre os países etc) e, por outro lado, por não impedir de tratar de assuntos os mais diversos, para além da circunscrição nacional, é o que pode facultar ao escritor não pagar tributo ao nacionalismo estreito em terreno literário, cujo suporte é o elemento pitoresco, a cor local de convenção. A compreensão articulada de “Benção paterna” e “Instinto de nacionalidade”, apenas esboçada aqui, constitui exemplo significativo de quão fecunda e elucidativa pode ser a interlocução crítica de seus autores. Referências bibliográficas ALENCAR, José de. “Benção paterna” (prefácio). In: Sonhos d’ouro. São Paulo: Círculo do Livro, 1951, pp. 7-18. ANDRADE, Mário de. “Machado de Assis”. In: Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Livraria Martins Editora, s/d, pp. 87-106. 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