Ano 1 | Nº 3 | Mar 2013 ISSN 2316-8102 WHERE THE WILD ROSES GROW por Juliana Pinho Ofélia (2011) de Bruno Vilela. Da série Cabeça de Santo. Impressão jato de tinta s/ papel. 150 x 62 cm Gostaria de poder citar Mallarmé ou Deleuze, mas a minha memória é seletiva e quase nunca lembro as grandes frases dos grandes homens. Em contrapartida, uma imagem fala-me mais do que qualquer frase e parece-me quase sempre mais eloquente que as ideologias que aplicam consoante às simpatias. Bruno Vilela nasceu em 1977 no Recife, Brasil, mas esse não é limite físico nem ideológico para a sua obra, embora o tenha sido até agora para a exibição da mesma. Como portuguesa, sinto-me tentada a falar de surrealismo sul-americano ou de tropicalismo. Arvorar cores e temáticas quentes, bairrismos ou etnografias. Mas não posso. Bruno Vilela tem-se como pintor, embora seja na fotografia que se expressa a maior parte das vezes: pura ou trabalhada em colagens, pintada, ou como ponto de partida para outras técnicas mais “ortodoxas”. É através da fotografia – tendo-a como meio, mas também como fim – que nos mostra a forma como vê, no caso aqui abordado, o nosso imaginário. Parece-nos que toda a obra de arte é pensada em função daquilo que o artista pretende transmitir. Mas poderá a mesma ser completamente prevista sem perder esse sentido artístico de traça Romântica? Bruno Vilela parece-nos dizer que sim, que tal é possível, na série Cabeça de Santo em que se insere uma Ofélia. Cabe-nos aqui referir qual a razão para essa Ofélia. Na série Cabeça de Santo a que pertence Ofélia, Bruno Vilela trabalhou os “arquétipos” do nosso imaginário. Do dele pelo menos. Partindo da mitologia nórdica ou africana – com mais e mais profundas repercussões nas vivências brasileiras –, e dos contos de fadas, o artista criou um conjunto de imagens que obedecem a uma linguagem (figura humana recortada sobre fundo negro) e que embora não façam parte da formação de todos nós, nos são próximas. Para tal, e mesmo correndo o risco de perder esse sentido Romântico da criação inspirada, Bruno Vilela tudo previu: os cenários, os figurinos, os intervenientes, a linguagem… A forma como passa da teoria à prática é também desenganadora: tendo como fundo a Chapada Diamantina que bem conhecia, Bruno Vilela nela embrenhou com o equipamento, como um homem dos mil ofícios. Foi fotógrafo e com isto pretendo dizer que foi técnico de luz, figurinista, guionista, story border, o homem que clica na máquina e que temos por fotógrafo (embora, e como nos mostra o artista, um fotógrafo possa ser mais do que isso) e foi também o pensador e o programador. Coloca-nos, desta forma paradoxal, ante a fotografia que é fruto de um trabalho aturado, mas que ao mesmo tempo reflete e está sujeita aos constrangimentos do clima, da natureza; ou seja, é uma obra fruto de uma organização e programação que tenta captar o que não pode ser programado nem organizado e que é o humano na Natureza. A fotografia de Bruno Vilela, embora padecendo de todos os constrangimentos inerentes à sua natureza – tal como todas as técnicas padecem de limitações –, conhece também uma dimensão iconográfica. Quando falamos de “constrangimentos”, referimos que a fotografia, ao contrário da pintura – que tem um tempo de vida mais longo que a fotografia, é muitas vezes condicionada pela contemporaneidade a que está sujeita. Desta forma, os signos e símbolos da sociedade de hoje são mais imediatos e menos elaborados do que acontecia na pintura, como é exemplo o quadro da Ofélia morta de Millais. O artista teve por isso que conceber para uma sociedade que está menos sensibilizada com questões que anteriormente eram do senso comum. Veja-se, citando a obra de Millais, como as simples flores ali presentes são todo um programa iconográfico sério e contextualizante. Mesmo assim, e tal como foi dito, é possível avançar com uma análise da obra, embora esta padeça sempre de uma grande componente especulativa que advém do tempo que decorreu entre a execução e o estudo. Ainda que nada conheçamos da história de Ofélia, notamos, ao comparar a imagem da versão de Bruno Vilela com, por exemplo, Millais (cuja versão é provavelmente a mais conhecida dentro do mito de Ofélia), semelhanças óbvias: duas figuras femininas, a boiar na água, em espaço aberto, inanimadas. E, ainda que nada conheçamos da história de Ofélia, notamos igualmente que na versão de Bruno Vilela se trata da encenação de um provável suicídio, algo que fica corroborado pelo facto da personagem feminina se encontrar na água com a cabeça para baixo. As linhas de força da fotografia remetem-nos para algum dinamismo que depois é equilibrado pela estaticidade da imagem. Todas estas linhas convergem para um ponto infinito que estaria lá onde a sombra dos arbustos refletida na água se encontra. Também o corpo feminino a boiar para aí se dirige. Esse ponto no infinito seria igualmente o nosso ponto de fuga. Aliás, a posição do corpo na água confirma isto: a linha que percorre a perna esquerda vai desaguar a esse ponto e a linha que passa pela perna direita, embora assistindo a uma quebra (dada pela dobra do vestido) continua pelo corpo e é tangente à cabeça indo ter, quando prolongada, ao mesmo ponto no infinito para onde tudo converge. Esse ponto não nos é mostrado na fotografia. Sabemos que ele existiria por estas indicações, para além da linha do horizonte, ou num espaço que não surge aqui, pois o autor “cortou” a fotografia, no momento em que água e céu ficariam apartados. No entanto, o autor fez algo que consideramos mais relevante: ele captou o reflexo de todo o céu fazendo uma sobreposição do mesmo na água, de forma que ficamos com uma imagem simétrica à outra. O céu, assim refletido, mostra-nos uma realidade dura; negra: como as águas são escuras, o céu refletido também vai adquirir um tom escuro, um azul parker que funciona como prenúncio de uma realidade iminente e horrível, confirmada pelo corpo feminino morto. Esse corpo, por ser feminino, vestir rosa pálido ou ter como pano de fundo as águas negras, parece-nos particularmente frágil. O fotógrafo, que podia ter captado o corpo de um local mais baixo, deverá ter preferido um local onde fosse possível dar alguma perspectiva ao corpo e onde este parecesse ainda menor. Para isso, e tal como foi dito, contribui em muito o vestido rosa, num tecido algo pesado que não ajuda à ideia de transparência que já vimos em outras representações do tema, mas não na referência principal já aqui abordada: a Ofélia de Millais. Neste ponto, Bruno Vilela é fiel ao modelo Pré-rafaelita que traja com panejamentos pesados, numa tentativa de conferir corporeidade a um corpo que já se encontra morto. Nota-se também aqui, e talvez porque Bruno Vilela captou a imagem de cima, que este corpo não tem uma história: não é possível dizer em que espaço é que mergulhou na água, não há um baixio introdutório. É como se todo o lago tivesse a mesma profundidade: mal a personagem feminina nele entra, não tem remissão, não tem salvação. Neste sentido, podemos dizer que Ofélia não avança pela água até um local onde não tem pé como as imagens que temos de uma Virginia Woolf a entrar na água com pedras nos bolsos. Ofélia não fica sujeita à força, ao peso das pedras; ela retira o chão para não existir qualquer hipótese de redenção. A luz da fotografia é essencial, uma vez que, e não obstante ser uma luz homogénea, existe uma espécie de foco que emana do local para onde convergem as linhas de força do quadro e que, no fundo, é uma luz dada pela cor: quanto mais perto de captar o céu, mais luz a fotografia apresenta no referido ponto, luz essa que avança até ao cerne da imagem: o corpo morto. Bruno Vilela é além de tudo isto o homem que trabalha a fotografia na pós-produção, se desejarmos usar a linguagem de cinema que de certa forma é paradigmática da metodologia usada pelo autor para captar esta série. Ele acentua as cores, luzes, sombras socorrendo-se dos métodos ao seu dispor, assim como Millais se socorreu das vantagens do óleo face ao fresco descobertas no século XV e das teorias dos seus antecessores acerca da luz, da óptica, da perspectiva ou da química. Para o autor, assim como para nós, através dele, a história de Ofélia continua bem viva e esta não se afogou/suicidou. A razão pela qual a tragédia teve lugar, é obnubilada ante a bela e terrível imagem do corpo abandonado à morte, cuja vida é sugada pela água. Se por “trás de um grande homem está sempre uma grande mulher”, também é lícito dizer que por trás da morte de uma bela mulher está, na maior parte das vezes, o homem amado que com a sua lucidez disfarçada transforma em assumida a loucura de Ofélia. © 2013 eRevista Performatus e o autor