Fuso horário: Hamburgo/Salvador Quatro cenas em Salvador (Brasil / dez. 2009) e Hamburgo (Alemanha / jan. 2010) Dirk Specht, Martin Rumori Tradução: Fabio M. Said 1.) É um verdadeiro aprendizado de sobrevivência na selva: aprender a se defender silenciosamente de insetos sem qualquer ruído audível, pois a dois metros de mim está o microfone, fixado ao chão com um tripé, e começa a gravação. Alguns insetos pequenos ficam zumbindo incessantemente ao meu redor, tentando com teimosia pousar no rosto, braços ou qualquer outra parte acessível da pele. Ao que parece, estamos no centro de uma floresta selvagem dos trópicos – pelo menos é o que sugerem as fotos do entorno do local de gravação quando as analisamos depois – e nos concentramos em manter a quantidade de potenciais picadas de insetos no mínimo possível. De fato, acabamos de caminhar dez passos desde a rua e entrar no matagal para aproveitar uma pausa breve e obrigatória do passeio e gravar alguns exemplos de “atmosfera selvagem”. Para nós também a situação é surpreendente e imprevista – afinal, estamos no meio de um enorme parque industrial e comercial próximo a Salvador. Mais concretamente, estacionamos o carro bem junto à sede da administração do parque, onde, graças às habilidades de negociação de nossos acompanhantes fornecidos pelo Goethe-Institut, nos foi dada uma autorização para fazer imagens da área em foto e vídeo. Para nosso espanto, a maior parte dessa área industrial parece se camuflar como parque natural. Até avistarmos – à distância – as primeiras instalações industriais, tivemos de atravessar inúmeros trechos de mata. Como se não bastasse isso, aqui, na sede da administração do parque, a paisagem é especialmente “verde” e chama a atenção pela tranquilidade. Mal se ouvem ruídos de máquinas, como ruído de trânsito ou barulho de fábrica. Assim, tomamos a decisão unânime de aproveitar o atual “período de inatividade” para poder fazer gravações em vídeo da “natureza” no local, e é por isso que estamos aqui parados há tanto tempo na “selva”, mais ou menos imóveis. Quando o tédio de nossos acompanhantes, que ficaram esperando no estacionamento, aparentemente se torna grande demais, eles nos chamam da rua dizendo que devemos tomar cuidado: no local onde estamos há cobras e outros bichos eventualmente problemáticos! Será essa uma maneira típica do povo local de pregar uma peça nos turistas ou a margem da estrada é mesmo uma espécie de linha divisória para as cobras? Acima de nós, nas árvores, estão pendurados dois ninhos de insetos. Ouve-se o canto de muitos pássaros. No matagal há estalos e crepitações. Uma formiga com aparência belicosa começa a inspecionar meu tênis. Abrimos caminho na mata para finalmente encontrar as instalações de processamento petroquímico. 2.) Depois de idas e vindas, o motorista finalmente se mostra disposto a desligar o ar condicionado e podemos, então, abrir as janelas. Pode ser sinal de um prazer nostálgico e europeu de sentir o vento da viagem em um dia quente – mas, neste momento, isso é sem dúvida um agradável efeito colateral do nosso plano de filmar e fotografar durante o trajeto. Já faz vários minutos que seguimos pela avenida o caminho já construído do metrô de Salvador, que serpenteia suspenso durante vários quilômetros pela topografia acidentada da cidade. Há anos em construção, o metrô já está parcialmente concluído, mas ainda não há tráfego. Passamos pela ainda fechada “Estação Brotas”, continuamos seguindo o caminho do metrô até um túnel em construção – a partir daqui parece que ele prossegue na forma de metrô subterrâneo – para depois encontrarmos outro canteiro de obras nas proximidades da Estação Rodoviária da Lapa. Aqui, no meio de um bairro construído sem autorização – e, portanto, um dos muitos assentamentos não-oficiais da cidade que conhecemos pelo nome de “favela”, mas que em geral, conforme descobriremos mais tarde, são chamados pelos habitantes de “comunidade” –, encontramos novamente um grande portão azul com a inscrição “METRÔ”. Não querem nos deixar entrar e filmar nessa área, mas mesmo assim descobrimos que todo o conjunto de construções do local precisará ceder espaço para uma futura estação. Essa afirmação nos deixa algumas indagações: para onde devem ir todos os atuais moradores? Eles dificilmente teriam como alugar imóvel em outro local. Como será realizada a transferência necessária? Para quem, afinal, o metrô está sendo construído e quando ele estará realmente em funcionamento? Essas não são perguntas que possam ser respondidas neste local e, além do mais, seriam vistas no mínimo como grosseiras e no máximo como arrogantes se as mencionássemos durante uma conversa. Desviamos o olhar para o outro lado da rua, a alguns passos de distância, dentro da área pública inferior e escura da Estação Rodoviária da Lapa. A plataforma de embarque subterrânea fica debaixo de uma enorme cobertura de concreto. Na frente da plataforma rebaixada e com apenas uma única abertura frontal, encontra-se uma rampa circular suspensa por um grande pilão, fechando a abertura frontal e conduzindo para o nível da rua, que fica mais acima, em declive. Embora a localização do local desperte associações com um estranho abrigo subterrâneo, a plataforma da estação é uma área lúgubre, mas bastante movimentada – o fluxo é grande, com linhas de ônibus sempre entrando e saindo dos diversos pontos de embarque e desembarque, inúmeros passageiros andando para lá e para cá ou esperando encostados aos postes de metal dos pontos de paradas. O local é bastante barulhento e movimentado e os ônibus, cheios – os transportes públicos de Salvador, conforme pudemos confirmar durante toda a nossa estada, funcionam principalmente com base no extenso sistema de ônibus de linha. Ao voltarmos, sofremos com o brilho ofuscante do sol. O ar no estacionamento chega a cintilar com o calor intenso. Nosso motorista já ligou novamente o taxímetro. Em meus braços já se vê uma irritação da pele. O ar condicionado está a todo vapor. Estou morrendo de frio. 3.) Estamos “cerca de 30 minutos” atrasados! Quando finalmente chegamos ao ponto de parada do ferryboat, em um canto traseiro do labirinto que é o porto Wilhelmsburger Hafen, rapidamente somos desiludidos pela visão da tabela de horários ali pendurada – hoje não há mais barco saindo. Ou seja, para nós, isso significa caminhar de volta um longo percurso, depois dobrar em sentido sul do rio Elba e, com sorte, esperar o último ferryboat da outra companhia que navega essa parte do porto de Hamburgo. Mas já escureceu e a temperatura esfriou. Às vezes vemos pegadas na neve, mas, de um modo geral, em toda a nossa “expedição” de dia inteiro pela área do porto, ficamos com a impressão de que somos os únicos pedestres aqui. Semirreboques, na maioria das vezes lotados com contêineres, passam por nós estrondeando. Uma linha de ônibus que deveria trafegar por este trecho parece estar temporariamente fora de operação – talvez por causa do risco de solo congelado. Mas para os transportadores dos contêineres, o risco parece não impressionar de forma alguma; talvez seja apenas a pressão econômica que os força a continuar dirigindo. A região de Hamburgo também está sendo atingida pela escassez de sal para derreter neve, assim como inúmeros outros municípios alemães ultimamente. Em muitos bairros da cidade, as ruas estão sem receber visita do serviço de retirada de neve, gerando uma camada de neve sólida e coesa, com algumas áreas quase completamente congeladas – um verdadeiro campeonato diário de escorregões. Em meio a pilhas de contêineres de altura desconcertante, montanhas de sucata e grandes montes de entulho, nos deparamos com uma fábrica de produtos químicos rodeada por espessas nuvens de vapor. Toda a área circunvizinha é envolta por um odor estranho, desagradável e levemente penetrante. O caráter irreal do cenário é reforçado pelo crepúsculo dominante de cor amarela alaranjada, uma mistura de luzes formada pela iluminação de rua, reflexos da neve, reluzentes faróis dianteiros de caminhões e pela iluminação que colore o céu em terminais de contêineres, guindastes portuários e veículos de transporte localizados a muitos metros dali. Além disso, chega até nós constantemente um zunido e um barulho extremamente frequentes vindos da quilométrica rampa de acesso elevada da imponente ponte Köhlbrandbrücke. Fazemos um esforço para chegar rapidamente ao próximo marco em nosso percurso, que é o portão de entrada do terminal de contêineres “Tollerort”. Mal chegamos, e já somos estimulados novamente pelo barulho cada vez mais próximo de um motor de embarcação. Em algum lugar aqui é o ponto de partida de nosso ferryboat – será que é ali atrás? Corremos apressados para o ancoradouro, o ferryboat espera alguns minutos, e o interior tem um forte mau cheiro de escapamento de diesel, mas até que enfim estamos em um lugar aquecido! Durante o trajeto de volta, pudemos entrever lá fora, sobre as águas congeladas do Elba, as silhuetas noturnas do novo canteiro de obras do edifício “Dockland”, uma aresta urbana incisiva e de iluminação excessivamente representativa, apontando para o rio. Finalmente, conseguimos chegar a nosso ponto de referência conhecido, que é o “Park Fiktion”, parque situado acima do mercado do peixe – três palmeiras solitárias de metal em uma pequena elevação às margens do Elba. Diretamente em frente, em uma doca flutuante da Blohm & Voss, há gente trabalhando dia e noite em um enorme navio de contêineres. Pouco mais adiante, faróis de sinalização piscam em ritmo lento no enorme canteiro de obras da Filarmônica do Elba. Neste momento, as massas de gelo flutuante na água estão indo em direção rio acima – deve ser hora de maré cheia. 4.) Finalmente, todos os transeuntes sumiram de nosso raio de alcance perceptivo. Restou um burburinho de volume mais baixo, e felizmente não se ouve o ruído da câmera. Estamos diante de um dos dois tubos longos e um pouco inclinados do antigo túnel do rio Elba. Usado hoje em dia principalmente por pedestres e ciclistas, ele foi construído para garantir um acesso melhor e sobretudo mais rápido dos operários à área do porto. Ainda se pode trafegar com carro pelos tubos, mas paga-se uma taxa. Mas isso raramente ocorre e, neste momento, pouco antes da meia-noite, só há mesmo poucos transeuntes. Aqui embaixo o ambiente é dominado por um agradável silêncio. Apenas de vez em quando ouvimos estalos e zunidos vindos do sistema de içamento. Ainda há veículos realizando algumas viagens de manutenção em intervalos irregulares. Porém, mal se passam 20 ou 30 segundos após o início da gravação, e de repente chega a nós um murmúrio vindo da outra extremidade do tubo: é um grupo de cinco pessoais, que começa a aparecer na imagem. O que fazer? Parar a gravação? Decidimos não parar e simplesmente continuamos observando o que acontece. A conversa do grupo que se aproxima dissolve-se em grande parte no eco do local. Mas logo em seguida, enquanto o grupo passa por nós, ouvimos atônitos: “...I have never been robbed in Rio, but in New York City and Paris I have been robbed...” Olhamos uns para os outros: O que foi mesmo que ele disse? Será que essa não é justamente uma inversão de um preconceito comum contra o Brasil? E, afinal, de que modo isso se encaixa com as experiências que tivemos durante nossa estada em Salvador? Será que entraríamos à noite em Salvador com duas bolsas cheias de equipamentos em um túnel para pedestres, como estamos fazemos exatamente agora às margens do Elba, em Hamburgo? Muito improvável, muito menos sem estarmos suficientemente acompanhados e sem termos um “segurança”. E o catálogo completo de alertas que recebemos? E o relato de nosso acompanhante Tim, que dois dias antes de nossa chegada foi assaltado em um movimentado calçadão de praia? Para nós, que tínhamos o papel de “turistas temporários”, sobrecarregados climaticamente e ainda com pele visivelmente pálida, e ainda por cima com conhecimentos apenas rudimentares de português, qualquer ida a locais públicos é permanentemente vinculada a certa cautela – afinal, estamos em “terreno desconhecido”. Com base nos avisos, recomendações e alertas que recebemos, nosso mapa mental da cidade contém zonas grosseiramente definidas, tais como “SIM”, “NÃO”, “TALVEZ”, “SOMENTE COM PESSOA DE CONTATO” ou categorizações semelhantes. O que praticamos em Salvador é, antes de tudo, um modo deslocamento reduzido. Porém, fora das zonas turísticas – conforme logo descobrimos –, volta a se abrir para nós um leque desconcertante de opções de deslocamento em áreas determinadas. Mas é altamente aconselhável saber de antemão quais regras são válidas e onde, bem como a forma de distribuição das diversas áreas na topografia da cidade. Como isso mal nos é possível por desconhecermos o local, em inúmeras ocasiões somos obrigados a recorrer à ajuda e informações de acompanhantes e pessoas de contato – e, assim, rapidamente voltamos a ter uma “perspectiva de turista”, que, embora também seja elemento temático de nosso trabalho, não passa de uma visão de dentro para fora. Em retrospecto, essa me parece ser a diferença mais significativa entre nossas investigações em Salvador e Hamburgo. Em nossa próxima caminhada pelo antigo túnel do Elba encontramos dois jovens que, no mesmo local descrito acima, estão gravando um vídeo de si próprios para o YouTube, com música saindo de um aparelho de som portátil em alto volume. Eles nos pedem para fotografá-los e para isso me dão um smartphone. Demora certo tempo até conseguirmos descobrir como desligar o flash automático.