O ANJO E A MORTE: VIVÊNCIAS DE VOLUNTÁRIOS DO PROJETO ANJOS DA
ENFERMAGEM COM CRIANÇAS EM ESTADO TERMINAL
JESUS, Denise L.M.1
CALDAS, Jéssica T.1
LIMA, Lílian S. M.²
HERMELINO, Taiza¹
VIRGULINO, Vanêssa A. C.¹
RESUMO: Relato de experiência de voluntárias do projeto Anjos da Enfermagem do
Núcleo de Rondônia, acerca das visitas a crianças portadoras de câncer em estado
terminal. Longe da impressão geralmente causada pela presença dos anjos no hospital,
de diversão e brincadeiras aparentemente descomprometidas, nós mergulhamos nas
emoções vividas durante este trabalho. Sentimentos, descobertas e perplexidades são
colocados em meio a descrições de situações vividas em um ano e meio de atuação em
um hospital geral que mantém uma ala oncopediátrica no Estado de Rondônia. O
projeto Anjos da Enfermagem vem sendo aplicado desde o ano de 2008, com adesão de
duas das maiores instituições privadas de ensino atuantes no Estado de Rondônia. Desde
então, foram dois grupos de voluntários, experimentando na prática as orientações
oferecidas pela Coordenação Nacional, no que tange à abordagem lúdica das crianças
portadoras de câncer que se encontram hospitalizadas, com vistas a oferecer conforto,
oportunidades de lazer e diversão. Objetivos: Relatar fragmentos de vivências das
voluntárias participantes do Projeto Anjos da Enfermagem frente à criança em estado
grave; Promover reflexão sobre os desafios de participar de um projeto que elegeu as
crianças doentes em estado grave como alvo de atuação. Metodologia: Estudo
descritivo do tipo relato de experiências que foi trabalhado através do registro dos
depoimentos individuais sobre nossas lembranças e reflexões acerca do trabalho de
visitas lúdicas. No segundo momento, passamos às discussões e elegemos os trechos
que compuseram as discussões do texto final. Alegrar crianças em situação de morte
iminente exige um preparo para a atuação durante as visitas e para a elaboração dos
sentimentos experimentados. Procuramos outros estudos realizados sobre os Anjos da
Enfermagem que abordassem mais claramente os sentimentos e emoções vividos no que
se refere à morte e vimos que há escassez, o que nos motivou para realizar este relato.
Acreditamos que nossas reflexões ajudarão alunos que se interessam pelo Projeto Anjos
da Enfermagem; pais; profissionais de saúde e sociedade em geral a compreender a
importância do trabalho para o conforto da criança em estado terminal.Considerações
finais: a participação no Projeto Anjos da Enfermagem trouxe amadurecimento
emocional e mais motivações para buscar mais conhecimentos científicos e a certeza de
que o cuidado pode e deve ir além do técnico.
UNITERMOS: Terapia Recreativa; Brincadeiras e brinquedos; Serviço Hospitalar de
Oncologia.
¹Acadêmicas de Enfermagem – 5º período Faculdade São Lucas – Porto Velho-RO, voluntárias Anjos da
enfermagem.
² Enfermeira Graduada em Licenciatura e Bacharelado pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR),
Especialista em Metodologia do Ensino Superior e em Saúde da Família pela Universidade Federal de
Rondônia (UNIR). Coordenadora Estadual do projeto Anjos da Enfermagem - Núcleo RO.
Introdução
O presente relato apresenta a experiência de voluntárias do projeto dos Anjos da
Enfermagem Núcleo - RO, abordando sentimentos, perplexidades e descobertas
pessoais vividas durante o período em que atuamos nas visitas lúdicas à crianças em
estado terminal, no maior hospital geral do estado de Rondônia.
O projeto AE vem sendo aplicado desde o ano de 2008, com adesão de duas das
maiores instituições privadas de ensino atuantes no Estado de Rondônia. Desde então,
foram dois grupos de voluntários, experimentando na prática as orientações oferecidas
pela Coordenação Nacional, no que tange à abordagem lúdica das crianças portadoras
de câncer que se encontram hospitalizadas, com vistas a oferecer educação em saúde,
conforto, oportunidades de lazer e diversão. São estas as finalidades do Projeto:
Apoio à criança com câncer e seus familiares, visando a melhoria de sua
qualidade de vida;
Promoção da humanização no serviço de saúde, visando a melhoria das
condições e qualidade de vida no trabalho e atendimento aos usuários;
Produzir e divulgar conhecimento no âmbito do câncer infantil, da utilização
da cultura lúdica no apoio à criança com câncer e na humanização dos serviços
de saúde1
O que as pessoas costumam ver nos dias de visitas é um grupo de jovens
pintados e vestidos com roupas engraçadas e coloridas, com um rol de brincadeiras que
parece inesgotável. O que não se percebe a olho nu, são as dificuldades e exigências que
permeiam toda preparação do grupo. As brincadeiras, músicas e gestos que compõem a
atuação dos anjos são cuidadosamente discutidas e pensadas para envolver e estimular
a criança mesmo levando em conta as limitações impostas por seu estado de doença.
Treinamento de caráter predominantemente corporal, aliado a uso de objetos
cênicos e instrumentos musicais traz à tona os sentimentos dos próprios voluntários.
É sobre estes sentimentos que nos debruçamos na elaboração deste relato.
Objetivos:
Relatar fragmentos de vivências das voluntárias participantes do Projeto Anjos
da Enfermagem frente à criança em estado grave;
Promover reflexão sobre os desafios de participar de um projeto que elegeu as
crianças doentes em estado grave como alvo de atuação;
Metodologia
Estudo descritivo do tipo relato de experiência escrito na primeira pessoa do
plural, de modo a permitir às autoras registrar suas lembranças e reflexões acerca do
trabalho de visitas lúdicas a crianças. Inicialmente foram elaborados depoimentos
individuais, que depois foram discutidos e eleitos os trechos que comporiam as
discussões do relato.
Celebrando a vida em meio à presença da morte
Uma das experiências mais marcantes dos anjos é sempre a abordagem das
crianças com internações longas, em situação de risco de morte permanentemente.
Muitas vezes, conhecemos e brincamos com a criança já internada, mas ainda atenta e
participativa. Tempos depois, acompanhamos a gradativa piora do quadro clínico,
muitas vezes chegamos a ir interagir com ela na UTI. Conviver com o sofrimento e
perdas sucessivas de crianças faz com que nós tenhamos contato com nossas emoções
mais profundas e antigas que sentíamos quando éramos crianças. O contato com essas
emoções por vezes desgasta as relações no grupo e percebemos aí a importância de
estarmos atentos aos sinais de que é necessária uma parada para nos reorganizarmos
emocionalmente. O caso do Zezinho(nome fictício) é um exemplo.
Visitamos muitas vezes o Zezinho, 8 anos, doente de leucemia com histórico de
internações recorrentes. Era um menino inteligente, alegre, sempre jogando vídeo game
no netbook. Quando chegávamos, ele ficava animado e passava a cantar musica
sertaneja e evangélica. Um dia, chegamos à enfermaria e o encontramos em isolamento
reverso, debilitado; letárgico²; apático. Nestes casos, a abordagem costuma ser mais
suave, com músicas e histórias contadas em voz baixa. Deixamos o Zezinho por último.
Chegamos em dupla, e uma de nós sussurrou em seu ouvido “como você está?”, “você
está com sono, quer falar comigo?”, ele não abriu os olhos... apenas balançava a cabeça,
então perguntei “lembra de mim, Zezinho? Estamos aqui, aqueles que vem de nariz de
palhaço e chapéu colorido” foi quando ele esboçou uma reação positiva. Depois de
alguns instantes ele abriu os olhos e pediu que cantássemos junto com ele. Aí todos nós
nos animamos e cantamos todas as músicas que já sabíamos que eram de sua
preferência.
Ao sairmos da enfermaria, estávamos emocionados, cada um a seu modo: uns
calados; outros de olhos vermelhos; outros reflexivos; outros não suportaram e foram
embora antes do término da visita.
Anteriormente referimos o Zezinho como a última criança a ser visitada.
Fazemos isso porque o contato com crianças como o Zezinho, exige muito esforço;
terminamos a visita exauridos física e emocionalmente. Saímos de lá com a sensação
de que precisamos recarregar as nossas forças.
Há sábados que tememos que cheguem
Experimentamos altos e baixos no entusiasmo com o trabalho. A evolução da
criança a cada visita gera expectativa da alta definitiva ou mesmo de poder ficar um
tempo em casa para brincar, sorrir e voltar à convivência entre seus familiares e amigos,
no entanto nem sempre é assim, ao receber a noticia do óbito, a sensação que temos é de
impotência. O grupo fica abatido, isolado e é nessas horas que o entusiasmo do início
recai sobre a reflexão do trabalho desenvolvido com aquela criança durante as visitas, é
quando precisamos revisar o impacto das nossas atividades, do olhar, do sorriso, dos
instantes que nos motiva a ter vontade de voltar.
Ser anjo não é apenas se pintar e fazer aquelas crianças sorrirem, ser anjo é
muito mais, pois por trás das caras pintadas existem vidas, desejos, sentimentos e
temores. Há manhãs em que o grupo está desanimado devido a vida de discente,
problemas familiares, problemas que só nós sabemos. Porém quando nos pintamos, é
como se os personagens surgissem e os problemas desaparecessem, a motivação vem
daquelas crianças que nos esperam ansiosas a cada visita.
Os instrumentos de trabalho
O rosto pintado, o nariz vermelho e o chapéu colorido, são elementos do
conjunto do trabalho dos AE, já é a identificação, é o passaporte para o mundo de
fantasias da criança. O fato de levarmos brincadeiras pode “modificar o cotidiano da
internação, produzindo uma realidade própria e singular na qual a criança, entre o
mundo real e o imaginário, transpõe as barreiras do adoecimento ³:144 .
Esses instrumentos de trabalho, completamente distintos dos instrumentais que
costumamos manipular, conferem significados especiais a nossa atuação. No dia a dia
da formação acadêmica, percebemos que nossa formação oscila entre a preocupação
com o bem estar bio psíquico social do individuo, mas, há ainda resquícios tecnicistas,
nem sempre valorizando o contato humano e as conexões afetivas entre cuidador e a
pessoa em cuidado. É nesse meio termo que o anjo atua, aliando seus conhecimentos
técnicos ainda em construção, mas, se despindo da rigidez acadêmica e se lançando nas
atividades lúdicas infantis. Nem sempre conseguimos transitar entre esses dois lados
com desenvoltura.
Morte
Implacável. Fria. Dura. A morte deixa a todos perplexos. Nunca se sabe como
reagir, o que fazer em situação de morte: “Todo ser humano tem consciência de que um
dia vai morrer, mas o seu comportamento diante da vida e da morte é uma página
personalizada da sua existência, que só a ele próprio cabe escrever.” 4:287 Para quem atua
no cuidado, seja compondo a equipe do hospital, seja voluntárias como nós, a
dificuldade permanece. São muitas as providências técnicas que aprendemos na
faculdade, mas, o que fazer com o que sentimos nesse momento, não é ensinado.
Quando se refere à morte de uma criança, a situação ganha cores mais sombrias.
Uma dúvida que sempre nos vem à cabeça é se o Zezinho sabe que está morrendo. Em
nossas discussões e estudos sobre a questão da morte em crianças, encontramos um
autor que defende a seguinte idéia:
entre os cinco e nove anos, especialmente a partir dos oito anos
em diante, as crianças já têm capacidade para desenvolver uma
noção sobre a sua própria morte, que gira em torno da perda
física irreversível. A morte representa, no imaginário infantil
desta faixa etária, a separação definitiva do corpo. A criança tem
uma grande capacidade de observação e percepção para tudo
que ocorre no mundo ao seu redor e no seu mundo interior. Ela
pode ser acometida de intensas crises de angústia, que ora se
evidenciam explicitamente, ora se escondem sob a forma de
sintomas ou de problemas de conduta, ou, eventualmente,
podem ser expressas sob a forma de palavras. As crianças
expressam seu medo à morte, preferencialmente, de forma não
verbal. A incompreensão do adulto, sua negativa às perguntas,
ou suas respostas mentirosas, são capazes de provocar mais dor
e causar problemas colaterais maiores. 4:293
O autor se refere às crianças da faixa etária do Zezinho. Às vezes quando o
visitamos, ele canta conosco músicas de caráter religioso que falam que Jesus o vai
receber no céu e outras sobre o tema. Outras vezes, conta que quando crescer vai ser
cantor. Parece que quando está mais fragilizado se consola; quando se sente melhor, faz
planos para o futuro. Como nossa função não é conversar com as crianças sobre estes
assuntos, mas, diverti-las, alegrá-las, distraí-las daquela situação, ficamos com estas
indagações para discutir entre nós: se o Zezinho nos perguntasse se vai morrer, ou o que
achamos sobre isto, o que responderíamos? É uma dúvida que permanece.
A morte de uma criança causa impacto na vida pessoal da equipe que a
acompanha. É nessa hora que temos que sentar ao lado dos familiares e acolher seus
sentimentos e preocupações, lhe passando alguma tranquilidade por mais que também
estejamos abalados.
Nas atividades de anjos, muitas vezes o contato com a morte é de maneira
indireta. Mesmo não tendo visto a criança em seu último momento, saber que não se
encontra mais entre nós, dói tanto quanto as situações em que acompanhamos em seus
dias mais difíceis.
Quando chegamos ao hospital, já nem fazemos perguntas. Olhamos ao redor,
procurando os rostinhos conhecidos. A cada encontro, um alívio, um sorrisão, um
abraço, uma gracinha, um aceno. E seguimos animados para as brincadeiras. Mas, há
momentos em que não encontramos todos os rostinhos. Quando estão ausentes por
motivos de alta, ficamos sabendo mais rapidamente; já quando há algum silêncio...
Considerações Finais
No decorrer desse ano e meio, as experiências de vida, expectativas, superações
e união do grupo serviram gradativamente para a formação acadêmica. O fato de
lidarmos com crianças debilitadas, que ainda demonstram vontade de viver dia após dia
nos faz ver o quanto é importante o trabalho dos anjos.
Ver a cada visita o reconhecimento daqueles que estão ao nosso redor, nos faz
sentir valorizados como pessoa: um bom dia, um sorriso, a conquista de um abraço, é
sem dúvida nenhuma o motivo para a determinação de permanecer no projeto. Na vida
acadêmica, sentimos que as responsabilidades cresceram bastante. É preciso estudar
mais e mostrar que o anjo não é apenas um palhacinho; mas alguém que está se
preparando para complementar a assistência prestada, através de estímulos à alegria e
brincadeiras.
As crianças nos respondem muitas vezes com o olhar e o toque, já os pais, se
pegam a deixar livres os sentimentos: lágrimas correm sobre seu rosto já cansados dessa
vida hospitalar, ao ver seu filho por alguns momentos alegre e disposto a brincar, cantar
e animar aqueles corredores de hospital.
Hoje vemos que o Projeto Anjos da Enfermagem é um aliado para nossa
formação. Não executamos técnicas de enfermagem junto às crianças, mas o trabalho
gera em nós a motivação para sermos alunas melhores agora e melhores profissionais no
futuro.
REFERÊNCIAS:
¹Quem somos. Missão. Finalidades. Acesso em 10 abr 2011. Disponível em:
http://www.anjosdaenfermagem.org.br/institucional_quemsomos.php
² Acesso em 15 abr 2011 . Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/35525846/termostecnicos-mais-usados-na-enfermagem
³
Oliveira,T;Figueiredo, NMA;Marques,PA;Melo, ECP;Silva,LR;
Nascimento,MAL;Santos,IMM. A criança com câncer no hospital In:
Viana,DL;Leão,ER;Figueiredo, NMA. Especializações em enfermagem. São Paulo:
Yendis, 2010: 138-148.
4
PINTO, LF J Pediatr (Rio J) 1996;72(5):287-294.
Download

o anjo e a morte: vivências de voluntários do projeto anjos