Pró-Reitoria de Graduação Curso de Letras Trabalho de Conclusão de Curso O CONTO MARAVILHOSO DE HANS CHRISTIAN ANDERSEN: A FORMA NARRATIVA SIMPLES E A PROFUNDIDADE DOS u SENTIDOS DA VIDA Autor: Franciane da Silva Orientador: Prof. Msc. Lívila Pereira Maciel NOME DO AUTOR Brasília - DF 2012 FRANCIANE DA SILVA O CONTO MARAVILHOSO DE HANS CHRISTIAN ANDERSEN: A FORMA NARRATIVA SIMPLES E A PROFUNDIDADE DOS SENTIDOS DA VIDA Monografia apresentada no curso de Graduação em Letras da Universidade Católica de Brasília como requisito para a obtenção do título de Licenciado em Letras com Habilitação em Português e Inglês e suas Literaturas. Orientadora: Prof. Pereira Maciel Brasília 2012 MSc. Lívila Monografia de autoria de Franciane da Silva, intitulada “O CONTO MARAVILHOSO DE HANS CHRISTIAN ANDERSEN: A FORMA NARRATIVA SIMPLES E A PROFUNDIDADE DOS SENTIDOS DA VIDA”, apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Licenciado em Letras com Habilitação em Português e Inglês e suas Literaturas pela Universidade Católica de Brasília, em 28 de novembro de 2012, defendida e/ou aprovada pela banca examinadora abaixo assinada: ______________________________________________________ Prof. Msc. Lívila Pereira Maciel Orientadora Curso de Letras da Universidade Católica de Brasília - UCB ______________________________________________________ Prof. Msc. Deise Ferrarini Curso de Letras da Universidade Católica de Brasília - UCB ______________________________________________________ Prof. Dr. Maurício Lemos Izolan Curso de Letras da Universidade Católica de Brasília - UCB Dedico este trabalho a minha mãe que, com tanto amor, sempre esteve ao meu lado e sempre acreditou em mim. AGRADECIMENTO Agradeço primeiramente a Deus, pois sem Ele nada seria possível. A minha mãe pela vida, pelo amor e por sua dedicação. A minha irmã e familiares, pelo apoio para que esse momento se tornasse realidade. Aos professores, que nesses anos de minha formação, tanto me ajudaram. Com muito carinho e admiração agradeço à minha orientadora, Professora Lívila Pereira Maciel, pela dedicação e disposição com que na realização deste trabalho. Aos amigos de infância agradeço a compreensão; aos meus amigos da Universidade, o apoio, e a meus colegas de trabalho, a força. “Todas as vidas de homens são contos de fadas escritos pelas mãos de Deus”. Hans Christian Andersen RESUMO SILVA, Franciane da. O conto maravilhoso de Hans Christian Andersen: a forma narrativa simples e a profundidade dos sentidos da vida. 2012. 47. Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação. Curso de Letras. Universidade Católica de Brasília. Brasília. 2012. O presente trabalho tem como tema o conto maravilhoso de Hans Christian Andersen. Apresentamos e clarificamos a forma narrativa simples dos seus contos e o significado profundo que eles alcançam. Para tal, fazemos a análise de dois contos do escritor, “Sapatinhos Vermelhos” e “O Patinho Feio”, ressaltando a importância dos protagonistas das estórias escolhidas. A obra do escritor dinamarquês toca a sensibilidade do leitor porque seus contos são baseados no cotidiano, mas são, ao mesmo tempo, repletos de imaginação. As personagens de Andersen, com suas experiências de vida, imprimem verdade, significado, valor simbólico, aos contos, encantando e formando os leitores, sobretudo os leitores-crianças. Os acontecimentos trágicos, de dor, de solidão, de tristeza, de dúvidas, de perdas, dos protagonistas engrandecem os contos de Andersen e apontam, paradoxalmente, para uma final feliz, porque há sempre a busca pela realização dos sonhos e pela essência do ser. As personagens das estórias de Andersen, perdedoras-vencedoras no jogo da vida, acabam concretizando o bem e a verdade que buscaram alcançar. As estórias maravilhosas de Andersen nos fazem mergulhar no poder do imaginário e da di-versão (versão diferente de nós mesmos), e tudo isso a partir de uma forma narrativa simples e de uma linguagem extremamente poética. Andersen é um grande exemplo da literatura infantil de qualidade, porque prima pela imaginação e pela poesia da infância. Palavras-chave: Imaginação. Infância. Conto de fadas. Formação do leitor. Hans Cristhian Andersen. ABSTRACT SILVA, Franciane da. O conto maravilhoso de Hans Christian Andersen: a forma narrativa simples e a profundidade dos sentidos da vida. 2012. 47. Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação. Curso de Letras. Universidade Católica de Brasília. Brasília. 2012. The present work has as its theme Hans Christian Andersen wonderful tale. The simple narrative shape of his short stories will be clarified, as well the meaning that they achieve. Thus, two stories written by Andersen, "Red Shoes" and "The Ugly Duckling", will be analyzed, highlighting the importance of the protagonists of the chosen stories. Readers are touched by the work of this Danish writer because his stories are based on daily life, but, at the same time, they are full of imagination. The life experience of Andersen's characters prints truth, meaning and symbolic value to the tales; this fascinate and form the readers, especially the children. The protagonists’ tragic events of pain, loneliness, sadness, doubt, loss magnify the Andersen tales and point, paradoxically, to a happy ending, because there is always the search for realization of dreams and for the essence of being. Andersen characters, winners-losers in the game of life, end up concretizing goodness and truth seeking that they achieve. Andersen wonderful stories dip in the power of imagery and the di-version (different version of ourselves), and all of this from a simple narrative form and a very poetic language. Andersen is a great example of high-quality children's literature because he excels in poetry and imagination of childhood. Keywords: Imagination. Childhood. Fairy tales. Readers formation. Hans Christian Andersen. SUMÁRIO ERA UMA VEZ HANS CHRISTIAN ANDERSEN: UMA INTRODUÇÃO _________ 10 1 A LITERATURA INFANTIL E O CONTO DE FADAS ____________________ 14 2 O VALOR DA PERSONAGEM NO CONTO MARAVILHOSO ______________ 19 2.1 A personagem e a morfologia do conto maravilhoso segundo Vladimir Propp 20 2.2 A personagem e a verdade da ficção no conto maravilhoso _____________ 22 3 A FORMA NARRATIVA SIMPLES E A PROFUNDIDADE DOS SENTIDOS DA VIDA NA OBRA DE HANS CHRISTIAN ANDERSEN _______________________ 25 3.1. Sapatinhos Vermelhos: o desejo de ser livre _________________________ 31 3.2. “O Patinho Feio”: como tornar-se o que se é._________________________ 36 E HANS CHRISTIAN ANDERSEN FICOU SENDO... POIS TODO FIM É BOM: UMA CONCLUSÃO______________________________________________________ 41 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS _____________________________________ 45 10 ERA UMA VEZ HANS CHRISTIAN ANDERSEN: UMA INTRODUÇÃO A meninice, com sua linguagem, mundividência, sensibilidade, esperanças e fantasias, aventuras e fatalidades, é que forma o adulto, e nada mais presente na nossa infância do que os contos de fadas, repletos do maravilhoso e da fantasia, mas também de situações de vida complexas e tão reais aos nossos olhos de criança. Como tudo da nossa meninice, os contos de fadas nos formam e permanecem para sempre, significando, indicando-nos caminhos, embora, muitas vezes, o adulto racional e “realista” em que nos tornamos, desista das coisas “infantis” e releguem o conto de fadas ao meramente irreal, fantasioso, a uma mera forma de entretenimento para fugir dos problemas do mundo real. O conto maravilhoso é um acontecimento que não tem compromisso com o “real”, mas que pode conter elementos que simbolizam nossa vida e nossos conflitos reais. É por meio das janelas de um conto de fadas que a criança vê o mundo “real” e pode encontrar certo sentido maravilhoso, fantástico, fabuloso, encantador. Bruno Bettelheim (2002), m A Psicanálise dos Contos de Fadas, afirma a importância dos contos de fadas para as crianças, sobretudo pelo uso pessoal que fazem do encantamento presente neles. De acordo com o psicólogo infantil, eles apresentam um caráter simbólico que emana da forma narrativa simples e emoldurada pelo mitopoético. Um dos escritores de contos maravilhosos mais conhecidos e que será estudado nesse trabalho é Hans Christian Andersen (2003). A importância de estudar esse escritor justifica-se pelas suas próprias estórias e personagens, construídas de uma forma tal que sempre foram bem recebidas pelas crianças. O escritor dinamarquês escreveu reinventando, ou seja, diferentemente de Charles Perrault e dos Irmãos Grimm, ele recriou seres, funções, universos, qualidades e emoções singulares, únicas, surpreendentes. Andersen é um genuíno poeta da imaginação. E sua imaginação melhor se concretiza quando demanda os devaneios poéticos da infância. Andersen é o poeta da infância. E é por essa razão que nosso trabalho se sustenta de forma geral no pensamento de Gastón Bachelard (2000; 2001) para o qual a imaginação de criança no mundo do conto de fadas é muito importante, pois é na infância que o devaneio tem a liberdade, uma imaginação 11 desprendida de conceitos anteriores, as imagens primeiras que transformam tudo em maravilhoso. Entrar em contato com o mundo maravilhoso de Andersen, dia após dia, noite após noite, significa, para seus leitores, sobretudo para as crianças, deixar que as aventuras de cada conto lido ordenem seus dias turbulentos, suas intuições, sua fé, sua vida prenhe de futuro. Cresce nos leitores o otimismo, a esperança em meio ao sofrimento e aos erros... Aprende-se com o reconhecimento, o perdão, a redenção. Qualidades essenciais à vida humana, que não são apresentadas por Andersen de forma conceitual, abstrata, mas de modo concreto e transformador. Esse trabalho está dividido em três capítulos. No primeiro capitulo, “A Literatura Infantil e o Conto de Fadas”, fazemos algumas reflexões sobre a literatura infantil, indagando se o termo “infantil” associado à literatura significa que ela seja destinada necessária e exclusivamente para crianças. Buscamos as respostas nas ideias de estudiosos e escritores como Jacqueline Held (1980), Ana Maria Machado (2002), Cecília Meireles (1984), Carlos Drummond de Andrade Apud DINORAH 1996), entre outros. Todos ressaltam a poeticidade dos textos literários e a qualidade dos livros infantis que buscam atingir, em cheio, o imaginário infantil. É nesse contexto que o conto de fadas é identificado como literatura de valor também para as crianças e no qual se destaca o mundo ficcional criado por Hans Christian Andersen (2003). A obra do escritor dinamarquês toca a sensibilidade do leitor porque seus contos são baseados no cotidiano, mas são, ao mesmo tempo, repletos de imaginação. Como toda literatura infantil de qualidade, os contos maravilhosos de Andersen apresentam uma forma narrativa simples, mas não se limitam a cumprirem um papel meramente didático, utilitário pedagógico. Eles trazem a poesia como o que há de mais essencial para a formação do ser da criança, porque dramatiza, às vezes tragicamente, a profundidade dos sentidos da vida. No segundo capitulo, “O Valor da Personagem no Conto Maravilhoso”, nos dedicamos a apresentar e clarificar a estrutura simples e o significado profundo dos contos maravilhosos de modo geral, chamando a atenção para o papel relevante que a personagem desempenha na construção das estórias. Buscamos mostrar que é a personagem, um “ser fictício” criado na e pela linguagem poética, que imprime verdade, significado, valor simbólico, aos contos maravilhosos. As personagens, com suas experiências de vida, é que encantam, seduzem e formam os leitores, 12 sobretudo os leitores-crianças. Esse capítulo tem como apoio as teorias de Bruno Bettelheim (2002), Beth Brait (1994), Antonio Candido (2002), Anatol Rosenfeld (2002) e Vladimir Propp (1984), entre outros. E, para mostrarmos a relação entre as personagens dos contos maravilhosos e o arquétipo da criança divina, original, buscamos o pensamento essencial de Carl Jung (2011), Karl Kerényi (2011), Cláudio Naranjo (2001), Marie-Louise Von Franz (1990), Mircea Eliade (1994) e o próprio Gaston Bachelard (2001). No terceiro capitulo, “A Forma Narrativa Simples e a Profundidade dos Sentidos da Vida na Obra de Hans Christian Andersen”, devota-se inteiramente à apresentação, à explicitação da obra do poeta dinamarquês, suas personagens e a sua importância para a formação da criança, destacando-se dois contos mais conhecidos, “Sapatinhos Vermelhos” e “O Patinho Feio”. A análise dos contos busca apreender o princípio compositivo das personagens Sapatinhos Vermelhos e Patinho Feio e do enredo da estória de vida de cada uma delas. A análise visa também esclarecer como os acontecimentos trágicos, de dor, de solidão, de tristeza, de dúvidas, de perdas dos protagonistas engrandecem os contos de Andersen e apontam, paradoxalmente, para uma final feliz, porque há sempre a busca pela realização dos sonhos, pela essência do ser. Para desenvolvermos a análise também lançaremos mão de outros estudiosos, além daqueles em que nos apoiamos para desenvolver o capítulo primeiro e o segundo. Nesse caso, a interpretação psicanalítica de autores Clarissa Pinkola Estés (1994) e de Wagner Wangerin Jr (2005) serão bastante importantes para nossa leitura. E, então, chegamos à conclusão, quase em forma de capítulo, “E Hans Christian Andersen ficou sendo... pois todo fim é bom”, para que possamos melhor alcançar o sentido da totalidade da obra de Andersen e dos contos que , embora sejam genuinamente clássicos, não foram trabalhados por nós detalhadamente já que não havia tempo suficiente: “O Valente Soldadinho de Chumbo”, “A Pequena Sereia” ou “A Pequena Vendedora de Fósforos”. Percebemos, então, que as personagens das estórias de Andersen, perdedoras-vencedoras no jogo dos devaneios poéticos e da vida, afinal acabam concretizando o bem e a verdade que buscaram alcançar. As estórias maravilhosas de Andersen no fazem mergulhar no poder do imaginário e da di-versão (versão diferente de nós mesmos). Tudo isso a partir de uma forma narrativa simples, de uma linguagem extremamente poética, 13 ensinando-nos que nossa vida é, como o poeta mesmo disse, um conto de fadas escrito pelas mãos de Deus. 14 1. A LITERATURA INFANTIL E O CONTO DE FADAS Muito se fala sobre a literatura infantil. E o que é a literatura infantil? É a literatura que tem como destinatário as crianças? Para alguns autores, definir a literatura infantil não é uma tarefa fácil, o termo “infantil” associado à literatura pode não significar que ela tenha sido feita necessária e exclusivamente para crianças. Na verdade, a literatura infantil acaba sendo aquela que corresponde de alguma forma, aos anseios do leitor e, por essa razão, que se identifique com ele. Mas, de que anseios estamos falando? Do encantamento, do maravilhamento, da imaginação criativa? Da necessidade de ultrapassar limites, obstáculos, buscar a melhor resposta para as nossas dores e, assim, tornarmos capazes para vivermos uma vida digna porque repleta de poesia? Com efeito, antes de ser “infantil”, a literatura destinada às crianças - e não só a elas, mas a destinada a todos nós “crianças” ou não -, deve guardar o vigor e o fascínio da poiesis 1. De acordo com Martina Sanchez (1983), em seu tratado sobre literatura infantil, à criança deve ser oferecida uma experiência rica em imaginação, dinâmica na linguagem e nas ideias: O espírito da criança precisa de drama, da movimentação dos personagens, da soma das experiências populares. Isto associado a uma linguagem correta, acrescida de uma boa dose de fantasia, clareza de ideias e não querer ser moralista, mas divertir. (SANCHEZ, 1983. p.10-11) Para Sanchez (1983) soltar a fantasia é mergulhar nesse maravilhoso mundo do faz-de-conta, onde o tempo e o espaço não contam, onde cada ser e cada coisa tem sua realização, a sua individualidade. Um cosmos criado pela criança e no qual ela mesma se inventa e reinventa a cada instante. Essa é a grande literatura, independentemente de seu público. Estórias divertidas porque possibilitam aos seus leitores, sobretudo às crianças (inclusive aquelas que ainda moram dentro do adulto que já somos), diferirem-se, verterem-se, em diferentes formas, experiências. Essas são as estórias que também as crianças preferem ler. 1 Poiesis é um substantivo que se forma do verbo grego poiein. Este assinala no grego a ação de fazer diversificada, mas, sobretudo, a questão da essência do agir, daí estar ligada à poiesis, no sentido que hoje consideramos criação. Esta pressupõe um fazer surgir, um figurar algo a partir do nada, ou no pensamento mítico, a partir da Terra, e mais tarde a partir da physis. 15 Cecília Meireles, em seu livro Problemas da Literatura Infantil (1984), ressalta que a literatura infantil não é aquela que tem as crianças como público-alvo definido, mas a que as crianças gostam de ler. E o que as crianças gostam de ler? Um bom livro, um livro cuja produção se dá independentemente do público alvo (crianças ou adultos, homens ou mulheres) e proporciona uma leitura agradável, que faz o leitor voltar, reler, discutir, apreciar. Para Cecília Meireles, o livro infantil deve seguir o mesmo princípio. Muitas obras literárias que são lidas na infância permanecem guardadas na memória de jovens e adultos que não se cansam de regressar às suas estórias favoritas. Compreender as razões pelas quais as crianças preferem determinados livros é perceber que o que está em jogo, na literatura e na vida, é o quanto já se desistiu do poder do pequeno das coisas infantis quando se chega à fase adulta. A indagação que se coloca ao escritor, ao leitor, ao estudioso da literatura infantil é saber o quanto há de criança no adulto para que ele possa se comunicar com ela e o que há de adulto na criança para que ela possa receber aquilo que esse adulto quer oferecer. Não se trata apenas do estilo: livros fáceis, simples, que estejam, de fato, ao alcance da criança. O mundo das crianças não é tão fácil e simples como se pensa. Além disso, o estilo – a forma, a linguagem – não está divorciado do conteúdo, dos “Fatos ao alcance da criança, e dos quais decorram conseqüências ou ensinamentos que o adulto julga interessante para ela.” (MEIRELES, 1984, p.29). Com efeito, qualquer tema encenado de forma correta pode transformar-se em livro infantil. E isso acontece na maioria das vezes. O essencial é deixar que a criança viva a experiência provocada pelo livro, a fim de que carregue por toda a vida os cenários, os sons e os ritmos, as aventuras, as descobertas e todo o poder do dizer, da comunicação, que a linguagem lhe oferta. Apenas nesses termos é que interessa falar no livro que a criança prefere: Ah! Tu, livro despretensioso, que, na sombra de uma prateleira, uma criança livremente descobriu pelo qual se encantou, e, sem figuras, sem extravagâncias, esqueceu as horas, os companheiros, a merenda... tu, sim, és um livro infantil, e o teu prestígio será, na verdade, imortal. (MEIRELES, 1984, p.31). O “prestígio imortal” do livro infantil, nos termos de Cecília Meireles, se dá porque a literatura é alimento, nutrição, para a alma, e não um mero passatempo. A leitura de grandes livros tem o poder de abrandar o perigo a que se expõe a criança 16 em um mundo completamente abalado e repleto de valores desvirtuados. A escolha do livro para criança deve discriminar as qualidades de formação humana que serão reveladas por meio de sua acessibilidade, mas deixando sempre uma margem “[...] para o mistério, para o que a infância descobre pela genialidade da sua intuição.” (MEIRELES, 1984, p. 43). Carlos Drummond de Andrade aponta que a questão central é indagar se a literatura infantil faz parte da literatura geral, se existe mesmo uma literatura infantil: O gênero ‘literatura infantil’ tem, a meu ver, existência duvidosa. Haverá música infantil? Pintura infantil? A partir de que ponto uma obra literária deixa de constituir alimento para o espírito da criança ou do jovem e se dirige ao espírito do adulto? Qual o bom livro de viagens ou aventuras destinado a adultos, em linguagem simples e isento de matéria de escândalo, que não agrade à criança? Observados alguns cuidados de linguagem e decência, a distinção preconceituosa se desfaz. Será a criança um ser à parte, estranho ao homem, e reclamando uma literatura também à parte, ou será a literatura infantil algo de mutilado, de reduzido, de desvitalizado, porque coisa primária, fabricada na persuasão de que a imitação da infância é a própria infância? (ANDRADE apud DINORAH, 1996 p. 27). Podemos, então, considerar que tudo é uma literatura só, mas a dificuldade está em delimitar o que realmente é “infantil” na literatura. Costuma-se classificar os livros de acordo com critérios preestabelecidos por adultos quando, na verdade, precisamos escutar a voz das crianças, pois são elas mesmas que o intuem e delimitam com suas preferências. É nesse contexto que podemos compreender a natureza e o valor dos contos de fadas na formação da criança. Forma artística suprema cujas raízes mitopoéticas remontam às formas arcaicas da poesia, o conto de fadas, sobretudo se considerarmos algumas leituras que determinadas correntes críticas modernas fizeram dessa prosa de ficção, não pode ser reduzido à narração de acontecimentos cotidianos cuja função utilitário-pedagógica, moralizante, bem realística, é ensinar sobre o que se deve ou não fazer, o que se deve pensar, sentir, imaginar ou não, tudo muito normativo e restritivo do poder que o imaginário, o devaneio poético, a originalidade e a criatividade do ser-aí no mundo desempenham para a criança. Jacqueline Held (1980), no livro O Imaginário no Poder, ressalta que os “realistas”, aqueles que demandam da literatura uma função exclusivamente referencial e pragmática desconsiderando a poiesis – a função poética, o imaginário, a invenção, a originalidade das obras literárias -, buscam apenas as experiências do dia, com sua objetividade, racionalidade, realidade, esquecendo-se das experiências 17 da noite, negligenciando-se o valor supremo dos sonhos, da imaginação, do devaneio poético também presentes nos contos de fadas. A poesia, a ficção, o imaginário, de acordo com Held (1980), responde à necessidade da criança de não se contentar com sua própria vida, mas abrir portas para outras possibilidades de vê-la, experimentá-la, regenerá-la, recriando-a pelo imaginário. Embora proponha como mais adequado o termo “fantástico”, e não o “maravilhoso”, Held assinala que é o fantástico – ou, para nós, o maravilhoso, o fabuloso, o feérico, é a energia, o quantum, que torna a literatura fonte de encantamento e dá a ela o valor de uma experiência tão cara às crianças: a experiência da novidade, da liberdade, da inventividade. Se as crianças se reconhecem nas estórias que narram a vida, o real, como acontecimento de puro devir, de inesgotáveis possibilidades, de incessante renovação, elas não se interessam por estórias que repetem fórmulas prontas, que ditam preceitos morais estabelecidos (HELD, 1980, p.23) O conto, qualquer conto inclusive o conto de fadas, caracteriza-se, segundo Luzia Maria (1984), como sendo uma narrativa curta, um texto em prosa que dá o seu recado em reduzido número de páginas ou linhas. Curto, porém denso, o conto leva o leitor para além do espaço do dito, ou seja, para aquilo que ‘’fala’’ mesmo no silêncio das entrelinhas. A concisão e a precisão, como centelhas, nos levam ao mistério que se oferece a nós no abrir-se e fechar-se rápido que lhe são próprios. O grande segredo é o imaginário e a fantasia, mas o mais interessante é a forma simples como a narrativa tece as imagens poéticas, conforme ressalta Andre Jolles (1976) em seu livro Forma Simples. É na forma simples, curta, condensada da narrativa que a linguagem, as personagens, os lugares e incidentes permanece fluidos, abertos, dotados de mobilidade e de capacidade de renovação constante. Assim sendo, a alethopoiesis2, que também preside o conto maravilhoso, é um jogo imaginativo que diverte, encanta, fascina o leitor. Mexendo com os sentidos do corpo e do espírito, trazendo tudo que é sensível e inteligível; o conto maravilhoso, feérico, fantástico, brinca com nosso ser mais profundo, desperta a criança que está fora e a que está dentro de nós. Saímos da vida cotidiana, do tempo físico, 2 A poesia traz à memória o movimento de velamento-desvelamento da physis que quer bem ocultarse. 18 cronológico, que a rege e, como nos diz Mircea Eliade (1994) em Mito e Realidade, ingressamos num tempo qualitativamente “sagrado”, um tempo primordial, mítico, significativo e exemplar. Mas para entrarmos nos tempos fabulosos, é preciso, como enfatiza Gastón Bachelard, “ser sério como uma criança sonhadora.” (2001, p. 113). Assim deve ser quando estamos diante do universo das crianças. Assim deve ser quando lemos os contos de fadas e mergulharmos nos devaneios poéticos em demanda da infância. Assim deve ser quando estamos diante das experiências vivenciadas pelas personagens do conto maravilhoso de Hans Christian Andersen. 19 2. O VALOR DA PERSONAGEM NO CONTO MARAVILHOSO A personagem desempenha um papel importante na construção dos contos maravilhosos. É a partir da personagem que os contos instauram o mundo do fazde-conta (o do imaginário, do fabuloso, do feérico) e, paradoxalmente, a verdade que se realiza pela “representação” (poética, ficcional, fingida) desse mundo, pois é a personagens que “vive o enredo e as idéias, e os torna vivos” (CANDIDO, 2002, p.54). São as personagens que sentem, pensam, desejam e sonham, “agem sobre outras e revelam-se umas pelas outras” (BRAIT, 1985, p. 47). Podem ser meninos, meninas, velhos, velhas, reis, rainhas, carrascos, soldados, gigantes, anões, fadas, bruxas, monstros, sereias, animais de toda espécie, objetos “inanimados” ou qualquer outro elemento que, segundo Nelly Novaes Coelho (1998), gire em torno de uma problemática existencial que, na maioria das vezes, são questões relativas à auto-realização da personagem. As personagens, “seres ficcionais” cujo caráter paradoxal é assinalado por Antônio- Candido (2002) em seu capitulo sobre “A personagem no romance”, instauram o jogo entre verdade e ficção, dando sentido à literatura e, ao mesmo tempo, convertendo a literatura em forma privilegiada de conhecimento - não apenas racional, mas, e principalmente, passional - da vida “ao vivo e a cores”. Segundo Yves Reuter (2002), em seu livro A Análise da Narrativa, é por essa razão que existem tantos estudos sobre a personagem dos contos maravilhosos, seja na linha estrutural, “morfológica”, como o estudo de Vladimir Propp (1984), seja na psicanalítica como os estudos de Bruno Betlheim (2002), Marie-Louise Von Franz (1990) ou Clarissa Pinkola Estés (1994) entre outros. Todos os esforços analíticos, entretanto, perderiam sua razão de ser se não levássemos em consideração o caráter original, instaurador, realizador da poiesis que funda os contos maravilhosos e lhes possibilita o valor cognitivo, formativo e “terapêutico” que deles emana, sobretudo quando pensamos o fascínio que suas personagens exercem nas crianças que os leem. Como compreender a personagem dos contos maravilhosos então? Como lidar com o aspecto mimético, representacional, dos contos maravilhosos, principalmente quando falamos das personagens? Busquemos algumas respostas. 20 2.1. A personagem e a morfologia do conto maravilhoso segundo Vladimir Propp Wladimir Propp (1984), em sua Morfologia do Conto Maravilhoso, estuda, a partir dos contos maravilhosos russos, as diferentes ações das personagens bem como as funções constantes e variáveis presentes em um conto maravilhoso. De acordo com o formalista russo, é possível estabelecer uma morfologia comum às diferentes formas de contos – os maravilhosos, os folclóricos, os feéricos -, sobretudo daqueles que são muito próximos das raízes orais e populares da literatura: as ações podem ser de grandezas constantes e grandezas variáveis, delineando uma determinada estrutura, uma tipologia. As grandezas constantes são aquelas que são realizadas por diferentes personagens de forma igual. Já as grandezas variáveis são os meios pelos quais as ações são realizadas. Os contos de Andersen apresentam alguns elementos pertencentes à tipologia proppiana, mas ultrapassam essa morfologia porque não se esgotam nessa estrutura: Andersen traz elementos inovadores, em grande parte, atrelados à visão romântica de raiz germânica da literatura, sobretudo no que se refere à forma como as personagens são apresentadas em suas ações e sentimentos. Teóricos do estruturalismo francês, principalmente Greimas (REUTER, 2002) aproveitam a riqueza de funções apresentadas por Propp, e apresentam uma descrição mais simples, sucinta, sem muitas variações da estrutura narrativa dos contos, que pode ser eficaz na análise dos contos maravilhosos de Andersen. De acordo com esses teóricos, a estrutura básica de um conto mostra o seguinte esquema: o Estado Inicial, a Complicação, a Dinâmica, a Resolução e o Estado Final. Após a situação inicial, em que o narrador apresenta o protagonista da estória, a família e os amigos do protagonista, o tempo e o espaço da ação, acompanhamos as diferentes complicações enfrentadas pela personagem central que dinamizam a sua busca e que valorizam sua jornada, rumo à resolução de seus problemas existenciais e à sua auto-realização para que ela experimente um estado final, que pode ser triste e/ou feliz. Entre as complicações descritas por Propp, ressaltamos algumas que julgamos importantes à leitura que fazemos dos contos de Andersen: a falta de um bem material ou de valores afetivos e sociais; o afastamento de um lugar, de um objeto querido ou de uma pessoa 21 amada; a proibição / o interdito, cujo aspecto transformador é a chegada repentina da adversidade; a cumplicidade e o antagonismo entre personagens; os danos que as adversidades e os antagonistas causam; as provas pelas quais os protagonistas passam provocando as mais distintas reações... Tudo que, segundo Propp, é essencial à própria dinâmica do conto. Mas as personagens também devem ser estudadas a partir de seus atributos. E Propp (1984) aponta nos contos maravilhosos russos um conjunto de qualidades externas das personagens tais como idade, sexo, situação, aspecto exterior com suas particularidades históricas, sociais, culturais, religiosas. As funções podem ser resumidas em três espécies: o antagonista, o doador e o auxiliar. Os atributos são reunidos também em três tipos: aparência e nomenclatura; particularidades de entrada em cena; e habitat. São as qualidades dadas aos personagens que dão o colorido, a beleza e o encanto necessários aos contos maravilhosos. Ao falar a respeito das diferentes possibilidades de caracterização das personagens, Beth Brait (1985, p. 52) esclarece que qualquer tentativa de sintetizálas “esbarra necessariamente na questão do narrador”, uma vez tal instância narrativa é que “vai conduzindo o leitor por um mundo que parece estar se criando à sua frente”. De acordo com a estudiosa, A apresentação da personagem por um narrador que está fora da história é um recurso muito antigo e muito eficaz, dependendo de habilidade do escritor que o maneja. Num certo sentido, é um artifício primeiro, uma manifestação quase espontânea da tentativa de criar uma história que deve ganhar a credibilidade do leitor (...) a personagem não é posta em cena por ela mesma, mas por suas aventuras, pelo relato de suas ações. (BRAIT, 1985, p. 55). O narrador em terceira pessoa focaliza os personagens em momentos importantes e materializa os seres que habitam o universo imaginário do conto. Ele se torna o contador da estória já que tem experiência para se comunicar. Mas ele só poderá trazer a “verdade” para a criança que o escuta / lê, se narrar a partir da percepção, dos sentidos da paixão das personagens. Assim acontece nos contos maravilhosos de Andersen: o narrador desempenha papel relevante, porque faz uma dupla focalização, alternando distanciamento e proximidade com relação às personagens – e também com a relação ao próprio leitor. Em geral, o narrador finge distinguir-se das personagens e, apesar dos pensamentos serem apresentados por um processo de refletorização, e, por isso, de 22 proximidade, das percepções da própria personagem, mantém a terceira pessoa e o pretérito imperfeito fingindo o relato impessoal do narrador. E a natureza dessa mediação nos leva a refletir sobre a importância que a personagem desempenha na construção ficcional das narrativas, sobretudo quando levamos em consideração o interesse e o encantamento que as personagens dos livros infantis despertam nas crianças. 2.2. A personagem e a verdade da ficção no conto maravilhoso Anatol Rosenfeld (2002), ao falar dos “aspectos esquematizados” 3 da obra de arte literária em seu texto “Literatura e Personagem”, pode esclarecer sobre o “efeito” ou “eficácia” que Andersen retira da forma como configura a esfera de existência das personagens de seus contos: (...) em geral, os textos apresentam-nos tais aspectos mediante os quais se constitui o objeto. Contudo, a preparação especial de selecionados aspectos esquemáticos é de importância fundamental na obra ficcional – particularmente quando de certo nível estético - já que dessa forma é solicitada a imaginação concretizadora do apreciador. Tais aspectos esquemáticos, ligados à seleção cuidadosa e precisa da palavra certa com suas conotações peculiares, podem referir-se à aparência física ou aos processos psíquicos de um objeto ou personagem (...). (ROSENFELD, 2002, p.14). Os diferentes seres de uma obra de arte literária são instaurados na e pela linguagem, na e pelas orações e isso acontece por efeito da imaginação que calcula, pensa, compõe, instaura intencionalmente cada “realidade”, cada “objectualidade” da obra. É dessa forma que se constrói a “realidade” das personagens. É “como se” elas já tivessem uma vida anterior à narrativa que as coloca para existirem. O fictício é real; o real é fictício: esse é o principio imaginativo e compositivo básico que funda uma obra de arte literária. Podemos então compreender a força que tem o “Era uma vez” dos contos maravilhosos. De acordo com Rosenfeld (2002), o pretérito do verbo ser que aponta 3 Lívila Pereira Maciel (1991, p.15) esclarece que, de acordo com a formulação ingardiana, toda obra de arte literária é uma objetividade complexa, pluriestratificada, polifônica e esquemática. Ela se nos apresenta como uma produção constituída de estratos heterogêneos, interdependentes e inseparáveis, a saber: 1) estrato das formações fônico-lingüísticas (camada dos sons lingüísticos da obra); 2) estrato das unidades da significação (trata do sentido de uma unidade lingüística superior qualquer, antes de tudo, o da oração); 3) estrato das objetividades apresentadas (aquilo de que se fala na obra); 4) estrato dos aspectos esquematizados (o conteúdo concreto de nossas observações, dependente das particularidades do objeto observado, das circunstâncias na qual a observação se faz e das particularidades psicofísicas do sujeito que observa). 23 o caráter fictício do “era uma vez” assume potência de presente e de verdade, de realidade, dada a força realizadora, instauradora da linguagem que coloca à frente do leitor uma existência plena, com sua estória de vida pessoal. É através da personagem, segundo Rosenfeld (2002), que a camada imaginária se adensa e se concretiza (realiza-se). A personagem é ser que se constrói na e pela ficção, na e pela expressiva força da linguagem que transforma mera descrição em “vivência”, não podendo a personagem ser confundida, como muitas vezes acontece, com pessoas pré-existentes, extratextuais nem mesmo com a pessoalidade do próprio autor. A “verdade” dentro da obra de ficção, tem significado diverso do que comumente consideramos. Coerência, autenticidade, dentro do mundo imaginário e concernente às personagens e às situações vivenciadas por elas, surge do poder mimético / representativo4, da estrutura das orações ficcionais que, embora pareça ser a mesma dos textos não ficcionais, nota-se o esforço de particularizar, concretizar, individualizar o objeto através da preparação de aspectos esquematizados e de uma multiplicidade de pormenores circunstanciais que visam acionar a imaginação, o devaneio poético, e dar “realidade”, “concretude” à situação imaginária. O escritor convida o leitor a dar continuidade ao que é fictício, à camada imaginária que tem força de realidade, como nos explica Antônio Candido (...) é paradoxalmente esta intensa aparência de realidade que revela a intenção ficcional ou mimética. Graças ao vigor dos detalhes, à veracidade de dados insignificantes, à coerência interna, à logica das motivações, à causalidade dos eventos etc., tende a constituir-se a verossimilhança do mundo imaginário. (CANDIDO, 2002.p.20). Cada frase do conto, assim como cada verso de um poema, mobiliza todas as virtualidades expressivas da língua e toda a energia imaginativa. Tudo é transformado pela imaginação. A linguagem poética, em contato com o mítico e com o real, visa transformar as expressões nas “mais verdadeiras”, sem, contudo, se limitar a nos dar uma cópia fidedigna ao pré-existente ao conto. Esse valor estético depende, como nos diz Rosenfeld (2002, p. 36), da “escolha da palavra justa, 4 Mimese, representação, não como imitação do originado, do já existente, mas como imitação do processo incessantemente renovado de originar-se das coisas que são muito mais do que parecem ser, como nos esclarece Eudoro de Sousa em seus comentários na tradução que faz da Poética de Aristóteles. A mimese, a representação na obra de arte literária diz sempre da força, do vigor, da origem (SOUSA apud ARISTÓTELES, s/d) 24 insubstituível, da sonoridade específica dos fonemas, das conotações das palavras, da carga das suas zonas semânticas marginais, do jogo metafórico, do estilo”. O escritor nos dá os seres e as situações narrativas (o objeto da mimese) não como reconhecimento, como retrato fidelíssimo do já acontecido, mas como uma visão sempre nova, inesperada, e, por isso mesmo, cheia de verdade, de realidade. Trata-se de uma visão “figurada” (correlacionada ao fingere5), metafórica, estilizada, altamente simbólica, das experiências do ser humano, cuja totalidade, cuja plenitude jamais se poderá apreender de uma vez e para sempre. Tal é a força lúdica, ficcional, poética, do “como se”, ou do “era uma vez”, ou do “faz de conta” das narrativas literárias, força que as próprias crianças entendem muito bem. É por essa razão que, segundo Bachelard (2001), os devaneios poéticos não contam apenas estórias, mas nos ajudam a mergulharmos na nossa própria história. É essencial que permaneçamos com nossa alma infantil imóvel para que nunca percamos a liberdade que o devaneio poético traz. Afinal, se, como o próprio filósofo diz, “A infância conhece a infelicidade pelos homens’’ (2001, p.94), precisamos avivar nossos devaneios de criança, onde a imagem sempre nova, primeira, fresca e restauradora como as fontes, prevalece acima de tudo. Os poetas, com seus devaneios poéticos, nos colocam novamente em demanda da infância, para enxergamos o mundo e sua “grandeza”, a partir da imaginação, do maravilhoso, tudo grande, dando origem as maiores paisagens. Para Bachelard, “toda infância é fabulosa, naturalmente fabulosa” (2001, p.112). A importância do olhar da criança nos contos maravilhosos é que os devaneios poéticos das crianças revelam a poesia, a originalidade, o ver e o sentir pela primeira vez, da própria estória narrada, com seus acontecimentos e suas personagens. Revelação que inclui o caráter poético do próprio ser do autor e do leitor bem como da capacidade de reinvenção da própria vida: essa é a riqueza da forma narrativa simples dos contos de Anders 5 Verbo latino fingere: talhar, instaurar, dar figura a toda matéria. Ao fingere corresponde o grego poiein. 25 3. A FORMA NARRATIVA SIMPLES E A PROFUNDIDADE DOS SENTIDOS DA VIDA NA OBRA DE HANS CHRISTIAN ANDERSEN Por que Hans Christian Andersen é tão importante? A razão está na riqueza e profundidade de sua obra, tão atual porque permanece encantando todos, não só as crianças, pela beleza, pela sensibilidade, pela ternura, e por tratar de temas do nosso cotidiano. A obra do escritor dinamarquês é um divisor de águas na história da literatura infanto-juvenil universal. Não obstante considerarmos a “trindade” de escritores Charles Perrault, irmãos Grimm e Hans Christian Andersen como responsável pela difusão dos contos maravilhosos ou feéricos, Andersen, de maneira distinta, não se limita a recolher as estórias tradicionais, os contos populares e orais. Como ressalta Ana Maria Machado (2002), o poeta dinamarquês confere um estatuto de originalidade, novidade, às suas estórias, deixando sua marca inconfundível no maravilhoso mundo dos contos: uma visão poética misturada com profunda ternura, suave melancolia ou tristeza. O mundo maravilhoso criado por Andersen toca a sensibilidade do leitor. Genuíno criador e contador de estórias, Andersen fez, e continua fazendo até hoje, mesmo com as exigências de outros tempos, um grande público, porque os sentimentos mais profundos do ser humano são, segundo Nelly Novaes Coelho (1998), os mesmos em qualquer época: Os contos carregam uma significativa herança de sentidos ocultos e essenciais para a nossa vida, e a literatura é sem duvida uma das expressões mais significativas dessa ânsia permanente de saber e de domínio sobre a vida, que caracteriza o homem de todas as épocas. (COELHO, 1998, p. 10-11). Nascido no seio de uma família muito pobre, Andersen viu-se obrigado a abandonar os estudos logo cedo para se sustentar, passando por vários empregos até se tornar um grande poeta. Andersen teve a oportunidade de conhecer bem os contrastes da abundância organizada, ao lado da miséria sem horizontes. Mas Andersen teve também, desde a mais tenra infância, o privilégio de ser marcado e influenciado pelas mais diferentes narrativas. Associando a vida que viveu às narrativas que ouviu e leu, Andersen nos oferece uma obra que se revela como 26 verdadeira “caixinha de surpresas” 6. Ele mescla, transpõe, funde, transforma os estímulos recebidos da vida e dos livros que leu em obra de arte literária completamente nova e original. As estórias do escritor dinamarquês, como assinala Cristiane Madanêlo de Oliveira (2011), encenam eventos e personagens que nos remetem à realidade cotidiana da vida dos seus leitores e, ao mesmo tempo, trazem a marca própria do mundo fantástico da imaginação. “Andersen não se preocupou com o problema moral através de um didatismo moralizante. Preocupou-se em que seus contos fossem poéticos, como poeta que era. O poeta da infância.”, enfatiza Martina Sanchez (1983, p.59). Essa é a razão pela qual sua obra se tornou um clássico da literatura infantil, mesmo que os desfechos de suas estórias não sejam, aparentemente, tão felizes. Os clássicos, segundo Ítalo Calvino (1993), são riqueza para aqueles que o leram, releram e amaram. São plenos de descobertas, pois os clássicos nunca terminam de dizer aquilo que tinham para dizer. É o que acontece quando lemos “A Pequena Vendedora de Fósforos”, “A Roupa Nova do Rei”, “O Valente Soldadinho de Chumbo”, “A Pequena Sereia”, “Sapatinhos Vermelhos” ou “O Patinho Feio”. Os contos de Hans Christian Andersen são clássicos porque seus temas, suas personagens, são mimese da realidade e nos transmitem verdades, valores, e, a cada vez que lemos, descobrimos algo novo, significativo para nossas vidas. Enfrentar dilemas existenciais, mergulhar nos dramas da condição humana, nada mais importante do que essa experiência para o crescimento de todos nós. Esse caminho de aprendizado, na visão de Andersen, deve ser modulado, conduzido, pela arte literária, na fruição do prazer estético. É a imaginação poética de Andersen que torna mais explícito e questionável, conforme nos diz Coelho (1998, p.23), o espírito liberal-burguês que põe em evidência o individualismo, a riqueza, o trabalho, a luta pela sobrevivência e contra a pobreza, valores exigidos pela sociedade que se consolidava no século XVIII. Além de nos levar a pensar sobre os valores sociais, políticos e culturais que regiam e 6 Andersen tem um conto que se chama “Caixinha de Surpresas”. A menina, protagonista do conto, leva uma bronca do pai porque estava “gastando” um papel de presente. O pai se arrepende quando descobre que o papel era para embrulhar uma caixinha de presente que ela daria a ele. Logo depois, fica com raiva quando descobre que não havia nada dentro da caixinha. Mas a supresa acontece mais uma vez, e de forma mais bela e extraordinária: o pai fica sabendo pela menina que ela havia colocado muitos beijos dela dentro da caixinha. 27 poderiam reger a vida dos homens em sociedade (em qualquer tempo, não apenas na da época em que o autor vivia), os contos de Andersen, de forma poética, simbólica, lúdica, um projeto ético, estético e educador que se fundasse nos valores cristãos, para ele virtudes básicas possíveis e desejáveis para nortear pensamentos e ações da humanidade. Os contos maravilhosos de Andersen, assim como os contos de fada, são, de acordo com a Psicanálise, uma forma de prender a atenção e despertar a curiosidade, estimular a imaginação, promovendo o desenvolvimento do intelecto e da emoção da criança. Os diferentes sentidos, o caráter simbólico, que emanam das variadas experiências das personagens dos contos maravilhosos, estão ligados aos eternos dilemas que o homem enfrenta ao longo de seu amadurecimento emocional. Segundo Bruno Bettelheim, Para que uma estória realmente prenda a atenção da criança, deve entretêla e despertar sua curiosidade. Mas para enriquecer sua vida, deve estimular-lhe a imaginação: ajudá-la a desenvolver seu intelecto e a tornar claras suas emoções; estar harmonizada com suas ansiedades e aspirações; reconhecer plenamente suas dificuldades e, ao mesmo tempo, sugerir soluções para os problemas que a perturbam. Resumindo, deve de uma só vez relacionar-se com todos os aspectos de sua personalidade - e isso sem nunca menosprezar a criança, buscando dar inteiro crédito a seus predicamentos e, simultaneamente, promovendo a confiança nela mesma e no seu futuro. (BETTELHEIM, 2002, p.5) Nas obras de Andersen há uma mistura entre o maravilhoso e o realismo, a maioria das narrativas apresenta personagens, espaços e problemáticas extraídos da realidade comum, porém o mágico e o lúdico estão em tudo, estão tão naturalmente presentes que acontecem em qualquer espaço, abolindo-se as fronteiras entre o real e a fantasia. A forma simples da narrativa de Andersen convida o leitor ao dinamismo, à grandeza e à profundidade dos sentidos da vida que lhe comparecem pela imensa riqueza de imagens poéticas que o escritor dinamarquês lhe oferece. Segundo Bachelard (2001), a beleza da alma, da psique, diante dos acontecimentos, quaisquer que sejam eles, está em nós, está no âmago de nossas memórias. É o impulso que nos anima e que nos mostra o dinamismo da beleza da vida. Todos nós sonhamos com a liberdade, assim como costumávamos sonhar na infância. É no devaneio que nos tornamos seres livres: 28 Sonhamos enquanto nos lembramos. Lembramo-nos enquanto sonhamos. Nossas lembranças nos devolvem um rio singelo que reflete um céu apoiado nas colinas. Mas a colina recresce, a enseada do rio se alarga. O pequeno faz-se grande. O mundo do devaneio da infância é grande, maior que o mundo oferecido ao devaneio de hoje. Do devaneio poético diante de um grande espetáculo do mundo ao devaneio da infância há um comércio de grandeza. Assim, a infância está na origem das maiores paisagens. Nossas solidões de criança deram-nos as imensidades primitivas. Ao sonhar com a infância, regressamos à morada dos devaneios, aos devaneios que nos abriram o mundo. (BACHELARD, 2001, p.96) Podemos compreender, então, por que os contos maravilhosos que tem como princípio imaginativo e construtivo a perspectiva da infância são tão importantes. Ao ler os contos de Andersen, por exemplo, a criança imagina, sonha, brinca, pensa, sente. Nessa “brincadeira”, tem a liberdade e ousadia de inventar e criar um mundo e a si mesma. Mas ela é capaz, como todo poeta, de distinguir essa brincadeira da realidade. Ela é sabe quando está no “faz de conta” e, saboreando esse real produzido pela estória maravilhosa, se imagina um patinho feio, um belo e jovem cisne, uma sereiazinha, um soldadinho de chumbo, uma menina de sapatinhos vermelhos, uma pequena vendedora de fósforos, um menino ou uma menina que é capaz de, pela sabedoria do riso, apontar que o rei está nu. Mas não confunde essa representação com o real. A criança sabe que é um jogo. Sabe que o real pode ser interpretado, compreendido, a partir do horizonte de sentido que aquele conto maravilhoso de Andersen pode ofertar. E o jogo, segundo Huizinga, é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da vida cotidiana. (HUIZINGA, 2001, p. 33) Os contos maravilhosos de Andersen, como o jogo, é uma atividade espontânea que vem acompanhada de emoções, de desejos, de sonhos, e é justamente esse prazer lúdico que chama a atenção da criança, pois o jogo e a brincadeira fazem parte do instinto infantil, além de conduzirem a criança que lê o conto ao mundo da imaginação e do onirismo, habitado por toda sorte de personagens, sereias, bonecos e animais que pensam e falam... As personagens desse mundo maravilhoso são representações, mimese, da nossa humanidade, da nossa história/História. Nelas reconhecemos o que acontece em nossas vidas. 29 As personagens são a ponte entre o eu e o mundo imaginário. A Pequena Vendedora de fósforos, o Soldadinho de Chumbo e a Pequena Sereia, por exemplo, nos emocionam, fazem-nos chorar, mesmo sabendo nós que se trata de personagens de ficção, de seres fictícios. Isto porque Andersen prima pela mimese, entendida como “representação que guarda uma semelhança, e não uma cópia, em relação ao seu objeto”, como nos fala Palo e Oliveira (2001, p. 74), e porque se sobressai pela especial verossimilhança que suas personagens tem com a realidade, caráter fundamental da poesia, como já Aristóteles ressaltava em sua Poética. As personagens de Andersen, e também seus leitores, sobretudo as crianças que amam ler suas venturas e desventuras, recordam-nos que uma criança é sempre a personificação de forças vitais, como nos explicam Karl Kerényi e Carl Jung no livro A Criança Divina: uma introdução à essência da mitologia (2011). A criança traz a memória da origem. Essas forças vão além do alcance limitado da consciência; são manifestações daquilo que chamam de “mitologema” (Kerényi) ou “arquétipo” (Jung). Jung, no capítulo que fala da psicologia do arquétipo da criança, explica que a criança representa o mais forte impulso do ser de realizar-se a si mesmo. “O impulso e compulsão da auto-realização é uma lei da natureza e, por isso, tem uma força invencível mesmo que o seu efeito seja no início insignificante e improvável” (JUNG, 2011, p. 135). Dessa forma, o aspecto mais importante do arquétipo da criança é “seu caráter de futuro. A criança é o futuro em potencial” (JUNG, 2011, p. 126-127), mesmo que, ao motivo da criança, esteja associado outro aspecto típico que é o de ser, ao mesmo tempo, “menor que pequeno” e “maior que grande”. As personagens de Andersen submetem-se a toda espécie de “perigos” e isso nos leva a pensar no arquétipo da criança. O “abandono” e o “perigo da perseguição” aparecem, de acordo com Jung, como obstáculos impostos à criança e também fazem parte das manifestações do arquétipo da “criança-deus” ou do “heróicriança”. Jung traz inúmeras reflexões sobre o arquétipo da criança divina e analisa de forma adequada a questão do tamanho: O motivo da “insignificância”, do estar exposto a, do abandono, perigo, etc. procura representar a precariedade da possibilidade da existência psíquica da totalidade, isto é, a enorme dificuldade de atingir este bem supremo. Caracteriza também a impotência, o desamparo daquele impulso de vida o qual obriga tudo o que cresce a obedecer à lei da máxima auto-realização; 30 neste processo as influências do ambiente colocam os maiores e mais diversos obstáculos, dificultando o caminho da individuação (JUNG, 2011, p. 129-130). Muitas são as experiências das personagens de Andersen que podem ser associadas aos diferentes aspectos do motivo da criança apresentado por Jung. A primeira delas diz respeito ao tamanho reduzido, que por si só parece sugerir insignificância e, por isso, associa-se ao tema do “menor do que pequeno”. Podemos compreender o que representa “o poder do pequeno” a partir do que Cláudio Naranjo (2001), em A Criança Divina e o Herói, propõe sobre as estórias matriarcais, aquelas que se constroem em torno do tema da “criança divina”: possuem certa delicadeza, acontecem em um eterno presente, valorizam o cenário e as personagens, e primam pela existência de um certo “realismo”. Há nessas estórias matriarcais, como em O Pequeno Príncipe e Menino do Dedo Verde, analisadas pelo autor, a essência da criança divina, ser com sabedoria nata e grande confiança na natureza do mundo e de si mesma, mesmo quando “abandonadas” ou quando, no desfecho de seu estar-aí no mundo, morrem. De uma forma sensível e com uma linguagem bem simples, mas simbólica, Andersen escrevia a partir do olhar da criança. E com esse olhar da infância, encontramos nas estórias desse autor um apego pelo pequeno, pelo desprotegido, pela generosidade e pelos valores humanos. Seus contos são literatura, literatura enquanto poiesis, e se enriquecem com esse valor estético. Suas estórias, suas personagens dialogam com a criança: “mais do que falar e preencher, o texto ouve e silencia, para que a voz de seu parceiro, o leitor, possa ocupar espaço e também ensinar” (PALO e OLIVEIRA, 2006, p. 14). Andersen não tem a pretensão de ter a palavra final, ele deixa espaço para que a criança interprete seus contos. O leitor-criança não é apenas um leitor, mas seu parceiro na construção e significação das estórias. Para Nelly Novaes Coelho (1991), poucos escritores conseguiram expressar tanta ternura pelo mundo infantil, pelas plantas, pelos animais e pelos objetos como Andersen. “Andersen transforma tudo que escreve por uma espécie de ternura radiosa que seria talvez possível chamar de ternura do coração” (SORIANO apud COELHO, 1991, p. 157). Vejamos isso em dois contos de Andersen: “Sapatinhos Vermelhos” e “O Patinho Feio”. 31 3.1. “Sapatinhos Vermelhos”: o desejo de ser livre Como já antecipamos, as personagens dos contos de Andersen sempre enfrentam questões existenciais, quaisquer que sejam os motivos pelas quais o enfrentamento, a dor e a aprendizagem deles decorrentes aconteçam. “Sapatinhos Vermelhos”7 é uma dessas estórias: a forma breve, simples, do conto maravilhoso traz ao leitor uma experiência densa que o faz compreender até mesmo os eventos mais violentos e inesperados da vida. Clarissa Pinkola Estés, em seu livro Mulheres que Correm com os Lobos (1994), ao estudar a essência do feminino (os arquétipos da Mulher Selvagem) e analisar a forma e os significados das narrativas que falam, mítica e simbolicamente, da natureza feminina nas diferentes culturas, ressalta que os contos de fadas, entendidos pela psicanalista como uma variação dessas narrativas, apresentam, em grande parte, um final brutal. Para ela, as imagens brutais constituem “um velho recurso para fazer com que se preste a atenção em uma mensagem muito séria”. (ESTÉS, 1994, p. 275) É o que acontece em diferentes versões de uma estória contada por velhas a respeito das aflições da mulher esfaimada e braba: “As Sapatilhas do Diabo”, “Os Sapatos Ardentes do Diabo”, “Os Sapatinhos Vermelhos”, esta última fonte de inspiração de Hans Christian Andersen que, segundo Estés, envolveu “o esqueleto da história” com “sua própria inteligência e sensibilidade” (ESTÉS, 1994, p. 270) e nos deixou não apenas uma, mas duas estórias escritas sobre “Sapatinhos Vermelhos”. Uma versão confunde-se com a germânico-magiar, ao seguir os padrões mais ancestrais e outra, mais contemporânea, mais coerente com a mundividência, a cristã, do próprio escritor e cuja protagonista não é mais designada como “a menina” ou “a pequena órfã”, mas portadora da individuação de um nome próprio, Karen, que acabara de ficar órfã. Há, entretanto, alguns elementos comuns às duas estórias de Andersen e também às versões mais antigas: a velha senhora, o guarda de barba ruiva (simbolizando, segundo Estés o próprio diabo, o maléfico) que ao tirar a poeira dos 7 Para a análise do conto “Sapatinhos Vermelhos”, preferimos usar a tradução que a pesquisadora Clarissa Pinkola Estés, em seu livro Mulheres que Correm com os Lobos (1994) e alguns trechos traduzidos/transcritos por Wagner Wangerin Jr. em seu texto “Hans Christian Andersen: a formação do universo da criança” (2005). 32 sapatos da menina os “enfeitiça”, o anjo ou espírito guardião que empunha uma espada cintilante à entrada da igreja. Também encontramos o mesmo tema em torno do qual as diferentes narrativas variam: as palavras imperativas, com valor de sortilégio, pronunciadas pelo guarda e pelo anjo/espírito guardião: “Vejam, que lindos sapatos de baile, que belas sapatilhas”; “Você continuará dançando. (...) Dançará com esses sapatos até ficar pálida e fria. (...) Sim, você dançará” / “Você irá dançar. com esses sapatos vermelhos (...) até que fique como uma alma penada, como um fantasma. (...) Dancem, sapatos vermelhos. Vocês devem dançar”. Somos criativos, somos vaidosos... e é assim que começam as diferentes versões dessa estória. E todas se encerram com desfecho trágico: os pés da menina são amputados por conta dos sapatinhos vermelhos que usava. A “situação inicial” das duas versões de Andersen nos apresenta a personagem central, uma menina muito pobre, que ficara órfã e cuja única felicidade era um par de sapatos vermelhos que ela mesma tinha feito: “Essa criança guardava os trapos que pudesse encontrar e, com o tempo, conseguiu costurar um par de sapatos vermelhos. Eles eram grosseiros, mas ela os adorava” (ANDERSEN apud ESTES, 1994, p.271). A “complicação”, seguida de sua “dinâmica” se dá quando uma rica senhora, que aparece em uma carruagem dourada, nota a menina de sapatinhos vermelhos e a leva com a intenção de acolhê-la, cuidar dela como se fosse filha. É a partir daí que a menina e a velha senhora, a vontade individual e a coletiva, contrapõem-se. É nesse encontro/desencontro de valores, de realização ou renúncia de desejos, de proibições, que as armadilhas se armam. As tristezas, as decepções, os sofrimentos acontecem na vida da menina, e da velha senhora, e despertam a atenção e os sentimentos dos leitores, combinam com suas experiências de vida. De acordo com Estés (1994), os responsáveis pelo infortúnio da menina não são os antigos sapatinhos vermelhos que ela havia confeccionado a partir de trapos de pano vermelho, os que foram jogados fora por decisão da velha senhora, que, embora quisesse o bem da menina e buscasse protegê-la, fora incapaz de ver o valor que os sapatinhos vermelhos tinham e acabou sufocando-a, reprimindo-a. Não foram os sapatinhos primeiros, originais, amados pela menina porque criados por ela mesma e dos quais ela sentia tanta falta. 33 O mal estava nos sapatinhos vermelhos novos, fabricados por outrem, um sapateiro, que a menina passou a usar. Um dia a senhora a levara num sapateiro para escolher um sapato para usar na sua crisma e a menina ficou seduzida, atraída, tentada, ao ver na vitrine, um par de sapatos vermelhos, é que ela tinha saudades dos antigos. A menina, aproveitando-se do problema de visão da senhora e com a ajuda do sapateiro, enganou a velha senhora e levou os sapatinhos vermelhos. O sapateiro acabara por trazer um mal presságio, vinha anunciar alguma coisa futura. Como nos esclarece Estés (1994, p. 301): “Nos velhos tempos, o diabo, o soldado, o sapateiro, o corcunda e outros eram imagens usadas para retratar as forças negativas tanto na natureza da terra, quanto na natureza humana”. Os sapatinhos vermelhos, que eram muito brilhantes, chamativos, exerciam tal poder que ela só ficava satisfeita quando os mostrava, orgulhosa, em todos os lugares da cidade, inclusive na igreja, mesmo no evento de sua crisma. A menina achava-se tão esplêndida, tão bonita com os novos sapatinhos, que os exibia sempre, mesmo quando fora proibida de calçá-los pela velha senhora por sugestão dos membros da igreja que o reprovavam. Um dia, ao entrar na igreja, a menina foi surpreendida por um soldado que, pedindo-lhe permissão, tirou a poeira dos sapatinhos vermelhos e, de forma mágica, diabólica, transmitiu “vida” aos sapatos: eles começaram a se movimentar e dançar, sem que ela conseguisse fazê-los parar, tal foi a força dos sapatos vermelhos que somente o cocheiro conseguira tirá-los. E, mais uma vez, a velha senhora proibiu a menina de usar os sapatos. Então sucede que a velha senhora adoece. A menina calça novamente os sapatinhos vermelhos comprados na loja e sai dançando por todos os lados. A velha, sozinha, acaba morrendo. Os sapatinhos vermelhos levavam a menina embora, cada vez mais longe de todos e de tudo, ela não parava mais de dançar, mesmo quando o desejava. Os sapatinhos vermelhos, dos quais ela não conseguia se livrar de forma alguma, prenderam-se aos pés como uma pele e decidiam o que fazer, por que caminhos andar. A dança não era agradável, a menina sofria, não tinha mais liberdade, autodeterminação, faltava-lhe esperança. Tinha muito medo e encontrava-se exausta. Mas um dia, passando pela floresta, para não se ver mais escrava dos sapatos, pediu a um carrasco que os tirasse - nós, leitores do conto de Andersen, estremecemos, tememos o destino da menina. A tarefa era impossível, os 34 sapatinhos vermelhos não saíam. E, então, em total desespero, ou num ato de confissão e arrependimento pelo erro de calçar novamente os sapatos, a menina pediu e consentiu que o carrasco cortasse-lhe os pés. E os sapatos vermelhos, envolvendo os pés amputados da menina, se afastam dançando para dentro da floresta, mas retornam atemorizando a menina. Sapatinhos vermelhos, o que podem significar? Uma vida comovente, repleta de sacrifícios, cujas ambivalências requerem sempre decisão, sabedoria, comunhão com o que há de mais sagrado de nós mesmos, é o que sugere Estés (1994) e também Wangerin Jr (2005). Segundo Estés (1994), em determinadas comunidades, usar sapatos pode assinalar o status social, a respeitabilidade de uma pessoa: em “Sapatinhos Vermelhos”, o simbolismo arquetípico dos sapatos remonta à antiguidade quando os sapatos eram sinal de autoridade, e até mesmo como artefato de sobrevivência, principalmente em países de invernos rigorosos. Os sapatinhos simbolizam proteção para os pés da menina, para a sua base, os sapatinhos seriam metáfora de suas crenças. A cor vermelha, apesar de indicar força e vitalidade, indica também ambição e fortes tendências físicas, raiva, crueldade, rebeldia. O vermelho, em suma, é a cor da vida e do sacrifício: para vivermos bem, experimentarmos os caminhos e descaminhos da vida, temos que fazer escolhas, temos que fazer sacrifícios. A história chama atenção para as armadilhas nas quais nos envolvemos com facilidade quando estamos sem proteção. Assim exposta a um universo desconhecido (a cidade, a nova casa) e repressor, a menina definha e cai em uma obsessão, deseja ter, a qualquer preço, aquilo que a faz se sentir melhor, mas que é destrutivo e perigoso. A perda dos sapatinhos vermelhos feitos à mão representa, de acordo com Estés (1994), a perda da essência inicial, do equilíbrio que a fazia feliz. A obsessão dos sapatinhos vermelhos, que não foram criados, inventados, fabricados por ela mesma, bem como a perda dos pés por conta dessa atração pelo que não lhe era natural, íntimo, essencial, fizeram com que a menina perdesse a sua base, a sua liberdade, a sua capacidade de inventar-se a si mesma. Segundo Marie-Louise Von Franz (1990), há contos cujo final encena uma ambiguidade: há um final feliz, pois “todo fim é bom” nos contos de fada, entretanto esse final feliz é construído por uma cena trágica, negativa, como é o caso de “Sapatinhos Vermelhos”, uma vez que os pés da menina são amputados e o 35 narrador comenta que, a partir daquele momento, ela, uma aleijada, teria de descobrir uma forma de sobreviver no mundo trabalhando como criada. Entretanto é preciso atentar para o fato de que o final trágico, que, a princípio, contradiz o “Todo fim é bom” dos contos de fadas, significa também que a menina acaba se sentindo aliviada, mesmo quando cortaram os pés, pois sua compulsão em dançar sem parar tinha terminado. Ela era “livre”. Como percebemos, o conto de Andersen é conciso e preciso e é contado com uma linguagem simples, mas carregada de significações que demandam sempre uma interpretação. As duas versões de Andersen exploram as ambivalências e a polissemia do simbólico inscrito nos próprios sapatinhos vermelhos, nos acontecimentos e nas personagens principais e secundarias. Daí as leituras diferentes que Estés (1994) e Wangerin Jr. (2005) fazem. Interpretar os contos maravilhosos, estar atento aos seus símbolos, aos seus arquétipos, é colocar em prática uma hermenêutica da vida, vida que flui no seu cotidiano, mas que surpreende a cada momento com suas contradições entre bem e mal, amor e ódio, poder e submissão, liberdade e servidão, plenitude e carência, desobediência e fidelidade, visão e cegueira, sabedoria e ignorância. Os sapatos vermelhos, a menina e as vicissitudes de sua vida, a velha senhora, o sapateiro, o soldado que “enfeitiça” os sapatos à porta da igreja, o carrasco que amputa os pés da menina, o anjo/espírito guardião que empunha a espada junto à porta da igreja e, depois, segura um ramo de roseira todo florido, a amputação dos pés, o trabalho como criada, o retorno à igreja... Tudo, no conto de Andersen, é, como nos diz Wangerin Jr. (2005, p. 157), uma encenação dramática de “verdades” que a criança simplesmente não consegue captar em abstrato. No final do conto, a menina (Karen), em estado de profundo desamparo, se vê capaz de perdoar-se a si mesma e pedir perdão aos outros (e a Deus), os hinos entoados pelo órgão da igreja a acolhem trazendo-lhe paz e felicidade: “O grande órgão tocava e as vozes das crianças no coro confundiam-se docemente com ele. A luz do sol clara e quente jorrava janela adentro. Enchia o coração de Karen até ele inflar-se de paz e felicidade a ponto de explodir. Sua alma voou num raio de sol para Deus. E lá em cima ninguém lhe perguntou sobre os sapatos vermelhos” (ANDERSEN, apud WANGERIN JR., 2005, p. 162). 36 Por meio dessa estória, a criança é formada no perdão e na fidelidade à sua origem, à sua essência divina, à sua força criativa, e a formação permanece, sempre. 3.2. “O Patinho Feio”: como tornar-se o que se é. Pode uma criança receber uma melhor impressão, uma formação mais sutil, mais espiritual do que esta: aprender a tornar-se o que se é? Quando acompanhamos os “sofrimentos” do protagonista do conto “O Patinho Feio” 8, recebemos essa graça de Andersen, aprendemos o que é a beleza do ser. Nesse conto, a personagem central, um “patinho”, tão logo sai do ovo, se descobre muito feio, porque é muito diferente dos outros irmãos patinhos. O Patinho conhece a dura realidade de não se enquadrar no meio em que vivia, de não pertencer “à turma” do fosso, de ser rejeitado. Quando a perseguição se torna mais agressiva, ele parte numa jornada, colocando-se à prova em um verdadeiro teste de sobrevivência, experimentando, sozinho, o inverno rigoroso e um mundo cheio de perigos. Mas, finalmente, o protagonista descobre coisas maravilhosas dentro de si: ele não era feio, ele não era um patinho, não era um patinho feio, ele tornou-se aquilo que já era desde o seu nascimento, um cisne. O seu inconfessável desejo se realiza. A profundidade dessa bela estória de Andersen está no fato de que o desejo do Patinho é também o desejo de todo o cosmo. Pode ser então, o desejo do próprio Andersen, o desejo do narrador da estória e também o do leitor. Talvez seja por essa razão que a mediação dessa estória de Andersen seja tão especial, tão poeticamente construída. O narrador de “O Patinho Feio” é onisciente, narra em terceira pessoa e conhece tudo sobre as personagens e sobre os eventos, até mesmo sobre os sentimentos do protagonista. Mas essa onisciência não lhe confere um autoritarismo, uma posição de comando e desmando. O narrador bem sabe que o Patinho Feio era, na verdade, um cisne, mas cria um espaço de jogo, de efeito estético, deixando que o leitor, caminhando junto com o próprio protagonista da estória, descubra por si mesmo essa importante verdade. 8 Para a análise do conto “O Patinho Feio” usamos a coletânea Histórias Maravilhosas de Andersen (2003), compiladas por Russel Ash e Bernard Higton e traduzidas para o português por Heloísa Jahn 37 O narrador também não julga, explícita ou implicitamente, todos os que, considerando-se os melhores, os superiores, mais sábios, mais belos, mais amados, mais experientes, mais inteligentes, rejeitaram violentamente o Patinho Feio. Há como que uma representação épica e lírica, epilírica9, da vida do Patinho Feio. Nela, os eventos são duplamente mediados pela consciência artística do narrador (épica) e pela experiência vital do protagonista da estória (lírica) que funciona como refletor dos acontecimentos. Poderíamos dizer que a intimização do narrador com o Patinho Feio é tão grande que ele compartilha das experiências trágicas de rejeição, de humilhação, de solidão do protagonista da estória, mas e, sobretudo, da emoção de alegria que se irradia no final. Tudo é muito poético nesse conto. Andersen, ao narrar a busca do Patinho Feio por uma vida melhor, menos violenta, mais sossegada e em harmonia com os outros, mas, principalmente consigo mesmo, compõe uma doce melodia regida pelas “quatro estações” do ano cujos movimentos - verão, outono, inverno e primavera - simbolizam o percurso do protagonista. No verão, o Patinho nasce e ainda recebe o carinho da mãe, mesmo sendo rejeitado pelos irmãos e por toda a turma do fosso. E por que a rejeição? Pela “feiura”, não pela maldade, nem pela crueldade, ou qualquer outro erro. Os outros patinhos, seus irmãos, são bonitos, à imagem da mãe. Mas o patinho saiu de um ovo maior, esquisito. Por essa razão ele recebe bicadas, pontapés e empurrões. Por isso ele é desprezado. A mãe do Patinho o defende: (...) - Ele não é bonito, mas é muito bem-comportado e nada tão bem quanto os outros. Para falar a verdade, acho até que nada um pouco melhor que os outros. Tenho certeza de que quando ficar mais velho vai ficar muito bonito. É que ele se atrasou no ovo e acabou ficando diferente. (ANDERSEN, 2003, p. 110) O Patinho, entretanto, sente pena da mãe: ela é uma linda pata e sofre injustamente por causa dele; o problema, afinal de contas, é dele: ser tão feio! O simples fato de amá-lo é causa do sofrimento da mãe que, nos primeiros dias, tenta confortá-lo: “esse é o jeito do mundo”. Isso não o conforta. E depois, até a mãe gostaria de vê-lo longe de casa (da zombaria, do sofrimento?)! O Patinho, então foge e nunca mais a vê. 9 Termo apresentado por Ronaldes de Melo e Souza para definir a poética do narrador de “Campo Geral”, primeira saga de Corpo de Baile, de João Guimarães Rosa ( SOUZA, 2008, p.125-136). 38 O Patinho, sozinho, desanimado e triste, descobre “o jeito do mundo”. E isso inclui a morte dos poucos que gostaram dele: os caçadores mataram dois gansos selvagens que foram amáveis com ele, apesar de sua “feiúra”. Inclui também o escárnio, o desprezo dos moradores de uma cabana contra tudo que ele não sabe fazer: ele não bota ovos como a galinha, ele não arqueia o dorso, não ronrona e não faz estalar o pelo como o gato. Faça isso, faça aquilo, grita a senhora, a galinha e o gato. Mas o Patinho não sabe fazer nada do gosto deles, do jeito que a sociedade deseja e, por isso, ele se sente ainda mais feio e mais esquisito. O Patinho é cada vez mais excluído da sociedade. Ninguém pode salvá-lo, só ele mesmo. É quando ele, atendendo ao apelo irresistível do ser, sai da cabana: O patinho ficou muito triste e foi para o canto da cozinha. De repente começou a pensar em sol, em ar fresco, e ficou tão empolgado com o estranho desejo de boiar na água que no fim não aguentou e contou à galinha. (...) - Mas é tão gostoso boiar na água! – disse o patinho. – É tão divertido enfiar a cabeça na água e mergulhar até o fundo! (ANDERSEN, 2003, p.114, grifo nosso) A saída para mergulhar até o fundo da alma acontece quando o outono chega: “Não demorou muito, o outono chegou. As folhas da floresta ficaram amarelas e marrons e o vento se apropriou delas e fez com que enchessem o espaço com sua dança. O ar tinha um travo frio” (ANDERSEN, 2003, p. 114). E, num belo fim de tarde, o Patinho vê outras aves que chamam sua atenção. Mas ele não sabe o motivo. Essas aves são belos cisnes brancos que estão fugindo do frio. Nesse outono, o Patinho conheceu, sem saber, outros de sua espécie, por isso sente-se tão bem ao vê-las: Uma tarde de pôr-do-sol deslumbrante um bando inteiro de lindas aves bem grandes levantou voo do matagal. O patinho nunca tinha visto coisa mais linda. As aves eram muito brancas, seus pescoços eram compridos e elegantes. Os cisnes, pois aquelas aves eram cisnes, soltaram um grito impressionante, abriram as asas magníficas e voaram das regiões frias para outras mais quentes em busca de lagos menos gelados. Quando eles subiram até o alto do céu, o pequeno patinho feio sentiu uma coisa esquisita. Fez uma curva na água parecendo uma roda, espichou o pescoço para o alto na direção das aves que tinham levantado voo e soltou um grito tão forte e surpreendente que até ele mesmo se assustou. Não conseguiu esquecer aquelas aves. Quando elas desapareceram por completo ele ficou tão agitado que mergulhou na água até o fundo, depois voltou para a superfície. Não sabia como aquelas aves se chamavam nem para onde elas estavam indo, mas o amor que sentiu por elas nunca havia sentido por ninguém. Não era inveja, pois não lhe passava pela cabeça desejar tanta beleza para si próprio. Para ele o máximo de felicidade seria aquelas aves aceitarem sua companhia. Coitado do pato feioso! (ANDERSEN, 2003, p. 114-16, grifo nosso) 39 Logo vem o inverno, muito rigoroso. Todo esse rigor obriga o Patinho a “ficar nadando para lá e para cá para impedir que a água ficasse completamente congelada”, ele tinha que se mexer o tempo todo para que “a água não se congelasse com ele”. Mas acaba cansado e para de se mexer, ficando “firmemente preso no gelo”. (ANDERSEN, 2003, p. 117) O gelo da baixa auto-estima, da imagem de feiúra que todos faziam dele, a angústia, o medo, a indiferença dos outros acaba congelando o Patinho. É absolutamente compreensível que o Patinho queira até mesmo morrer para não sofrer mais. Felizmente, o Patinho é salvo por um camponês que o leva para casa. Mas essa não é a verdadeira salvação! Nada dá certo, ele voa “para dentro do tarro do leite, esparramando o leite para cozinha inteira”, voa para a tina de manteiga, depois para a lata de farinha... (ANDERSEN, 2003, p.117). O Patinho ainda sente o frio da solidão. Como tudo deu errado, ele sai da casa do camponês, “correndo pela neve recém-caída” e abrigando-se nos arbustos, experimenta a “sensação de estar fora da realidade”, pois ainda não sabe quem é, ainda não está junto dos seus. Como nos diz o narrador da estória: “Seria muito triste se fôssemos contar todos os sofrimentos, toda a infelicidade que ele foi obrigado a enfrentar naquele inverno tão frio.” (ANDERSEN, 2003, p. 117). É preciso esperar pela primavera, sugere docemente o narrador. E a primavera vem. O Patinho esperou a esperança com seus raios de sol a brilhar, com o canto das cotovias e com a belíssima imagem de três cisnes brancos deslumbrantes: De repente o patinho abriu as asas e percebeu que elas tinham mais força do que antes e que o impulsionavam para a frente com mais energia. E antes de entender muito bem onde estava, foi parar no meio de um grande jardim onde as macieiras estavam em flor e o ar tinha o perfume adocicado dos lilases que pendiam dos longos ramos verdes e roçavam a água dos canais sinuosos. E bem na frente dele, do meio das moitas, surgiram três cisnes brancos deslumbrantes. Os cisnes ruflaram as penas e flutuaram com muita leveza sobre a água. O patinho reconhecera as criaturas magníficas e foi tomado por um estranho sentimento de tristeza (ANDERSEN, 2003, p. 117-118). O Patinho não sabia sobre si mesmo e quando “refletia” sobre sua identidade, enquanto sofria, sua “reflexão” era tão somente uma imagem externa, que os outros faziam dele: um patinho feio. E ele acreditou nisso até que se encontrou, mergulhou, na profundidade do espelho das águas do jardim onde flutuavam os cisnes (não 40 mais as águas do fosso, do pântano e lago congelado). O Patinho, diante da beleza dos cisnes, ainda triste com as bicadas, pontapés e agruras do inverno, preferiu voar até aquelas criaturas majestosas, nem que elas o bicassem até a morte por ele ser tão feio e ousar chegar até elas. Voou para água e, cabisbaixo, esperou a morte. Mas é nessa hora que a alegria da descoberta de sua verdadeira identidade acontece: no espelho das águas ele percebe que era igualzinho aos cisnes. Nas palavras de Andersen: “O pobrezinho abaixou a cabeça, olhando para a água, e esperou. Mas que foi que ele viu na água límpida? Por baixo de si, viu sua própria imagem.” (ANDERSEN, 2003, p. 118). O nosso protagonista fica muito feliz: ele não era mais um pássaro desajeitado e cinza. Era um cisne. Era um Belo e Jovem Cisne. O Patinho Feio, como no mito de Dioniso (ou no mito de Narciso) morre, quando se vê no espelho das águas para tornar-se o que já se é: um lindo Cisne. Com essa bela estória compreendemos que os contos de Andersen, embora simples na superfície, contêm uma percepção delicada e precisa do desenvolvimento pessoal. Os contos maravilhosos de Andersen são bem “honestos quanto ao duro encontro com o mundo real – honestos sobre o mal e a tendência para o mal que existe em cada um de nós”, mas jamais comprometem “a verdade da experiência humana para agradar os ouvidos infantis”, como nos diz Wangerin Jr. (2005, p.150). Mesmo que seja em termos “absolutamente fantásticos”, Andersen sempre valoriza a verdade da experiência humana. 41 E HANS CHRISTIAN ANDERSEN FICOU SENDO... POIS TODO FIM É BOM: UMA CONCLUSÃO Hans Christian Andersen é o poeta da infância. Por que razão? Sua obra representa a essência da infância e, por conseqüência, da vida aprendida e ensinada. Como mostramos no nosso trabalho, o aprendizado, as experiências vividas pelas personagens, são exemplos de experimentações de busca pela essência da vida, pela sensibilidade e inteligência do ser. Há uma “educação sentimental”, urdida pelo poético, mas que se constrói permeada de morte, sofrimento, desmistificações e tragédias que serão fatores de renovação que serão fatores de renovação e transcendência. De felicidade. De alegria! É mesmo possível ter um final feliz nos contos de Andersen? Sim! Como foi abordado anteriormente existe um final brutal em muitos contos desse escritor dinamarquês, sobretudo no conto “Sapatinhos Vermelhos”. A protagonista foi “punida” por sua atitude, mas alcançou uma felicidade porque vivenciou os limites da vida: passou pela dor de, na busca de realizar seus desejos, encontrar modelos inautênticos de existir. Chegou à verdade de seu ser, aprendendo pelo sofrer. Perdão, compaixão, realização, sabedoria... Eles sempre fazem parte da formação dos protagonistas que atravessam um caminho cheio de violências, injustiças sociais, abandono, desamor. E o que diríamos de outros contos de Andersen como “O Valente Soldadinho de Chumbo”, “A Pequena Sereia” ou “A Pequena Vendedora de Fósforos”? São estórias com um final triste. As personagens dessas estórias vivem as condições do ser humano: a desigualdade, a luta pela sobrevivência e pelo amor. São amorosas e frágeis porque se apaixonam por pessoas “inacessíveis”: o Soldadinho, que é um brinquedo, pela Bailarina, que é também um brinquedo; a Pequena Sereia, por um humano. O Soldadinho, que não tinha uma perna, lutou por sua sobrevivência ao passar por tantos perigos fora de casa, mas não perdeu a esperança de reencontrar sua Bailarina. O destino o leva de volta para casa, mas o soldadinho é jogado no fogo por um menino. Ainda assim, o Soldadinho de Chumbo realiza seu sonho: estar junto do ser amado. A Bailarina também lançada ao fogo, derrete (morre) junto do Soldadinho. A Pequena Sereia luta para ser correspondida, vira humana por efeito de um encantamento de uma bruxa, porém não consegue conquistá-lo. Prefere virar 42 espuma do mar (a morte) a matar seu grande amor, ela salva com sua morte o seu príncipe. A Pequena Vendedora de Fósforos, no frio congelante, foge para um mundo sonhado por ela, um mundo iluminado e aquecido pela pequena e instantânea chama e pelo passageiro calor de cada fósforo riscado na noite escura e fria de inverno. A cada fósforo aceso, um desejo “realizado” na e pela imaginação: comida, lareira, carinho e cuidados da avó. A Pequena Vendedora de Fósforos adia a morte, mas para experimentá-la como consolação de uma vida cheia de sofrimentos e carências, porque ela encontrou com a avó, a quem amava tanto. A morte ou a tristeza nos contos de Andersen não representa a derrota dos protagonistas, é o próprio destino que elas escolheram para realizar seus sonhos. Podemos compreender o que representa o final triste nos contos de Andersen a partir do que Cláudio Naranjo (2001) propõe sobre as estórias matriarcais, conforme já vimos no terceiro capítulo. Há nessas estórias matriarcais uma certa tristeza, geralmente a morte ou desaparecimento do protagonista, no final, mas que revelam a presença da criança divina, cuja sabedoria e confiança na natureza do mundo e de si mesma constroem, paradoxalmente o “final feliz” dos protagonistas. Os protagonistas dos contos de Andersen são perdedores-vencedores. Percorrem um longo e sofrido caminho rumo à realização e aprendem a viver de outra maneira, não como seres eternos, imutáveis, que se esquivam das mais profundas experiências porque elas lhes trazem dor. Cada protagonista de Andersen comparece assim porque se descobre eterno ser que só é enquanto devir, que pode vir a tornar-se aquilo que já se é em essência, assumindo sua destinação, não esquecendo suas origens e acreditando que todo fim é bom porque poderia ser de outro “jeito”. Qual seria a moral que estórias, como “Sapatinhos Vermelhos” e “A Pequena Vendedora de Fósforos”, buscam “impor” aos leitores, sobretudo às crianças? Podemos pensar que a lição seria simplesmente, como muito se divulga, a de que menina dos sapatinhos vermelhos ficou sem os pés porque desobedeceu à velha senhora e às regras da sociedade em que vivia? E a Pequena Vendedora de Fósforos? Que lição tirar do triste fato de não se ter ninguém que se importe com a menina? Se não fizermos qualquer coisa para sairmos da pobreza a que a sociedade nos relegou e se nos confortamos, mesmo que por instantes, num acender e apagar instantâneo de fósforos, com o “sonho”, com a esperança de uma 43 vida melhor, uma casa que nos abrigue e os cuidados que uma avó pode nos ofertar, merecemos morrer congelados na fria noite? Buscar as causas históricas (sociais, econômicas, políticas) dos acontecimentos narrados, analisar a vida pessoal do autor e traçar o perfil psicológico ou os antecedentes do inconsciente de Andersen e de cada personagem... Isso seria o suficiente para que pudéssemos realmente dizer quais os ensinamentos de uma estória de Andersen? Podemos pensar que autores como Andersen apenas dizem em seus contos: divirtam-se! Ou melhor, DI-VIRTAM-SE, criem e experimentem uma versão diferente de vocês mesmos! Não sabem como? Mergulhem dentro de si mesmos, busquem a criança escondida em vocês e maravilhem-se com o poder de sua imaginação. Encantem-se com a imagem poética que há muito tempo foi trocada pela consciência da racionalidade. As obras de Andersen vieram para retomar uma outra consciência, a imaginante, a do devaneio poético em demanda da infância. Como bem nos lembra Bachelard (2001) sobre a imaginação poética: A imagem poética, aparecendo como um novo ser da linguagem, em nada se compara, segundo o modo de uma metáfora comum, a uma válvula que se abriria para liberar instintos recalcados. A imagem poética ilumina com tal luz a consciência é vão procurar-lhe antecedentes inconscientes. (BACHELARD, 2001.p.3). A imagem poética tem um ser próprio, um dinamismo próprio. E, de acordo com Bachelard (2001), para se esclarecer o problema da imagem é preciso estudar o fenômeno da imagem poética quando esta surge na consciência como um produto direto de coração, da alma do ser humano. Ele pede para que a imagem poética não seja encarada como um mero objeto ou o substituto deste, mas que seja capturada em sua concretude, dinamismo e materialidade, na sua realidade especifica. Na busca dos sentidos da vida, o homem descobriu que seu próprio espaço interior tonou-se um lugar novo de experiência. Esse é o centro, a finalidade, o sentido, a destinação do homem: descobrir-se eterna novidade, ser repleto de devaneios que acordam nele o devir da origem, da “criança divina” como assinalam Kerenyi e Jung (2011). Assim, nos contos de Andersen, o sofrimento, o conflito, a tensão, até mesmo a morte, experimentados por suas personagens permitem o crescimento interior e são essenciais à auto-descoberta. São, na verdade, a própria “cura”, a própria “redenção” das personagens, e também dos leitores, quer sejam crianças ou adultos. 44 Vimos algumas condições necessárias à estruturação do conto maravilhoso /de fadas: a fantasia, que é uma imaginação criadora; a recuperação, que é a recuperação depois de um desespero; o escape, que é o escape de um perigo; e o consolo, que é o consolo de um final feliz, mesmo quando ele parece, como na maioria dos contos de Andersen, triste. Vimos, por exemplo, que a Pequena Vendedora de Fósforos recupera sua felicidade quando acende os fósforos. Esperança: é o que nos ensinam os contos maravilhosos de Andersen. Não há nele uma pedagogia do medo. Esperar, aprendemos, não resigna, porque ficamos apaixonados pelo êxito em lugar do fracasso. Para Marie-Louise Von-Franz (1984), o elemento da juventude está dramatizado no símbolo da criança. A criança geralmente ainda possui esse espirito de veracidade, de pureza de sempre falar a verdade, de ser ela mesma absolutamente sincera, de ter esperança, espírito que, geralmente, tendemos a perder por força de uma educação que busca o ser eterno , e não o eterno ser. A criança, também nos contos de Andersen, é o mitologema, - ou arquétipo -, na linguagem de Kerenyi e Jung (2011), do ser poético por excelência, daquele que aprende a esperar além do dia ou da noite que aí está, além das agruras e sofrimentos, daquele que aprende a sonhar um mundo melhor e renovado, daquele cuja vida, como nos diz o próprio escritor dinamarquês, é “um conto de fadas escrito pelas mãos de Deus”. 45 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDERSEN, Hans Christian. Histórias maravilhosas de Andersen. Comp. Russel Ash e Bernard Higton. Trad. Heloísa Jahn. 9ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2003. ARISTÓTELES. Poética. Tradução, prefácio, introdução, comentário e apêndices de Eudoro de Sousa. 2ªed. 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