Pró-Reitoria de Graduação
Curso de Letras
Trabalho de Conclusão de Curso
O CONTO MARAVILHOSO DE HANS CHRISTIAN ANDERSEN:
A FORMA NARRATIVA SIMPLES E A PROFUNDIDADE DOS
u
SENTIDOS DA VIDA
Autor: Franciane da Silva
Orientador: Prof. Msc. Lívila Pereira Maciel
NOME DO AUTOR
Brasília - DF
2012
FRANCIANE DA SILVA
O CONTO MARAVILHOSO DE HANS CHRISTIAN ANDERSEN: A
FORMA NARRATIVA SIMPLES E A PROFUNDIDADE DOS
SENTIDOS DA VIDA
Monografia apresentada no curso
de Graduação em Letras da
Universidade Católica de Brasília
como requisito para a obtenção do
título de Licenciado em Letras com
Habilitação em Português e Inglês e
suas Literaturas.
Orientadora: Prof.
Pereira Maciel
Brasília
2012
MSc.
Lívila
Monografia de autoria de Franciane da Silva, intitulada “O CONTO
MARAVILHOSO DE HANS CHRISTIAN ANDERSEN: A FORMA NARRATIVA
SIMPLES E A PROFUNDIDADE DOS SENTIDOS DA VIDA”, apresentada como
requisito parcial para obtenção do título de Licenciado em Letras com Habilitação em
Português e Inglês e suas Literaturas pela Universidade Católica de Brasília, em 28
de novembro de 2012, defendida e/ou aprovada pela banca examinadora abaixo
assinada:
______________________________________________________
Prof. Msc. Lívila Pereira Maciel
Orientadora
Curso de Letras da Universidade Católica de Brasília - UCB
______________________________________________________
Prof. Msc. Deise Ferrarini
Curso de Letras da Universidade Católica de Brasília - UCB
______________________________________________________
Prof. Dr. Maurício Lemos Izolan
Curso de Letras da Universidade Católica de Brasília - UCB
Dedico este trabalho a minha mãe
que, com tanto amor, sempre esteve ao
meu lado e sempre acreditou em mim.
AGRADECIMENTO
Agradeço primeiramente a Deus, pois sem Ele nada seria possível.
A minha mãe pela vida, pelo amor e por sua dedicação. A minha irmã e
familiares, pelo apoio para que esse momento se tornasse realidade.
Aos professores, que nesses anos de minha formação, tanto me ajudaram.
Com muito carinho e admiração agradeço à minha orientadora, Professora Lívila
Pereira Maciel, pela dedicação e disposição com que na realização deste trabalho.
Aos amigos de infância agradeço a compreensão; aos meus amigos da
Universidade, o apoio, e a meus colegas de trabalho, a força.
“Todas as vidas de homens são
contos de fadas escritos pelas mãos de
Deus”.
Hans Christian Andersen
RESUMO
SILVA, Franciane da. O conto maravilhoso de Hans Christian Andersen: a forma
narrativa simples e a profundidade dos sentidos da vida. 2012. 47. Trabalho de
Conclusão de Curso de Graduação. Curso de Letras. Universidade Católica de
Brasília. Brasília. 2012.
O presente trabalho tem como tema o conto maravilhoso de Hans Christian
Andersen. Apresentamos e clarificamos a forma narrativa simples dos seus contos e
o significado profundo que eles alcançam. Para tal, fazemos a análise de dois contos
do escritor, “Sapatinhos Vermelhos” e “O Patinho Feio”, ressaltando a importância
dos protagonistas das estórias escolhidas. A obra do escritor dinamarquês toca a
sensibilidade do leitor porque seus contos são baseados no cotidiano, mas são, ao
mesmo tempo, repletos de imaginação. As personagens de Andersen, com suas
experiências de vida, imprimem verdade, significado, valor simbólico, aos contos,
encantando e formando os leitores, sobretudo os leitores-crianças. Os
acontecimentos trágicos, de dor, de solidão, de tristeza, de dúvidas, de perdas, dos
protagonistas engrandecem os contos de Andersen e apontam, paradoxalmente,
para uma final feliz, porque há sempre a busca pela realização dos sonhos e pela
essência do ser. As personagens das estórias de Andersen, perdedoras-vencedoras
no jogo da vida, acabam concretizando o bem e a verdade que buscaram alcançar.
As estórias maravilhosas de Andersen nos fazem mergulhar no poder do imaginário
e da di-versão (versão diferente de nós mesmos), e tudo isso a partir de uma forma
narrativa simples e de uma linguagem extremamente poética. Andersen é um
grande exemplo da literatura infantil de qualidade, porque prima pela imaginação e
pela poesia da infância.
Palavras-chave: Imaginação. Infância. Conto de fadas. Formação do leitor. Hans
Cristhian Andersen.
ABSTRACT
SILVA, Franciane da. O conto maravilhoso de Hans Christian Andersen: a forma
narrativa simples e a profundidade dos sentidos da vida. 2012. 47. Trabalho de
Conclusão de Curso de Graduação. Curso de Letras. Universidade Católica de
Brasília. Brasília. 2012.
The present work has as its theme Hans Christian Andersen wonderful tale. The
simple narrative shape of his short stories will be clarified, as well the meaning that
they achieve. Thus, two stories written by Andersen, "Red Shoes" and "The Ugly
Duckling", will be analyzed, highlighting the importance of the protagonists of the
chosen stories. Readers are touched by the work of this Danish writer because his
stories are based on daily life, but, at the same time, they are full of imagination. The
life experience of Andersen's characters prints truth, meaning and symbolic value to
the tales; this fascinate and form the readers, especially the children. The
protagonists’ tragic events of pain, loneliness, sadness, doubt, loss magnify the
Andersen tales and point, paradoxically, to a happy ending, because there is always
the search for realization of dreams and for the essence of being. Andersen
characters, winners-losers in the game of life, end up concretizing goodness and
truth seeking that they achieve. Andersen wonderful stories dip in the power of
imagery and the di-version (different version of ourselves), and all of this from a
simple narrative form and a very poetic language. Andersen is a great example of
high-quality children's literature because he excels in poetry and imagination of
childhood.
Keywords: Imagination. Childhood. Fairy tales. Readers formation. Hans Christian
Andersen.
SUMÁRIO
ERA UMA VEZ HANS CHRISTIAN ANDERSEN: UMA INTRODUÇÃO _________ 10
1
A LITERATURA INFANTIL E O CONTO DE FADAS ____________________ 14
2
O VALOR DA PERSONAGEM NO CONTO MARAVILHOSO ______________ 19
2.1
A personagem e a morfologia do conto maravilhoso segundo Vladimir Propp 20
2.2
A personagem e a verdade da ficção no conto maravilhoso _____________ 22
3
A FORMA NARRATIVA SIMPLES E A PROFUNDIDADE DOS SENTIDOS DA
VIDA NA OBRA DE HANS CHRISTIAN ANDERSEN _______________________ 25
3.1.
Sapatinhos Vermelhos: o desejo de ser livre _________________________ 31
3.2.
“O Patinho Feio”: como tornar-se o que se é._________________________ 36
E HANS CHRISTIAN ANDERSEN FICOU SENDO... POIS TODO FIM É BOM: UMA
CONCLUSÃO______________________________________________________ 41
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS _____________________________________ 45
10
ERA UMA VEZ HANS CHRISTIAN ANDERSEN: UMA INTRODUÇÃO
A meninice, com sua linguagem, mundividência, sensibilidade, esperanças e
fantasias, aventuras e fatalidades, é que forma o adulto, e nada mais presente na
nossa infância do que os contos de fadas, repletos do maravilhoso e da fantasia,
mas também de situações de vida complexas e tão reais aos nossos olhos de
criança. Como tudo da nossa meninice, os contos de fadas nos formam e
permanecem para sempre, significando, indicando-nos caminhos, embora, muitas
vezes, o adulto racional e “realista” em que nos tornamos, desista das coisas
“infantis” e releguem o conto de fadas ao meramente irreal, fantasioso, a uma mera
forma de entretenimento para fugir dos problemas do mundo real.
O conto maravilhoso é um acontecimento que não tem compromisso com o
“real”, mas que pode conter elementos que simbolizam nossa vida e nossos conflitos
reais. É por meio das janelas de um conto de fadas que a criança vê o mundo “real”
e pode encontrar certo sentido maravilhoso, fantástico, fabuloso, encantador. Bruno
Bettelheim (2002), m A Psicanálise dos Contos de Fadas, afirma a importância dos
contos de fadas para as crianças, sobretudo pelo uso pessoal que fazem do
encantamento presente neles. De acordo com o psicólogo infantil, eles apresentam
um caráter simbólico que emana da forma narrativa simples e emoldurada pelo
mitopoético.
Um dos escritores de contos maravilhosos mais conhecidos e que será
estudado nesse trabalho é Hans Christian Andersen (2003). A importância de
estudar esse escritor justifica-se pelas suas próprias estórias e personagens,
construídas de uma forma tal que sempre foram bem recebidas pelas crianças. O
escritor dinamarquês escreveu reinventando, ou seja, diferentemente de Charles
Perrault e dos Irmãos Grimm, ele recriou seres, funções, universos, qualidades e
emoções singulares, únicas, surpreendentes.
Andersen é um genuíno poeta da
imaginação. E sua imaginação melhor se concretiza quando demanda os devaneios
poéticos da infância. Andersen é o poeta da infância. E é por essa razão que nosso
trabalho se sustenta de forma geral no pensamento de Gastón Bachelard (2000;
2001) para o qual a imaginação de criança no mundo do conto de fadas é muito
importante, pois é na infância que o devaneio tem a liberdade, uma imaginação
11
desprendida de conceitos anteriores, as imagens primeiras que transformam tudo
em maravilhoso.
Entrar em contato com o mundo maravilhoso de Andersen, dia após dia, noite
após noite, significa, para seus leitores, sobretudo para as crianças, deixar que as
aventuras de cada conto lido ordenem seus dias turbulentos, suas intuições, sua fé,
sua vida prenhe de futuro. Cresce nos leitores o otimismo, a esperança em meio ao
sofrimento e aos erros... Aprende-se com o reconhecimento, o perdão, a redenção.
Qualidades essenciais à vida humana, que não são apresentadas por Andersen de
forma conceitual, abstrata, mas de modo concreto e transformador.
Esse trabalho está dividido em três capítulos. No primeiro capitulo, “A Literatura
Infantil e o Conto de Fadas”, fazemos algumas reflexões sobre a literatura infantil,
indagando se o termo “infantil” associado à literatura significa que ela seja destinada
necessária e exclusivamente para crianças. Buscamos as respostas nas ideias de
estudiosos e escritores como Jacqueline Held (1980), Ana Maria Machado (2002),
Cecília Meireles (1984), Carlos Drummond de Andrade Apud DINORAH 1996), entre
outros. Todos ressaltam a poeticidade dos textos literários e a qualidade dos livros
infantis que buscam atingir, em cheio, o imaginário infantil. É nesse contexto que o
conto de fadas é identificado como literatura de valor também para as crianças e no
qual se destaca o mundo ficcional criado por Hans Christian Andersen (2003). A
obra do escritor dinamarquês toca a sensibilidade do leitor porque seus contos são
baseados no cotidiano, mas são, ao mesmo tempo, repletos de imaginação. Como
toda literatura infantil de qualidade, os contos maravilhosos de Andersen
apresentam uma forma narrativa simples, mas não se limitam a cumprirem um papel
meramente didático, utilitário pedagógico. Eles trazem a poesia como o que há de
mais essencial para a formação do ser da criança, porque dramatiza, às vezes
tragicamente, a profundidade dos sentidos da vida.
No segundo capitulo, “O Valor da Personagem no Conto Maravilhoso”, nos
dedicamos a apresentar e clarificar a estrutura simples e o significado profundo dos
contos maravilhosos de modo geral, chamando a atenção para o papel relevante
que a personagem desempenha na construção das estórias. Buscamos mostrar que
é a personagem, um “ser fictício” criado na e pela linguagem poética, que imprime
verdade, significado, valor simbólico, aos contos maravilhosos. As personagens,
com suas experiências de vida, é que encantam, seduzem e formam os leitores,
12
sobretudo os leitores-crianças. Esse capítulo tem como apoio as teorias de Bruno
Bettelheim (2002), Beth Brait (1994), Antonio Candido (2002), Anatol Rosenfeld
(2002) e Vladimir Propp (1984), entre outros. E, para mostrarmos a relação entre as
personagens dos contos maravilhosos e o arquétipo da criança divina, original,
buscamos o pensamento essencial de Carl Jung (2011), Karl Kerényi (2011),
Cláudio Naranjo (2001), Marie-Louise Von Franz (1990), Mircea Eliade (1994) e o
próprio Gaston Bachelard (2001).
No terceiro capitulo, “A Forma Narrativa Simples e a Profundidade dos
Sentidos da Vida na Obra de Hans Christian Andersen”, devota-se inteiramente à
apresentação, à explicitação da obra do poeta dinamarquês, suas personagens e a
sua importância para a formação da criança, destacando-se dois contos mais
conhecidos, “Sapatinhos Vermelhos” e “O Patinho Feio”.
A análise dos contos
busca apreender o princípio compositivo das personagens Sapatinhos Vermelhos e
Patinho Feio e do enredo da estória de vida de cada uma delas. A análise visa
também esclarecer como os acontecimentos trágicos, de dor, de solidão, de tristeza,
de dúvidas, de perdas dos protagonistas engrandecem os contos de Andersen e
apontam, paradoxalmente, para uma final feliz, porque há sempre a busca pela
realização dos sonhos, pela essência do ser. Para desenvolvermos a análise
também lançaremos mão de outros estudiosos, além daqueles em que nos
apoiamos para desenvolver o capítulo primeiro e o segundo. Nesse caso, a
interpretação psicanalítica de autores Clarissa Pinkola Estés (1994) e de Wagner
Wangerin Jr (2005) serão bastante importantes para nossa leitura.
E, então, chegamos à conclusão, quase em forma de capítulo, “E Hans
Christian Andersen ficou sendo... pois todo fim é bom”, para que possamos melhor
alcançar o sentido da totalidade da obra de Andersen e dos contos que , embora
sejam genuinamente clássicos, não foram trabalhados por nós detalhadamente já
que não havia tempo suficiente: “O Valente Soldadinho de Chumbo”, “A Pequena
Sereia” ou “A Pequena Vendedora de Fósforos”. Percebemos, então, que as
personagens das estórias de Andersen, perdedoras-vencedoras no jogo dos
devaneios poéticos e da vida, afinal acabam concretizando o bem e a verdade que
buscaram alcançar. As estórias maravilhosas de Andersen no fazem mergulhar no
poder do imaginário e da di-versão (versão diferente de nós mesmos). Tudo isso a
partir de uma forma narrativa simples, de uma linguagem extremamente poética,
13
ensinando-nos que nossa vida é, como o poeta mesmo disse, um conto de fadas
escrito pelas mãos de Deus.
14
1. A LITERATURA INFANTIL E O CONTO DE FADAS
Muito se fala sobre a literatura infantil. E o que é a literatura infantil? É a
literatura que tem como destinatário as crianças? Para alguns autores, definir a
literatura infantil não é uma tarefa fácil, o termo “infantil” associado à literatura pode
não significar que ela tenha sido feita necessária e exclusivamente para crianças. Na
verdade, a literatura infantil acaba sendo aquela que corresponde de alguma forma,
aos anseios do leitor e, por essa razão, que se identifique com ele. Mas, de que
anseios estamos falando? Do encantamento, do maravilhamento, da imaginação
criativa? Da necessidade de ultrapassar limites, obstáculos, buscar a melhor
resposta para as nossas dores e, assim, tornarmos capazes para vivermos uma vida
digna porque repleta de poesia? Com efeito, antes de ser “infantil”, a literatura
destinada às crianças - e não só a elas, mas a destinada a todos nós “crianças” ou
não -, deve guardar o vigor e o fascínio da poiesis 1.
De acordo com Martina Sanchez (1983), em seu tratado sobre literatura
infantil, à criança deve ser oferecida uma experiência rica em imaginação, dinâmica
na linguagem e nas ideias:
O espírito da criança precisa de drama, da movimentação dos personagens,
da soma das experiências populares. Isto associado a uma linguagem
correta, acrescida de uma boa dose de fantasia, clareza de ideias e não
querer ser moralista, mas divertir. (SANCHEZ, 1983. p.10-11)
Para Sanchez (1983) soltar a fantasia é mergulhar nesse maravilhoso mundo
do faz-de-conta, onde o tempo e o espaço não contam, onde cada ser e cada coisa
tem sua realização, a sua individualidade. Um cosmos criado pela criança e no qual
ela mesma se inventa e reinventa a cada instante. Essa é a grande literatura,
independentemente de seu público. Estórias divertidas porque possibilitam aos seus
leitores, sobretudo às crianças (inclusive aquelas que ainda moram dentro do adulto
que já somos), diferirem-se, verterem-se, em diferentes formas, experiências. Essas
são as estórias que também as crianças preferem ler.
1
Poiesis é um substantivo que se forma do verbo grego poiein. Este assinala no grego a ação de
fazer diversificada, mas, sobretudo, a questão da essência do agir, daí estar ligada à poiesis, no
sentido que hoje consideramos criação. Esta pressupõe um fazer surgir, um figurar algo a partir do
nada, ou no pensamento mítico, a partir da Terra, e mais tarde a partir da physis.
15
Cecília Meireles, em seu livro Problemas da Literatura Infantil (1984), ressalta
que a literatura infantil não é aquela que tem as crianças como público-alvo definido,
mas a que as crianças gostam de ler. E o que as crianças gostam de ler? Um bom
livro, um livro cuja produção se dá independentemente do público alvo (crianças ou
adultos, homens ou mulheres) e proporciona uma leitura agradável, que faz o leitor
voltar, reler, discutir, apreciar.
Para Cecília Meireles, o livro infantil deve seguir o mesmo princípio. Muitas
obras literárias que são lidas na infância permanecem guardadas na memória de
jovens e adultos que não se cansam de regressar às suas estórias favoritas.
Compreender as razões pelas quais as crianças preferem determinados livros é
perceber que o que está em jogo, na literatura e na vida, é o quanto já se desistiu do
poder do pequeno das coisas infantis quando se chega à fase adulta.
A indagação que se coloca ao escritor, ao leitor, ao estudioso da literatura
infantil é saber o quanto há de criança no adulto para que ele possa se comunicar
com ela e o que há de adulto na criança para que ela possa receber aquilo que esse
adulto quer oferecer. Não se trata apenas do estilo: livros fáceis, simples, que
estejam, de fato, ao alcance da criança. O mundo das crianças não é tão fácil e
simples como se pensa. Além disso, o estilo – a forma, a linguagem – não está
divorciado do conteúdo, dos “Fatos ao alcance da criança, e dos quais decorram
conseqüências ou ensinamentos que o adulto julga interessante para ela.”
(MEIRELES, 1984, p.29).
Com efeito, qualquer tema encenado de forma correta pode transformar-se em
livro infantil. E isso acontece na maioria das vezes. O essencial é deixar que a
criança viva a experiência provocada pelo livro, a fim de que carregue por toda a
vida os cenários, os sons e os ritmos, as aventuras, as descobertas e todo o poder
do dizer, da comunicação, que a linguagem lhe oferta. Apenas nesses termos é que
interessa falar no livro que a criança prefere:
Ah! Tu, livro despretensioso, que, na sombra de uma prateleira, uma criança
livremente descobriu pelo qual se encantou, e, sem figuras, sem
extravagâncias, esqueceu as horas, os companheiros, a merenda... tu, sim,
és um livro infantil, e o teu prestígio será, na verdade, imortal. (MEIRELES,
1984, p.31).
O “prestígio imortal” do livro infantil, nos termos de Cecília Meireles, se dá
porque a literatura é alimento, nutrição, para a alma, e não um mero passatempo. A
leitura de grandes livros tem o poder de abrandar o perigo a que se expõe a criança
16
em um mundo completamente abalado e repleto de valores desvirtuados. A escolha
do livro para criança deve discriminar as qualidades de formação humana que serão
reveladas por meio de sua acessibilidade, mas deixando sempre uma margem “[...]
para o mistério, para o que a infância descobre pela genialidade da sua intuição.”
(MEIRELES, 1984, p. 43).
Carlos Drummond de Andrade aponta que a questão central é indagar se a
literatura infantil faz parte da literatura geral, se existe mesmo uma literatura infantil:
O gênero ‘literatura infantil’ tem, a meu ver, existência duvidosa. Haverá
música infantil? Pintura infantil? A partir de que ponto uma obra literária
deixa de constituir alimento para o espírito da criança ou do jovem e se
dirige ao espírito do adulto? Qual o bom livro de viagens ou aventuras
destinado a adultos, em linguagem simples e isento de matéria de
escândalo, que não agrade à criança? Observados alguns cuidados de
linguagem e decência, a distinção preconceituosa se desfaz. Será a criança
um ser à parte, estranho ao homem, e reclamando uma literatura também à
parte, ou será a literatura infantil algo de mutilado, de reduzido, de
desvitalizado, porque coisa primária, fabricada na persuasão de que a
imitação da infância é a própria infância? (ANDRADE apud DINORAH, 1996
p. 27).
Podemos, então, considerar que tudo é uma literatura só, mas a dificuldade
está em delimitar o que realmente é “infantil” na literatura. Costuma-se classificar os
livros de acordo com critérios preestabelecidos por adultos quando, na verdade,
precisamos escutar a voz das crianças, pois são elas mesmas que o intuem e
delimitam com suas preferências.
É nesse contexto que podemos compreender a natureza e o valor dos contos
de fadas na formação da criança. Forma artística suprema cujas raízes mitopoéticas
remontam às formas arcaicas da poesia, o conto de fadas, sobretudo se
considerarmos algumas leituras que determinadas correntes críticas modernas
fizeram dessa prosa de ficção, não pode ser reduzido à narração de acontecimentos
cotidianos cuja função utilitário-pedagógica, moralizante, bem realística, é ensinar
sobre o que se deve ou não fazer, o que se deve pensar, sentir, imaginar ou não,
tudo muito normativo e restritivo do poder que o imaginário, o devaneio poético, a
originalidade e a criatividade do ser-aí no mundo desempenham para a criança.
Jacqueline Held (1980), no livro O Imaginário no Poder, ressalta que os
“realistas”, aqueles que demandam da literatura uma função exclusivamente
referencial e pragmática desconsiderando a poiesis – a função poética, o imaginário,
a invenção, a originalidade das obras literárias -, buscam apenas as experiências do
dia, com sua objetividade, racionalidade, realidade, esquecendo-se das experiências
17
da noite, negligenciando-se o valor supremo dos sonhos, da imaginação, do
devaneio poético também presentes nos contos de fadas.
A poesia, a ficção, o imaginário, de acordo com Held (1980), responde à
necessidade da criança de não se contentar com sua própria vida, mas abrir portas
para outras possibilidades de vê-la, experimentá-la, regenerá-la, recriando-a pelo
imaginário.
Embora proponha como mais adequado o termo “fantástico”, e não o
“maravilhoso”, Held assinala que é o fantástico – ou, para nós, o maravilhoso, o
fabuloso, o feérico, é a energia, o quantum, que torna a literatura fonte de
encantamento e dá a ela o valor de uma experiência tão cara às crianças: a
experiência da novidade, da liberdade, da inventividade. Se as crianças se
reconhecem nas estórias que narram a vida, o real, como acontecimento de puro
devir, de inesgotáveis possibilidades, de incessante renovação, elas não se
interessam por estórias que repetem fórmulas prontas, que ditam preceitos morais
estabelecidos (HELD, 1980, p.23)
O conto, qualquer conto inclusive o conto de fadas, caracteriza-se, segundo
Luzia Maria (1984), como sendo uma narrativa curta, um texto em prosa que dá o
seu recado em reduzido número de páginas ou linhas. Curto, porém denso, o conto
leva o leitor para além do espaço do dito, ou seja, para aquilo que ‘’fala’’ mesmo no
silêncio das entrelinhas. A concisão e a precisão, como centelhas, nos levam ao
mistério que se oferece a nós no abrir-se e fechar-se rápido que lhe são próprios.
O grande segredo é o imaginário e a fantasia, mas o mais interessante é a
forma simples como a narrativa tece as imagens poéticas, conforme ressalta Andre
Jolles (1976) em seu livro Forma Simples. É na forma simples, curta, condensada da
narrativa que a linguagem, as personagens, os lugares e incidentes permanece
fluidos, abertos, dotados de mobilidade e de capacidade de renovação constante.
Assim sendo, a alethopoiesis2, que também preside o conto maravilhoso, é um
jogo imaginativo que diverte, encanta, fascina o leitor. Mexendo com os sentidos do
corpo e do espírito, trazendo tudo que é sensível e inteligível; o conto maravilhoso,
feérico, fantástico, brinca com nosso ser mais profundo, desperta a criança que está
fora e a que está dentro de nós. Saímos da vida cotidiana, do tempo físico,
2
A poesia traz à memória o movimento de velamento-desvelamento da physis que quer bem ocultarse.
18
cronológico, que a rege e, como nos diz Mircea Eliade (1994) em Mito e Realidade,
ingressamos num tempo qualitativamente “sagrado”, um tempo primordial, mítico,
significativo e exemplar. Mas para entrarmos nos tempos fabulosos, é preciso, como
enfatiza Gastón Bachelard, “ser sério como uma criança sonhadora.” (2001, p. 113).
Assim deve ser quando estamos diante do universo das crianças. Assim deve ser
quando lemos os contos de fadas e mergulharmos nos devaneios poéticos em
demanda da infância. Assim deve ser quando estamos diante das experiências
vivenciadas pelas personagens do conto maravilhoso de Hans Christian Andersen.
19
2. O VALOR DA PERSONAGEM NO CONTO MARAVILHOSO
A personagem desempenha um papel importante na construção dos contos
maravilhosos. É a partir da personagem que os contos instauram o mundo do fazde-conta (o do imaginário, do fabuloso, do feérico) e, paradoxalmente, a verdade
que se realiza pela “representação” (poética, ficcional, fingida) desse mundo, pois é
a personagens que “vive o enredo e as idéias, e os torna vivos” (CANDIDO, 2002,
p.54). São as personagens que sentem, pensam, desejam e sonham, “agem sobre
outras e revelam-se umas pelas outras” (BRAIT, 1985, p. 47). Podem ser meninos,
meninas, velhos, velhas, reis, rainhas, carrascos, soldados, gigantes, anões, fadas,
bruxas, monstros, sereias, animais de toda espécie, objetos “inanimados” ou
qualquer outro elemento que, segundo Nelly Novaes Coelho (1998), gire em torno
de uma problemática existencial que, na maioria das vezes, são questões relativas à
auto-realização da personagem.
As personagens, “seres ficcionais” cujo caráter paradoxal é assinalado por
Antônio- Candido (2002) em seu capitulo sobre “A personagem no romance”,
instauram o jogo entre verdade e ficção, dando sentido à literatura e, ao mesmo
tempo, convertendo a literatura em forma privilegiada de conhecimento - não apenas
racional, mas, e principalmente, passional - da vida “ao vivo e a cores”.
Segundo Yves Reuter (2002), em seu livro A Análise da Narrativa, é por essa
razão que existem tantos estudos sobre a personagem dos contos maravilhosos,
seja na linha estrutural, “morfológica”, como o estudo de Vladimir Propp (1984), seja
na psicanalítica como os estudos de Bruno Betlheim (2002), Marie-Louise Von Franz
(1990) ou Clarissa Pinkola Estés (1994) entre outros.
Todos os esforços analíticos, entretanto, perderiam sua razão de ser se não
levássemos em consideração o caráter original, instaurador, realizador da poiesis
que funda os contos maravilhosos e lhes possibilita o valor cognitivo, formativo e
“terapêutico” que deles emana, sobretudo quando pensamos o fascínio que suas
personagens exercem nas crianças que os leem. Como compreender a personagem
dos
contos
maravilhosos
então?
Como
lidar
com
o
aspecto
mimético,
representacional, dos contos maravilhosos, principalmente quando falamos das
personagens? Busquemos algumas respostas.
20
2.1.
A personagem e a morfologia do conto maravilhoso segundo Vladimir
Propp
Wladimir Propp (1984), em sua Morfologia do Conto Maravilhoso, estuda, a
partir dos contos maravilhosos russos, as diferentes ações das personagens bem
como as funções constantes e variáveis presentes em um conto maravilhoso. De
acordo com o formalista russo, é possível estabelecer uma morfologia comum às
diferentes formas de contos – os maravilhosos, os folclóricos, os feéricos -,
sobretudo daqueles que são muito próximos das raízes orais e populares da
literatura: as ações podem ser de grandezas constantes e grandezas variáveis,
delineando uma determinada estrutura, uma tipologia. As grandezas constantes são
aquelas que são realizadas por diferentes personagens de forma igual. Já as
grandezas variáveis são os meios pelos quais as ações são realizadas. Os contos
de Andersen apresentam alguns elementos pertencentes à tipologia proppiana, mas
ultrapassam essa morfologia porque não se esgotam nessa estrutura: Andersen traz
elementos inovadores, em grande parte, atrelados à visão romântica de raiz
germânica da literatura, sobretudo no que se refere à forma como as personagens
são apresentadas em suas ações e sentimentos.
Teóricos do estruturalismo francês, principalmente Greimas (REUTER, 2002)
aproveitam a riqueza de funções apresentadas por Propp, e apresentam uma
descrição mais simples, sucinta, sem muitas variações da estrutura narrativa dos
contos, que pode ser eficaz na análise dos contos maravilhosos de Andersen. De
acordo com esses teóricos, a estrutura básica de um conto mostra o seguinte
esquema: o Estado Inicial, a Complicação, a Dinâmica, a Resolução e o Estado
Final.
Após a situação inicial, em que o narrador apresenta o protagonista da
estória, a família e os amigos do protagonista, o tempo e o espaço da ação,
acompanhamos as diferentes complicações enfrentadas pela personagem
central que dinamizam a sua busca e que valorizam sua jornada, rumo à
resolução de seus problemas existenciais e à sua auto-realização para que ela
experimente um estado final, que pode ser triste e/ou feliz. Entre as complicações
descritas por Propp, ressaltamos algumas que julgamos importantes à leitura que
fazemos dos contos de Andersen: a falta de um bem material ou de valores afetivos
e sociais; o afastamento de um lugar, de um objeto querido ou de uma pessoa
21
amada; a proibição / o interdito, cujo aspecto transformador é a chegada repentina
da adversidade; a cumplicidade e o antagonismo entre personagens; os danos
que as adversidades e os antagonistas causam; as provas pelas quais os
protagonistas passam provocando as mais distintas reações... Tudo que, segundo
Propp, é essencial à própria dinâmica do conto.
Mas as personagens também devem ser estudadas a partir de seus atributos.
E Propp (1984) aponta nos contos maravilhosos russos um conjunto de qualidades
externas das personagens tais como idade, sexo, situação, aspecto exterior com
suas particularidades históricas, sociais, culturais, religiosas. As funções podem ser
resumidas em três espécies: o antagonista, o doador e o auxiliar. Os atributos são
reunidos também em três tipos: aparência e nomenclatura; particularidades de
entrada em cena; e habitat. São as qualidades dadas aos personagens que dão o
colorido, a beleza e o encanto necessários aos contos maravilhosos.
Ao falar a respeito das diferentes possibilidades de caracterização das
personagens, Beth Brait (1985, p. 52) esclarece que qualquer tentativa de sintetizálas “esbarra necessariamente na questão do narrador”, uma vez tal instância
narrativa é que “vai conduzindo o leitor por um mundo que parece estar se criando à
sua frente”. De acordo com a estudiosa,
A apresentação da personagem por um narrador que está fora da história é
um recurso muito antigo e muito eficaz, dependendo de habilidade do
escritor que o maneja. Num certo sentido, é um artifício primeiro, uma
manifestação quase espontânea da tentativa de criar uma história que deve
ganhar a credibilidade do leitor (...) a personagem não é posta em cena por
ela mesma, mas por suas aventuras, pelo relato de suas ações. (BRAIT,
1985, p. 55).
O narrador em terceira pessoa focaliza os personagens em momentos
importantes e materializa os seres que habitam o universo imaginário do conto. Ele
se torna o contador da estória já que tem experiência para se comunicar. Mas ele só
poderá trazer a “verdade” para a criança que o escuta / lê, se narrar a partir da
percepção, dos sentidos da paixão das personagens. Assim acontece nos contos
maravilhosos de Andersen: o narrador desempenha papel relevante, porque faz uma
dupla focalização, alternando distanciamento e proximidade com relação às
personagens – e também com a relação ao próprio leitor.
Em geral, o narrador finge distinguir-se das personagens e, apesar dos
pensamentos serem apresentados por um processo de refletorização, e, por isso, de
22
proximidade, das percepções da própria personagem, mantém a terceira pessoa e o
pretérito imperfeito fingindo o relato impessoal do narrador. E a natureza dessa
mediação nos leva a refletir sobre a importância que a personagem desempenha na
construção ficcional das narrativas, sobretudo quando levamos em consideração o
interesse e o encantamento que as personagens dos livros infantis despertam nas
crianças.
2.2.
A personagem e a verdade da ficção no conto maravilhoso
Anatol Rosenfeld (2002), ao falar dos “aspectos esquematizados”
3
da obra de
arte literária em seu texto “Literatura e Personagem”, pode esclarecer sobre o
“efeito” ou “eficácia” que Andersen retira da forma como configura a esfera de
existência das personagens de seus contos:
(...) em geral, os textos apresentam-nos tais aspectos mediante os quais se constitui o
objeto. Contudo, a preparação especial de selecionados aspectos esquemáticos é de
importância fundamental na obra ficcional – particularmente quando de certo nível
estético - já que dessa forma é solicitada a imaginação concretizadora do apreciador.
Tais aspectos esquemáticos, ligados à seleção cuidadosa e precisa da palavra certa
com suas conotações peculiares, podem referir-se à aparência física ou aos processos
psíquicos de um objeto ou personagem (...). (ROSENFELD, 2002, p.14).
Os diferentes seres de uma obra de arte literária são instaurados na e pela
linguagem, na e pelas orações e isso acontece por efeito da imaginação que calcula,
pensa, compõe, instaura intencionalmente cada “realidade”, cada “objectualidade”
da obra. É dessa forma que se constrói a “realidade” das personagens. É “como se”
elas já tivessem uma vida anterior à narrativa que as coloca para existirem. O fictício
é real; o real é fictício: esse é o principio imaginativo e compositivo básico que funda
uma obra de arte literária.
Podemos então compreender a força que tem o “Era uma vez” dos contos
maravilhosos. De acordo com Rosenfeld (2002), o pretérito do verbo ser que aponta
3
Lívila Pereira Maciel (1991, p.15) esclarece que, de acordo com a formulação ingardiana, toda obra
de arte literária é uma objetividade complexa, pluriestratificada, polifônica e esquemática. Ela se nos
apresenta como uma produção constituída de estratos heterogêneos, interdependentes e
inseparáveis, a saber: 1) estrato das formações fônico-lingüísticas (camada dos sons lingüísticos da
obra); 2) estrato das unidades da significação (trata do sentido de uma unidade lingüística superior
qualquer, antes de tudo, o da oração); 3) estrato das objetividades apresentadas (aquilo de que se
fala na obra); 4) estrato dos aspectos esquematizados (o conteúdo concreto de nossas
observações, dependente das particularidades do objeto observado, das circunstâncias na
qual a observação se faz e das particularidades psicofísicas do sujeito que observa).
23
o caráter fictício do “era uma vez” assume potência de presente e de verdade, de
realidade, dada a força realizadora, instauradora da linguagem que coloca à frente
do leitor uma existência plena, com sua estória de vida pessoal.
É através da personagem, segundo Rosenfeld (2002), que a camada
imaginária se adensa e se concretiza (realiza-se). A personagem é ser que se
constrói na e pela ficção, na e pela expressiva força da linguagem que transforma
mera descrição em “vivência”, não podendo a personagem ser confundida, como
muitas vezes acontece, com pessoas pré-existentes, extratextuais nem mesmo com
a pessoalidade do próprio autor.
A “verdade” dentro da obra de ficção, tem significado diverso do que
comumente consideramos. Coerência, autenticidade, dentro do mundo imaginário e
concernente às personagens e às situações vivenciadas por elas, surge do poder
mimético / representativo4, da estrutura das orações ficcionais que, embora pareça
ser a mesma dos textos não ficcionais, nota-se o esforço de particularizar,
concretizar,
individualizar
o
objeto
através
da
preparação
de
aspectos
esquematizados e de uma multiplicidade de pormenores circunstanciais que visam
acionar a imaginação, o devaneio poético, e dar “realidade”, “concretude” à situação
imaginária. O escritor convida o leitor a dar continuidade ao que é fictício, à camada
imaginária que tem força de realidade, como nos explica Antônio Candido
(...) é paradoxalmente esta intensa aparência de realidade que revela a
intenção ficcional ou mimética. Graças ao vigor dos detalhes, à veracidade
de dados insignificantes, à coerência interna, à logica das motivações, à
causalidade dos eventos etc., tende a constituir-se a verossimilhança do
mundo imaginário. (CANDIDO, 2002.p.20).
Cada frase do conto, assim como cada verso de um poema, mobiliza todas as
virtualidades expressivas da língua e toda a energia imaginativa. Tudo é
transformado pela imaginação. A linguagem poética, em contato com o mítico e com
o real, visa transformar as expressões nas “mais verdadeiras”, sem, contudo, se
limitar a nos dar uma cópia fidedigna ao pré-existente ao conto. Esse valor estético
depende, como nos diz Rosenfeld (2002, p. 36), da “escolha da palavra justa,
4
Mimese, representação, não como imitação do originado, do já existente, mas como imitação do
processo incessantemente renovado de originar-se das coisas que são muito mais do que parecem
ser, como nos esclarece Eudoro de Sousa em seus comentários na tradução que faz da Poética de
Aristóteles. A mimese, a representação na obra de arte literária diz sempre da força, do vigor, da
origem (SOUSA apud ARISTÓTELES, s/d)
24
insubstituível, da sonoridade específica dos fonemas, das conotações das palavras,
da carga das suas zonas semânticas marginais, do jogo metafórico, do estilo”.
O escritor nos dá os seres e as situações narrativas (o objeto da mimese) não
como reconhecimento, como retrato fidelíssimo do já acontecido, mas como uma
visão sempre nova, inesperada, e, por isso mesmo, cheia de verdade, de realidade.
Trata-se de uma visão “figurada” (correlacionada ao fingere5), metafórica, estilizada,
altamente simbólica, das experiências do ser humano, cuja totalidade, cuja plenitude
jamais se poderá apreender de uma vez e para sempre. Tal é a força lúdica,
ficcional, poética, do “como se”, ou do “era uma vez”, ou do “faz de conta” das
narrativas literárias, força que as próprias crianças entendem muito bem.
É por essa razão que, segundo Bachelard (2001), os devaneios poéticos não
contam apenas estórias, mas nos ajudam a mergulharmos na nossa própria história.
É essencial que permaneçamos com nossa alma infantil imóvel para que nunca
percamos a liberdade que o devaneio poético traz. Afinal, se, como o próprio filósofo
diz, “A infância conhece a infelicidade pelos homens’’ (2001, p.94), precisamos
avivar nossos devaneios de criança, onde a imagem sempre nova, primeira, fresca e
restauradora como as fontes, prevalece acima de tudo.
Os poetas, com seus devaneios poéticos, nos colocam novamente em
demanda da infância, para enxergamos o mundo e sua “grandeza”, a partir da
imaginação, do maravilhoso, tudo grande, dando origem as maiores paisagens.
Para Bachelard, “toda infância é fabulosa, naturalmente fabulosa” (2001, p.112). A
importância do olhar da criança nos contos maravilhosos é que os devaneios
poéticos das crianças revelam a poesia, a originalidade, o ver e o sentir pela
primeira vez, da própria estória narrada, com seus acontecimentos e suas
personagens. Revelação que inclui o caráter poético do próprio ser do autor e do
leitor bem como da capacidade de reinvenção da própria vida: essa é a riqueza da
forma narrativa simples dos contos de Anders
5
Verbo latino fingere: talhar, instaurar, dar figura a toda matéria. Ao fingere corresponde o grego
poiein.
25
3. A FORMA NARRATIVA SIMPLES E A PROFUNDIDADE DOS SENTIDOS DA
VIDA NA OBRA DE HANS CHRISTIAN ANDERSEN
Por que Hans Christian Andersen é tão importante? A razão está na riqueza e
profundidade de sua obra, tão atual porque permanece encantando todos, não só as
crianças, pela beleza, pela sensibilidade, pela ternura, e por tratar de temas do
nosso cotidiano. A obra do escritor dinamarquês é um divisor de águas na história
da literatura infanto-juvenil universal.
Não obstante considerarmos a “trindade” de escritores Charles Perrault, irmãos
Grimm e Hans Christian Andersen como responsável pela difusão dos contos
maravilhosos ou feéricos, Andersen, de maneira distinta, não se limita a recolher as
estórias tradicionais, os contos populares e orais.
Como ressalta Ana Maria
Machado (2002), o poeta dinamarquês confere um estatuto de originalidade,
novidade, às suas estórias, deixando sua marca inconfundível no maravilhoso
mundo dos contos: uma visão poética misturada com profunda ternura, suave
melancolia ou tristeza.
O mundo maravilhoso criado por Andersen toca a sensibilidade do leitor.
Genuíno criador e contador de estórias, Andersen fez, e continua fazendo até hoje,
mesmo com as exigências de outros tempos, um grande público, porque os
sentimentos mais profundos do ser humano são, segundo Nelly Novaes Coelho
(1998), os mesmos em qualquer época:
Os contos carregam uma significativa herança de sentidos ocultos e
essenciais para a nossa vida, e a literatura é sem duvida uma das
expressões mais significativas dessa ânsia permanente de saber e de
domínio sobre a vida, que caracteriza o homem de todas as épocas.
(COELHO, 1998, p. 10-11).
Nascido no seio de uma família muito pobre, Andersen viu-se obrigado a
abandonar os estudos logo cedo para se sustentar, passando por vários empregos
até se tornar um grande poeta. Andersen teve a oportunidade de conhecer bem os
contrastes da abundância organizada, ao lado da miséria sem horizontes. Mas
Andersen teve também, desde a mais tenra infância, o privilégio de ser marcado e
influenciado pelas mais diferentes narrativas.
Associando a vida que viveu às
narrativas que ouviu e leu, Andersen nos oferece uma obra que se revela como
26
verdadeira “caixinha de surpresas” 6. Ele mescla, transpõe, funde, transforma os
estímulos recebidos da vida e dos livros que leu em obra de arte literária
completamente nova e original.
As estórias do escritor dinamarquês, como assinala Cristiane Madanêlo de
Oliveira (2011), encenam eventos e personagens que nos remetem à realidade
cotidiana da vida dos seus leitores e, ao mesmo tempo, trazem a marca própria do
mundo fantástico da imaginação. “Andersen não se preocupou com o problema
moral através de um didatismo moralizante. Preocupou-se em que seus contos
fossem poéticos, como poeta que era. O poeta da infância.”, enfatiza Martina
Sanchez (1983, p.59). Essa é a razão pela qual sua obra se tornou um clássico da
literatura infantil, mesmo que os desfechos de suas estórias não sejam,
aparentemente, tão felizes.
Os clássicos, segundo Ítalo Calvino (1993), são riqueza para aqueles que o
leram, releram e amaram. São plenos de descobertas, pois os clássicos nunca
terminam de dizer aquilo que tinham para dizer. É o que acontece quando lemos “A
Pequena Vendedora de Fósforos”, “A Roupa Nova do Rei”, “O Valente Soldadinho
de Chumbo”, “A Pequena Sereia”, “Sapatinhos Vermelhos” ou “O Patinho Feio”. Os
contos de Hans Christian Andersen são clássicos porque seus temas, suas
personagens, são mimese da realidade e nos transmitem verdades, valores, e, a
cada vez que lemos, descobrimos algo novo, significativo para nossas vidas.
Enfrentar dilemas existenciais, mergulhar nos dramas da condição humana, nada
mais importante do que essa experiência para o crescimento de todos nós. Esse
caminho de aprendizado, na visão de Andersen, deve ser modulado, conduzido,
pela arte literária, na fruição do prazer estético.
É a imaginação poética de Andersen que torna mais explícito e questionável,
conforme nos diz Coelho (1998, p.23), o espírito liberal-burguês que põe em
evidência o individualismo, a riqueza, o trabalho, a luta pela sobrevivência e contra a
pobreza, valores exigidos pela sociedade que se consolidava no século XVIII. Além
de nos levar a pensar sobre os valores sociais, políticos e culturais que regiam e
6
Andersen tem um conto que se chama “Caixinha de Surpresas”. A menina, protagonista do conto,
leva uma bronca do pai porque estava “gastando” um papel de presente. O pai se arrepende quando
descobre que o papel era para embrulhar uma caixinha de presente que ela daria a ele. Logo depois,
fica com raiva quando descobre que não havia nada dentro da caixinha. Mas a supresa acontece
mais uma vez, e de forma mais bela e extraordinária: o pai fica sabendo pela menina que ela havia
colocado muitos beijos dela dentro da caixinha.
27
poderiam reger a vida dos homens em sociedade (em qualquer tempo, não apenas
na da época em que o autor vivia), os contos de Andersen, de forma poética,
simbólica, lúdica, um projeto ético, estético e educador que se fundasse nos valores
cristãos, para ele virtudes básicas possíveis e desejáveis para nortear pensamentos
e ações da humanidade.
Os contos maravilhosos de Andersen, assim como os contos de fada, são, de
acordo com a Psicanálise, uma forma de prender a atenção e despertar a
curiosidade, estimular a imaginação, promovendo o desenvolvimento do intelecto e
da emoção da criança. Os diferentes sentidos, o caráter simbólico, que emanam das
variadas experiências das personagens dos contos maravilhosos, estão ligados aos
eternos dilemas que o homem enfrenta ao longo de seu amadurecimento emocional.
Segundo Bruno Bettelheim,
Para que uma estória realmente prenda a atenção da criança, deve entretêla e despertar sua curiosidade. Mas para enriquecer sua vida, deve
estimular-lhe a imaginação: ajudá-la a desenvolver seu intelecto e a tornar
claras suas emoções; estar harmonizada com suas ansiedades e
aspirações; reconhecer plenamente suas dificuldades e, ao mesmo tempo,
sugerir soluções para os problemas que a perturbam. Resumindo, deve de
uma só vez relacionar-se com todos os aspectos de sua personalidade - e
isso sem nunca menosprezar a criança, buscando dar inteiro crédito a seus
predicamentos e, simultaneamente, promovendo a confiança nela mesma e
no seu futuro. (BETTELHEIM, 2002, p.5)
Nas obras de Andersen há uma mistura entre o maravilhoso e o realismo, a
maioria das narrativas apresenta personagens, espaços e problemáticas extraídos
da realidade comum, porém o mágico e o lúdico estão em tudo, estão tão
naturalmente presentes que acontecem em qualquer espaço, abolindo-se as
fronteiras entre o real e a fantasia. A forma simples da narrativa de Andersen
convida o leitor ao dinamismo, à grandeza e à profundidade dos sentidos da vida
que lhe comparecem pela imensa riqueza de imagens poéticas que o escritor
dinamarquês lhe oferece.
Segundo Bachelard (2001), a beleza da alma, da psique, diante dos
acontecimentos, quaisquer que sejam eles, está em nós, está no âmago de nossas
memórias. É o impulso que nos anima e que nos mostra o dinamismo da beleza da
vida. Todos nós sonhamos com a liberdade, assim como costumávamos sonhar na
infância. É no devaneio que nos tornamos seres livres:
28
Sonhamos enquanto nos lembramos. Lembramo-nos enquanto sonhamos.
Nossas lembranças nos devolvem um rio singelo que reflete um céu
apoiado nas colinas. Mas a colina recresce, a enseada do rio se alarga. O
pequeno faz-se grande. O mundo do devaneio da infância é grande, maior
que o mundo oferecido ao devaneio de hoje. Do devaneio poético diante de
um grande espetáculo do mundo ao devaneio da infância há um comércio
de grandeza. Assim, a infância está na origem das maiores paisagens.
Nossas solidões de criança deram-nos as imensidades primitivas. Ao
sonhar com a infância, regressamos à morada dos devaneios, aos
devaneios que nos abriram o mundo. (BACHELARD, 2001, p.96)
Podemos compreender, então, por que os contos maravilhosos que tem como
princípio imaginativo e construtivo a perspectiva da infância são tão importantes. Ao
ler os contos de Andersen, por exemplo, a criança imagina, sonha, brinca, pensa,
sente. Nessa “brincadeira”, tem a liberdade e ousadia de inventar e criar um mundo
e a si mesma. Mas ela é capaz, como todo poeta, de distinguir essa brincadeira da
realidade. Ela é sabe quando está no “faz de conta” e, saboreando esse real
produzido pela estória maravilhosa, se imagina um patinho feio, um belo e jovem
cisne, uma sereiazinha, um soldadinho de chumbo, uma menina de sapatinhos
vermelhos, uma pequena vendedora de fósforos, um menino ou uma menina que é
capaz de, pela sabedoria do riso, apontar que o rei está nu. Mas não confunde essa
representação com o real. A criança sabe que é um jogo. Sabe que o real pode ser
interpretado, compreendido, a partir do horizonte de sentido que aquele conto
maravilhoso de Andersen pode ofertar. E o jogo, segundo Huizinga,
é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e
determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente
consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si
mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma
consciência de ser diferente da vida cotidiana. (HUIZINGA, 2001, p. 33)
Os contos maravilhosos de Andersen, como o jogo, é uma atividade
espontânea que vem acompanhada de emoções, de desejos, de sonhos, e é
justamente esse prazer lúdico que chama a atenção da criança, pois o jogo e a
brincadeira fazem parte do instinto infantil, além de conduzirem a criança que lê o
conto ao mundo da imaginação e do onirismo, habitado por toda sorte de
personagens, sereias, bonecos e animais que pensam e falam... As personagens
desse mundo maravilhoso são representações, mimese, da nossa humanidade, da
nossa história/História. Nelas reconhecemos o que acontece em nossas vidas.
29
As personagens são a ponte entre o eu e o mundo imaginário. A Pequena
Vendedora de fósforos, o Soldadinho de Chumbo e a Pequena Sereia, por exemplo,
nos emocionam, fazem-nos chorar, mesmo sabendo nós que se trata de
personagens de ficção, de seres fictícios. Isto porque Andersen prima pela mimese,
entendida como “representação que guarda uma semelhança, e não uma cópia, em
relação ao seu objeto”, como nos fala Palo e Oliveira (2001, p. 74), e porque se
sobressai pela especial verossimilhança que suas personagens tem com a
realidade, caráter fundamental da poesia, como já Aristóteles ressaltava em sua
Poética.
As personagens de Andersen, e também seus leitores, sobretudo as crianças
que amam ler suas venturas e desventuras, recordam-nos que uma criança é
sempre a personificação de forças vitais, como nos explicam Karl Kerényi e Carl
Jung no livro A Criança Divina: uma introdução à essência da mitologia (2011). A
criança traz a memória da origem.
Essas forças vão além do alcance limitado da consciência; são manifestações
daquilo que chamam de “mitologema” (Kerényi) ou “arquétipo” (Jung). Jung, no
capítulo que fala da psicologia do arquétipo da criança, explica que a criança
representa o mais forte impulso do ser de realizar-se a si mesmo. “O impulso e
compulsão da auto-realização é uma lei da natureza e, por isso, tem uma força
invencível mesmo que o seu efeito seja no início insignificante e improvável” (JUNG,
2011, p. 135). Dessa forma, o aspecto mais importante do arquétipo da criança é
“seu caráter de futuro. A criança é o futuro em potencial” (JUNG, 2011, p. 126-127),
mesmo que, ao motivo da criança, esteja associado outro aspecto típico que é o de
ser, ao mesmo tempo, “menor que pequeno” e “maior que grande”.
As personagens de Andersen submetem-se a toda espécie de “perigos” e isso
nos leva a pensar no arquétipo da criança. O “abandono” e o “perigo da
perseguição” aparecem, de acordo com Jung, como obstáculos impostos à criança e
também fazem parte das manifestações do arquétipo da “criança-deus” ou do “heróicriança”. Jung traz inúmeras reflexões sobre o arquétipo da criança divina e analisa
de forma adequada a questão do tamanho:
O motivo da “insignificância”, do estar exposto a, do abandono, perigo, etc.
procura representar a precariedade da possibilidade da existência psíquica
da totalidade, isto é, a enorme dificuldade de atingir este bem supremo.
Caracteriza também a impotência, o desamparo daquele impulso de vida o
qual obriga tudo o que cresce a obedecer à lei da máxima auto-realização;
30
neste processo as influências do ambiente colocam os maiores e mais
diversos obstáculos, dificultando o caminho da individuação (JUNG, 2011,
p. 129-130).
Muitas são as experiências das personagens de Andersen que podem ser
associadas aos diferentes aspectos do motivo da criança apresentado por Jung. A
primeira delas diz respeito ao tamanho reduzido, que por si só parece sugerir
insignificância e, por isso, associa-se ao tema do “menor do que pequeno”.
Podemos compreender o que representa “o poder do pequeno” a partir do que
Cláudio Naranjo (2001), em A Criança Divina e o Herói, propõe sobre as estórias
matriarcais, aquelas que se constroem em torno do tema da “criança divina”:
possuem certa delicadeza, acontecem em um eterno presente, valorizam o cenário e
as personagens, e primam pela existência de um certo “realismo”. Há nessas
estórias matriarcais, como em O Pequeno Príncipe e Menino do Dedo Verde,
analisadas pelo autor, a essência da criança divina, ser com sabedoria nata e
grande confiança na natureza do mundo e de si mesma, mesmo quando
“abandonadas” ou quando, no desfecho de seu estar-aí no mundo, morrem.
De uma forma sensível e com uma linguagem bem simples, mas simbólica,
Andersen escrevia a partir do olhar da criança. E com esse olhar da infância,
encontramos nas estórias desse autor um apego pelo pequeno, pelo desprotegido,
pela generosidade e pelos valores humanos. Seus contos são literatura, literatura
enquanto poiesis, e se enriquecem com esse valor estético.
Suas estórias, suas personagens dialogam com a criança: “mais do que falar e
preencher, o texto ouve e silencia, para que a voz de seu parceiro, o leitor, possa
ocupar espaço e também ensinar” (PALO e OLIVEIRA, 2006, p. 14). Andersen não
tem a pretensão de ter a palavra final, ele deixa espaço para que a criança interprete
seus contos. O leitor-criança não é apenas um leitor, mas seu parceiro na
construção e significação das estórias.
Para Nelly Novaes Coelho (1991), poucos escritores conseguiram expressar
tanta ternura pelo mundo infantil, pelas plantas, pelos animais e pelos objetos como
Andersen. “Andersen transforma tudo que escreve por uma espécie de ternura
radiosa que seria talvez possível chamar de ternura do coração” (SORIANO apud
COELHO, 1991, p. 157). Vejamos isso em dois contos de Andersen: “Sapatinhos
Vermelhos” e “O Patinho Feio”.
31
3.1.
“Sapatinhos Vermelhos”: o desejo de ser livre
Como já antecipamos, as personagens dos contos de Andersen sempre
enfrentam questões existenciais, quaisquer que sejam os motivos pelas quais o
enfrentamento, a dor e a aprendizagem deles decorrentes aconteçam. “Sapatinhos
Vermelhos”7 é uma dessas estórias: a forma breve, simples, do conto maravilhoso
traz ao leitor uma experiência densa que o faz compreender até mesmo os eventos
mais violentos e inesperados da vida.
Clarissa Pinkola Estés, em seu livro Mulheres que Correm com os Lobos
(1994), ao estudar a essência do feminino (os arquétipos da Mulher Selvagem) e
analisar a forma e os significados das narrativas que falam, mítica e simbolicamente,
da natureza feminina nas diferentes culturas, ressalta que os contos de fadas,
entendidos pela psicanalista como uma variação dessas narrativas, apresentam, em
grande parte, um final brutal. Para ela, as imagens brutais constituem “um velho
recurso para fazer com que se preste a atenção em uma mensagem muito séria”.
(ESTÉS, 1994, p. 275)
É o que acontece em diferentes versões de uma estória contada por velhas a
respeito das aflições da mulher esfaimada e braba: “As Sapatilhas do Diabo”, “Os
Sapatos Ardentes do Diabo”, “Os Sapatinhos Vermelhos”, esta última fonte de
inspiração de Hans Christian Andersen que, segundo Estés, envolveu “o esqueleto
da história” com “sua própria inteligência e sensibilidade” (ESTÉS, 1994, p. 270) e
nos deixou não apenas uma, mas duas estórias escritas sobre “Sapatinhos
Vermelhos”.
Uma versão confunde-se com a germânico-magiar, ao seguir os
padrões mais ancestrais e outra, mais contemporânea, mais coerente com a
mundividência, a cristã, do próprio escritor e cuja protagonista não é mais designada
como “a menina” ou “a pequena órfã”, mas portadora da individuação de um nome
próprio, Karen, que acabara de ficar órfã.
Há, entretanto, alguns elementos comuns às duas estórias de Andersen e
também às versões mais antigas: a velha senhora, o guarda de barba ruiva
(simbolizando, segundo Estés o próprio diabo, o maléfico) que ao tirar a poeira dos
7
Para a análise do conto “Sapatinhos Vermelhos”, preferimos usar a tradução que a pesquisadora
Clarissa Pinkola Estés, em seu livro Mulheres que Correm com os Lobos (1994) e alguns trechos
traduzidos/transcritos por Wagner Wangerin Jr. em seu texto “Hans Christian Andersen: a formação
do universo da criança” (2005).
32
sapatos da menina os “enfeitiça”, o anjo ou espírito guardião que empunha uma
espada cintilante à entrada da igreja. Também encontramos o mesmo tema em
torno do qual as diferentes narrativas variam: as palavras imperativas, com valor de
sortilégio, pronunciadas pelo guarda e pelo anjo/espírito guardião: “Vejam, que
lindos sapatos de baile, que belas sapatilhas”; “Você continuará dançando. (...)
Dançará com esses sapatos até ficar pálida e fria. (...) Sim, você dançará” / “Você irá
dançar. com esses sapatos vermelhos (...) até que fique como uma alma penada,
como um fantasma. (...) Dancem, sapatos vermelhos. Vocês devem dançar”. Somos
criativos, somos vaidosos... e é assim que começam as diferentes versões dessa
estória. E todas se encerram com desfecho trágico: os pés da menina são
amputados por conta dos sapatinhos vermelhos que usava.
A “situação inicial” das duas versões de Andersen nos apresenta a
personagem central, uma menina muito pobre, que ficara órfã e cuja única felicidade
era um par de sapatos vermelhos que ela mesma tinha feito: “Essa criança guardava
os trapos que pudesse encontrar e, com o tempo, conseguiu costurar um par de
sapatos vermelhos. Eles eram grosseiros, mas ela os adorava” (ANDERSEN apud
ESTES, 1994, p.271).
A “complicação”, seguida de sua “dinâmica” se dá quando uma rica senhora,
que aparece em uma carruagem dourada, nota a menina de sapatinhos vermelhos e
a leva com a intenção de acolhê-la, cuidar dela como se fosse filha. É a partir daí
que a menina e a velha senhora, a vontade individual e a coletiva, contrapõem-se. É
nesse encontro/desencontro de valores, de realização ou renúncia de desejos, de
proibições, que as armadilhas se armam. As tristezas, as decepções, os sofrimentos
acontecem na vida da menina, e da velha senhora, e despertam a atenção e os
sentimentos dos leitores, combinam com suas experiências de vida.
De acordo com Estés (1994), os responsáveis pelo infortúnio da menina não
são os antigos sapatinhos vermelhos que ela havia confeccionado a partir de trapos
de pano vermelho, os que foram jogados fora por decisão da velha senhora, que,
embora quisesse o bem da menina e buscasse protegê-la, fora incapaz de ver o
valor que os sapatinhos vermelhos tinham e acabou sufocando-a, reprimindo-a. Não
foram os sapatinhos primeiros, originais, amados pela menina porque criados por ela
mesma e dos quais ela sentia tanta falta.
33
O mal estava nos sapatinhos vermelhos novos, fabricados por outrem, um
sapateiro, que a menina passou a usar. Um dia a senhora a levara num sapateiro
para escolher um sapato para usar na sua crisma e a menina ficou seduzida,
atraída, tentada, ao ver na vitrine, um par de sapatos vermelhos, é que ela tinha
saudades dos antigos. A menina, aproveitando-se do problema de visão da senhora
e com a ajuda do sapateiro, enganou a velha senhora e levou os sapatinhos
vermelhos. O sapateiro acabara por trazer um mal presságio, vinha anunciar alguma
coisa futura. Como nos esclarece Estés (1994, p. 301): “Nos velhos tempos, o diabo,
o soldado, o sapateiro, o corcunda e outros eram imagens usadas para retratar as
forças negativas tanto na natureza da terra, quanto na natureza humana”.
Os sapatinhos vermelhos, que eram muito brilhantes, chamativos, exerciam tal
poder que ela só ficava satisfeita quando os mostrava, orgulhosa, em todos os
lugares da cidade, inclusive na igreja, mesmo no evento de sua crisma. A menina
achava-se tão esplêndida, tão bonita com os novos sapatinhos, que os exibia
sempre, mesmo quando fora proibida de calçá-los pela velha senhora por sugestão
dos membros da igreja que o reprovavam. Um dia, ao entrar na igreja, a menina foi
surpreendida por um soldado que, pedindo-lhe permissão, tirou a poeira dos
sapatinhos vermelhos e, de forma mágica, diabólica, transmitiu “vida” aos sapatos:
eles começaram a se movimentar e dançar, sem que ela conseguisse fazê-los parar,
tal foi a força dos sapatos vermelhos que somente o cocheiro conseguira tirá-los. E,
mais uma vez, a velha senhora proibiu a menina de usar os sapatos.
Então sucede que a velha senhora adoece. A menina calça novamente os
sapatinhos vermelhos comprados na loja e sai dançando por todos os lados. A
velha, sozinha, acaba morrendo. Os sapatinhos vermelhos levavam a menina
embora, cada vez mais longe de todos e de tudo, ela não parava mais de dançar,
mesmo quando o desejava. Os sapatinhos vermelhos, dos quais ela não conseguia
se livrar de forma alguma, prenderam-se aos pés como uma pele e decidiam o que
fazer, por que caminhos andar. A dança não era agradável, a menina sofria, não
tinha mais liberdade, autodeterminação, faltava-lhe esperança. Tinha muito medo e
encontrava-se exausta.
Mas um dia, passando pela floresta, para não se ver mais escrava dos sapatos,
pediu a um carrasco que os tirasse - nós, leitores do conto de Andersen,
estremecemos, tememos o destino da menina. A tarefa era impossível, os
34
sapatinhos vermelhos não saíam. E, então, em total desespero, ou num ato de
confissão e arrependimento pelo erro de calçar novamente os sapatos, a menina
pediu e consentiu que o carrasco cortasse-lhe os pés. E os sapatos vermelhos,
envolvendo os pés amputados da menina, se afastam dançando para dentro da
floresta, mas retornam atemorizando a menina. Sapatinhos vermelhos, o que podem
significar? Uma vida comovente, repleta de sacrifícios, cujas ambivalências
requerem sempre decisão, sabedoria, comunhão com o que há de mais sagrado de
nós mesmos, é o que sugere Estés (1994) e também Wangerin Jr (2005).
Segundo Estés (1994), em determinadas comunidades, usar sapatos pode
assinalar o status social, a respeitabilidade de uma pessoa: em “Sapatinhos
Vermelhos”, o simbolismo arquetípico dos sapatos remonta à antiguidade quando os
sapatos eram sinal de autoridade, e até mesmo como artefato de sobrevivência,
principalmente em países de invernos rigorosos. Os sapatinhos simbolizam proteção
para os pés da menina, para a sua base, os sapatinhos seriam metáfora de suas
crenças. A cor vermelha, apesar de indicar força e vitalidade, indica também
ambição e fortes tendências físicas, raiva, crueldade, rebeldia. O vermelho, em
suma, é a cor da vida e do sacrifício: para vivermos bem, experimentarmos os
caminhos e descaminhos da vida, temos que fazer escolhas, temos que fazer
sacrifícios.
A história chama atenção para as armadilhas nas quais nos envolvemos com
facilidade quando estamos sem proteção. Assim exposta a um universo
desconhecido (a cidade, a nova casa) e repressor, a menina definha e cai em uma
obsessão, deseja ter, a qualquer preço, aquilo que a faz se sentir melhor, mas que é
destrutivo e perigoso. A perda dos sapatinhos vermelhos feitos à mão representa, de
acordo com Estés (1994), a perda da essência inicial, do equilíbrio que a fazia feliz.
A obsessão dos sapatinhos vermelhos, que não foram criados, inventados,
fabricados por ela mesma, bem como a perda dos pés por conta dessa atração pelo
que não lhe era natural, íntimo, essencial, fizeram com que a menina perdesse a sua
base, a sua liberdade, a sua capacidade de inventar-se a si mesma.
Segundo Marie-Louise Von Franz (1990), há contos cujo final encena uma
ambiguidade: há um final feliz, pois “todo fim é bom” nos contos de fada, entretanto
esse final feliz é construído por uma cena trágica, negativa, como é o caso de
“Sapatinhos Vermelhos”, uma vez que os pés da menina são amputados e o
35
narrador comenta que, a partir daquele momento, ela, uma aleijada, teria de
descobrir uma forma de sobreviver no mundo trabalhando como criada. Entretanto é
preciso atentar para o fato de que o final trágico, que, a princípio, contradiz o “Todo
fim é bom” dos contos de fadas, significa também que a menina acaba se sentindo
aliviada, mesmo quando cortaram os pés, pois sua compulsão em dançar sem parar
tinha terminado. Ela era “livre”.
Como percebemos, o conto de Andersen é conciso e preciso e é contado com
uma linguagem simples, mas carregada de significações que demandam sempre
uma interpretação. As duas versões de Andersen exploram as ambivalências e a
polissemia
do
simbólico
inscrito
nos
próprios
sapatinhos
vermelhos,
nos
acontecimentos e nas personagens principais e secundarias. Daí as leituras
diferentes que Estés (1994) e Wangerin Jr. (2005) fazem. Interpretar os contos
maravilhosos, estar atento aos seus símbolos, aos seus arquétipos, é colocar em
prática uma hermenêutica da vida, vida que flui no seu cotidiano, mas que
surpreende a cada momento com suas contradições entre bem e mal, amor e ódio,
poder e submissão, liberdade e servidão, plenitude e carência, desobediência e
fidelidade, visão e cegueira, sabedoria e ignorância.
Os sapatos vermelhos, a menina e as vicissitudes de sua vida, a velha
senhora, o sapateiro, o soldado que “enfeitiça” os sapatos à porta da igreja, o
carrasco que amputa os pés da menina, o anjo/espírito guardião que empunha a
espada junto à porta da igreja e, depois, segura um ramo de roseira todo florido, a
amputação dos pés, o trabalho como criada, o retorno à igreja... Tudo, no conto de
Andersen, é, como nos diz Wangerin Jr. (2005, p. 157), uma encenação dramática
de “verdades” que a criança simplesmente não consegue captar em abstrato.
No final do conto, a menina (Karen), em estado de profundo desamparo, se vê
capaz de perdoar-se a si mesma e pedir perdão aos outros (e a Deus), os hinos
entoados pelo órgão da igreja a acolhem trazendo-lhe paz e felicidade:
“O grande órgão tocava e as vozes das crianças no coro confundiam-se
docemente com ele. A luz do sol clara e quente jorrava janela adentro.
Enchia o coração de Karen até ele inflar-se de paz e felicidade a ponto de
explodir. Sua alma voou num raio de sol para Deus. E lá em cima ninguém
lhe perguntou sobre os sapatos vermelhos” (ANDERSEN, apud WANGERIN
JR., 2005, p. 162).
36
Por meio dessa estória, a criança é formada no perdão e na fidelidade à sua
origem, à sua essência divina, à sua força criativa, e a formação permanece,
sempre.
3.2.
“O Patinho Feio”: como tornar-se o que se é.
Pode uma criança receber uma melhor impressão, uma formação mais sutil,
mais espiritual do que esta: aprender a tornar-se o que se é? Quando
acompanhamos os “sofrimentos” do protagonista do conto “O Patinho Feio” 8,
recebemos essa graça de Andersen, aprendemos o que é a beleza do ser.
Nesse conto, a personagem central, um “patinho”, tão logo sai do ovo, se
descobre muito feio, porque é muito diferente dos outros irmãos patinhos. O Patinho
conhece a dura realidade de não se enquadrar no meio em que vivia, de não
pertencer “à turma” do fosso, de ser rejeitado. Quando a perseguição se torna mais
agressiva, ele parte numa jornada, colocando-se à prova em um verdadeiro teste de
sobrevivência, experimentando, sozinho, o inverno rigoroso e um mundo cheio de
perigos. Mas, finalmente, o protagonista descobre coisas maravilhosas dentro de si:
ele não era feio, ele não era um patinho, não era um patinho feio, ele tornou-se
aquilo que já era desde o seu nascimento, um cisne. O seu inconfessável desejo se
realiza.
A profundidade dessa bela estória de Andersen está no fato de que o desejo do
Patinho é também o desejo de todo o cosmo. Pode ser então, o desejo do próprio
Andersen, o desejo do narrador da estória e também o do leitor. Talvez seja por
essa razão que a mediação dessa estória de Andersen seja tão especial, tão
poeticamente construída.
O narrador de “O Patinho Feio” é onisciente, narra em terceira pessoa e
conhece tudo sobre as personagens e sobre os eventos, até mesmo sobre os
sentimentos do protagonista. Mas essa onisciência não lhe confere um
autoritarismo, uma posição de comando e desmando. O narrador bem sabe que o
Patinho Feio era, na verdade, um cisne, mas cria um espaço de jogo, de efeito
estético, deixando que o leitor, caminhando junto com o próprio protagonista da
estória, descubra por si mesmo essa importante verdade.
8
Para a análise do conto “O Patinho Feio” usamos a coletânea Histórias Maravilhosas de Andersen
(2003), compiladas por Russel Ash e Bernard Higton e traduzidas para o português por Heloísa Jahn
37
O narrador também não julga, explícita ou implicitamente, todos os que,
considerando-se os melhores, os superiores, mais sábios, mais belos, mais amados,
mais experientes, mais inteligentes, rejeitaram violentamente o Patinho Feio. Há
como que uma representação épica e lírica, epilírica9, da vida do Patinho Feio. Nela,
os eventos são duplamente mediados pela consciência artística do narrador (épica)
e pela experiência vital do protagonista da estória (lírica) que funciona como refletor
dos acontecimentos. Poderíamos dizer que a intimização do narrador com o Patinho
Feio é tão grande que ele compartilha das experiências trágicas de rejeição, de
humilhação, de solidão do protagonista da estória, mas e, sobretudo, da emoção de
alegria que se irradia no final.
Tudo é muito poético nesse conto. Andersen, ao narrar a busca do Patinho
Feio por uma vida melhor, menos violenta, mais sossegada e em harmonia com os
outros, mas, principalmente consigo mesmo, compõe uma doce melodia regida
pelas “quatro estações” do ano cujos movimentos - verão, outono, inverno e
primavera - simbolizam o percurso do protagonista.
No verão, o Patinho nasce e ainda recebe o carinho da mãe, mesmo sendo
rejeitado pelos irmãos e por toda a turma do fosso. E por que a rejeição? Pela
“feiura”, não pela maldade, nem pela crueldade, ou qualquer outro erro. Os outros
patinhos, seus irmãos, são bonitos, à imagem da mãe. Mas o patinho saiu de um
ovo maior, esquisito. Por essa razão ele recebe bicadas, pontapés e empurrões. Por
isso ele é desprezado. A mãe do Patinho o defende:
(...) - Ele não é bonito, mas é muito bem-comportado e nada tão bem
quanto os outros. Para falar a verdade, acho até que nada um pouco melhor
que os outros. Tenho certeza de que quando ficar mais velho vai ficar muito
bonito. É que ele se atrasou no ovo e acabou ficando diferente.
(ANDERSEN, 2003, p. 110)
O Patinho, entretanto, sente pena da mãe: ela é uma linda pata e sofre
injustamente por causa dele; o problema, afinal de contas, é dele: ser tão feio! O
simples fato de amá-lo é causa do sofrimento da mãe que, nos primeiros dias, tenta
confortá-lo: “esse é o jeito do mundo”. Isso não o conforta. E depois, até a mãe
gostaria de vê-lo longe de casa (da zombaria, do sofrimento?)! O Patinho, então
foge e nunca mais a vê.
9
Termo apresentado por Ronaldes de Melo e Souza para definir a poética do narrador de “Campo
Geral”, primeira saga de Corpo de Baile, de João Guimarães Rosa ( SOUZA, 2008, p.125-136).
38
O Patinho, sozinho, desanimado e triste, descobre “o jeito do mundo”. E isso
inclui a morte dos poucos que gostaram dele: os caçadores mataram dois gansos
selvagens que foram amáveis com ele, apesar de sua “feiúra”. Inclui também o
escárnio, o desprezo dos moradores de uma cabana contra tudo que ele não sabe
fazer: ele não bota ovos como a galinha, ele não arqueia o dorso, não ronrona e não
faz estalar o pelo como o gato. Faça isso, faça aquilo, grita a senhora, a galinha e o
gato. Mas o Patinho não sabe fazer nada do gosto deles, do jeito que a sociedade
deseja e, por isso, ele se sente ainda mais feio e mais esquisito. O Patinho é cada
vez mais excluído da sociedade. Ninguém pode salvá-lo, só ele mesmo. É quando
ele, atendendo ao apelo irresistível do ser, sai da cabana:
O patinho ficou muito triste e foi para o canto da cozinha. De repente
começou a pensar em sol, em ar fresco, e ficou tão empolgado com o
estranho desejo de boiar na água que no fim não aguentou e contou à
galinha.
(...)
- Mas é tão gostoso boiar na água! – disse o patinho. – É tão divertido
enfiar a cabeça na água e mergulhar até o fundo! (ANDERSEN, 2003,
p.114, grifo nosso)
A saída para mergulhar até o fundo da alma acontece quando o outono chega:
“Não demorou muito, o outono chegou. As folhas da floresta ficaram amarelas e
marrons e o vento se apropriou delas e fez com que enchessem o espaço com sua
dança. O ar tinha um travo frio” (ANDERSEN, 2003, p. 114). E, num belo fim de
tarde, o Patinho vê outras aves que chamam sua atenção. Mas ele não sabe o
motivo. Essas aves são belos cisnes brancos que estão fugindo do frio. Nesse
outono, o Patinho conheceu, sem saber, outros de sua espécie, por isso sente-se
tão bem ao vê-las:
Uma tarde de pôr-do-sol deslumbrante um bando inteiro de lindas aves bem
grandes levantou voo do matagal. O patinho nunca tinha visto coisa mais
linda. As aves eram muito brancas, seus pescoços eram compridos e
elegantes. Os cisnes, pois aquelas aves eram cisnes, soltaram um grito
impressionante, abriram as asas magníficas e voaram das regiões frias para
outras mais quentes em busca de lagos menos gelados. Quando eles
subiram até o alto do céu, o pequeno patinho feio sentiu uma coisa
esquisita. Fez uma curva na água parecendo uma roda, espichou o
pescoço para o alto na direção das aves que tinham levantado voo e soltou
um grito tão forte e surpreendente que até ele mesmo se assustou. Não
conseguiu esquecer aquelas aves. Quando elas desapareceram por
completo ele ficou tão agitado que mergulhou na água até o fundo,
depois voltou para a superfície. Não sabia como aquelas aves se
chamavam nem para onde elas estavam indo, mas o amor que sentiu por
elas nunca havia sentido por ninguém. Não era inveja, pois não lhe
passava pela cabeça desejar tanta beleza para si próprio. Para ele o
máximo de felicidade seria aquelas aves aceitarem sua companhia. Coitado
do pato feioso! (ANDERSEN, 2003, p. 114-16, grifo nosso)
39
Logo vem o inverno, muito rigoroso. Todo esse rigor obriga o Patinho a “ficar
nadando para lá e para cá para impedir que a água ficasse completamente
congelada”, ele tinha que se mexer o tempo todo para que “a água não se
congelasse com ele”. Mas acaba cansado e para de se mexer, ficando “firmemente
preso no gelo”. (ANDERSEN, 2003, p. 117) O gelo da baixa auto-estima, da imagem
de feiúra que todos faziam dele, a angústia, o medo, a indiferença dos outros acaba
congelando o Patinho. É absolutamente compreensível que o Patinho queira até
mesmo morrer para não sofrer mais. Felizmente, o Patinho é salvo por um
camponês que o leva para casa. Mas essa não é a verdadeira salvação! Nada dá
certo, ele voa “para dentro do tarro do leite, esparramando o leite para cozinha
inteira”, voa para a tina de manteiga, depois para a lata de farinha... (ANDERSEN,
2003, p.117).
O Patinho ainda sente o frio da solidão. Como tudo deu errado, ele sai da casa
do camponês, “correndo pela neve recém-caída” e abrigando-se nos arbustos,
experimenta a “sensação de estar fora da realidade”, pois ainda não sabe quem é,
ainda não está junto dos seus. Como nos diz o narrador da estória: “Seria muito
triste se fôssemos contar todos os sofrimentos, toda a infelicidade que ele foi
obrigado a enfrentar naquele inverno tão frio.” (ANDERSEN, 2003, p. 117). É preciso
esperar pela primavera, sugere docemente o narrador.
E a primavera vem. O Patinho esperou a esperança com seus raios de sol a
brilhar, com o canto das cotovias e com a belíssima imagem de três cisnes brancos
deslumbrantes:
De repente o patinho abriu as asas e percebeu que elas tinham mais força
do que antes e que o impulsionavam para a frente com mais energia. E
antes de entender muito bem onde estava, foi parar no meio de um grande
jardim onde as macieiras estavam em flor e o ar tinha o perfume adocicado
dos lilases que pendiam dos longos ramos verdes e roçavam a água dos
canais sinuosos. E bem na frente dele, do meio das moitas, surgiram três
cisnes brancos deslumbrantes. Os cisnes ruflaram as penas e flutuaram
com muita leveza sobre a água. O patinho reconhecera as criaturas
magníficas e foi tomado por um estranho sentimento de tristeza
(ANDERSEN, 2003, p. 117-118).
O Patinho não sabia sobre si mesmo e quando “refletia” sobre sua identidade,
enquanto sofria, sua “reflexão” era tão somente uma imagem externa, que os outros
faziam dele: um patinho feio. E ele acreditou nisso até que se encontrou, mergulhou,
na profundidade do espelho das águas do jardim onde flutuavam os cisnes (não
40
mais as águas do fosso, do pântano e lago congelado). O Patinho, diante da beleza
dos cisnes, ainda triste com as bicadas, pontapés e agruras do inverno, preferiu voar
até aquelas criaturas majestosas, nem que elas o bicassem até a morte por ele ser
tão feio e ousar chegar até elas. Voou para água e, cabisbaixo, esperou a morte.
Mas é nessa hora que a alegria da descoberta de sua verdadeira identidade
acontece: no espelho das águas ele percebe que era igualzinho aos cisnes. Nas
palavras de Andersen: “O pobrezinho abaixou a cabeça, olhando para a água, e
esperou. Mas que foi que ele viu na água límpida? Por baixo de si, viu sua própria
imagem.” (ANDERSEN, 2003, p. 118). O nosso protagonista fica muito feliz: ele não
era mais um pássaro desajeitado e cinza. Era um cisne. Era um Belo e Jovem Cisne.
O Patinho Feio, como no mito de Dioniso (ou no mito de Narciso) morre, quando se
vê no espelho das águas para tornar-se o que já se é: um lindo Cisne.
Com essa bela estória compreendemos que os contos de Andersen, embora
simples
na
superfície,
contêm
uma
percepção
delicada
e
precisa
do
desenvolvimento pessoal. Os contos maravilhosos de Andersen são bem “honestos
quanto ao duro encontro com o mundo real – honestos sobre o mal e a tendência
para o mal que existe em cada um de nós”, mas jamais comprometem “a verdade da
experiência humana para agradar os ouvidos infantis”, como nos diz Wangerin Jr.
(2005, p.150). Mesmo que seja em termos “absolutamente fantásticos”, Andersen
sempre valoriza a verdade da experiência humana.
41
E HANS CHRISTIAN ANDERSEN FICOU SENDO... POIS TODO FIM É BOM:
UMA CONCLUSÃO
Hans Christian Andersen é o poeta da infância. Por que razão? Sua obra
representa a essência da infância e, por conseqüência, da vida aprendida e
ensinada. Como mostramos no nosso trabalho, o aprendizado, as experiências
vividas pelas personagens, são exemplos de experimentações de busca pela
essência da vida, pela sensibilidade e inteligência do ser. Há uma “educação
sentimental”, urdida pelo poético, mas que se constrói permeada de morte,
sofrimento, desmistificações e tragédias que serão fatores de renovação que serão
fatores de renovação e transcendência. De felicidade. De alegria!
É mesmo possível ter um final feliz nos contos de Andersen? Sim! Como foi
abordado anteriormente existe um final brutal em muitos contos desse escritor
dinamarquês, sobretudo no conto “Sapatinhos Vermelhos”. A protagonista foi
“punida” por sua atitude, mas alcançou uma felicidade porque vivenciou os limites da
vida: passou pela dor de, na busca de realizar seus desejos, encontrar modelos
inautênticos de existir. Chegou à verdade de seu ser, aprendendo pelo sofrer.
Perdão, compaixão, realização, sabedoria... Eles sempre fazem parte da formação
dos protagonistas que atravessam um caminho cheio de violências, injustiças
sociais, abandono, desamor.
E o que diríamos de outros contos de Andersen como “O Valente Soldadinho
de Chumbo”, “A Pequena Sereia” ou “A Pequena Vendedora de Fósforos”? São
estórias com um final triste. As personagens dessas estórias vivem as condições do
ser humano: a desigualdade, a luta pela sobrevivência e pelo amor. São amorosas e
frágeis porque se apaixonam por pessoas “inacessíveis”: o Soldadinho, que é um
brinquedo, pela Bailarina, que é também um brinquedo; a Pequena Sereia, por um
humano. O Soldadinho, que não tinha uma perna, lutou por sua sobrevivência ao
passar por tantos perigos fora de casa, mas não perdeu a esperança de reencontrar
sua Bailarina. O destino o leva de volta para casa, mas o soldadinho é jogado no
fogo por um menino. Ainda assim, o Soldadinho de Chumbo realiza seu sonho: estar
junto do ser amado. A Bailarina também lançada ao fogo, derrete (morre) junto do
Soldadinho. A Pequena Sereia luta para ser correspondida, vira humana por efeito
de um encantamento de uma bruxa, porém não consegue conquistá-lo. Prefere virar
42
espuma do mar (a morte) a matar seu grande amor, ela salva com sua morte o seu
príncipe. A Pequena Vendedora de Fósforos, no frio congelante, foge para um
mundo sonhado por ela, um mundo iluminado e aquecido pela pequena e
instantânea chama e pelo passageiro calor de cada fósforo riscado na noite escura e
fria de inverno. A cada fósforo aceso, um desejo “realizado” na e pela imaginação:
comida, lareira, carinho e cuidados da avó. A Pequena Vendedora de Fósforos adia
a morte, mas para experimentá-la como consolação de uma vida cheia de
sofrimentos e carências, porque ela encontrou com a avó, a quem amava tanto. A
morte ou a tristeza nos contos de Andersen não representa a derrota dos
protagonistas, é o próprio destino que elas escolheram para realizar seus sonhos.
Podemos compreender o que representa o final triste nos contos de Andersen
a partir do que Cláudio Naranjo (2001) propõe sobre as estórias matriarcais,
conforme já vimos no terceiro capítulo. Há nessas estórias matriarcais uma certa
tristeza, geralmente a morte ou desaparecimento do protagonista, no final, mas que
revelam a presença da criança divina, cuja sabedoria e confiança na natureza do
mundo e de si mesma constroem, paradoxalmente o “final feliz” dos protagonistas.
Os protagonistas dos contos de Andersen são perdedores-vencedores.
Percorrem um longo e sofrido caminho rumo à realização e aprendem a viver de
outra maneira, não como seres eternos, imutáveis, que se esquivam das mais
profundas experiências porque elas lhes trazem dor. Cada protagonista de Andersen
comparece assim porque se descobre eterno ser que só é enquanto devir, que pode
vir a tornar-se aquilo que já se é em essência, assumindo sua destinação, não
esquecendo suas origens e acreditando que todo fim é bom porque poderia ser de
outro “jeito”.
Qual seria a moral que estórias, como “Sapatinhos Vermelhos” e “A Pequena
Vendedora de Fósforos”, buscam “impor” aos leitores, sobretudo às crianças?
Podemos pensar que a lição seria simplesmente, como muito se divulga, a de que
menina dos sapatinhos vermelhos ficou sem os pés porque desobedeceu à velha
senhora e às regras da sociedade em que vivia? E a Pequena Vendedora de
Fósforos? Que lição tirar do triste fato de não se ter ninguém que se importe com a
menina? Se não fizermos qualquer coisa para sairmos da pobreza a que a
sociedade nos relegou e se nos confortamos, mesmo que por instantes, num
acender e apagar instantâneo de fósforos, com o “sonho”, com a esperança de uma
43
vida melhor, uma casa que nos abrigue e os cuidados que uma avó pode nos
ofertar, merecemos morrer congelados na fria noite? Buscar as causas históricas
(sociais, econômicas, políticas) dos acontecimentos narrados, analisar a vida
pessoal do autor e traçar o perfil psicológico ou os antecedentes do inconsciente de
Andersen e de cada personagem... Isso seria o suficiente para que pudéssemos
realmente dizer quais os ensinamentos de uma estória de Andersen?
Podemos pensar que autores como Andersen apenas dizem em seus contos:
divirtam-se!
Ou melhor, DI-VIRTAM-SE, criem e experimentem uma versão
diferente de vocês mesmos! Não sabem como? Mergulhem dentro de si mesmos,
busquem a criança escondida em vocês e maravilhem-se com o poder de sua
imaginação. Encantem-se com a imagem poética que há muito tempo foi trocada
pela consciência da racionalidade. As obras de Andersen vieram para retomar uma
outra consciência, a imaginante, a do devaneio poético em demanda da infância.
Como bem nos lembra Bachelard (2001) sobre a imaginação poética:
A imagem poética, aparecendo como um novo ser da linguagem, em nada
se compara, segundo o modo de uma metáfora comum, a uma válvula que
se abriria para liberar instintos recalcados. A imagem poética ilumina com
tal luz a consciência é vão procurar-lhe antecedentes inconscientes.
(BACHELARD, 2001.p.3).
A imagem poética tem um ser próprio, um dinamismo próprio. E, de acordo
com Bachelard (2001), para se esclarecer o problema da imagem é preciso estudar
o fenômeno da imagem poética quando esta surge na consciência como um produto
direto de coração, da alma do ser humano. Ele pede para que a imagem poética não
seja encarada como um mero objeto ou o substituto deste, mas que seja capturada
em sua concretude, dinamismo e materialidade, na sua realidade especifica.
Na busca dos sentidos da vida, o homem descobriu que seu próprio espaço
interior tonou-se um lugar novo de experiência. Esse é o centro, a finalidade, o
sentido, a destinação do homem: descobrir-se eterna novidade, ser repleto de
devaneios que acordam nele o devir da origem, da “criança divina” como assinalam
Kerenyi e Jung (2011). Assim, nos contos de Andersen, o sofrimento, o conflito, a
tensão, até mesmo a morte, experimentados por suas personagens permitem o
crescimento interior e são essenciais à auto-descoberta. São, na verdade, a própria
“cura”, a própria “redenção” das personagens, e também dos leitores, quer sejam
crianças ou adultos.
44
Vimos algumas condições necessárias à estruturação do conto maravilhoso /de
fadas: a fantasia, que é uma imaginação criadora; a recuperação, que é a
recuperação depois de um desespero; o escape, que é o escape de um perigo; e o
consolo, que é o consolo de um final feliz, mesmo quando ele parece, como na
maioria dos contos de Andersen, triste. Vimos, por exemplo, que a Pequena
Vendedora de Fósforos recupera sua felicidade quando acende os fósforos.
Esperança: é o que nos ensinam os contos maravilhosos de Andersen. Não há nele
uma pedagogia do medo. Esperar, aprendemos, não resigna, porque ficamos
apaixonados pelo êxito em lugar do fracasso.
Para Marie-Louise Von-Franz (1984), o elemento da juventude está
dramatizado no símbolo da criança. A criança geralmente ainda possui esse espirito
de veracidade, de pureza de sempre falar a verdade, de ser ela mesma
absolutamente sincera, de ter esperança, espírito que, geralmente, tendemos a
perder por força de uma educação que busca o ser eterno , e não o eterno ser. A
criança, também nos contos de Andersen, é o mitologema, - ou arquétipo -, na
linguagem de Kerenyi e Jung (2011), do ser poético por excelência, daquele que
aprende a esperar além do dia ou da noite que aí está, além das agruras e
sofrimentos, daquele que aprende a sonhar um mundo melhor e renovado, daquele
cuja vida, como nos diz o próprio escritor dinamarquês, é “um conto de fadas escrito
pelas mãos de Deus”.
45
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Ash e Bernard Higton. Trad. Heloísa Jahn. 9ª reimpressão. São Paulo: Companhia
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BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Trad. Antonio de Pádua Danesi.
São Paulo: Martins Fontes, 2001.
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BRAIT. Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 1985.
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Franciane da Silva - Universidade Católica de Brasília