Estudos em semiótica sincrética: seqüência cinematográfica do filme Fale com Ela Ana Laura Rolim da Frota* Resumo: Este artigo faz algumas considerações de ordem semiótica sincrética, sobre o filme de Pedro Almodóvar – “Fale com Ela – Hable com Ella”. A referida obra poderia ser analisada sob esse enfoque na sua totalidade, no entanto, havendo a necessidade de esse estudo ser breve, destacarei como foco para minhas reflexões, uma seqüência que mostra, de forma inesquecível, melancólica e emocional, o momento em que Caetano Veloso canta Cucurrucucú Paloma. A referida seqüência permite fazer uma análise semiótica sincrética, devido às linguagens nela constantes, as quais se articulam de forma a instigar e convocar a sensibilidade e principalmente a percepção do enunciatário, fazendo com que o mesmo atribua a ela intensa significação. Palavras–chave: Sincretismo, Semiótica, Cinema. Com a finalidade de situar e contextualizar o foco de interesse aqui destacado, apresentarei, nas próximas páginas, primeiramente, uma sinopse do filme, para após, realizar algumas considerações de caráter semiótico sincrético sobre o fragmento cênico referido, a partir dos estudos de Ignácio Assis Silva, Maria Sílvia Fantinatti, Ana Cláudia Oliveira e outros. Na parte final do trabalho, exporei algumas conclusões, usando como ponto de apoio o pensamento de Jean Marie Floch e A . J. Greimas. __________ * Professora substituta de Artes Visuais no Colégio de Aplicação em 2007. Especialista em Artes Visuais, Arte-Educação e ensino da Arte (FEEVALE). Mestranda do Programa de Pós-Graduação da FACED/UFRGS. E-mail [email protected] 2 Sinopse do Filme Fale com Ela Hable com Ella Produção: Espanha, 2002 De: Pedro Almodóvar Duração: 116 minutos Fale com ela apresenta-nos impulsos de amor e morte. Benigno e Marco são os protagonistas. Inicia-se em um teatro, durante a apresentação de um balé de Pina Bausch. Marco se emociona e chora. Benigno o observa discretamente. Dá para pensar tratar-se de um par gay. Benigno é mesmo homossexual, no entanto, Marco é um hetero sensível, por isso chora. Envolve-se com Lydia, uma toureira. Lydia sofre um acidente na arena e entra em coma. Marco reencontra Benigno no hospital, onde ele é enfermeiro e fala com Alicia, uma bailarina que também teve um acidente e está em coma. Benigno acredita que o ato de falar com Alicia a mantém ligada à vida. Marco, que é jornalista e escritor, não consegue falar com Lydia e ainda fica muito abalado ao saber que ela ia romper com ele no dia do acidente na arena. No hospital, ao lado da cama de Lydia, Marco pensa sobre um concerto que assistiram juntos e no qual escutaram Caetano Veloso cantando Cucurrucucú Paloma. Essa seqüência merece destaque, na medida em que desempenha, no filme, uma função bastante sintética. Inicia-se com a câmara acompanhando um jovem nadando em uma piscina. Ele sorri, já com a cabeça fora d’água (até então só ouvimos os acordes da canção). Na cena seguinte, o público do concerto é mostrado, através de um plano conjunto horizontal para esquerda. Seguindo, Caetano passa a emocionar a todos os presentes (enunciatários - atores do filme) e enunciatários da platéia (cinema) com uma interpretação comovente e magistral da música em questão. Marco, distante de Lydia, escuta a melodia enquanto ela o observa. Marco chora ao ouvir as palavras “como sofria por ela que até em sua morte a seguia amando, ai, ai, ai, ai, ai, cantava, ai, ai, ai, ai, ai, gemia; cantava de paixão mortal, morria”. O clima é de total intimidade e melancolia. Vê-se Marco afastar-se. Lydia o segue e pergunta o 3 motivo de sua sensibilidade. Marco profere uma frase que resume sua síndrome evocativa: “Esse Caetano me arrepia!” Após relata detalhes de uma relação amorosa anterior. Um amor terminado. No decorrer do filme Elis Regina canta Jobim e a chave do momento, a qual se estende ao filme, é uma frase desse último – “O amor é a coisa mais triste quando se desfaz”. A palavra (e o sexo) devolvem Alicia à vida, mas são fonte de perdição de Benigno seu enfermeiro. Numa das cenas mais lindas e poéticas de Fale com Ela, Benigno vai ao cinema e depois conta o filme para Alicia. É um velho filme mudo que ele vê na cinemateca – na verdade, um filme feito pelo próprio Almodóvar. Nele, um homem é reduzido a dimensões liliputianas e penetra na vagina de uma mulher, que experimenta o prazer. Essa seqüência é apresentada em preto e branco e trata da procura de uma cientista, por uma solução para a obesidade – preocupação tipicamente feminina - no entanto, quem testa a fórmula é um homem. A preocupação feminina da estética é apropriada pelo homem. Esta apropriação resulta numa diminuição do masculino em relação ao feminino, simbolizada no encolhimento do cientista. O final resulta na diluição e no desaparecimento do masculino dentro do feminino, simbolizados pela entrada completa do homem na mulher. A partir de então, o filme vai sendo costurado como uma peça barroca, culminando com a informação de que Alicia, mesmo em coma, está grávida. Benigno é acusado de tê-la estuprado e acaba preso. Benigno suicida-se e Lydia morre, portanto nenhum dos dois sobrevive à trama, apenas Marco e Alicia permanecem vivos. Marco tempera sua masculinidade e o gosto pelo belo, porém sem descaracterizá-la. É, por isso, capaz de compreender tanto Benigno quanto Lydia. Alicia é a mulher perfeita, modelo, amante da dança e da poesia. Para Almodóvar a solução é reunir Alicia e Marco. É por intuir esta dimensão que Benigno, ao final, sente-se atraído por Marco. Esta atração é o desejo de ser Marco. Antes de suicidar-se, Benigno realiza seu amor por Alicia por meio de Marco, deixando-lhe de herança seu apartamento, em frente à Academia de dança, e o prendedor de cabelo de Alicia. 4 Cada fotograma da obra mostra-nos Almodóvar, sua forma de ver e sentir o mundo. * Sinopse adaptada do filme Fale com Ela e de sites que tratam sobre ele. O Sincretismo semiótico em uma seqüência cinematográfica do filme Fale com Ela. A seqüência: No hospital, ao lado da cama de Lydia, Marco pensa sobre um concerto que assistiram juntos e no qual escutaram Caetano Veloso cantando Cucurrucucú Paloma. Essa cena merece destaque, na medida em que desempenha, no filme, uma função bastante sintética. Inicia-se com a câmara acompanhando um jovem nadando em uma piscina. Ele sorri, já com a cabeça fora d’água (até então só ouvimos os acordes da canção). Na cena seguinte, o público do concerto é mostrado, através de um plano conjunto horizontal para esquerda. Seguindo, Caetano passa a emocionar a todos os presentes (enunciatários - atores do filme) e enunciatários da platéia (cinema) com uma interpretação comovente e magistral da música já referida. Marco, distante de Lydia, escuta a melodia enquanto ela o observa. Marco chora ao ouvir as palavras “como sofria por ela que até em sua morte a seguia amando, ai, ai, ai, ai, ai, cantava, ai, ai, ai, ai, ai, gemia; cantava de paixão mortal, morria”. O clima é de total intimidade e melancolia. Vê-se Marco afastar-se. Lydia o segue e pergunta o motivo de sua sensibilidade. Marco profere uma frase que resume sua síndrome evocativa, “esse Caetano me arrepia!” Após relata detalhes de uma relação amorosa anterior. Um amor terminado. Para iniciarmos a análise do sincretismo semiótico contido nesse fragmento cinematográfico, é necessário, primeiro, que elucidemos o sentido de sincretismo em semiótica. 5 Uma peça visual: em forma de texto, televisiva, cinematográfica ou outra modalidade qualquer, só é sincrética quando apresenta linguagens articuladas de forma a constituírem significação. Não há sincretismo se uma linguagem se sobressair da outra, ou mesmo, se alguma apagar ou anular a outra. É necessário que juntas, formem uma base comum sobre a qual se assente a significação (SÍLVA,1994, p.74). Na seqüência em questão, podemos perceber a articulação das linguagens sonora, visual e verbal, atribuindo à mesma sentido. Conforme Fantinatti (2003, p. 24) “a passagem entre o sensível e o inteligível, na significação, se dá na própria montagem das linguagens que compõem o discurso”. As tomadas dos takes, em plano de conjunto para esquerda - platéia do concerto - (BAUDRY, 1970, p.389) mostra-nos um plano geral mais fechado, visando dar uma visão melhor dos detalhes da ação, passando para Marco em plano próximo e logo após em close-up, que é um recurso de muita ênfase na linguagem cinematográfica, porque dá um grande destaque para os ombros e a cabeça do ator, mostrando-o de forma a valorizar suas expressões em detrimento do cenário. As tomadas dos takes são, ainda, acompanhadas da melodia triste e de texto tocante, dirigindo olho, a audição e os sentimentos do enunciatário, com a finalidade de colocá-lo dentro da cena, de forma a sentir-se como co-participe dela. A ação apresenta uma estratégia de comunicação sincrética, e não uma enunciação gestual desconectada de uma enunciação visual e sonora. Gesto, imagem e som concorrem para atribuir ao momento uma intensa significação. Jean Marie Floch refere-se a essa administração do contínuo discursivo, como um procedimento de sincretização que inclui verdadeiras sinestesias. Além das questões apresentadas acima, encontramos uma questão claramente sinestésica quando: Marco profere uma frase que resume sua síndrome evocativa: “Esse Caetano me arrepia!” Após relata detalhes de uma relação amorosa anterior. Um amor terminado. Há aqui o registro de uma emoção que é evocada por uma música. Essa emoção sintetiza a melancolia, a solidão do ser humano, mesmo em meio a uma multidão. Refere-se a incapacidade do homem, mesmo frente às dificuldades, de apagar o amor de sua vida. Almodóvar 6 recorre ao recurso evocativo da linguagem textual/sonora, para junto com o visual, construir o sentido da seqüência cinematográfica. Na presente análise, faz-se necessário contemplar, também, uma referência à importância dos planos de expressão e de conteúdo. Ambos constituem, conforme Greimas apud Oliveira (2000), as dimensões discursiva – plano de conteúdo – e plástica – plano da expressão. O relacionamento harmônico entre ambos é que constitui o sentido da obra. Assim sendo, ao transpormos essas premissas para a seqüência cinematográfica de Almodóvar, constataremos que: o plano da expressão refere-se ao significante, o que suporta ou expressa o conteúdo, no caso: a imagem de Marco e Lydia em close-up, demonstrando através de suas expressões os seus sentimentos, a melodia, a letra da música, a performance de Caetano e dos participantes da platéia, o local da tomada de cena, feita em plano de conjunto, em uma ampla varanda com pilastras, dando para uma vasta área aberta. As pessoas usando roupas leves, sugerindo calor, o diálogo entre Marco e Lydia, composto por fases curtas, proferidas em tom baixo e íntimo, o abraço e o beijo entre os dois. O plano do conteúdo é o plano do significado, o que é veiculado pelo plano da expressão. Trata-se da temática, o que está sendo mostrado, no caso a tristeza, a perda, a solidão humana, o desencontro, a idéia de fim. Enfim, é a perfeita integração existente entre os planos de expressão e conteúdo, e, conseqüentemente entre as linguagens que os compõem, determinando a cena, que atribuem a ela a carga emocional e significação, a qual se estende à obra como um todo. Almodóvar usa o sincretismo para colocar em discussão o humano, suas carências, solidão e sentimentos. A densidade cênica do momento enfocado sintetiza as emoções que permeiam toda a obra e o enunciatário vê-se preso na teia mágica de sentido construído, pela articulação das diversas linguagens que dão significação ao filme. 7 Conclusão Finalizando estas breves reflexões, gostaria de ressaltar a importância do trabalho de A. J. Greimas, Ana Cláudia Oliveira, Jean Marie Floch, Ignácio Assis Sílva, Ana Sílvia Médola, Maria Sílvia Fantinatti e Jean Louis Baudry, entre outros tantos estudiosos da semiótica, para que possamos analisar com maior propriedade e clareza uma obra de arte como o filme de Almodóvar. A partir de seus estudos podemos perceber as articulações intricadas que existem entre os planos de expressão e conteúdo e conseqüentemente entre as formas e substâncias que os integram. Podemos compreender porque nos sentimos tão presos na teia de significação construída a partir da articulação entre as várias linguagens e, também, podermos perceber o que faz de uma notícia jornalística, capa de revista, filme, ou mesmo de uma seqüência cinematográfica, como a que estamos enfocando, uma produção de qualidade e principalmente de grande significação. Como diz Floch, apud Fantinatti (2003, p. 24), em termos de procedimentos de sincretização, se afastará primeiramente a idéia de que para tal enunciado sincrético há uma enunciação gestual, uma enunciação visual. O recurso para que uma pluralidade de linguagens de manifestação construa um texto sincrético depende de uma estratégia global de comunicação sincrética, que administra o contínuo discursivo resultante da textualização e opta por verter a linearidade do texto em substâncias diferentes. Em certos casos, salienta, ainda, Floch (2003, p. 60) que “os procedimentos de sincretização podem depender de verdadeiras sinestesias. “ Usando como finalização desse trabalho o pensamento de Floch sobre sinestesia, podemos afirmar que Fale com Ela, trata, não só na cena por mim abordada, mas em sua totalidade, de um procedimento criativo sinestésico. O tempo inteiro do filme, vemos um objeto que remete a um comportamento, um comportamento que nos faz pensar em um sentimento ou um sentimento que é acordado por um som. 8 Trata-se de usar a sinestesia como despertar de emoções, e de apresenta-las de forma sensível, algo que Almodóvar faz como ninguém Referências BAUDRY, Jean Louis, Cinéthique (vol.7/8,1970:389). FANTINATTI, Maria Sílvia. O SINCRETISMO NA SÉRIE DE TELEVISÃO, CAPÍTULO I, PUC/São Paulo, 2003. p. 24 (dissertação de mestrado). FANTINATTI, Maria Sílvia. O SINCRETISMO NA SÉRIE DE TELEVISÃO, CAPÍTULO I, PUC/São Paulo, 2003. p. 19. (dissertação de mestrado). FLOCH, Jean Marie. Diccionario razonado de la teoria Del lenguage II. In: FANTINATTI, Maria Sílvia. O SINCRETISMO NA SÉRIE DE TELEVISÃO, CAPÍTULO I, PUC/São Paulo, 2003. p. 19. ( dissertação de mestrado). GREIMAS, Algirdas Julien. Semiótica plástica e semiótica figurativa. In: OLIVEIRA, Ana Cláudia. Notas sobre presentificação: inteligibilidade e sensibilidade na primeira página do Jornal. São Paulo. Centro de Pesquisas Sociossemióticas, 2000. p. 177. MÉDOLA, Ana Sílvia. In: FANTINATTI, Maria Sílvia. O SINCRETISMO NA SÉRIE DE TELEVISÃO, CAPÍTULO I, PUC/São Paulo, 2003. p.20.(dissertação de mestrado). SÍLVA, Ignácio Assis. Corpo e Sentido. (1994:74). FANTINATTI, Maria Sílvia. O SINCRETISMO NA SÉRIE DE TELEVISÃO, CAPÍTULO I, PUC/São Paulo, 2003. p. 18. (dissertação de mestrado). Outras Referências http://www.60anoscinema.hapg.ig.com.br/Fale_com_ela.htm http://www2.uol.com.br/revistadecinema/edição31/almodovar/index.shtml http://adorocinema.cidadeinternet.com.br/filmes/fale-comela/fale-com-ela.htm http://www2.uol.com.br/revistadecinema/edição31/almodovar/index.shtml