RETRIBUIÇÃO O fato de que Connie Chasen tenha correspondido à minha inevitável atração por ela à primeira vista deve ser considerado uma coisa inédita na história do West Side de Nova York. Se quiserem uma pálida descrição da gatona, só posso dizer que, com aquele corpo, alta, loura, atriz quase profissional, inteligentíssima e com um agudo senso de humor, superado apenas pelo tesão úmido e sinuoso que cada curva do seu corpo despertava, ela era o insuperável objeto do desejo de todos os homens da festa. E as maçãs do seu rosto! Que ela tenha se interessado justamente por mim – Harold Cohen, esquálido, narigudo, 24 anos, fanho e com remotas aspirações a dramaturgo – era tão absurdo quanto minha avó ter óctuplos. É verdade que costumo dizer algumas coisas engraçadas e sou capaz de sustentar uma conversação sobre uma vasta gama de assuntos, mas não deixei de ficar surpreso quando aquele monumento fixou-se tão rápida e completamente em meus dotes insignificantes. “Você é adorável”, ela me disse, depois de uma hora de enérgicos carinhos encostados a uma estante. “Vai me telefonar um dia?” 7 “Telefonar? Se pudesse, iria para casa com você agora!” “Hmmm, que bom”, ela sorriu, tipo coquete. “Sabe que achei que você não estava me dando a mínima?” Fiz um ar de quem achava aquilo muito natural, enquanto meu sangue era bombeado através das veias até que alguns hectolitros se concentraram no meu rosto. Como era de se esperar, corei – um velho hábito. “Você é fantástica!”, eu disse, fazendo-a enrubescer de modo ainda mais incandescente. Na realidade, ainda não me sentia pronto para ser aceito assim tão imediatamente. Minha agressiva investida sobre ela era só uma tentativa a fim de preparar o terreno para o futuro – para que, quando eu efetivamente mencionasse a palavra cama, digamos, alguns dias depois, a coisa não soasse surpreendente nem violasse nenhuma das leis de Platão. O fato é que, apesar de minhas cautelas, sentimentos de culpa e grilos, aconteceu naquela noite mesmo. Connie Chasen e eu tínhamos nos entregado um ao outro de tal jeito que todos os bodes se dissiparam e, uma hora depois, executávamos um soberbo balé sob lençóis, seguindo apenas a coreografia da paixão. Para mim, foi sexualmente a noite mais erótica e satisfatória que eu já experimentara e, enquanto ela repousava nos meus braços, plena e relaxada, eu me perguntava o que o Destino me reservava em troca de tanto prazer. Ficaria cego? Paraplégico? Que hercúleas tarefas seriam atribuídas a Harold Cohen 8 para que o cosmo pudesse continuar vivendo em harmonia? Que pelo menos demorasse um pouco... As quatro semanas seguintes foram o paraíso. Connie e eu nos exploramos ao fundo e nos deliciamos com cada descoberta. Ela era brilhante, excitante e desbundante; tinha uma imaginação fértil e suas referências eram eruditas e variadas. Era capaz de discutir Gramsci e citar pensadores hindus. Letras de Cole Porter? Sabia todas de cor. E, na cama, era desinibida, topava tudo – um autêntico espécime do futuro. Seria preciso ser absolutamente do contra para descobrir-lhe qualquer defeito. É verdade que ela costumava ser um pouquinho temperamental. Tinha o hábito de mudar de idéia nos restaurantes, depois de já feito o pedido há mais de 20 minutos. E, naturalmente, não gostava quando eu argumentava que isso não era exatamente justo para com os garçons ou o chef. Tinha também a mania de mudar diariamente de dieta, dedicando-se a cada uma com fanático fervor para trocá-la por outra no dia seguinte, apenas porque esta última estava em moda. Não que Connie tivesse a mais remota grama em excesso – ao contrário! Seu corpo devia matar de inveja a mais bela modelo do Vogue, mas um complexo de inferioridade só comparável ao de Franz Kafka fazia-a debater-se com uma gigantesca autocrítica. Quem a ouvisse falar acharia que não passava de uma idiota balofa que nada tinha a ver com essa história de ser atriz, e muito menos interpretando Tchekhov. Continuei incentivando-a 9 moderadamente, mesmo sabendo que, se o desejo que ela me despertava não era aparente pela maneira como eu fitava com adoração o seu corpo e o seu cérebro, nada que eu dissesse seria suficiente. Por volta da sexta semana do nosso relacionamento, sua insegurança chegou ao ápice. Seus pais iriam oferecer um churrasco, na sua fazenda em Connecticut, e finalmente eu iria conhecer toda a família. “Papai é um tesão”, ela disse, suspirando, “além de ser gênio. Mamãe também é linda. E seus pais?” “Bem, eu não diria exatamente lindos”, admiti. Na realidade, eu não fazia uma idéia muito boa da aparência física de minha família, geralmente comparando os parentes de minha mãe a alguma coisa parecida com a família Adams. Não que não fôssemos íntimos e não nos gostássemos – apenas vivíamos brigando o tempo todo. Em toda a minha vida, não me lembro de um membro da família ter feito qualquer referência elogiosa a qualquer outro – tendo chegado a suspeitar, certa vez, que isso vinha desde o tempo em que Deus fez aquele acordo com Abraão. “Meus pais nunca brigam”, disse Connie. “Podem ficar um pouquinho altos, mas são sempre carinhosos. E Danny também é ótimo.” Irmão dela. “Quero dizer, meio louco, mas ótimo. Faz música.” “Estou ansioso para conhecer todos eles.” “Só espero que não se apaixone por minha irmã caçula, Lindsay.” “Ora, ora...” 10 “Ela é dois anos mais nova do que eu, brilhante e sensual. Todo mundo fica doido por ela.” “Puxa, parece uma coisa!”, exclamei. Connie me deu um tapa no rosto. “Bem, não se atreva a gostar mais dela do que de mim”, disse meio rindo, como se só assim pudesse expressar seu temor com graciosidade. “Se eu fosse você, não me preocuparia”, assegurei-lhe. “Promete?” “Vocês são assim tão competitivas?” “Não. Nos adoramos. Mas ela tem um rosto de anjo e um corpo que vou de contar! Puxou à mamãe. Sem falar num Q.I. que mais parece um placar de basquete, além de um fantástico senso de humor.” “Você é linda”, eu disse, beijando-a. Mas devo admitir que, pelo resto daquele dia, fantasias a respeito de Lindsay Chasen, uma gracinha de 21 anos, não saíam da minha cabeça. Meu Deus – pensei – e se Lindsay for mesmo essa maravilha? E se for tão irresistível como Connie a descreve? Será que vou resistir? Do jeito que sou, a fragrância do corpo e a incrível cabeça de uma garota chamada Lindsay (mas logo Lindsay!) não me desviarão de minha paixão por Connie em busca de algo ainda mais fresco? Afinal, só conhecia Connie há umas seis semanas e, embora tudo estivesse mais do que ótimo entre nós, não me sentia perdidamente apaixonado por ela. O fato é que Lindsay teria de ser qualquer coisa de inacreditável para perturbar a 11 torrente de luxúria que tinha me tornado um inquilino do paraíso naquele último mês e meio. Naquela noite, fiz amor com Connie mas, quando dormi, foi Lindsay quem habitou meus sonhos. Delícia de Lindsay, com seu cérebro de superdotada, rosto de estrela de cinema e charme de princesa. Virei, mexi e acordei de madrugada com um estranho sentimento de excitação e de algo proibido. Pela manhã minhas fantasias se acalmaram e, logo depois do café, Connie e eu fomos para o churrasco em Connecticut, levando vinhos e flores. Revezamo-nos na direção, ouvindo Vivaldi na FM e trocando nossas observações sobre as últimas novidades no caderno de artes e espetáculos do New York Times. E, então, momentos antes de cruzarmos o portão de entrada da propriedade dos Chasens, imaginei mais uma vez se não estava prestes a pirar pela tal irmã de Connie. “O namorado de Lindsay também foi convidado?”, perguntei, fazendo um falsete cheio de culpa. “Não, terminaram”, disse Connie. “Lindsay não os agüenta por mais de um mês. Eles ficam alucinados demais.” Hmmm – pensei –, como se não bastasse, a moça está disponível. Será que ela é mesmo mais incrível do que Connie? Achava difícil acreditar nisso, mas, por via das dúvidas, tratei de me preparar para qualquer eventualidade. Qualquer uma – exceto, naturalmente, a que me ocorreu naquela fria e azulada tarde de domingo. 12