ISBN: 978-85-61946-63-0 4, 5, 6 e 7 de setembro de 2012 – Teresina – Piauí – Brasil CONTOS NA CIDADE: TIPOS HUMANOS E ESPAÇOS URBANOS NO UNIVERSO FEMININO DE ROSA KAPILA Maria Aldenires de Sousa LIMA1 Universidade Federal do Piauí - UFPI Maria do Socorro Rios MAGALHÃES2 Universidade Estadual do Piauí - UESPI RESUMO Em sua narrativa Kapila descreve o ritmo dos indivíduos e da cidade, percorrendo suas existências em movimentos com atos que vão do perfeitamente cotidiano ao estranho, dos acontecimentos de uma vida vulgar, rotineira, a incursões pelo insólito, aventureiro e intenso. A superficialidade afetiva se desdobra em intensividades eróticas e a vida urbana passa a ser vivida como potência com múltiplas possibilidades, como promessa de liberdade e experimentação. A cidade dos contos de Kapila permite o reconhecimento de uma pluralidade dos fenômenos humanos. Se nos grandes centros, por um lado, são exibidos valores comuns, ofertados pelas mídias, poderes econômicos e políticos, em busca de uma uniformização de comportamentos e gostos, por outro, há uma tendência ou força inelutável para a formação de tribos urbanas, estruturalmente fragmentadas, formadas por identidades plurais e em permanente movimento. Nessa multiplicidade de tipos que habitam a narrativa de Kapila, as mulheres se destacam para reforçar uma invariabilidade nos seus contos, a partir desse recorte: a de que a natureza dos relacionamentos humanos nas grandes cidades se tornou campo inóspito para acomodar relações sólidas e inabaláveis e, assim como a sociedade de consumo que se ergueu ao seu redor, essas relações se movem com a mesma volatilidade das atividades consumistas. As necessidades humanas não têm agora como parâmetro o conjunto de necessidades articuladas, mas se guiam pelo ritmo estimulante dos sonhos criados pela propaganda e pela mídia, em que o caráter caprichoso, efêmero do desejo, em sua velocidade de mutação, é a linha que demarca os territórios e suas identidades. Palavras-chave: Espaço urbano. Escrita feminina. Rosa Kapila. ABSTRACT Kapila’s narrative describes the pace of the city and its individuals moving through their existences from the most common daily acts to the oddest ones. From an ordinary flat routine into an unusual, adventurous and intense dive. The 1 Graduada em Letras e mestra em Estudos Literários pela Universidade Federal do Piauí – UFPI. E-mail: [email protected]. 2 Doutora em Literatura pela PUC-RS, professora-convidada do mestrado em Letras da UFPI, professorapesquisadora do Núcleo de Estudos Literários e Gênero e do Núcleo de Estudos Piauienses da UESPI. Email: [email protected] affective shallowness unfolds itself in erotic intensiveness. Urban life is lived as a power with multiple possibilities, as a promise of freedom and experimentation. The city of Kapila’s short stories allows one to recognize a plurality of human phenomena. If in large urban centers, on the one hand, common values are displayed, offered by the media and economic/political powers, in pursuit of standardized behaviors and tastes, on the other hand, there is a trend or an ineluctable force for the formation of structurally fragmented urban tribes formed by plural identities in a constant shift. In such a multiplicity of characters that inhabit Kapila’s narrative women stand out to reinforce an invariability in their short stories, namely that the nature of human relationships in large cities has become an inhospitable place for steadfast solid relationships. As well as the consumer society which was built around them, these relationships change with the same volatility of consumerist activities. As for the human needs, there’s not a standardized set of articulated needs. Yet they are guided by the exciting pace of the dreams created by the propaganda and the media, where the fitful and ephemeral character of the desire is the line that bounds the territories and their identities. Keywords: Urban space. Feminine writing. Rosa Kapila. Nosso coração é inquieto. Santo Agostinho A cidade e os seres: corações partidos em territórios efêmeros José Louzeiro, referindo-se a Rosa Kapila3 em texto introdutório à obra Baião de dois (1983), diz que no Brasil e na América Latina muitos escritores, por falta de condições objetivas para outras realizações, mutilam seu talento recorrendo às histórias curtas como “única saída”. Logo, em seguida, afirma que o conto não pode ser considerado saída para ninguém, já que se trata de um gênero que traduz formas literárias específicas “que exigem do ficcionista uma extraordinária capacidade de síntese”, de pleno manejo da língua e de percepção do mundo, sendo o contista, assim como o roteirista de cinema, aquele que tem um time interior para saber o tempo preciso em que deve começar e terminar sua 3 Na obra BDD Rosa Kapila ainda assina Rosa Maria dos Santos. Anais do I Colóquio Internacional de Literatura e Gênero – Relações de Poder, Gênero e Representações Literárias 4, 5, 6 e 7 de setembro de 2012 – Teresina – Piauí – Brasil – ISBN: 978-85-61946-63-0 2 história. É, ainda, aquele que traz um poeta dentro de si e um universo regido por um ritmo particular: Rosa [...] possui essas qualidades. Fazendo seus contos com extrema singeleza, mas usando a palavra precisa, nas situações necessárias e, a par disso, utilizando-se das elipses de narração, dos cortes cinematográficos, ela confirma que o conto entre nós tem uma estrutura definida, não é mera invenção a oscilar nas mãos de todo aquele que se julga vanguardista. “Com quem dançam os personagens femininos deste baião?”, pergunta Maurício Salles, em apresentação do mesmo livro. De fato, o centro da narrativa de Rosa Kapila converge para as experiências vividas pelas mulheres em suas relações com o outro: filhos, namorados, maridos, amigos, mesmo que elas, às vezes, não tomem pelo próprio discurso a condução da narrativa e com frequência apareça uma voz que apresenta um outro ponto de vista, é, ainda, sob a égide de seus referentes femininos que a história é construída. Mas não há lugar para expectativas otimistas, nem mesmo quando Beatriz, personagem de Mar de vidro, da obra Primeiro manuscrito das tentações (1997), visita uma cartomante que ironicamente prenuncia: “sua sorte vai virar dentro de um navio [...]”. Narrado em primeira pessoa, o conto resvala para a completa descrença no amor a dois. Diferentemente da maioria dos personagens da autora, Beatriz é uma mulher frívola de classe alta que usufrui daquilo que o dinheiro pode dar, enquanto desfia a perda de um amor antes vigoroso em um casamento agora “alquebrado”. O fim do casamento, e ainda menos a pobreza em sequência, não significa liberdade de vida nova e feliz. Beatriz é a personificação da insatisfação e da procura. Também vem aumentar a galeria dos personagens em eterno estado de paixão, tumultuados, confusos e múltiplos de Rosa Kapila, em narrativas cujos acontecimentos circulam em torno da sexualidade feminina, da impossibilidade em transformar as relações homem-mulher, pela via do sexo e do afeto, em uma experiência sem angústia, mais estável e duradoura. Segundo Maurício Salles, “desejo e conto nascem juntos” na autora de Primeiro manuscrito das tentações, mas é sempre o desejo acompanhado das inquietações e armadilhas das quais, também, o desejo é feito. No conto que dá Anais do I Colóquio Internacional de Literatura e Gênero – Relações de Poder, Gênero e Representações Literárias 4, 5, 6 e 7 de setembro de 2012 – Teresina – Piauí – Brasil – ISBN: 978-85-61946-63-0 3 nome ao livro, Gioconda é uma estrangeira italiana que se comporta como de resto os personagens femininos de Rosa Kapila, nesse recorte, como estrangeiras na cidade, na relação homem-mulher e não se reconhecem no perfil estabelecido para elas de mulheres-mães ou mulheres-companheiras. O fato de Gioconda ser italiana só acentua o seu estranhamento diante do mundo que lhe está colocado, aumentando o seu desconforto ontológico e a sua margem de insurreição: “Está pensando que eu sou normal, consciente, lúcida?” (op. cit., p 121). Gioconda se rebela contra toda a expectativa comportamental, mesmo quando parece se enquadrar nos padrões da moral vigente, se reinventa em indignação contrariando o próprio desejo para destruir o que parecia estável e satisfatório. Toda a perspectiva de seu desejo a situa para fora de um centro cujo deslocamento experimenta seguidamente: Depois de minha viuvez inesperada só me restavam os prazeres temporários e bem escolhidos. Para isso entregara meu único filho aos avós paternos. Meu pimpolho me adorava como se adora a essas irmãzinhas que nos visitam nos finais de semana com laçarotes em caixas de bombons de chocolate. Nos dávamos bem e nunca fiz questão de ser mãe. (PMDT, 1997, p. 112). Em seus contos, Kapila retrata mulheres em processo de desterritorialização4, em que o processo de reorganização da sexualidade foge ao reinado materno e às caracterizações do essencialmente feminino para se deslocarem num espaço onde as relações homem-mulher não se consolidam, deixam de fazer sentido na expressão de um desencantamento sem retorno – na desilusão. As relações afetivo-eróticas dessas mulheres não mais se concentram em padrões fixos, de territórios bem marcados, com uma sequência de acontecimentos previsíveis que vão da paquera ao casamento, passando pelo namoro e noivado nesse entremeio, ou em eventual viuvez ao final. (cf. ROLNIK, 2007). Mesmo quando isso acontece, caso de Gioconda que perde o marido, o que vem a seguir é 4 A desterritorialização está relacionada à ausência de uma identidade fixa, a uma multiplicidade dinâmica de identificações funcionais: “[...] impossível não se perceber que não se é um – mas vários: pura dispersão, numa seqüência aleatória e ilimitada de territórios finitos e efêmeros. Além do mais, torna-se imprescindível, por uma questão de sobrevivência, ser capaz de reterritorializar-se, e muitas vezes.” (ROLNIK, 2007, p. 186). Anais do I Colóquio Internacional de Literatura e Gênero – Relações de Poder, Gênero e Representações Literárias 4, 5, 6 e 7 de setembro de 2012 – Teresina – Piauí – Brasil – ISBN: 978-85-61946-63-0 4 um verdadeiro desmanche, uma negação absoluta de sua forma de vida anterior. As recaídas que parecem ocorrer não passam de simulações. Em situações que deveriam ser extraordinárias, transformam-se em amantes, ou passam da condição de solteiras para a de solteironas, caso não se realizem as possibilidades para as quais elas estariam incumbidas pela sociedade: Essas três linhas de sucessão cronológica e lógica da instalação de suas alianças amorosas com os homens, essas três opções pelas quais suas intensidades tinham que passar necessariamente para ganhar sentido estão deixando de fazer sentido; desencantaram. (op. cit., 2007, p. 88). Na verdade o que acontece com Gioconda, Bruna, Magui, Beatriz e outros personagens femininos de Rosa Kapila é um acelerado processo de desterritorialização onde elas não se reconhecem e seus papéis não fazem mais nenhum sentido. Com o ritmo implacável das mudanças se fizeram destituir de seus territórios para onde não parece haver retorno. Mesmo os novos territórios conquistados carecem de uma efetividade mais plausível, pois estão sempre em risco de se desmanchar. Com Gioconda, o desencontro da comunicação afetiva com o filho se dá na mesma medida dos desencontros, e desencantos, amorosos. Seus parceiros servem mais à realização de uma relação instintiva que de prazer genuíno. Uma busca de entorpecimento que a libere da existência solitária, desenraizada e geograficamente situada no universo da cidade, tida como um ambiente especialmente dedicado à aventura, à deriva urbana, a um modo de viver predisposto a experiências de toda ordem: “A deriva numa cidade, vivida em grupo ou por alguém sozinho, permitia, já se vê, explorar um espaço determinado, espaço esse confrontado com possíveis e múltiplas estranhezas.”. (MAFFESOLI, 2001, p. 90). Essa cidade aparece apenas em seus contornos e é evocada em suas referências sonoras, arquitetônicas, nos lugares de referência, nas ações que prenunciam atos e características eminentemente urbanas de seus personagens: Eu querendo descer para tomar um táxi e ele pedindo, espera, espera. [...]. Enfim não entendi sua insistência e descemos juntos no elevador. Na rua pegou em minha mão e apertou. Nós não vamos para casa, me disse. Anais do I Colóquio Internacional de Literatura e Gênero – Relações de Poder, Gênero e Representações Literárias 4, 5, 6 e 7 de setembro de 2012 – Teresina – Piauí – Brasil – ISBN: 978-85-61946-63-0 5 “Vamos pra onde?”. Para uma boate de travestis, lésbicas, homens, gays e outros sexos. Sorri e adorei a idéia. Vamos sim, confirmei. (PMDT, 1997, p. 111-112). Isso ocorre no registro de personagens como os do conto Gata morcega, em que travestis, uma grávida solteira, Bruna, e uma amiga dark5 sem rumo, Magui, se misturam a policiais, num espaço em que a delegacia para a qual são levadas fica próxima a um cinema onde é exibido Sid e Nancy6, filme sobre a vida do antológico casal do punk7 inglês. A cidade narrada por Rosa Kapila está colocada, dessa maneira, como “uma corrente coletiva de desterritorialização em plena efervescência”, definindose como a cidade-piloto citada por Rolnik (2007), exibindo as características de uma urbe onde já se instalou o fenômeno da pós-modernidade e, portanto, se perceba “1º) que a revolução industrial seja um fato consumado; 2º) que ela já tenha englobado a cultura e que, sendo assim, os meios de comunicação de massa estejam em plena efervescência; 3º) que a tecnologia e a ciência tenham atingido uma velocidade de mutação vertiginosa (e não importa se são produzidas localmente ou importadas).” (ROLNIK, 2007, p. 83). Gioconda, em sua falsa incursão para o estabelecimento de uma identidade fixa, baseada nos estereótipos de conduta feminina, não consegue superar os movimentos de desterritorialização a que está exposta, para em seguida desistir do seu intento. O seu antigo território de mãe-esposa está irremediavelmente deslocado. A tentativa de Celso, seu companheiro, para trazê-la de volta a um 5 Os darks, assim como os punks, teriam uma atuação diferenciada da adotada pelas gerações jovens das décadas de 1960 e 1970. Com roupas e cabelos carregados de signos, o comportamento desses jovens, agora, ao contrário daqueles, estaria centrado no sentimento distópico. (v. BASTOS, Yuriallis Fernandes. Disponível em <http://www.cchla.ufpb.br/caos>). 6 O filme Sid e Nancy – o amor mata, de 1986, com direção de Alex Cox, retrata os últimos dias de vida de Sid Vicious, baixista da banda inglesa The Sex Pistols. O romance turbulento com Nancy Spungen era regado a heroína e álcool, terminando tragicamente. Gary Oldman e Chloe Webb interpretam o casal. (v. Sid e Nancy - o amor mata (Sid and Nancy). Disponível em < http://www.interfilmes.com>). 7 O punk inglês teria surgido em 1976, mais de uma década depois de sua deflagração nos Estados Unidos, em 1965, pelo som e comportamento da banda americana Velvet Underground. O estilo musical da banda teria sido batizado pelo jornalista Legs Mcneil, ex-editor das revistas Punk e Spin. Os punks, na época, eram influenciados pelo minimal, o beat e o existencialismo de tônica nostálgica. Na Inglaterra, a banda símbolo do punk era os Sex Pistols. (v. BASTOS, Y. F. Disponível em <http://www.cchla.ufpb.br/caos>). Anais do I Colóquio Internacional de Literatura e Gênero – Relações de Poder, Gênero e Representações Literárias 4, 5, 6 e 7 de setembro de 2012 – Teresina – Piauí – Brasil – ISBN: 978-85-61946-63-0 6 universo feminino que para ela não fazia mais sentido, nem por amor, foi frustrante e patética: Chegou em minha casa com mala e cuia dizendo que queria morar comigo. Você está louco, quis dizer, mas não tive coragem. Ele foi entrando. Na mesma manhã pediu para eu lavar sua roupa. Tomei um susto e quase falo você está míope, porque roupa nem minha eu lavo. Mas lavei a dele e assim se seguiram uma série de pedidos que não conseguia negar. Dizendo para mim enlouqueci de vez. [...]. De tarde, ao invés de ir ao cinema como costumava fazer todos os dias, ficava passando camisas. (PMDT, 1997, p. 113-114). Nessa tentativa de Gioconda estaria situada uma das três linhas 8de vida desenhadas para delinear o percurso do movimento de desterritorialização. É a segunda linha, a linha da simulação, em que se realiza um duplo traçado. No primeiro traçado se encontraria uma invisível e inconsciente produção de afetos que se estenderia até a visível e consciente formação de territórios. A linha de simulação estaria sempre prestes a movimentos de oscilação que provocariam o desabamento de territórios, levando à sensação de perda de sentido, de estranhamento, ao desencantamento e ao sentimento de profunda crise na subjetividade. Mas também ao encantamento, ao anseio por algo que faça sentido, que se traduza como sensação de familiaridade, de superação da angústia. O traçado da segunda linha sofreria de uma espécie de ambiguidade congênita: De qualquer maneira, pelo fato de a ambigüidade ser inerente a essa linha, e por isso mesmo insuperável, há sempre uma angústia pairando no ar. Angústia que tem uma face ontológica (medo de a vida se desagregar, de ela não conseguir perseverar; medo de morrer); uma face existencial (medo de a forma de exteriorização das intensidades perder credibilidade, ou seja, de certos mundos perderem legitimidade, 8 Rolnik traça, utilizando a terminologia de Gilles Deleuze, linhas de vida para delinear os movimentos do desejo. A primeira linha, a linha dos afetos, invisível e inconsciente, está relacionada ao “traçado contínuo e ilimitado, que emerge da atração e repulsa dos corpos, em seu poder de afetar e serem afetados. Mais do que linha ela é um fluxo que nasce ‘entre’ os corpos [...].” A segunda linha, a da simulação, tem um caráter ambíguo, em fluxo permanente dos movimentos de territorialização e desterritorialização. “Essa segunda linha, portanto, é double-face, uma face na intensidade (invisível, inconsciente e ilimitada) e outra na expressão (visível, consciente, finita). É nela que se opera a negociação entre o plano constituído pela primeira linha (a dos afetos que nascem entre os corpos, em sua atração e repulsa) e o plano traçado pela terceira linha (a dos territórios).” Essa linha, a de organização dos territórios, cria roteiros, “diretrizes de operacionalização para a consciência pilotar os afetos. Ela é finita, porque finita é a duração dos territórios e a funcionalidade de suas cartografias.” A partir da terceira linha é possível visualizar uma sequência de vida dos sujeitos, sua idade, etnia, profissão, sua identidade e, embora os territórios possam se desmanchar, a terceira linha evolui para um estado mais ou menos estável. Enquanto as duas primeiras linhas consistem em movimentos, a terceira proporciona um desenho em nosso campo de visão. (v. ROLNIK, 2007, p. 49-52). Anais do I Colóquio Internacional de Literatura e Gênero – Relações de Poder, Gênero e Representações Literárias 4, 5, 6 e 7 de setembro de 2012 – Teresina – Piauí – Brasil – ISBN: 978-85-61946-63-0 7 desabarem; medo de fracassar); uma face psicológica (medo de perder a forma tal como vivida pelo ego; medo de enlouquecer). (ROLNIK, 2007, p. 51). O que prevalece é uma relação permeada pela vulnerabilidade, pela possibilidade de subjugação, num modelo de união amorosa repleto de fissuras desconcertantes, em que os vínculos pessoais não mais se combinam para constituir algo duradouro, seguro, mas sim um permanente estado de fluidez e transitoriedade. A dinâmica dos atos engendrados por Gioconda era uma infeliz tentativa de reintegração dos fragmentos de sua “grande ilusão” para abolição da ambiguidade, numa estratégia inútil para dissipação da angústia. Sua inadequação não demora a explodir em ruptura sem volta: Quando acabei de jogar todas as roupas dele segurei uma garrafa de uísque e falei, aqui vai um brinde pro teu santo. Derramei um pouco do conteúdo que se perdeu no ar. “Manda a garrafa”. Ainda ouvi sua voz depois que me retirei da janela. Os homens eram as minhas grandes causas perdidas no Brasil. Parecia uma praga. Meu marido com tão pouco tempo de transferido, morto de um minuto pra outro. E eu, tentando as conquistas mais obscenas. Desordenada nas escolhas. Depois de Celso nenhum homem saberia mais meu endereço. (op. cit., p. 115). Ao abandonar o investimento na experiência de uma família enquadrada nos padrões considerados de normalidade, Gioconda abriu mão das ferramentas da rotina, das certezas de seu mundo cotidiano, para projetar-se numa reelaboração de sua vida, de modo a adequar-se a padrões que agora se apresentavam, para ela, como flexíveis e ajustáveis, à mercê apenas de suas próprias preferências não tuteladas, de seu próprio julgamento e deliberação. Rosa Kapila e as narrativas da desilusão urbana Uma atmosfera crescente de busca do prazer, da felicidade instantânea, era o estado de espírito que passava a dominar essas novas cidades da civilização industrial, cenário dos personagens de Kapila que, do ponto de vista do tempo histórico, apenas recentemente haviam entrado num processo de dissolução do passado agrário para um padrão cultural das sociedades urbanas. Anais do I Colóquio Internacional de Literatura e Gênero – Relações de Poder, Gênero e Representações Literárias 4, 5, 6 e 7 de setembro de 2012 – Teresina – Piauí – Brasil – ISBN: 978-85-61946-63-0 8 O empobrecimento da vida social, cultural e emocional é compensado pelo que oferece a indústria do entretenimento. O usufruto da diversão passa a ser o objetivo para o qual se direcionam os esforços do cotidiano e, “como elemento contingente dessas modificações complexas”, a cultura se modificou para dar lugar a um poderoso processo de funcionamento baseado na “comercialização, transformada num campo de investimentos, especulação e consumo como qualquer outro.” (SEVCENKO, 2007, p. 80). Esse aparato destinado a uma conduta de diversão e satisfação dos desejos acabou por direcionar, como se se tratasse de uma forma de contaminação, a aquisição de alguns parâmetros para as relações humanas nos espaços das grandes cidades. Isso aliado aos abalos promovidos pelos movimentos da contracultura, que ainda reverberavam no Brasil nas décadas de 1980 e 1990, cujas manifestações dirigiam-se ao questionamento dos modos de vida, especialmente nos campos do comportamento humano e das artes. Essas relações passaram a ficar possuídas por um caráter versátil, dinâmico, nas quais estariam enfatizados os movimentos de encantamento romântico, mas, por outro lado, deliberadamente, os de simulação, que ganham a condição de verdadeiros para depois, quase imediatamente, da noite para o dia, modificaremse, desvanecerem-se com a luz do sol. É o que acontece com Gioconda: Não trazia namorados para casa por vários motivos, inclusive pelo desprazer de olhar ao amanhecer para um rosto que me deixara satisfeita por muitas horas. De manhã, para mim, todos os prazeres se transformavam em coisas amargas e desesperadoras. Os atuais amantes não mostravam na voz a vontade da continuidade de um afeto (talvez eles não conhecessem esse sentimento). Os carinhos viravam gestos mecânicos e a claridade do dia desfazia tudo que fora preparado à noite. (PMDT, 1997, P. 113). Nas décadas de 1980 e 1990, as forças do capitalismo e sua política neoliberal haviam se apropriado dos movimentos e expressões da contracultura, incorporando suas manifestações de rebeldia, sua postura transgressora e experimental. A emancipação que vinha sendo feita ao longo dessas décadas, com a finalidade de emancipar-se do padrão de subjetividade da cultura dominante, acaba ficando indistinguível ao ser incorporada pelo novo regime do capitalismo Anais do I Colóquio Internacional de Literatura e Gênero – Relações de Poder, Gênero e Representações Literárias 4, 5, 6 e 7 de setembro de 2012 – Teresina – Piauí – Brasil – ISBN: 978-85-61946-63-0 9 cognitivo. (cf. ROLNIK, 2007). Nessa linha, as grandes cidades são as principais formadoras dessas novas subjetividades que encontram em seus espaços o lugar por excelência para si e para as mudanças que se atualizam constantemente nesses territórios. São grupos humanos que se identificam e se diferenciam nos espaços urbanos num movimento de contrários, onde ao mesmo tempo em que se estabelece o requisito básico de valorização do individualismo, de um indivíduo com particularidades específicas, esses mesmos indivíduos precisam ser despersonalizados e anônimos para se moverem “livremente” como mercadoria. Nesse caso, a vida urbana se processa como um fenômeno paradoxal que se reveste de uma uniformidade aparente e uma pluralidade de manifestações provenientes da realidade mundana, num movimento incessante de reorganização: As máscaras - gestos, jeitos e trejeitos, procedimentos, figuras, expressões, de rosto, palavras...- tornam-se obsoletas com uma rapidez incrível. A conseqüência disso é, por um lado, as pessoas se darem conta de que sua subjetividade é mutável, além de que é efeito de um processo que as ultrapassa: elas deixam de se conceber como unidades autônomas. Por outro lado, passam a ter que dedicar muito de seu tempo e seu dinheiro a tentar administrar esse processo: mal conseguem se arrumar de um lado e, de outro, já se desarrumam inteiramente. (ROLNIK, 2007, p. 87-88). A cidade também funcionaria como uma espécie de grande complexo de industrialização da cultura em seus diversos aspectos, modificando constantemente as paisagens, com uma “fartura de matéria de expressão como nunca se conheceu”.(grifo da autora). (ROLNIK, 2007, p. 88). Todo um sistema cultural se mobiliza para uma integração dos recursos envolvidos na difusão dos fenômenos culturais, promovendo o encontro de pessoas numa sincronia de movimentos em que cinema, rádio, televisão, teatro e outras formas de arte e comunicação estão prontos para ampliar ao máximo a celebração de imagens, costumes, moda, visões de mundo. Dessa forma: As pessoas estão, como nunca, expostas a encontros aleatórios, a afetar e serem afetadas de todos os lados e de todas as maneiras: a se desterritorializarem. E as intensidades que surgem desses movimentos Anais do I Colóquio Internacional de Literatura e Gênero – Relações de Poder, Gênero e Representações Literárias 4, 5, 6 e 7 de setembro de 2012 – Teresina – Piauí – Brasil – ISBN: 978-85-61946-63-0 10 dispõem de uma variedade incrível da matéria de expressão para simular-se. (op. cit., 2007, p. 89-90). O resultado é uma busca que parece sem tréguas, pois a cada vez que se parece estar assegurado de alguma autenticidade esta é perdida no próximo movimento, gerando uma constante desilusão. Na narrativa de Rosa Kapila esse território da desilusão é o espaço por excelência por onde circulam seus personagens, em especial, as mulheres. Essa narrativa da desilusão, na denominação de Renato Franco (1998), que tomou forma a partir das décadas de 1960 e 1970, continuou avançando nas décadas seguintes. Seria a representação e o reflexo dos valores e opressões da sociedade de consumo, “há um só tempo sofisticada e bárbara” (BOSI, 2006, p. 18) que deu luz a uma prosa de ficção em que a palavra surge liberta de aparatos morais, em que as expressões coloquiais propiciam uma narrativa “brutalista”, “[...] compulsiva; impura, se não obscena; direta, tocando o gestual; dissonante, quase ruído”. (op. cit., p. 18). É em meio a essa reformulação literária, tanto temática quanto estética, que se instaura a narrativa de Rosa Kapila, trazendo para si as reestruturações ocorridas naquelas últimas décadas em meio às mudanças políticas, econômicas e sociais de um Brasil que se queria moderno e avançado, sem, contudo, diminuir as grandes diferenças que se aprofundavam conforme avançava a inserção do país naquela nova sociedade de consumo. São esses personagens, conflituosos e divididos, “ressonâncias simbólicas” das contradições da cidade, que povoam a paisagem urbana de sua prosa. REFERÊNCIAS ÁLVAREZ, Adriana Carina Camacho. O olhar multifacetado dos Laços de família, de Clarice Lispector. Nau literária, Porto Alegre; Lisboa, n. 3, p. 200-213, jul./dez. 2006. Disponível em <http://www.nauliteraria.com>. Acesso em: 09 ago. 2008. BASTOS, Yuriallis Fernandes. Partidários do anarquismo, militantes da contracultura: um estudo sobre a influência do anarquismo na produção cultural anarco-punk. CAOS – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, n. 9, p. 284-433, set. 2005. Disponível em <http://www.cchl.ufpb.br/caos>. Acesso em: 04 ago. 2009. Anais do I Colóquio Internacional de Literatura e Gênero – Relações de Poder, Gênero e Representações Literárias 4, 5, 6 e 7 de setembro de 2012 – Teresina – Piauí – Brasil – ISBN: 978-85-61946-63-0 11 BOSI, Alfredo. O conto contemporâneo brasileiro. São Paulo: Cultrix, 2006. FRANCO, Renato. O itinerário político do romance pós-64: a festa. São Paulo: Editora UNESP, 1998. KAPILA, Rosa. Primeiro manuscrito das tentações. Rio de Janeiro: Âmbito Cultural Edições LTDA, 1997. MAFFESOLI, Michel. Sobre o nomadismo: vagabundagens pós-modernas. Tradução de Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Record, 2001. ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: UFRGS Editora; Editora Sulina, 2007. SANTOS, Rosa Maria dos. Baião de dois. Rio de Janeiro: Caetés, 1983. SEVCENKO, Nicolau. A corrida para o século XXI: no loop da montanha russa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. SID e Nancy – o amor mata. Direção: Alex Cox. Intérpretes: Gary Oldman, Chloe Webb, David Hayman, Debby Bishop, Courtney Love e outros. Roteiro: [s.n.]. Reino Unido: [s.n.], c1986.1 DVD (111 min.), widescreen, color. Disponível em <http://www.interfilmes.com>. Acesso em: 28. jul. 2009. Anais do I Colóquio Internacional de Literatura e Gênero – Relações de Poder, Gênero e Representações Literárias 4, 5, 6 e 7 de setembro de 2012 – Teresina – Piauí – Brasil – ISBN: 978-85-61946-63-0 12