ISBN: 978-85-61946-63-0
4, 5, 6 e 7 de setembro de 2012 – Teresina – Piauí – Brasil
CONTOS NA CIDADE: TIPOS HUMANOS E ESPAÇOS URBANOS NO
UNIVERSO FEMININO DE ROSA KAPILA
Maria Aldenires de Sousa LIMA1
Universidade Federal do Piauí - UFPI
Maria do Socorro Rios MAGALHÃES2
Universidade Estadual do Piauí - UESPI
RESUMO
Em sua narrativa Kapila descreve o ritmo dos indivíduos e da cidade, percorrendo
suas existências em movimentos com atos que vão do perfeitamente cotidiano ao
estranho, dos acontecimentos de uma vida vulgar, rotineira, a incursões pelo
insólito, aventureiro e intenso. A superficialidade afetiva se desdobra em
intensividades eróticas e a vida urbana passa a ser vivida como potência com
múltiplas possibilidades, como promessa de liberdade e experimentação. A cidade
dos contos de Kapila permite o reconhecimento de uma pluralidade dos
fenômenos humanos. Se nos grandes centros, por um lado, são exibidos valores
comuns, ofertados pelas mídias, poderes econômicos e políticos, em busca de uma
uniformização de comportamentos e gostos, por outro, há uma tendência ou força
inelutável para a formação de tribos urbanas, estruturalmente fragmentadas,
formadas por identidades plurais e em permanente movimento. Nessa
multiplicidade de tipos que habitam a narrativa de Kapila, as mulheres se
destacam para reforçar uma invariabilidade nos seus contos, a partir desse recorte:
a de que a natureza dos relacionamentos humanos nas grandes cidades se tornou
campo inóspito para acomodar relações sólidas e inabaláveis e, assim como a
sociedade de consumo que se ergueu ao seu redor, essas relações se movem com a
mesma volatilidade das atividades consumistas. As necessidades humanas não
têm agora como parâmetro o conjunto de necessidades articuladas, mas se guiam
pelo ritmo estimulante dos sonhos criados pela propaganda e pela mídia, em que
o caráter caprichoso, efêmero do desejo, em sua velocidade de mutação, é a linha
que demarca os territórios e suas identidades.
Palavras-chave: Espaço urbano. Escrita feminina. Rosa Kapila.
ABSTRACT
Kapila’s narrative describes the pace of the city and its individuals moving
through their existences from the most common daily acts to the oddest ones.
From an ordinary flat routine into an unusual, adventurous and intense dive. The
1
Graduada em Letras e mestra em Estudos Literários pela Universidade Federal do Piauí – UFPI. E-mail:
[email protected].
2
Doutora em Literatura pela PUC-RS, professora-convidada do mestrado em Letras da UFPI, professorapesquisadora do Núcleo de Estudos Literários e Gênero e do Núcleo de Estudos Piauienses da UESPI. Email: [email protected]
affective shallowness unfolds itself in erotic intensiveness. Urban life is lived as a
power with multiple possibilities, as a promise of freedom and experimentation.
The city of Kapila’s short stories allows one to recognize a plurality of human
phenomena. If in large urban centers, on the one hand, common values are
displayed, offered by the media and economic/political powers, in pursuit of
standardized behaviors and tastes, on the other hand, there is a trend or an
ineluctable force for the formation of structurally fragmented urban tribes formed
by plural identities in a constant shift. In such a multiplicity of characters that
inhabit Kapila’s narrative women stand out to reinforce an invariability in their
short stories, namely that the nature of human relationships in large cities has
become an inhospitable place for steadfast solid relationships. As well as the
consumer society which was built around them, these relationships change with
the same volatility of consumerist activities. As for the human needs, there’s not a
standardized set of articulated needs. Yet they are guided by the exciting pace of
the dreams created by the propaganda and the media, where the fitful and
ephemeral character of the desire is the line that bounds the territories and their
identities.
Keywords: Urban space. Feminine writing. Rosa Kapila.
Nosso coração é inquieto.
Santo Agostinho
A cidade e os seres: corações partidos em territórios efêmeros
José Louzeiro, referindo-se a Rosa Kapila3 em texto introdutório à obra
Baião de dois (1983), diz que no Brasil e na América Latina muitos escritores, por
falta de condições objetivas para outras realizações, mutilam seu talento
recorrendo às histórias curtas como “única saída”. Logo, em seguida, afirma que o
conto não pode ser considerado saída para ninguém, já que se trata de um gênero
que traduz formas literárias específicas “que exigem do ficcionista uma
extraordinária capacidade de síntese”, de pleno manejo da língua e de percepção
do mundo, sendo o contista, assim como o roteirista de cinema, aquele que tem
um time interior para saber o tempo preciso em que deve começar e terminar sua
3
Na obra BDD Rosa Kapila ainda assina Rosa Maria dos Santos.
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história. É, ainda, aquele que traz um poeta dentro de si e um universo regido por
um ritmo particular:
Rosa [...] possui essas qualidades. Fazendo seus contos com extrema
singeleza, mas usando a palavra precisa, nas situações necessárias e, a
par disso, utilizando-se das elipses de narração, dos cortes
cinematográficos, ela confirma que o conto entre nós tem uma estrutura
definida, não é mera invenção a oscilar nas mãos de todo aquele que se
julga vanguardista.
“Com quem dançam os personagens femininos deste baião?”, pergunta
Maurício Salles, em apresentação do mesmo livro. De fato, o centro da narrativa
de Rosa Kapila converge para as experiências vividas pelas mulheres em suas
relações com o outro: filhos, namorados, maridos, amigos, mesmo que elas, às
vezes, não tomem pelo próprio discurso a condução da narrativa e com frequência
apareça uma voz que apresenta um outro ponto de vista, é, ainda, sob a égide de
seus referentes femininos que a história é construída.
Mas não há lugar para expectativas otimistas, nem mesmo quando Beatriz,
personagem de Mar de vidro, da obra Primeiro manuscrito das tentações (1997),
visita uma cartomante que ironicamente prenuncia: “sua sorte vai virar dentro de
um navio [...]”. Narrado em primeira pessoa, o conto resvala para a completa
descrença no amor a dois. Diferentemente da maioria dos personagens da autora,
Beatriz é uma mulher frívola de classe alta que usufrui daquilo que o dinheiro
pode dar, enquanto desfia a perda de um amor antes vigoroso em um casamento
agora “alquebrado”. O fim do casamento, e ainda menos a pobreza em sequência,
não significa liberdade de vida nova e feliz. Beatriz é a personificação da
insatisfação e da procura. Também vem aumentar a galeria dos personagens em
eterno estado de paixão, tumultuados, confusos e múltiplos de Rosa Kapila, em
narrativas cujos acontecimentos circulam em torno da sexualidade feminina, da
impossibilidade em transformar as relações homem-mulher, pela via do sexo e do
afeto, em uma experiência sem angústia, mais estável e duradoura.
Segundo Maurício Salles, “desejo e conto nascem juntos” na autora de
Primeiro manuscrito das tentações, mas é sempre o desejo acompanhado das
inquietações e armadilhas das quais, também, o desejo é feito. No conto que dá
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nome ao livro, Gioconda é uma estrangeira italiana que se comporta como de resto
os personagens femininos de Rosa Kapila, nesse recorte, como estrangeiras na
cidade, na relação homem-mulher e não se reconhecem no perfil estabelecido para
elas de mulheres-mães ou mulheres-companheiras.
O fato de Gioconda ser italiana só acentua o seu estranhamento diante do
mundo que lhe está colocado, aumentando o seu desconforto ontológico e a sua
margem de insurreição: “Está pensando que eu sou normal, consciente, lúcida?”
(op. cit., p 121). Gioconda se rebela contra toda a expectativa comportamental,
mesmo quando parece se enquadrar nos padrões da moral vigente, se reinventa
em indignação contrariando o próprio desejo para destruir o que parecia estável e
satisfatório. Toda a perspectiva de seu desejo a situa para fora de um centro cujo
deslocamento experimenta seguidamente:
Depois de minha viuvez inesperada só me restavam os prazeres
temporários e bem escolhidos. Para isso entregara meu único filho aos
avós paternos. Meu pimpolho me adorava como se adora a essas
irmãzinhas que nos visitam nos finais de semana com laçarotes em caixas
de bombons de chocolate. Nos dávamos bem e nunca fiz questão de ser
mãe. (PMDT, 1997, p. 112).
Em
seus
contos,
Kapila
retrata
mulheres
em
processo
de
desterritorialização4, em que o processo de reorganização da sexualidade foge ao
reinado materno e às caracterizações do essencialmente feminino para se
deslocarem num espaço onde as relações homem-mulher não se consolidam,
deixam de fazer sentido na expressão de um desencantamento sem retorno – na
desilusão.
As relações afetivo-eróticas dessas mulheres não mais se concentram em
padrões fixos, de territórios bem marcados, com uma sequência de acontecimentos
previsíveis que vão da paquera ao casamento, passando pelo namoro e noivado
nesse entremeio, ou em eventual viuvez ao final. (cf. ROLNIK, 2007). Mesmo
quando isso acontece, caso de Gioconda que perde o marido, o que vem a seguir é
4
A desterritorialização está relacionada à ausência de uma identidade fixa, a uma multiplicidade dinâmica de
identificações funcionais: “[...] impossível não se perceber que não se é um – mas vários: pura dispersão,
numa seqüência aleatória e ilimitada de territórios finitos e efêmeros. Além do mais, torna-se imprescindível,
por uma questão de sobrevivência, ser capaz de reterritorializar-se, e muitas vezes.” (ROLNIK, 2007, p. 186).
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um verdadeiro desmanche, uma negação absoluta de sua forma de vida anterior.
As recaídas que parecem ocorrer não passam de simulações. Em situações que
deveriam ser extraordinárias, transformam-se em amantes, ou passam da
condição de solteiras para a de solteironas, caso não se realizem as possibilidades
para as quais elas estariam incumbidas pela sociedade:
Essas três linhas de sucessão cronológica e lógica da instalação de suas
alianças amorosas com os homens, essas três opções pelas quais suas
intensidades tinham que passar necessariamente para ganhar sentido
estão deixando de fazer sentido; desencantaram. (op. cit., 2007, p. 88).
Na verdade o que acontece com Gioconda, Bruna, Magui, Beatriz e outros
personagens
femininos
de
Rosa
Kapila
é
um
acelerado
processo
de
desterritorialização onde elas não se reconhecem e seus papéis não fazem mais
nenhum sentido. Com o ritmo implacável das mudanças se fizeram destituir de
seus territórios para onde não parece haver retorno. Mesmo os novos territórios
conquistados carecem de uma efetividade mais plausível, pois estão sempre em
risco de se desmanchar.
Com Gioconda, o desencontro da comunicação afetiva com o filho se dá na
mesma medida dos desencontros, e desencantos, amorosos. Seus parceiros servem
mais à realização de uma relação instintiva que de prazer genuíno. Uma busca de
entorpecimento
que
a
libere
da
existência
solitária,
desenraizada
e
geograficamente situada no universo da cidade, tida como um ambiente
especialmente dedicado à aventura, à deriva urbana, a um modo de viver
predisposto a experiências de toda ordem: “A deriva numa cidade, vivida em
grupo ou por alguém sozinho, permitia, já se vê, explorar um espaço determinado,
espaço esse confrontado com possíveis e múltiplas estranhezas.”. (MAFFESOLI,
2001, p. 90).
Essa cidade aparece apenas em seus contornos e é evocada em suas
referências sonoras, arquitetônicas, nos lugares de referência, nas ações que
prenunciam atos e características eminentemente urbanas de seus personagens:
Eu querendo descer para tomar um táxi e ele pedindo, espera, espera.
[...]. Enfim não entendi sua insistência e descemos juntos no elevador. Na
rua pegou em minha mão e apertou. Nós não vamos para casa, me disse.
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“Vamos pra onde?”. Para uma boate de travestis, lésbicas, homens, gays
e outros sexos. Sorri e adorei a idéia. Vamos sim, confirmei. (PMDT, 1997,
p. 111-112).
Isso ocorre no registro de personagens como os do conto Gata morcega, em
que travestis, uma grávida solteira, Bruna, e uma amiga dark5 sem rumo, Magui, se
misturam a policiais, num espaço em que a delegacia para a qual são levadas fica
próxima a um cinema onde é exibido Sid e Nancy6, filme sobre a vida do antológico
casal do punk7 inglês.
A cidade narrada por Rosa Kapila está colocada, dessa maneira, como
“uma corrente coletiva de desterritorialização em plena efervescência”, definindose como a cidade-piloto citada por Rolnik (2007), exibindo as características de
uma urbe onde já se instalou o fenômeno da pós-modernidade e, portanto, se
perceba “1º) que a revolução industrial seja um fato consumado; 2º) que ela já
tenha englobado a cultura e que, sendo assim, os meios de comunicação de massa
estejam em plena efervescência; 3º) que a tecnologia e a ciência tenham atingido
uma velocidade de mutação vertiginosa (e não importa se são produzidas
localmente ou importadas).” (ROLNIK, 2007, p. 83).
Gioconda, em sua falsa incursão para o estabelecimento de uma identidade
fixa, baseada nos estereótipos de conduta feminina, não consegue superar os
movimentos de desterritorialização a que está exposta, para em seguida desistir
do seu intento. O seu antigo território de mãe-esposa está irremediavelmente
deslocado. A tentativa de Celso, seu companheiro, para trazê-la de volta a um
5
Os darks, assim como os punks, teriam uma atuação diferenciada da adotada pelas gerações jovens das
décadas de 1960 e 1970. Com roupas e cabelos carregados de signos, o comportamento desses jovens, agora,
ao contrário daqueles, estaria centrado no sentimento distópico. (v. BASTOS, Yuriallis Fernandes.
Disponível em <http://www.cchla.ufpb.br/caos>).
6
O filme Sid e Nancy – o amor mata, de 1986, com direção de Alex Cox, retrata os últimos dias de vida de
Sid Vicious, baixista da banda inglesa The Sex Pistols. O romance turbulento com Nancy Spungen era regado
a heroína e álcool, terminando tragicamente. Gary Oldman e Chloe Webb interpretam o casal. (v. Sid e
Nancy - o amor mata (Sid and Nancy). Disponível em < http://www.interfilmes.com>).
7
O punk inglês teria surgido em 1976, mais de uma década depois de sua deflagração nos Estados Unidos,
em 1965, pelo som e comportamento da banda americana Velvet Underground. O estilo musical da banda
teria sido batizado pelo jornalista Legs Mcneil, ex-editor das revistas Punk e Spin. Os punks, na época, eram
influenciados pelo minimal, o beat e o existencialismo de tônica nostálgica. Na Inglaterra, a banda símbolo
do punk era os Sex Pistols. (v. BASTOS, Y. F. Disponível em <http://www.cchla.ufpb.br/caos>).
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universo feminino que para ela não fazia mais sentido, nem por amor, foi
frustrante e patética:
Chegou em minha casa com mala e cuia dizendo que queria morar
comigo. Você está louco, quis dizer, mas não tive coragem. Ele foi
entrando. Na mesma manhã pediu para eu lavar sua roupa. Tomei um
susto e quase falo você está míope, porque roupa nem minha eu lavo.
Mas lavei a dele e assim se seguiram uma série de pedidos que não
conseguia negar. Dizendo para mim enlouqueci de vez. [...]. De tarde, ao
invés de ir ao cinema como costumava fazer todos os dias, ficava
passando camisas. (PMDT, 1997, p. 113-114).
Nessa tentativa de Gioconda estaria situada uma das três linhas 8de vida
desenhadas para delinear o percurso do movimento de desterritorialização. É a
segunda linha, a linha da simulação, em que se realiza um duplo traçado. No
primeiro traçado se encontraria uma invisível e inconsciente produção de afetos
que se estenderia até a visível e consciente formação de territórios. A linha de
simulação estaria sempre prestes a movimentos de oscilação que provocariam o
desabamento de territórios, levando à sensação de perda de sentido, de
estranhamento, ao desencantamento e ao sentimento de profunda crise na
subjetividade. Mas também ao encantamento, ao anseio por algo que faça sentido,
que se traduza como sensação de familiaridade, de superação da angústia. O
traçado da segunda linha sofreria de uma espécie de ambiguidade congênita:
De qualquer maneira, pelo fato de a ambigüidade ser inerente a essa
linha, e por isso mesmo insuperável, há sempre uma angústia pairando
no ar. Angústia que tem uma face ontológica (medo de a vida se
desagregar, de ela não conseguir perseverar; medo de morrer); uma face
existencial (medo de a forma de exteriorização das intensidades perder
credibilidade, ou seja, de certos mundos perderem legitimidade,
8
Rolnik traça, utilizando a terminologia de Gilles Deleuze, linhas de vida para delinear os movimentos do
desejo. A primeira linha, a linha dos afetos, invisível e inconsciente, está relacionada ao “traçado contínuo e
ilimitado, que emerge da atração e repulsa dos corpos, em seu poder de afetar e serem afetados. Mais do que
linha ela é um fluxo que nasce ‘entre’ os corpos [...].” A segunda linha, a da simulação, tem um caráter
ambíguo, em fluxo permanente dos movimentos de territorialização e desterritorialização. “Essa segunda
linha, portanto, é double-face, uma face na intensidade (invisível, inconsciente e ilimitada) e outra na
expressão (visível, consciente, finita). É nela que se opera a negociação entre o plano constituído pela
primeira linha (a dos afetos que nascem entre os corpos, em sua atração e repulsa) e o plano traçado pela
terceira linha (a dos territórios).” Essa linha, a de organização dos territórios, cria roteiros, “diretrizes de
operacionalização para a consciência pilotar os afetos. Ela é finita, porque finita é a duração dos territórios e
a funcionalidade de suas cartografias.” A partir da terceira linha é possível visualizar uma sequência de vida
dos sujeitos, sua idade, etnia, profissão, sua identidade e, embora os territórios possam se desmanchar, a
terceira linha evolui para um estado mais ou menos estável. Enquanto as duas primeiras linhas consistem em
movimentos, a terceira proporciona um desenho em nosso campo de visão. (v. ROLNIK, 2007, p. 49-52).
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desabarem; medo de fracassar); uma face psicológica (medo de perder a
forma tal como vivida pelo ego; medo de enlouquecer). (ROLNIK, 2007,
p. 51).
O que prevalece é uma relação permeada pela vulnerabilidade, pela
possibilidade de subjugação, num modelo de união amorosa repleto de fissuras
desconcertantes, em que os vínculos pessoais não mais se combinam para
constituir algo duradouro, seguro, mas sim um permanente estado de fluidez e
transitoriedade. A dinâmica dos atos engendrados por Gioconda era uma infeliz
tentativa de reintegração dos fragmentos de sua “grande ilusão” para abolição da
ambiguidade, numa estratégia inútil para dissipação da angústia. Sua
inadequação não demora a explodir em ruptura sem volta:
Quando acabei de jogar todas as roupas dele segurei uma garrafa de
uísque e falei, aqui vai um brinde pro teu santo. Derramei um pouco do
conteúdo que se perdeu no ar. “Manda a garrafa”. Ainda ouvi sua voz
depois que me retirei da janela. Os homens eram as minhas grandes
causas perdidas no Brasil. Parecia uma praga. Meu marido com tão
pouco tempo de transferido, morto de um minuto pra outro. E eu,
tentando as conquistas mais obscenas. Desordenada nas escolhas. Depois
de Celso nenhum homem saberia mais meu endereço. (op. cit., p. 115).
Ao abandonar o investimento na experiência de uma família enquadrada
nos padrões considerados de normalidade, Gioconda abriu mão das ferramentas
da rotina, das certezas de seu mundo cotidiano, para projetar-se numa
reelaboração de sua vida, de modo a adequar-se a padrões que agora se
apresentavam, para ela, como flexíveis e ajustáveis, à mercê apenas de suas
próprias preferências não tuteladas, de seu próprio julgamento e deliberação.
Rosa Kapila e as narrativas da desilusão urbana
Uma atmosfera crescente de busca do prazer, da felicidade instantânea, era
o estado de espírito que passava a dominar essas novas cidades da civilização
industrial, cenário dos personagens de Kapila que, do ponto de vista do tempo
histórico, apenas recentemente haviam entrado num processo de dissolução do
passado agrário para um padrão cultural das sociedades urbanas.
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O empobrecimento da vida social, cultural e emocional é compensado pelo
que oferece a indústria do entretenimento. O usufruto da diversão passa a ser o
objetivo para o qual se direcionam os esforços do cotidiano e, “como elemento
contingente dessas modificações complexas”, a cultura se modificou para dar
lugar a um poderoso processo de funcionamento baseado na “comercialização,
transformada num campo de investimentos, especulação e consumo como
qualquer outro.” (SEVCENKO, 2007, p. 80).
Esse aparato destinado a uma conduta de diversão e satisfação dos desejos
acabou por direcionar, como se se tratasse de uma forma de contaminação, a
aquisição de alguns parâmetros para as relações humanas nos espaços das grandes
cidades. Isso aliado aos abalos promovidos pelos movimentos da contracultura,
que ainda reverberavam no Brasil nas décadas de 1980 e 1990, cujas manifestações
dirigiam-se ao questionamento dos modos de vida, especialmente nos campos do
comportamento humano e das artes.
Essas relações passaram a ficar possuídas por um caráter versátil, dinâmico,
nas quais estariam enfatizados os movimentos de encantamento romântico, mas,
por outro lado, deliberadamente, os de simulação, que ganham a condição de
verdadeiros para depois, quase imediatamente, da noite para o dia, modificaremse, desvanecerem-se com a luz do sol. É o que acontece com Gioconda:
Não trazia namorados para casa por vários motivos, inclusive pelo
desprazer de olhar ao amanhecer para um rosto que me deixara satisfeita
por muitas horas. De manhã, para mim, todos os prazeres se
transformavam em coisas amargas e desesperadoras. Os atuais amantes
não mostravam na voz a vontade da continuidade de um afeto (talvez
eles não conhecessem esse sentimento). Os carinhos viravam gestos
mecânicos e a claridade do dia desfazia tudo que fora preparado à noite.
(PMDT, 1997, P. 113).
Nas décadas de 1980 e 1990, as forças do capitalismo e sua política
neoliberal haviam se apropriado dos movimentos e expressões da contracultura,
incorporando suas manifestações de rebeldia, sua postura transgressora e
experimental. A emancipação que vinha sendo feita ao longo dessas décadas, com
a finalidade de emancipar-se do padrão de subjetividade da cultura dominante,
acaba ficando indistinguível ao ser incorporada pelo novo regime do capitalismo
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cognitivo. (cf. ROLNIK, 2007). Nessa linha, as grandes cidades são as principais
formadoras dessas novas subjetividades que encontram em seus espaços o lugar
por excelência para si e para as mudanças que se atualizam constantemente nesses
territórios.
São grupos humanos que se identificam e se diferenciam nos espaços
urbanos num movimento de contrários, onde ao mesmo tempo em que se
estabelece o requisito básico de valorização do individualismo, de um indivíduo
com particularidades específicas, esses mesmos indivíduos precisam ser
despersonalizados e anônimos para se moverem “livremente” como mercadoria.
Nesse caso, a vida urbana se processa como um fenômeno paradoxal que se
reveste de uma uniformidade aparente e uma pluralidade de manifestações
provenientes
da
realidade
mundana,
num
movimento
incessante
de
reorganização:
As máscaras - gestos, jeitos e trejeitos, procedimentos, figuras,
expressões, de rosto, palavras...- tornam-se obsoletas com uma rapidez
incrível. A conseqüência disso é, por um lado, as pessoas se darem conta
de que sua subjetividade é mutável, além de que é efeito de um processo
que as ultrapassa: elas deixam de se conceber como unidades autônomas.
Por outro lado, passam a ter que dedicar muito de seu tempo e seu
dinheiro a tentar administrar esse processo: mal conseguem se arrumar
de um lado e, de outro, já se desarrumam inteiramente. (ROLNIK, 2007,
p. 87-88).
A cidade também funcionaria como uma espécie de grande complexo de
industrialização
da
cultura
em
seus
diversos
aspectos,
modificando
constantemente as paisagens, com uma “fartura de matéria de expressão como
nunca se conheceu”.(grifo da autora). (ROLNIK, 2007, p. 88).
Todo um sistema cultural se mobiliza para uma integração dos recursos
envolvidos na difusão dos fenômenos culturais, promovendo o encontro de
pessoas numa sincronia de movimentos em que cinema, rádio, televisão, teatro e
outras formas de arte e comunicação estão prontos para ampliar ao máximo a
celebração de imagens, costumes, moda, visões de mundo. Dessa forma:
As pessoas estão, como nunca, expostas a encontros aleatórios, a afetar e
serem afetadas de todos os lados e de todas as maneiras: a se
desterritorializarem. E as intensidades que surgem desses movimentos
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dispõem de uma variedade incrível da matéria de expressão para
simular-se. (op. cit., 2007, p. 89-90).
O resultado é uma busca que parece sem tréguas, pois a cada vez que se
parece estar assegurado de alguma autenticidade esta é perdida no próximo
movimento, gerando uma constante desilusão. Na narrativa de Rosa Kapila esse
território da desilusão é o espaço por excelência por onde circulam seus
personagens, em especial, as mulheres.
Essa narrativa da desilusão, na denominação de Renato Franco (1998), que
tomou forma a partir das décadas de 1960 e 1970, continuou avançando nas
décadas seguintes. Seria a representação e o reflexo dos valores e opressões da
sociedade de consumo, “há um só tempo sofisticada e bárbara” (BOSI, 2006, p. 18)
que deu luz a uma prosa de ficção em que a palavra surge liberta de aparatos
morais, em que as expressões coloquiais propiciam uma narrativa “brutalista”,
“[...] compulsiva; impura, se não obscena; direta, tocando o gestual; dissonante,
quase ruído”. (op. cit., p. 18).
É em meio a essa reformulação literária, tanto temática quanto estética, que
se instaura a narrativa de Rosa Kapila, trazendo para si as reestruturações
ocorridas naquelas últimas décadas em meio às mudanças políticas, econômicas e
sociais de um Brasil que se queria moderno e avançado, sem, contudo, diminuir as
grandes diferenças que se aprofundavam conforme avançava a inserção do país
naquela nova sociedade de consumo. São esses personagens, conflituosos e
divididos, “ressonâncias simbólicas” das contradições da cidade, que povoam a
paisagem urbana de sua prosa.
REFERÊNCIAS
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de Clarice Lispector. Nau literária, Porto Alegre; Lisboa, n. 3, p. 200-213, jul./dez.
2006. Disponível em <http://www.nauliteraria.com>. Acesso em: 09 ago. 2008.
BASTOS, Yuriallis Fernandes. Partidários do anarquismo, militantes da
contracultura: um estudo sobre a influência do anarquismo na produção cultural
anarco-punk. CAOS – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, n. 9, p. 284-433, set. 2005.
Disponível em <http://www.cchl.ufpb.br/caos>. Acesso em: 04 ago. 2009.
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FRANCO, Renato. O itinerário político do romance pós-64: a festa. São Paulo: Editora
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