IGREJA LUTERANA
Revista Semestral de Teologia
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IGREJA LUTERANA
SEMINÁRIO
CONCÓRDIA
Diretor
Gerson Luis Linden
Professores
Acir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luis Linden,
Leopoldo Heimann, Norberto Heine (CAAPP), Paulo Gerhard Pietzsch, Paulo
Proske Weirich, Paulo Wille Buss, Raul Blum, Vilson Scholz
Professores Eméritos
Donaldo Schüler, Paulo F. Flor
IGREJA LUTERANA
ISSN 0103-779X
Revista semestral de Teologia publicada em junho e novembro pela Faculdade
de Teologia do Seminário Concórdia, da Igreja Evangélica Luterana do Brasil
(IELB), São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil.
Conselho Editorial
Paulo Wille Buss (Editor), Paulo Proske Weirich (Editor Homilético)
Assistência Administrativa
Nara Coelho e Cárin Fester
A Revista Igreja Luterana está indexada em Bibliografia Bíblica Latino-Americana e Old Testament Abstracts.
Os originais dos artigos serão devolvidos quando acompanhados de envelope
com endereço e selado.
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CORRESPONDÊNCIA
Revista Igreja Luterana
Seminário Concórdia
Caixa Postal 202
93001-970 – São Leopoldo/RS
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e-mail: [email protected]
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ÍNDICE
IN MEMORIAM
REV. DR. ARI LANGE, PASTOR E PROFESSOR DA IGREJA
05
Gerson L. Linden
ARTIGOS
07
2008 - ANO DA BÍBLIA
Rudi Zimmer
A PARÁBOLA DO PAI AMOROSO E DOS FILHOS
PERDIDOS (LC 15.11-32) SOB A PERSPECTIVA DA
ANÁLISE DA NARRATIVA
21
Júlio Jandt e Vilson Scholz
PROCEDENDO DE ACORDO COM MATEUS 18:
UMA INTERPRETAÇÃO DE MATEUS 18.15-20
À LUZ DO SEU CONTEXTO
55
Jeffrey A. Gibbs e Jeffrey Kloha – Trad. Anselmo Graff
AUXÍLIOS HOMILÉTICOS
79
IGREJA LUTERANA
Volume 67 – Junho de 2008 – Número 1
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IGREJA LUTERANA
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IN MEMORIAM
REV. DR. ARI LANGE,
PASTOR E PROFESSOR DA IGREJA
Gerson L. Linden1
O ano letivo do Seminário Concórdia em 2008 iniciou com fatos que
fazem parte de cada início de ano acadêmico: novos alunos chegando,
formandos retornando de seus estágios, professores e funcionários
preparados para mais uma jornada em função da preparação dos alunos para o santo ofício do ministério.
Um fato, porém, foi diferente. No culto de abertura do ano letivo,
houve uma nota de tristeza, mas não desprovida de esperança. Falecera no ano que passou o Rev. Dr. Ari Lange, professor emérito do
Seminário Concórdia e com longa história de serviço no reino de Deus,
especialmente nas congregações da IELB, em sua administração central e na educação teológica.
Uma característica do pastor, professor, diretor, doutor Ari Lange foi
a multiplicidade de funções que desempenhou como servo de Cristo
em Sua Igreja. Pastor, professor, diretor, executivo da IELB, mestre e
doutor.
O pastor Ari Lange nasceu no dia 27 de novembro de 1942 em
Joaçaba, SC. Queria ser pastor. Foi para o Seminário Concórdia, onde
formou-se em Teologia no ano de 1967. Recebeu o chamado para atuar no santo ministério em Cruz Alta, RS, onde serviu o povo de Deus
com a palavra e os sacramentos entre 1968 e 1975. No entanto, o
pastor Ari tinha uma visão aberta para o mundo para o qual Cristo o
enviara como seu ministro. Por isso procurou conhecer um pouco mais
da sociedade, as pessoas, enfim, o mundo para o qual o evangelho
precisa ser anunciado. Formou-se em Estudos Sociais no ano de 1973.
O amor pelo estudo teológico se mostrou na continuidade dos seus
estudos, na Universidade de Erlangen, na Alemanha. Em 1981, obteve
o título de Mestre em Teologia por aquela instituição. Neste período
estava servindo a Deus em outra congregação, agora no Mato Grosso
do Sul, na cidade de Campo Grande, entre os anos de 1975 e 1983.
Em 1983, a Igreja Evangélica Luterana do Brasil abria a Escola Superior de Teologia, do Instituto Concórdia de São Paulo. Entre os três
1
O Rev. Prof. Gerson L. Linden é diretor do Seminário Concórdia.
5
IGREJA LUTERANA
primeiros professores estava Ari Lange, agora professor de Teologia,
responsável por preparar os futuros arautos de Cristo. Nesta escola
atuou por vinte anos, onde também foi diretor geral.
Na Igreja Evangélica Luterana do Brasil, o professor Ari Lange atuou
nos anos de 1990 a 1994 como coordenador nacional do programa de
evangelização e mordomia (PEM) e também como secretário executivo
do departamento de ensino entre os anos de 1992 e 1994. Ao final do
período retornou ao magistério teológico no Instituto Concórdia de
São Paulo, como professor e diretor.
Em 2003, o Concordia Theological Seminary, de Fort Wayne, EUA,
reconheceu seu trabalho em favor da missão e educação teológica da
Igreja concendendo-lhe o título de “Doctor of Divinity”. Também no
ano de 2003, tornou-se pastor emérito da IELB e foi professor convidado na Faculdade Luterana de Teologia, em São Bento do Sul, SC.
O Dr. Ari Lange era casado com a senhora Sueli Lange e seu matrimônio foi abençoado por Deus com os filhos Márcio, Talvane e Candice.
Deus chamou este seu filho e servo Ari para junto de Si em 13 de
setembro de 2007 em Curitiba, PR, sendo sepultado no dia seguinte
em Guarapuava, PR.
O Seminário Concórdia, através de sua direção, professores, funcionários e alunos, lamenta a perda do seu professor emérito e deseja
à família os votos da contínua e graciosa presença do Senhor. Cristo
ressurreto dentro os mortos é a nossa esperança e certeza da ressurreição de cada um dos nossos queridos que por Jesus foram acolhidos
no batismo e nele depositaram sua confiança.
Esposo, pai, pastor, professor, executivo, diretor, doutor Ari Lange
... um homem a quem Deus abençoou e por meio de quem abençoou
muitos. O Seminário Concórdia reconhece com gratidão a Deus os dons,
talentos e oportunidades dados pelo Senhor da Igreja a este seu servo. E louva a Deus pelas bênçãos que derramou sobre seu povo, a
quem o Dr. Ari Lange serviu, pregando, aconselhando, orientando, ensinando e dirigindo.
“Bem-aventurados os mortos que, desde agora, morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para que descansem das suas fadigas, pois as
suas obras os acompanham” (Ap 14.13).
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ARTIGOS
2008 – ANO DA BÍBLIA
1
Rudi Zimmer2
2008 – Ano da Bíblia
Sociedade Bíblica do Brasil
Lema: “A Bíblia: um livro para todos”
Isaías 40.8: “A palavra do nosso Deus dura para sempre”.
Isaías 40.6-8:
6
Alguém diz: “Anuncie a mensagem!”
“O que devo anunciar?” — eu pergunto.
“Anuncie que todos os seres humanos são como a erva do campo
e toda a força deles é como uma flor do mato.
7
A erva seca, e as flores caem
quando o sopro do SENHOR passa por elas.
De fato, o povo é como a erva.
8
A erva seca, a flor cai,
mas a palavra do nosso Deus dura para sempre”.
INTRODUÇÃO
Senhores Diretores do Seminário Concórdia e do Curso de Teologia
da ULBRA, professores e estudantes, muito estimadas irmãs e irmãos,
colegas e amigos em Cristo:
É um grande prazer voltar ao Seminário Concórdia, depois de muitos anos, para dirigir-lhes a palavra, representando a Sociedade Bíblica do Brasil (SBB). A IELB tem estado ao lado da SBB em praticamente
toda a existência da SBB, seja por meio de representantes em sua
Diretoria, seja por meio de pessoas cedidas para a realização de tarefas especiais, ou seja, para ocupar determinadas funções. Em outras
palavras, a IELB tem uma tradição de dedicação à causa da Bíblia. Por
isso, é mais que justo que a SBB se faça presente em eventos da IELB,
Aula Magna dos cursos de Teologia do Seminário Concórdia e da ULBRA, proferida no
Seminário Concórdia de São Leopoldo, RS, no dia 13 de março de 2008.
2
O Rev. Dr. Rudi Zimmer é Diretor Executivo da Sociedade Bíblica do Brasil.
1
7
IGREJA LUTERANA
sendo este da “Aula Magna” particularmente interessante, pois nos
coloca em contato direto com aqueles que, em poucos anos, serão os
líderes de opinião dentro da IELB.
Anunciou-se no “Esquema Eletrônico” do Seminário Concórdia que
eu iria “fundamentar teologicamente o ‘Ano da Bíblia’ promovido pela
SBB” (Ano 3, no 1, 2008). Não sei se podemos fazer algo assim, isto é,
fundamentar teologicamente uma celebração como a do “Ano da Bíblia”. A não ser, talvez, fazendo referências a passagens bíblicas como
a de Josué 24, ou melhor, 1Samuel 7.12 (Ebenézer: Até aqui o SENHOR
nos ajudou).
Queremos, isto sim, inicialmente apresentar as razões históricas
que motivaram ou fundamentaram a decisão da SBB de celebrar 2008
como o “Ano da Bíblia”. Por outro lado, queremos, também, destacar o
texto bíblico escolhido para nos orientar nesta celebração. Por fim,
queremos apontar para a importância da Bíblia, uma importância que é
merecedora de uma celebração como a do “Ano da Bíblia”.
I
“2008 – Ano da Bíblia.” Vocês talvez se perguntem: Mas por que
razão celebrar o ano de 2008 como “Ano da Bíblia”? A que propósito?
Gostaria, portanto, para começar, de lembrar alguns pontos do contexto que informou a decisão da Diretoria da SBB de celebrar 2008
como o Ano da Bíblia.
1. Anos cheios, em geral, são motivo de celebração. No matrimônio,
por exemplo, celebramos Bodas de Prata aos 25 anos e Bodas de Ouro
aos 50. Igrejas celebram datas especiais. Faz pouco - foi em 2004 - a
IELB celebrou o seu Centenário. Assim, as Sociedades Bíblicas, que,
neste momento, são um total de 145 Sociedades Bíblicas Nacionais no
mundo, quando chegam a um número cheio de anos de atividades
num país (10, 20, 30, etc.), celebram essa data de modo especial. Por
exemplo, também em 2004, celebramos os 200 anos de fundação da
primeira Sociedade Bíblica em todo o mundo, a Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira.
A SBB chega, em 2008, mais precisamente em 10 de junho, aos 60
anos de existência. É praticamente o tempo de uma vida humana! Isso
certamente merece uma celebração especial. Temos aí, portanto, um
dos elementos que nos fizeram propor à Diretoria da SBB celebrar 2008
como o Ano da Bíblia.
2. O outro fato, importante e inspirador, dessa celebração teve lugar dois séculos atrás. Sem entrar nos detalhes da história, foi em
1808 que chegou ao Brasil D. João VI, o príncipe regente de Portugal.
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2008 – ANO DA BÍBLIA
Ele, na verdade, fugia da ameaça dos franceses, pois havia assinado
um acordo de cooperação com os ingleses. D. João VI partiu, com toda
a sua corte, em 29 de novembro de 1807, mas só chegou a Salvador,
Bahia, em 22 de janeiro de 1808.
Uma semana depois de ter aportado em Salvador, no dia 28 de
janeiro de 1808, D. João VI decretou a abertura dos portos brasileiros
às nações amigas. Além de o próprio D. João VI ter trazido ao Brasil um
exemplar da Bíblia de Gutenberg, o Brasil agora estava aberto para a
Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira, que havia sido fundada havia 4 anos. Imediatamente, no mesmo ano de 1808, essa Sociedade
Bíblica se animou a produzir Escrituras Sagradas em língua portuguesa e a enviá-las para a colônia portuguesa nas Américas. Os primeiros
12.000 exemplares do Novo Testamento em português só chegaram
em 1809, mas foram editados e produzidos em 1808, especificamente
para o Brasil. Eis mais uma razão para celebrar 2008, junto com os 60
anos da SBB, como o Ano da Bíblia. Em 2008, faz 200 anos que os
portos do Brasil estão abertos para receber as Escrituras Sagradas de
forma sistemática, contínua e ininterrupta e a primeira grande tiragem
de Escrituras foi produzida para o Brasil.
3. Finalmente, gostaria de destacar alguns números. Desde a fundação da SBB, em 1948, até o final de 2007, sem contar o que foi
distribuído, no Brasil, por outras Sociedades Bíblicas antes da fundação da SBB, o número de Escrituras distribuídas no Brasil pela SBB é o
seguinte:
Bíblias:
Novos Testamentos:
Porções Bíblicas:
Seleções Bíblicas:
Total:
66.909.798 (mais de 1/3 da população atual)
13.330.980
104.689.383
3.923.543.254
4.108.473.415
Será que esse número de Escrituras Sagradas fez alguma diferença na população brasileira? Certamente que sim.
Não há como explicar o desenvolvimento das missões estrangeiras
que iniciaram o trabalho missionário no Brasil, principalmente a partir
do século XIX, sem o apoio da distribuição das Escrituras, realizada
pelos heróicos colportores que se embrenharam selva a dentro na direção de todos os rincões brasileiros.
Não há como explicar o crescimento, em número e qualidade, das
igrejas que resultaram dessas missões, sem o trabalho de apoio às
igrejas, exercido principalmente pelas Sociedades Bíblicas: primeiramente, a Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira e a Sociedade Bíbli-
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IGREJA LUTERANA
ca Americana, ambas com escritórios no Brasil desde meados do século XIX, e, depois, desde 1948, pela Sociedade Bíblica do Brasil, como
também por outras editoras de Bíblias. Estas proveram-lhes Bíblias,
Novos Testamentos e Porções Bíblicas. Ao mesmo tempo, elas abasteceram as igrejas com o Antigo Testamento em hebraico e o Novo Testamento em grego e outras obras de apoio ao estudo dos originais,
para a formação teológica de seus ministros e missionários.
Não há como explicar o surgimento e o grande crescimento das
igrejas autóctones brasileiras, pentecostais, carismáticas e neopentecostais, sem o suprimento abundante das Escrituras Sagradas,
nestas últimas décadas, nas traduções mais utilizadas e amadas pelo
povo cristão. Não há como não elogiar o seu empenho em entregar as
Escrituras Sagradas ao seu povo e aos neo-convertidos.
Enfim, o número estupendo de distribuição das Escrituras Sagradas, obviamente, fez e faz uma grande diferença na população brasileira. No entanto, pergunto: Estamos satisfeitos? Deveria tal abundância das Escrituras Sagradas ter produzido maior transformação, ou
estar produzindo maior transformação?
Olhando a vida do povo brasileiro de modo geral, desde o que se
chama de elite intelectual, passando pela classe política, pela classe
abastada, pela classe média, até chegar ao povo das periferias de
nossas cidades e do interior brasileiro: será que o que vemos em termos de padrões de vida espiritual, com claros reflexos morais e éticos
e definitiva influência na vida social; olhando isso, será que estamos
satisfeitos?
Acredito que concordamos todos em dizer que não estamos satisfeitos. Ou melhor, certamente Deus não está satisfeito e espera mais.
Bem, eis por que a Diretoria e a Assembléia Administrativa da SBB
decidiram apoiar a celebração de 2008 como o “Ano da Bíblia”. O que
se pretende com isso é movimentar o povo cristão, em lembrança de
datas festivas, a promover e incentivar a leitura e o estudo da Bíblia
Sagrada pessoalmente, em família, nas igrejas e em eventos públicos.
A SBB quer promover mais do que a distribuição; ela quer engajar as
pessoas com a Bíblia de tal maneira que elas sejam profundamente
transformadas e, em conseqüência, as suas vidas pessoal, social e
comunitária sejam impactadas com o poder transformador do Triúno
Deus, Pai, Filho e Espírito Santo.
II
E, para orientar essa celebração, foi escolhido o texto de Isaías,
capítulo 40, versículo 8 (a segunda parte): “A PALAVRA DO NOSSO DEUS
10
2008 – ANO DA BÍBLIA
DURA PARA SEMPRE”. Também aqui, quero destacar o contexto da escolha desta passagem como orientadora da celebração do Ano da Bíblia.
1. Isaías 40 é, sem dúvida, um capítulo majestoso. Isso é percebido por qualquer leitor atento da Bíblia. O livro de Isaías pode ser dividido em três grandes partes. A primeira consiste dos capítulos 1 a 39,
que contém profecias dirigidas a Judá e Jerusalém e contra as nações
estrangeiras, no contexto do séc. 8º a.C., época em que o império
assírio iniciou a sua expansão para o Sul, ameaçando também o povo
de Deus. O que, porém, preocupava o profeta Isaías não era a ameaça
assíria, mas o pecado do povo e a sua desobediência a Deus. No final
dessa parte, no cap. 39, o próprio rei Ezequias, em vez de confiar no
SENHOR, recebe enviados babilônicos, representantes de um povo ainda inexpressivo, e mostra-lhes todos os tesouros do Templo e dos
seus palácios, o que leva o profeta Isaías a revelar da parte do SENHOR a seguinte mensagem: “O SENHOR Todo-Poderoso diz que vai
chegar o tempo em que tudo aquilo que há no seu palácio, isto é, tudo
o que os seus antepassados juntaram até hoje, será levado para a
Babilônia. Não ficará nada. Alguns dos seus próprios filhos serão levados para trabalhar no palácio do rei da Babilônia” (Is 39.5-7).
Isso forma o contexto da segunda parte de Isaías, que vai do capítulo 40 ao 55. Antevendo a desgraça que haveria de cair sobre o povo
de Deus, da parte desses mesmos babilônios, o sofrimento a que seriam submetidos, seja na conquista da terra de Judá, seja o seu cativeiro em terras babilônicas, o profeta Isaías é levado por Deus a anunciar-lhes o consolo de Deus. Portanto, nesta segunda parte, o contexto
histórico antevisto é o do final do período do Exílio Babilônico.
Antevendo o arrependimento do povo, mas também o desalento, a
desesperança no cativeiro, o profeta Isaías, inspirado por Deus, dirige-lhes uma poderosa mensagem de consolo. Percebe-se, no contexto, que o povo havia concluído:
- que Deus os havia abandonado;
- até, porque, talvez, era mais fraco que os deuses da Babilônia;
- ou, pelo menos, que Deus não se importava mais com eles.
Antevendo esse sentimento de abandono, de desalento e de desesperança, o profeta anuncia a boa nova de que o sofrimento do
povo estava chegando ao fim. Sim, por isso, começa dizendo:
- “Consolem, consolem o meu povo ...
- digam-lhes que já terminou a sua escravidão
- e que os seus pecados foram perdoados” (40.1-2).
A pergunta que devemos fazer é: com que base deveria o povo se
consolar? Com que base poderiam estar seguros do perdão de seus
11
IGREJA LUTERANA
pecados? A base chave é esta: “A PALAVRA DO NOSSO DEUS DURA
PARA SEMPRE”. E essa base, usando como metáfora a construção civil,
está firmada em três estacas:
A primeira diz respeito a Deus com poder soberano e universal;
tema este que é repetidamente enfatizado nesta segunda parte de
Isaías, principalmente nos trechos que falam de sua incomparabilidade,
como Isaías 40.18-19 e 25:
Com quem Deus pode ser comparado?
Com o que ele se parece? [...]
Com quem vocês vão comparar o Santo Deus?
Quem é igual a ele?
Em outras palavras, não há nada e ninguém ou outro deus qualquer que possa ser comparado a ele; Deus é incomparável. Por isso
vem o convite na doxologia de 42.10:
“Cantem ao SENHOR uma nova canção!
Que ele seja louvado no mundo inteiro:
pelos que navegam nos mares,
pelas criaturas que vivem nas águas do mar
e pelos povos de todas as nações distantes”.
A segunda estaca em que se firma a base está bem próxima da
primeira, na verdade, decorre da primeira: ela diz respeito à ênfase
em Deus como Criador de todas as coisas. Vejamos Isaías 40.25-26:
“Com quem vocês vão comparar o Santo Deus?
Quem é igual a ele?
Olhem para o céu e vejam as estrelas.
Quem foi que as criou?
Foi aquele que as faz sair em ordem como um exército;
ele sabe quantas são
e chama cada uma pelo seu nome.
Sua força e o seu poder são tão grandes,
que nenhuma delas deixa de responder”.
E a terceira estaca, intimamente ligada às primeiras duas, é a ênfase em Deus como Redentor: aquele que tem o soberano poder universal é o Criador, e é também o Senhor e Salvador. Vejam-se Is 45.22-23:
“Povos do mundo inteiro
voltem para mim, e eu os salvarei
pois eu sou Deus, e não há nenhum outro.
Fiz um juramento no meu próprio nome;
o que eu digo é verdade
e nunca deixará de acontecer.
Juro que todos se ajoelharão diante de mim
e prometerão ser fiéis a mim”.
12
2008 – ANO DA BÍBLIA
Portanto, a palavra que procede desse nosso Deus pode ser e, de
fato, é base segura para o consolo e o perdão: “A palavra do nosso
Deus dura para sempre”. E, para ressaltar o que isso significa, Deus
orienta o profeta a comparar a Palavra de Deus com o ser humano:
“Anuncie que todos os seres humanos são como a erva do campo
e toda a força deles é como uma flor do mato.
A erva seca, e as flores caem
quando o sopro do SENHOR passa por elas.
De fato, o povo é como a erva.
A erva seca, a flor cai,
mas a palavra do nosso Deus dura para sempre” (40.6-8).
Lá no fim do exílio, mais do que nunca eles teriam experimentado
que o ser humano é como erva e flor, que ali estão por pouco tempo;
até a sua força e beleza duram muito pouco. Por isso mesmo, os verbos hebraicos usados para descrever essa realidade são os assim chamados, ‘estativos’, isto é, que descrevem simplesmente como as coisas são, sem precisar provar; e isso se repete duas vezes:
“A erva seca (
), e as flores caem (
)
quando o sopro do SENHOR passa por elas.
De fato, o povo é como a erva.
A erva seca (
), a flor cai (
)”.
Precisaríamos nós de prova para a fragilidade do ser humano? Creio
que todos nós já vimos e acompanhamos algum ente querido nosso,
seja o pai, a mãe, talvez até um filho ou a esposa ou o marido, que era
uma pessoa tão cheia de vida, exuberante, alegre, mas, de repente,
murchou e secou, como a erva do campo ou a flor do mato.
Em contraste com isso, e esta é a grande ênfase do profeta Isaías, A
palavra do SENHOR dura para sempre. Aqui, novamente, precisamos
chamar atenção para a forma verbal hebraica utilizada: “A palavra do
SENHOR dura para sempre” – yakum (
) é um Imperfeito, que, por
sua vez, descreve o que é verdade para todos os tempos, e isso se
traduz, em Português, pelo presente: “está de pé”, “permanece”, “subsiste”, “dura”: A palavra de Deus está de pé/ (ela) dura para sempre:
- Nada pode destruir a Palavra de Deus, ou contrapor-se à Palavra
de Deus; ela é uma palavra eficaz, uma palavra com poder; assim foi
no passado; é no presente; e será no futuro.
- Ela, afinal, procede do Deus Todo-Poderoso, incomparável em seu
poder e força universal, mais do que nunca demonstrado em sua criação.
- E, mais do que isso, incomparável em usar a sua força e o seu
poder por amor à justiça, isto é, para salvar os perdidos, os oprimidos,
os cegos e os fracos. Na verdade, o amor ou a graça de Deus é precisamente o uso do seu ilimitado poder para descer à sociedade huma-
vbey
beyv
benl
benl
~Wqy
13
IGREJA LUTERANA
na e salvar aqueles que não têm salvador, como se lê no versículo 10:
“O SENHOR Deus vem vindo cheio de força com o seu braço poderoso,
ele conseguiu a vitória. E ele traz consigo o povo que ele salvou”.
Assim como o Imperfeito do verbo hebraico enfatiza, o poder salvador da Palavra de Deus está de pé, isto é, dura para sempre, também
hoje, amanhã e para todos os tempos. Eis por que tomamos esta passagem para orientar a celebração do “Ano da Bíblia”.
Händel, no oratório “O Messias”, abre com as gloriosas palavras de
Isaías 40.1: “Consolai, consolai o meu povo, diz o vosso Deus”. Sem
dúvida, Händel começou assim o seu mais famoso oratório, porque
estava convicto que a palavra do nosso Deus está de pé/dura/permanece para sempre.
Com essa mesma convicção, celebramos o “Ano da Bíblia” e ressaltamos para o povo cristão e todo o povo brasileiro o valor eterno da
Palavra de Deus.
Mas Isaías não diz “a palavra da Bíblia...”; ele, porém, diz: “a palavra do nosso Deus dura para sempre”. Estaria a Bíblia incluída na expressão “a palavra do nosso Deus”? Afinal de contas, vamos celebrar,
sob a orientação dessas palavras de Isaías o “Ano da BÍBLIA”! Sim, a
Bíblia é a Palavra de Deus! Essa implicação fica evidente quando as
palavras de Isaías são citadas pelo apóstolo Pedro, em sua Primeira
Carta, versículos 22-25:
“Agora que vocês já se purificaram pela obediência à verdade e
agora que já têm um amor sincero pelos irmãos na fé, amem uns
aos outros com todas as forças e com um coração puro. Pois vocês,
pela viva e eterna palavra de Deus, nasceram de novo como filhos
de um Pai que é imortal e não de pais mortais. Como dizem as
Escrituras Sagradas: (citação de Is 40.6-8) ‘Todos os seres humanos são como a erva do campo, e a grandeza deles é como a flor
da erva. A erva seca, e a flor cai, mas a palavra do Senhor dura
para sempre. (E o apóstolo conclui:) Esta é a palavra que o evangelho trouxe para vocês”.
E é óbvio que Pedro se referia ao evangelho bíblico, das Escrituras
Sagradas. Portanto, quando se fala que “a palavra do nosso Deus
dura para sempre,” inclui-se indubitavelmente a palavra bíblica, a Bíblia Sagrada.
III
E, agora, dois aspectos sobre o valor da Bíblia Sagrada como merecedora da celebração do “Ano da Bíblia”, não só em 2008, mas em
todos os anos.
14
2008 – ANO DA BÍBLIA
Esse tema, por certo, é inesgotável e, na verdade, é para ser explorado no decorrer da celebração do “Ano da Bíblia”. Da minha parte,
gostaria de ressaltar apenas dois aspectos relacionados ao valor da
Bíblia como palavra de Deus que dura para sempre. A relevância desses dois aspectos pode logo ser identificado.
1. O valor da Bíblia consiste no fato de que ela pode ou, até,
deve ser traduzida para todas as línguas e linguagens.
A Bíblia nasceu para ser traduzida. Vejam isto:
- O Antigo Testamento foi escrito em hebraico, mas já ali há trechos
em aramaico (acima de tudo, em Esdras e Daniel).
- Além disso, em Neemias 8, onde se relata um grande momento de
renovação do povo de Deus movido pela leitura da palavra de Deus, o
que se diz? Esdras abriu o livro e, a partir daí, diz o texto: “Eles iam
lendo o Livro da Lei e traduzindo; e davam explicações para que o
povo entendesse o que era lido” (Ne 8.8). Por que isso? É que o povo
já não falava mais o hebraico; assim, foi feita uma tradução livre para
o aramaico, a fim de que “o povo entendesse o que era lido”. O resultado foi um grande avivamento!
- E, na época de Jesus, o que temos? Jesus obviamente falava em
aramaico e, nessa língua, conduziu o seu ministério: pregou o Sermão
do Monte em aramaico; ensinou por parábolas, em aramaico. No entanto, em que língua nos foi transmitido o conteúdo dos seus
ensinamentos? Em grego!!! Por quê? Porque a fé cristã se destinava a
todos os povos, e o império predominante na época falava grego.
- Além disso, o Antigo Testamento é citado abundantemente no
Novo Testamento. De onde foram tiradas essas citações? Do Antigo
Testamento hebraico? Não! Predominantemente, da tradução grega,
conhecida como Septuaginta. Por exemplo, quando nosso texto de
Isaías 40 é citado pelo apóstolo Pedro em sua Primeira Carta, essa
citação foi tirada da tradução da Septuaginta, por isso o seu palavreado até é um pouco diferente.
Portanto, a Bíblia nasceu para ser traduzida. Ela sempre foi e deve
ser traduzida. E, como a língua está sempre mudando, a Bíblia deve
ser traduzida e revisada constantemente, a fim de que as novas gerações possam também entender o que é lido.
Essa, na verdade, é a razão de ser principal do movimento das
Sociedades Bíblicas. Quando surgiu a primeira Sociedade Bíblica, ela
foi fundada precisamente para isso: para que cada pessoa no mundo
tivesse acesso à Escritura Sagrada, “em uma linguagem que ela pudesse entender e a um preço que ela pudesse pagar”.
Essa, também, foi e ainda é a razão principal para a fundação da
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IGREJA LUTERANA
Sociedade Bíblica do Brasil, em 10 de junho de 1948, no templo da
Primeira Igreja Batista, no Rio de Janeiro.
Mas o que há de especial no fato de que a Bíblia pode e, até, deve
ser traduzida para todas as línguas e linguagens? Por que isso ressalta
o seu valor para nós e para todas as pessoas, no Brasil e no mundo?
Vejam, as religiões não-cristãs não têm traduções aceitáveis e autorizadas dos seus livros sagrados. Não existem Comissões de Tradução desses livros. Por exemplo, não existe uma tradução autorizada
do Al-Corão, livro sagrado dos muçulmanos. Por quê? Porque, para os
muçulmanos, o único texto autorizado do seu livro está em árabe, a
língua do profeta Maomé. Portanto, para efetivamente ser um religioso muçulmano, é preciso aprender a língua do deus do profeta Maomé.
Isso se repete em todas as religiões e seitas não-cristãs: para chegar se ao seu deus, é preciso aprender e absorver a sua língua.
Qual é a diferença, na fé cristã? Enquanto nas não-cristãs é preciso
subir a deus, inclusive aprendendo a falar a sua língua, o Deus cristão
desce e vem ao nosso encontro: o nosso Deus desce e vem ao encontro
da pessoa mais culta e da pessoa mais humilde, mais simples, mais
iletrada, até ao encontro dos cegos, com a Bíblia em Braile ou da Bíblia
em Áudio, e dos surdos, com a Bíblia em Libras. Em outras palavras, o
Deus cristão vem falar a nossa linguagem. Esta, na verdade, é a essência da graça e do amor de Deus: Ele desce, ele vem e se identifica com
cada um de nós em nossas necessidades mais profundas, inclusive falando a nossa linguagem, a fim de nos redimir e levar com ele para as
glórias celestiais. De modo que insistir em querer perpetuar traduções
com linguagem ultrapassada, que não falam mais de forma compreensível conosco, é trabalhar contra a própria natureza de Deus e da Bíblia.
Não foi isso, em última análise, a missão e a obra de Jesus? Por
isso ele é chamado pelo Evangelista João de “A Palavra” que “se tornou um ser humano e morou entre nós, cheia de amor e de verdade. E
nós vimos a revelação da sua natureza divina, natureza que ele recebeu como Filho único do Pai”. Sim, Jesus é a Palavra encarnada de
Deus, por meio de quem Deus criou o mundo, redimiu o mundo da
eterna perdição e entrega isso singelamente a cada um em sua língua
e linguagem.
Assim, as Sociedades Bíblicas, ao traduzirem a Bíblia para as mais
diferentes línguas e linguagens, exercem um ministério redentor, pois
levam a poderosa e redentora palavra de Deus ao encontro de todas
as pessoas, a fim de que, tocadas e transformadas, elas vivam uma
vida para Deus e com Deus.
E isso me leva ao segundo aspecto que gostaria de ressaltar em
relação ao valor da Bíblia, e este é o seguinte:
16
2008 – ANO DA BÍBLIA
2. O valor da Bíblia está no fato de que a palavra bíblica não só
promete, mas efetivamente realiza a transformação.
“A palavra de Deus dura para sempre.” Na mesma linha do que diz
este verso de Isaías 40, temos Isaías 55.10 e 11:
“A chuva e a neve caem do céu
e não voltam até que tenham regado a terra,
fazendo as plantas brotarem, crescerem
e produzirem sementes para serem plantadas
e darem alimento para as pessoas.
Assim também é a minha palavra;
ela não volta para mim sem nada,
mas faz o que me agrada fazer
e realiza tudo o que eu prometo”.
Como diz Jesus: “O céu e a terra desaparecerão, mas as minhas
palavras ficarão para sempre” (Mt 24.35). Em outras palavras, o que
elas dizem são verdade e se cumprem.
O grande modelo e padrão encontramos no relato da criação de
Gênesis. Isto é assim porque, procedendo da própria boca de Deus, a
palavra de Deus, ao ser proferida, desencadeia, ou faz irromper, o próprio processo de realização de seu enunciado. Por isso, a palavra de
Deus é ação; o termo “palavra”, na expressão “palavra de Deus” é o
que, na Bíblia, mais se aproxima da palavra “história”. Vocês se recordam do nome dos livros de Crônicas, no Antigo Testamento? divrê
hayamim (
) – literalmente, “As Palavras dos Dias”, ou,
melhor, “As Palavras dos Dias (Passados)”, ou seja, a história do povo
de Deus desde a criação até a época do autor. O mesmo se aplica a
toda a palavra de Deus: o que Deus diz, através dos profetas,
evangelistas e apóstolos, é tão certo e seguro que, se já não é história, certamente vai virar história.
Eis, portanto, o valor da Bíblia. Na celebração do Ano da Bíblia, em
2008, o desafio é levar o povo cristão e, por extensão, o povo brasileiro a redescobrir e descobrir, no contato com a Bíblia, o poder transformador e renovador da palavra viva de Deus.
Traduções não faltam. Há traduções para todos os níveis de compreensão e todas as preferências, desde traduções clássicas, eruditas, até traduções voltadas à compreensão da maioria absoluta do
povo brasileiro, como a Nova Tradução na Linguagem de Hoje. Há a
Bíblia em Braile, para deficientes visuais; há porções da Bíblia em LIBRAS, para os deficientes auditivos; e há a Bíblia em Áudio, para quem
ou não sabe ou não quer ler.
Se e quando ocorrer o contato com a Bíblia, com compreensão, fé e
devoção:
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17
IGREJA LUTERANA
- certamente haverá transformação e renovação pessoal;
- haverá transformação e renovação das famílias;
- haverá transformação e renovação das igrejas;
- haverá transformação e renovação das comunidades em que
vivemos, com a promoção da paz, da harmonia e do amor entre as
pessoas, com reflexos decisivos para o bem-estar do nosso país.
Aqui, hoje, fica o desafio para o envolvimento de toda a IELB na
celebração do Ano da Bíblia; e por que não esperar que os Centros
Acadêmicos do Seminário Concórdia e da ULBRA pensem numa ação?!
Essencialmente, o que se espera? Espera-se que todos os membros
da IELB sejam desafiados a ler a Bíblia. Quanto a nós, da SBB, até para
dar o exemplo, desafiamos a todos os 450 funcionários a lerem a Bíblia, e isso, em alguns casos, virou uma verdadeira competição. Portanto, propaguem, convidem, desafiem a todos a ler a Bíblia. E comuniquem-nos a respeito disso, para que possamos publicar como exemplo a seguir.
Por outro lado, fica o desafio para uma participação ampla dos membros da IELB no projeto “A Bíblia Manuscrita”, um dos pontos altos da
celebração do Ano da Bíblia. Durante quatro meses, pelo menos 900.000
pessoas, de todas as idades, regiões e confissões religiosas visitarão
um “Scriptorium” em uma cidade brasileira para participar na cópia à
mão de versículos das Sagradas Escrituras, que resultará em 29 Bíblias na língua portuguesa, com milhares de caligrafias de pessoas famosas e anônimas, de todas as idades, níveis de educação e opções
religiosas.
Entre os objetivos, destacamos:
a) A promoção da Bíblia na agenda cultural da sociedade brasileira,
sensibilizando a população e a mídia, com o objetivo de fazer chegar a
mensagem da Bíblia a 184 milhões de brasileiros.
b) A valorização da preservação e transmissão da cultura.
c) O envolvimento direto de cerca de 900.000 pessoas na revisitação
pela escrita de um dos textos mais importantes da nossa civilização,
matriz da nossa identidade nacional e fonte de inspiração espiritual.
d) A realização de uma ação pedagógica que promova a leitura e o
conhecimento, mobilizando inúmeros agentes da cultura, educação e
espiritualidade numa ampla reflexão sobre as Sagradas Escrituras e a
sua contribuição para a paz e a solidariedade.
e) Estímulo à contribuição financeira voluntária para ampliar o alcance das Bíblias em Braile e em Áudio, para deficientes visuais, atendidos pelo programa social “Inclusão do Deficiente Visual” desenvolvido pela Sociedade Bíblica do Brasil. Será solicitado de cada copista
uma doação mínima de R$ 1,00 por versículo copiado.
18
2008 – ANO DA BÍBLIA
CONCLUSÃO
Celebremos, portanto, neste ano de 2008, o Ano da Bíblia!
- O seu apoio nos honra.
- O seu apoio honra a Deus.
- O seu apoio, com a sua presença aqui, confirmando o seu
envolvimento na celebração do Ano da Bíblia, já é um testemunho e
uma afirmação do valor e da importância da Bíblia em suas vidas.
- É este testemunho e afirmação que precisam tomar conta de todo
o povo cristão e do povo brasileiro, no Ano da Bíblia!
Amém e obrigado!
19
IGREJA LUTERANA
20
A PARÁBOLA DO PAI AMOROSO E DOS
FILHOS PERDIDOS (LC 15.11-32) SOB A
PERSPECTIVA DA ANÁLISE DA NARRATIVA
Júlio Jandt e Vilson Scholz1
Quando se trata da “parábola do filho pródigo”, não raras vezes
leitores da Bíblia e pregadores perdem o interesse pela história tão
logo chegam à festa convocada para celebrar a volta do filho mais
novo (v. 24). Além de esquecer metade da parábola, muitos tendem a
isolá-la do seu contexto, como se ela não tivesse nada a ver com o
Evangelho de Lucas em seu todo.
Diante disto, o presente estudo analisa aquela que preferimos denominar de A Parábola do Pai Amoroso e dos Filhos Perdidos na sua
íntegra e dentro de seu contexto. Propomos uma leitura à luz de um
método relativamente recente, denominado “Crítica da Narrativa”, ou,
como preferimos chamar aqui, “Análise da Narrativa”. Daremos destaque ao gênero literário das parábolas, ao método da análise da narrativa e concluiremos com um estudo exegético de Lucas 15.11-32. O
objetivo maior é mostrar a importância de interpretar bem esse texto
para que, desta forma, se possa proclamá-lo de forma clara, correta e,
principalmente, evangélica.
1. O GÊNERO LITERÁRIO DAS PARÁBOLAS
Deus escolheu transmitir sua Palavra fazendo uso de vários tipos
de comunicação ou gêneros literários. Assim, existem, na Bíblia, textos
narrativos, genealogias, profecias, poesias, provérbios, leis, parábolas, cartas, sermões, entre outros. Há regras especiais que devem ser
aplicadas a cada forma literária. “Um poema não deve ser lido como um
texto legal, nem um credo como uma parábola”.2
Definição de parábola: o termo “parábola” é cognato do verbo
grego parabálo, que quer dizer “colocar lado a lado, comparar”. Fazer
ou contar uma parábola significa, pois, colocar algo ao lado de outra
O Rev. Júlio Jandt é pastor da IELB. O Rev. Dr. Vilson Scholz é professor de Teologia
Exegética (Novo Testamento) no Seminário Concórdia e na ULBRA e Consultor de Traduções da Sociedade Bíblica do Brasil.
2
Hans-Ruedi Weber, Bíblia: o livro que me lê (São Leopoldo: Sinodal, 1998), p. 43.
1
21
IGREJA LUTERANA
coisa, ou seja, comparar.3 Segundo W. Randolph Tate, “a parábola é
uma breve narrativa que compara uma coisa com outra; neste sentido,
uma parábola é uma metáfora ampliada”.4
Outra característica da parábola é que ela é verossímil, ou seja,
real à vida. Não que ela relate algo que realmente aconteceu, mas
algo que poderia acontecer. As situações retratadas são, geralmente,
muito familiares ao ouvinte. Mesmo o que para o homem ocidental pareça incomum, para os orientais era uma situação mais do que comum.5
Nos tempos de Jesus, as parábolas encantavam o povo, pois eram
contadas de forma simples, eram literatura popular. Porém, elas eram
mais do que simples histórias: por elas, Jesus nos contava verdades
acerca da salvação eterna e da vida cristã. Elas convenciam o ouvinte,
levando-o a tomar uma decisão ou agir.6
Distinção entre parábola e outras figuras: a parábola se distingue do símile, da metáfora, da fábula e da alegoria. O símile é a comparação de dois objetos distintos, sendo que o sinal de semelhança é
diretamente expresso.7 “Este homem é como um leão” é um exemplo
de símile, porque um homem não é um leão. Já a metáfora é uma
comparação não expressa. Nela não aparecem os termos “semelhante” ou “como”. Geralmente, em uma metáfora, o sujeito e a coisa com
a qual ele é comparado estão entrelaçados.8 Já a fábula é uma história
irreal ou imaginária, na qual animais ou objetos inanimados conversam e argumentam como se fossem seres humanos.9 E a alegoria, por
fim, é uma seqüência de metáforas que significam uma coisa nas palavras e outra no sentido. Na alegoria, cada detalhe da história representa algo diferente do que se diz na história. Ela tem uma lição independente para cada detalhe, e é por isso que cada detalhe é importante.10 Osmundo A. Miranda alerta que “uma das maiores adultera-
Robert C. McQuilkin, Our Lord’s Parables (Grand Rapids: Zondervan, 1980), p. 17.
W. Randolph Tate, Biblical Interpretation: An Integrated Approach (Peabody: Hendrickson, 1991), p. 116.
5
Joachim Jeremias, As Parábolas de Jesus (São Paulo: Paulinas, 1978), p. 8.
6
Ibidem, p. 15.
7
McQuilkin, op. cit., p. 18.
8
Henry A. Virkler, Hermenêutica: Princípios e Processos de Interpretação Bíblica (São
Paulo: Vida, 1996), p. 122. Um exemplo de metáfora é a afirmação de Jesus: “Eu sou o
pão da vida”. Jesus não tenciona que suas palavras sejam tomadas de forma literal (afinal,
Cristo não é um pedaço de pão). No entanto, ele identifica-se com o pão, pois é a fonte de
sustentação de nossa vida espiritual.
9
McQuilkin, op. cit., p. 18. Na Bíblia, temos dois exemplos de fábulas; a primeira, registrada em Juízes 9.7-20, contada por Jotão, e a segunda, descrita em 2Reis 14.9-10.
10
Sátilas do Amaral Camargo, Ensinos de Jesus Através de Suas Parábolas (São Paulo:
Imprensa Metodista, 1970), p. 11.
3
4
22
A PARÁBOLA DO PAI AMOROSO E DOS FILHOS PERDIDOS
(LC 15.11-32) SOB A PERSPECTIVA DA ANÁLISE DA NARRATIVA
ções da pregação do evangelho é a transformação das parábolas e
outras palavras de Jesus em alegoria, pois pela alegoria se diz o que o
‘pregador’ quer, e não o que a Bíblia mesma ensina”.11
Por que estudar as parábolas: As parábolas de Jesus são estudadas por uma série de razões. Uma delas é a razão denominada quantitativa. Diz o evangelista que “sem parábolas nada lhes dizia” (Mt
13.34). Estima-se que “mais ou menos um terço do ensino de Jesus
está em parábolas”.12 Há também razões teológicas e históricas, pois
se tratam de palavras de Jesus. Esta ênfase norteou, por exemplo, o
trabalho de Joachim Jeremias em “As Parábolas de Jesus”. Segundo
este autor, o estudo das parábolas tem a intenção de “abrir um acesso, o mais largo possível, à própria palavra original de Jesus”.13
Para a maioria de nós, as parábolas têm um interesse prático, concreto. Afinal, as parábolas continuam sendo textos de estudo e de
pregação. Na série trienal de perícopes litúrgicas, em sua versão
luterana, nada menos do que 24 leituras do Evangelho são parábolas.
O propósito das parábolas: Jesus não contou parábolas à toa.
Não queria simplesmente informar, divertir ou ilustrar uma verdade.
Jesus também não queria simplesmente transmitir informações quantitativas sobre Deus e seu reino. Se assim fosse, Jesus poderia pedir
para alguém escrever enquanto recitasse belas frases sobre Deus e
seu amor pelos pecadores. Mas não foi assim.
A parábola é uma narrativa, e, como tal, “obriga sempre o ouvinte
ou leitor à reflexão, ao exercício da memória, jogo do raciocínio, a ter
mente aberta e manifestar simpatia pelo ponto de vista implícito no
desenrolar do fato exposto”.14 Em vista disso, as parábolas contadas
por Jesus tinham o objetivo de “provocar reação, para forçar os ouvintes a tomar decisões”.15
Mas Jesus sabia quem eram as pessoas para quem contava as
parábolas. Isto é fundamental. Os fariseus orgulhosos eram homens
“duros na queda”. Não queriam dobrar-se ante a realidade do reino de
Deus. Por isso, Jesus conta parábolas fortes para quebrar a resistência de seus corações, para que o Espírito Santo pudesse agir neles.
Osmundo Afonso Miranda, Introdução ao Estudo das Parábolas (São Paulo: ASTE, 1984),
p. 32, 33.
12
Vilson Scholz, Princípios de Interpretação Bíblica: Introdução à Hermenêutica com Ênfase em Gêneros Literários (Canoas: Editora da ULBRA, 2006), p. 169.
13
Jeremias, op. cit., p. 5.
14
Camargo, op. cit., p.15.
15
Miranda, op. cit., p. 48.
11
23
IGREJA LUTERANA
O ponto de comparação: A parábola tem uma riqueza de detalhes
que formam o seu colorido. Porém, esses detalhes não são significativos individualmente e não devem ser forçados a dizer o que não dizem, como na alegorização. No caso das parábolas, “a comparação é
feita com o todo da parábola”.16 Diante disso, podemos ver que os
detalhes existem em função do ponto de comparação da parábola.17
Detectar o ponto de comparação (tertium comparationis) da parábola é essencial. Em geral, esse ponto de comparação é único.18 “Em
tempos recentes, tem-se questionado essa rigidez do ‘um só ponto’.
Há quem argumente que existe um ponto por personagem, o que leva
a dizer que a maioria das parábolas tem, no máximo, três pontos de
comparação”.19
Geralmente, o ponto de comparação não é uma verdade moral genérica ou um conselho sobre como viver com sabedoria, mas um ou
outro aspecto do reino de Deus. Terá algo a ver com a situação de
crise ou juízo provocada pela pregação do reino de Deus. “O sentido
ou a lição da parábola quase sempre é mais simples do que se imagina. É preciso estar disposto a enxergar o óbvio”.20
As parábolas e a doutrina: Outro aspecto que não pode deixar de
ser mencionado é o fato de as parábolas não serem sedes doctrinae.
Isto quer dizer que as parábolas não podem ser tomadas como ponto
de partida para estabelecer este ou aquele ponto de vista teológico.
Trench lembra o antigo axioma: “Theologia parabolica non est
argumentativa”.21 As parábolas não devem ser forçadas. “A ordem da
interpretação tem sido do literal ao figurado, do mais claro ao mais
obscuro, mas é uma regra que tem sido [lamentavelmente] contrariada”.22
A interpretação das parábolas nos tempos modernos: As parábolas foram e ainda são interpretadas de forma alegórica. Quase todos
os Pais da Igreja usaram alegoria para explicar as parábolas de Jesus,
Miranda, op. cit., p. 38.
Richard C. Trench, Notes on the Parables of Our Lord (Los Angeles: Fleming H. Revell,
1841), p.32. Trench faz a seguinte comparação: as parábolas são como uma faca, na qual
nem tudo é fio cortante, mas tudo existe em função desse fio; são como uma harpa, onde
nem tudo é corda, mas as outras partes da harpa estão ali para que a finalidade última seja
a música.
18
Martin Scharlemann, Proclaiming the Parables (St. Louis: Concordia, 1963), p.28.
19
Scholz, op. cit., p. 175.
20
Ibidem, p. 176.
21
Trench, op. cit., p. 40.
22
Camargo, op. cit., p. 21.
16
17
24
A PARÁBOLA DO PAI AMOROSO E DOS FILHOS PERDIDOS
(LC 15.11-32) SOB A PERSPECTIVA DA ANÁLISE DA NARRATIVA
incluindo Irineu, Tertuliano, Orígenes, Clemente de Alexandria e Agostinho. 23 Poucos foram os que, com a Escola de Antioquia e os
Reformadores do século 16, protestaram contra o uso do método alegórico na interpretação das parábolas.
No século 19, um nome de grande destaque foi Richard Trench, com
sua famosa obra “Notes on the Parables of Our Lord”, reeditada várias
vezes. Sua interpretação, porém, aproxima-se muito de Orígenes e
Clemente de Alexandria, com interpretações parabólicas altamente alegóricas.24
Outro intérprete de destaque foi Adolf Jülicher (1857-1938). “É mérito
de Adolf Jülicher ter rompido definitivamente com a interpretação alegórica”.25 Ele insistiu que as parábolas foram contadas para esclarecer
os ensinos de Jesus, para facilitar o entendimento das multidões e
concluiu que as parábolas eram simples e fáceis de entender.26 Porém,
Jülicher errou ao generalizar as verdades parabólicas e também ao
helenizar parábolas que foram contadas no contexto aramaico.27 As
parábolas têm lição bem mais específica do que Jülicher pretendia. A
sua ênfase sobre o “único ponto de comparação” levou-o ao extremo
da abstração simplificada.28
Outros intérpretes de renome foram Charles Harold Dodd e Joachim
Jeremias, que privilegiaram a leitura à luz do conceito do reino de Deus.
Dodd, em especial, enfatizou um aspecto do reino de Deus que veio a
ser conhecido como “escatologia realizada”.29 Mas, ao mesmo tempo,
restringiu-se apenas às parábolas do reino.30
A partir do século 19, o estudo acadêmico da Bíblia foi dominado
pelo método histórico-crítico.31 Hoje, ele é um conglomerado de enfoques
e procura reconstruir a vida e o pensamento dos tempos bíblicos por
meio de uma análise objetiva e científica.32 Isto atingiu também o estudo das parábolas.
Dentro deste “conglomerado de enfoques”, pode-se dizer que há,
pelo menos, três correntes principais: a Crítica das Fontes, a Crítica da
Miranda, op. cit., p. 14.
Ibidem, p.19.
25
Jeremias, op. cit., p. 11.
26
Miranda, op. cit., p. 21.
27
Jeremias, op. cit., p. 13.
28
David M. Granskou, Preaching on the Parables (Philadelphia: Fortress Press, 1972), p.
11-15.
29
Miranda, op. cit., p. 23,24.
30
Jeremias, op. cit., p. 14.
31
Mark Allan Powell, What is Narrative Criticism? (Minneapolis: Fortress Press, 1990), p. 2.
32
A explicação clássica dos princípios que regem o método histórico-crítico foi dada pelo
teólogo alemão Ernst Troeltsch. Um resumo se encontra em Scholz, op. cit., p. 87-88.
23
24
25
IGREJA LUTERANA
Forma e a Crítica da Redação. Todas estas disciplinas têm o desejo
comum de dar um enfoque sobre períodos significantes na transmissão dos Evangelhos: o período do Jesus histórico, o período da tradição oral na vida da Igreja antiga, ou o período da “moldura final” dos
Evangelhos formulada pelos evangelistas.33
Em tempos mais recentes, dentro do contexto de questionamento
do método histórico-crítico, surgiu a linha interpretativa da crítica literária. A rigor, a crítica literária também não é um, mas sim vários métodos. Basicamente quatro métodos têm sido empregados nos estudos
do Novo Testamento, mais especialmente os Evangelhos e as parábolas: o Estruturalismo, a Crítica Retórica, a Crítica da Resposta do Leitor34 e a Crítica da Narrativa.35
Para a crítica literária, o objetivo é descobrir a intenção do autor,
levando em consideração o texto que temos e não o processo que deu
origem a ele; tem como característica a apreciação das modalidades
da produção do texto, o estilo, etc.36
2. O MÉTODO DA ANÁLISE DA NARRATIVA
Para o estudo da parábola de Lucas 15, seguiremos o método da
Crítica da Narrativa, ou, como também é chamada, da Análise da Narrativa. Usaremos preferencialmente o nome de “Análise da Narrativa”,
e não o termo “Crítica”, pois este último conota, em muitos casos, algo
negativo.
Surgimento do método: Por ser uma coleção de textos, e textos
literários, nada mais natural do que estudar a Bíblia do ponto de vista
literário. Porém, pode-se notar pelos métodos de interpretação empregados em seu estudo que o aspecto literário foi, muitas vezes, deixado de lado.
A perda do aspecto literário deu-se, de forma especial, com o uso
da alegoria e, principalmente, do método histórico-crítico. Este mostrou suas falácias especialmente na análise dos Evangelhos, procurando, através de suas técnicas e pressupostos, interpretar as histó-
Powell, op. cit., p. 2.
Em outro contexto, como na Europa, este método é denominado de “Teoria da Recepção”.
35
Powell, op. cit. 12.
36
Johan Konings, A Bíblia, sua História e Leitura: uma Introdução (Petrópolis: Vozes, 1992),
p. 238.
33
34
26
A PARÁBOLA DO PAI AMOROSO E DOS FILHOS PERDIDOS
(LC 15.11-32) SOB A PERSPECTIVA DA ANÁLISE DA NARRATIVA
rias ‘sobre’ Jesus, desmembrando, recortando e até mesmo
reformulando os relatos dos evangelistas. “O que realmente vem a ser
‘Palavra de Deus’ ficou uma coisa cada vez mais nebulosa”.37
A necessidade de uma abordagem mais literária dos Evangelhos foi
examinada em 1969 por William Beardslee. Segundo ele, os estudos
sobre os Evangelhos devem providenciar, entre outras coisas, o significado e impacto literário dos próprios textos e analisar como estes
textos convidam o leitor a participar da narração e como evocam a sua
resposta individual perante os fatos dessa narração.38
Em vista disso, as primeiras formas literárias no Novo Testamento a
serem examinadas deste modo foram as parábolas. Alguns dos mais
importantes estudos foram os de Robert W. Funk, Dan O. Via e John D.
Crossan.39 Eles reconheciam que o uso de um método puramente histórico tinha limitações que poderiam comprometer a interpretação bíblica.
Mas a possibilidade de ler os Evangelhos como narrativas somente
viria a ser demonstrada em 1982, com a publicação do livro “Mark As
Story” (Marcos como Narrativa), de David Rhoads e Don Michie. No ano
seguinte, mais duas obras foram publicadas: “The Christology of Mark’s
Gospel” (A Cristologia do Evangelho de Marcos), escrita por Jack D.
Kingsbury, e “Anatomy of the Fourth Gospel” (Anatomia do Evangelho
de João), de R. Alan Culpepper. Rhoads, Kingsbury, Culpepper e Robert
Tannehill são considerados os pioneiros do método.40 Estas obras inauguraram o termo “Crítica da Narrativa”. Hoje, o método é usado por
muitos exegetas do Novo Testamento.41
Descrição do método: Quando se fala de crítica literária, uma importante questão a ser levantada é: “Quem é o leitor?” A Crítica Retórica está interessada nos leitores originais a quem a obra foi inicialmente endereçada. O Estruturalismo quer definir as respostas de um
‘leitor competente’ que entende um código da obra.42 Já a Crítica da
Maier, apud Mueller, Entendes o que Lês? – apêndice sobre o Método Histórico-Crítico,
p. 268.
38
Powell, op. cit., p. 2.
39
Ibidem, p. 2,3.
40
Ibidem, p. 6.
41
Apesar disso, aqui no Brasil a Crítica da Narrativa ainda é pouco utilizada. Prova disso
é a bibliografia existente somente na língua inglesa. “What is Narrative Criticism?“, escrito por Mark Allan Powell, é o melhor manual que temos disponível para descrevermos a
Análise da Narrativa e sua aplicabilidade ao evangelho de Lucas e, mais especificamente,
à parábola do Pai Amoroso e dos Filhos Perdidos (Lc 15.11-32).
42
Powell, op. cit., p. 19.
37
27
IGREJA LUTERANA
Resposta do Leitor é um enfoque pragmático da literatura que enfatiza
o papel do leitor na determinação do significado.43
A Análise da Narrativa geralmente fala de um “leitor implícito”, que
é pressuposto pela própria narrativa. Este leitor implícito é distinto do
leitor real e histórico, do mesmo modo que o autor implícito é distinto
do autor real e histórico. É impossível predizer as respostas efetivas
dos leitores reais, mas pode haver pistas dentro da narrativa que indicam a resposta que se espera do leitor implícito.44
Por isso, a diferença básica entre a Análise da Narrativa e a Crítica
da Resposta do Leitor é que a primeira destaca os modos pelos quais
o texto determina a resposta do leitor, enquanto a última enfatiza os
modos pelos quais o leitor determina o significado. Segundo Powell, o
modelo básico de comunicação para a Análise da Narrativa pode ser
definido como segue: 45
Autor Real
Autor Implícito
Texto
Narrativa
Leitor Real
Leitor Implícito
O autor real e o leitor real estão diagramados fora dos parâmetros
do próprio texto. Os três componentes do meio (Autor Implícito – Narrativa – Leitor Implícito) agora tomam o lugar daquilo que previamente
foi descrito como o texto. Percebe-se que o texto pode ser visto como
qualquer outra mensagem de um modelo de comunicação ou como
uma comunicação completa que contém os três componentes (emissor, mensagem e receptor), sendo, assim, completo em si mesmo.
Segundo Jack Kingsbury, o autor implícito é a “pessoa imaginária
que se tem em vista para que a intenção do texto possa sempre alcançar sua realização”.46 Este conceito de leitor implícito afasta a Análise
da Narrativa de um tipo de criticismo puramente centrado no leitor
Roger Lundin, Anthony C. Thiselton e Clarence Walhout, The Responsibility of Hermeneutics (Grand Rapids: Eerdmans, 1985), p. 90.
Estes três autores utilizam o modelo da Crítica da Resposta do Leitor.
44
Powell, op. cit., p. 19.
45
Ibidem, p. 19.
46
Jack Dean Kingsbury, Matthew as Story (Philadelphia: Fortress Press, 1990), p. 38.
43
28
A PARÁBOLA DO PAI AMOROSO E DOS FILHOS PERDIDOS
(LC 15.11-32) SOB A PERSPECTIVA DA ANÁLISE DA NARRATIVA
(pragmático, como a Crítica da Resposta do Leitor) e faz dela um
enfoque mais centrado no texto.
Segundo Powell, para ler segundo esta perspectiva, é preciso conhecer tudo que o texto pressupõe que o leitor conheça, e “esquecer”
tudo que o texto não pressupõe que o leitor conheça.47 Isto é relevante, pois estamos acostumados com uma visão dos quatro Evangelhos.
Quando pensamos em uma perícope, procuramos observar também
como ela foi apresentada por outro evangelista. Porém, na Análise da
Narrativa, devemos encarar o escrito que temos e deixar de lado, por
assim dizer, nossos conhecimentos prévios. Devemos ler aquilo que
temos, como se fosse (e como realmente é!) uma narrativa completa
em si mesma, como se não tivéssemos à mão nenhum outro escrito
paralelo que contasse a mesma história.
Para citar um exemplo, podemos dizer que o leitor implícito dos
Evangelhos certamente saberá que um talento vale mais que um
denário, pois o próprio texto pressupõe isto. Por outro lado, os leitores reais de hoje podem não ter este conhecimento. Entretanto, os
leitores reais de hoje podem ter (e têm!) um conhecimento (como o
caso citado antes, o conhecimento dos outros Evangelhos) que o leitor
implícito da narrativa não tem. Mas, diga-se também, este conhecimento do leitor atual pode minar ou mesmo deteriorar o efeito da história pretendido pelo autor.
No caso da parábola de Lucas 15, não interessa qual o tema principal de Mateus, Marcos, e até mesmo de João. O importante é analisar
Lucas e deixar que o texto fale. Somente nos interessará o que Lucas
nos contou e como nos contou, e não a sua ligação com os demais
Evangelhos.
Narrativa, história e discurso: A narrativa é um tipo literário específico. É qualquer obra que conta uma história. Esta definição, embora
ampla, não é inclusiva. Outras escolas da crítica literária, por exemplo,
dedicam-se ao estudo de ensaios ou poesias. No Novo Testamento, os
quatro Evangelhos e também Atos são considerados narrativas. As
Epístolas provavelmente não o são, embora incluam, aqui e ali, elementos narrativos (Romanos 4, por exemplo).
A narrativa tem dois aspectos: história e discurso. História referese ao conteúdo da narrativa. É feita de elementos como acontecimentos, personagens e cenário, sendo que a interação desses elementos
47
Powell, op. cit., p. 20.
29
IGREJA LUTERANA
forma o que se chama de “enredo”. Discurso refere-se à retórica da
narrativa, à maneira como a história é contada.48
Nesse sentido, podemos dizer que o Evangelho de Lucas tem seus
dois aspectos, como outra narrativa qualquer. A história de Lucas é a
história da vida de Jesus, desde a concepção e nascimento até a sua
morte, ressurreição e ascensão. O discurso de Lucas é o meio pelo
qual a história da vida de Jesus é contada.
Histórias que dizem respeito aos mesmos acontecimentos, personagens e cenários podem ser contadas de vários modos, produzindo
diferentes narrativas. Os quatro Evangelhos são um ótimo exemplo
disso. Há semelhanças entre eles, pois todos contam a mesma história, ou seja, a história de Jesus; mas há também diferenças, pois cada
autor teve o seu discurso, a sua maneira de contar a história.
Também é possível distinguir entre tempo da história e tempo do
discurso. O tempo da história refere-se à ordem na qual os acontecimentos ocorrem, enquanto que o tempo do discurso se refere à ordem
na qual o narrador apresenta os acontecimentos ao leitor.49 Para a
Análise da Narrativa, importante é o tempo do discurso, uma vez que
ele mostra como o autor implícito organizou o enredo. A quantidade de
tempo que o narrador devota ao relato de um acontecimento pode ser
inconsistente com o tempo transcorrido para a ocorrência desse acontecimento.50
Por exemplo, há casos em que o tempo do discurso é bem menor
do que o tempo da história, como a ida dos pais de Jesus para a Festa
da Páscoa (Lc 2.41). Ocorre também o inverso. É o caso da semana da
entrada triunfal de Jesus em Jerusalém até a sua ressurreição. Fica
claro, por este exemplo, que a intenção do autor implícito não é descrever a viagem dos pais de Jesus, mas sim o cerne do evangelho, que
é a paixão, morte e ressurreição de Cristo.
Ponto de vista: Uma questão central, segundo Powell, é como o
autor implícito guia o leitor implícito no entendimento da história.51 Um
dos modos pelos quais o autor implícito influencia o leitor implícito é
insistir que adote um ponto de vista consistente com o da narrativa.
Alguns o chamam de “ponto de vista avaliativo”, que governa uma
obra em geral.52 O ponto de vista avaliativo pode ser definido como
48
49
50
51
52
Ibidem, p. 3.
Gerard Genette apud Powell, op. cit., p. 36.
Powell, op. cit., p. 37.
Ibidem, p. 23.
Kingsbury, Matthew As Story, 1988, p. 2.
30
A PARÁBOLA DO PAI AMOROSO E DOS FILHOS PERDIDOS
(LC 15.11-32) SOB A PERSPECTIVA DA ANÁLISE DA NARRATIVA
“um padrão de julgamento pelo qual os leitores são levados a avaliar
os acontecimentos, personagens e cenários que compõem a história”.53
Lucas, assim como os demais evangelistas, trabalha com uma postura ética que está baseada no ponto de vista de Deus. Há uma distinção básica entre verdade e mentira. A verdade, por sua vez, está alinhada com o ponto de vista de Deus. “O que Deus pensa é, por definição, verdadeiro e correto”.54
Em contraposição ao ponto de vista de Deus, Lucas também apresenta o ponto de vista de Satanás. Este ponto de vista é negativo e
falso, e pode aparecer direta ou indiretamente na narrativa. Mas, de
qualquer forma, fica claro que se espera do leitor que aceite o ponto
de vista de Deus.
Narrador: O narrador é “a voz que o autor implícito usa para contar a história”.55 Com algumas exceções, os narradores dos quatro Evangelhos falam em terceira pessoa e não são personagens nas histórias
que narram. Eles também variam quanto àquilo que sabem e quanto
àquilo que decidem contar do que sabem. Kingsbury salienta que os
narradores são, por assim dizer, “oniscientes”, dada a facilidade com
que obtêm informações sobre acontecimentos, personagens e cenários.56 Powell, porém, adverte que seu conhecimento é limitado pelas
percepções espaciais e temporais terrestres.57
Outro aspecto importante reside no fato de o narrador ser
“intrusivo”, isto é, ele “não somente informa sobre os personagens,
mas também passa a julgá-los, avaliando suas ações e motivos”.58 Alguns narradores são mais intrusivos do que outros. Lucas, em geral, é
menos manifesto.
Enredo: O enredo pode ser descrito como “o elemento dinâmico e
seqüencial na literatura narrativa”.59 Ele é percebido pela observação
cuidadosa das ações e movimentos na história, e foca a conexão entre
as partes, seja através da continuação de uma parte prévia ou através de uma antecipação de alguma ação futura.60
Powell, op. cit., p. 24.
Ibidem, p. 24.
Jack Dean Kingsbury, Conflict in Luke (Minneapolis: Fortress Press, 1991), p. 10.
56
Ibidem, p. 10.
57
Powell, op. cit., p. 26.
58
Kingsbury, Conflict in Luke, 1991, p. 10.
59
Robert Scholes e Robert Kellog apud John R. Donahue, The Gospel in Parable (Fortress
Press, 1988), p. 22.
60
Donahue, op. cit., p. 22.
53
54
55
31
IGREJA LUTERANA
Para entender o enredo de uma narrativa, importa reconhecer os
elementos de causalidade que conectam os acontecimentos entre si.
Outro aspecto importante do enredo é a noção de conflito. Segundo
Laurence Perrine, conflito é “um choque de ações, idéias, desejos ou
vontades”.61 O mais comum é o conflito entre personagens, que decorre, geralmente, de pontos de vista incompatíveis.
Em resumo, “o enredo de uma história tem a ver com o modo pelo
qual o autor organiza a história”.62 Ele se compõe de três partes básicas, que são imprescindíveis para o estudo de um texto narrativo sob
a perspectiva da Análise da Narrativa: acontecimentos, personagens
e cenário.
Acontecimentos: Os acontecimentos são as ações que ocorrem ao
longo da história. Não se referem apenas aos atos físicos, mas incluem
os atos de fala, os pensamentos, os sentimentos e as percepções.
“Portanto, os discursos e declarações de Jesus relatados nos Evangelhos são acontecimentos propriamente ditos, e devem ser considerados parte da narrativa”.63
Personagens: Os personagens são os agentes da narrativa, “aqueles sobre as quais a história é contada e cujas ações ou falas, ou,
então, fracassos para agir e falar, dão seqüência ao enredo”.64
O que interessa de modo especial à Análise da Narrativa é a caracterização, isto é, o processo através do qual o autor implícito providencia
ao leitor implícito o que é necessário para reconstruir um personagem.65
Para caracterizar um personagem, o autor implícito pode se valer
de dois métodos: “falar sobre” o personagem ao leitor ou “mostrar”
ao leitor sua caracterização. “Falando”, o narrador descreve estas pessoas; “mostrando”, o autor simplesmente apresenta estas pessoas
em ação ou em discurso.66
Segundo Powell, “a técnica de mostrar é menos precisa do que a
de falar sobre, mas é normalmente mais interessante”.67 O leitor precisa juntar dados e avaliar, para poder chegar a conclusões quanto ao
ponto de vista do autor implícito sobre os personagens. O método de
mostrar também leva o leitor a comparar e avaliar os diferentes tipos
61
62
63
64
65
66
67
Laurence Perrine apud Powell, op. cit., p. 42.
Kingsbury, Conflict in Luke, 1991, p. 34.
Powell, op. cit., p. 35.
Donahue, op. cit., p. 23.
Powell, op. cit., p. 52.
Kingsbury, Conflict in Luke, 1991, p. 9.
Powell, op. cit., p. 52.
32
A PARÁBOLA DO PAI AMOROSO E DOS FILHOS PERDIDOS
(LC 15.11-32) SOB A PERSPECTIVA DA ANÁLISE DA NARRATIVA
de evidências na caracterização dos personagens.
É claro que, quando os líderes judeus chamam Jesus de “príncipe
dos demônios”, esta caracterização deve ser descartada pelo fato do
autor implícito, na seqüência da narrativa, demonstrar exatamente o
contrário. Aliás, o exemplo citado “revela mais sobre os próprios líderes religiosos do que sobre Jesus”.68
Como em toda obra literária, há aqueles personagens que são principais, outros que são secundários e, por fim, aqueles que aparecem
geralmente uma só vez, e, ainda assim, apenas para reenfatizar o
papel do protagonista.69
Quando um leitor avalia e compara as evidências quanto às características dos personagens, ele passa a revelar certa empatia por um
personagem, e uma antipatia para com outro personagem.70 Isto é compreensível a partir do elemento de “pontos de vista” idênticos, e também de algumas características semelhantes ou desejadas.
Cenários: Por cenário entendemos aquele “lugar, tempo ou circunstâncias sociais nas quais a ação ocorre”.71 O cenário é parte integral da
história, tanto quanto o são os acontecimentos e os personagens.
O cenário serve para várias funções. Eles podem ser simbólicos,
podem ajudar a revelar os personagens, determinar conflitos, ou mesmo providenciar estruturas para a história. Muitos cenários são
irrelevantes para o enredo, enquanto que outros são altamente significativos e importantes. Há, basicamente, três tipos de cenários: espacial, temporal e social.72
O cenário espacial inclui o contexto físico no qual os personagens
vivem e agem. Kingsbury ressalta que, no Evangelho segundo Lucas,
há o cenário geral e o cenário local. O cenário geral é a terra dos judeus. O cenário local pode variar, por ser mais específico.73 Em geral, “a
descrição dos cenários espaciais nos Evangelhos parece limitada pelo
efeito dramático e utilitário. Cenário é apenas importante à medida
que ele afeta as ações específicas dos personagens.”74
Ibidem, p. 53.
Edward Morgan Forster e Meyer Howard Abrams apud Powell, op. cit., p. 55.
Estes mesmos estudiosos distinguem os diferentes tipos de personagens, com base em
seus traços característicos: os “redondos” (Jesus e os discípulos), os “planos” (líderes
religiosos) e os “estereotipados” (como a viúva pobre, em Lc 21).
70
Powell, op. cit., p. 56, 57.
71
Kingsbury, Conflict in Luke, p. 69.
72
Powell, op. cit., p. 69, 70.
73
Kingsbury, Conflict in Luke, p. 5-7.
74
Powell, op. cit., p. 72.
68
69
33
IGREJA LUTERANA
O espaço temporal pode ser de dois tipos: cronológico ou tipológico.
O cronológico pode ser locativo, quando se refere a um ponto específico no tempo no qual uma ação acontece, ou durativo, quando indica
um intervalo de tempo. O cenário tipológico indica o tipo de tempo no
qual uma ação acontece (por exemplo, “de noite” – Jo 3.2).75
Por fim, o cenário social também é de extrema importância. É o que
temos chamado de “contexto histórico” em nossas exegeses. Ele constitui-se pelas circunstâncias sociais. “Estas incluem as instituições políticas, estruturas de classes, sistemas econômicos, costumes sociais e
contexto cultural geral presentes na obra”.76
Os benefícios da Análise da Narrativa: A Análise da Narrativa, ao
contrário do que poderia parecer, não é um método puramente literário. Em outras palavras, não se quer, agora, passar a ler a Bíblia como
literatura, esquecendo que ela é a Palavra de Deus. O que se quer é
ler a Bíblia como Escritura Sagrada e literatura ao mesmo tempo; ler a
Bíblia como Escritura na forma de uma narrativa ou história.77
Quanto aos benefícios proporcionados pela leitura de livros como
os Evangelhos e Atos sob a perspectiva da Análise da Narrativa, podem-se enumerar os seguintes:
a. A Análise da Narrativa dá destaque ao texto em si mesmo. Em
outras palavras, o texto não é visto como meio para outros fins. Aplica-se, neste caso, o princípio: “Gaste menos tempo estudando sobre a
Bíblia e mais tempo estudando a própria Bíblia”.78
b. A Análise da Narrativa fornece um meio para testar e contrabalançar os métodos tradicionais de exegese bíblica. Isto significa que,
se a leitura literária corrobora a interpretação histórica, ela ajuda a
comprovar a exatidão desta última. Mas, se o significado de um texto
percebido pela leitura literária for inconsistente com a leitura histórica,
então as duas “escolas” devem reconsiderar seus posicionamentos.
c. O método lança alguma luz sobre os textos bíblicos, mesmo que
não se tenha clareza ou certeza quanto a seu pano de fundo histórico.
Durante os últimos séculos, a maior parte da pesquisa bíblica tem sido
devotada a questões relativas a autoria, data, origem e fontes de vários livros do Novo Testamento (como, por exemplo, a suposta fonte
“Q”, nos Sinóticos). Não obstante, foram raros os casos em que se
75
76
77
78
Ibidem,
Ibidem,
Ibidem,
Ibidem,
34
p.
p.
p.
p.
72, 73.
74.
85.
86.
A PARÁBOLA DO PAI AMOROSO E DOS FILHOS PERDIDOS
(LC 15.11-32) SOB A PERSPECTIVA DA ANÁLISE DA NARRATIVA
tenha chegado a um consenso. A vantagem da Análise Literária é que
ela permite aos estudiosos aprender muito sobre o significado e impacto de certos textos sem ter que primeiro “resolver” esses persistentes e talvez insolúveis problemas de natureza histórica.
d. A Análise da Narrativa tende a aproximar o leitor leigo do exegeta
profissional. Esta é uma grande vantagem do método, em contraposição
direta ao método histórico-crítico, que é extremamente racional e dirigido apenas para os estudiosos, causando assim uma “idolatria do
intelecto”.79 A vantagem da Análise da Narrativa consiste no fato de
buscar a interpretação do texto sob a perspectiva do seu leitor implícito, do qual não se espera, por exemplo, que conheça alguma coisa
sobre a história da transmissão dos textos.
e. Por fim, vale ressaltar ainda que a Análise da Narrativa tem um
íntimo relacionamento com a comunidade cristã. Como explica Powell,
o método condiz com a compreensão cristã do cânone. A Igreja Cristã
confessa que a Escritura como tal tem autoridade, e não as supostas
tradições orais ou fontes que subjazem à mesma. Dando ênfase ao
texto em sua forma final, a Análise da Narrativa interpreta a Escritura
no nível canônico, ou seja, lê o mesmo texto que tem autoridade para
a comunidade cristã em termos de fé e vida. Além disso, abre-se espaço para o papel do Espírito Santo no processo de interpretação.80
3. A PARÁBOLA DO PAI AMOROSO E DOS FILHOS PERDIDOS
Uma vez descrito o funcionamento do método, podemos passar à
exegese do texto de Lucas 15.11-32, a parábola do Pai Amoroso e dos
Filhos Perdidos.
Esta parábola, registrada em Lucas 15.11-32, é considerada por
muitos como a melhor de todas as parábolas. Tradicionalmente chamada de “A Parábola do Filho Pródigo”, preferimos aqui chamá-la de “A
Parábola do Pai Amoroso e dos Filhos Perdidos”. Por que a mudança?
Basicamente, esta é a questão-chave para o correto entendimento da
parábola, como será visto a seguir. Em parte, a parábola tem sido mal
interpretada porque o título tradicional, “o filho pródigo”, dá um enfoque
errado para o texto.81
Uwe Wegner, Exegese do Novo Testamento (São Leopoldo: Sinodal, 1998), p. 19, 20.
Powell, op. cit., p. 88.
81
Segundo Prange, esse título aparece em Bíblias inglesas do século 16 e remonta à
Vulgata. Victor H. Prange, Luke (St. Louis: Concordia, 1992), p. 176.
79
80
35
IGREJA LUTERANA
Uma segunda razão, e talvez a mais importante, é o fato de considerar-se que, em Lucas 15.11-32, aparecem duas parábolas independentes. Essa tese divide a parábola em duas seções: a primeira, dos
versos 11 até 24, com o título de “A Parábola do Filho Mais Moço”; e a
segunda, dos versículos 25 a 32, denominada de “A Parábola do Filho
Mais Velho”. Tal posição foi advogada, entre outros, por William M. Taylor,
em “The Parables of Our Saviour”.82
A rigor, o texto consiste em uma parábola dupla. E, embora seja
possível, para fins de instrução metodológica acadêmica, fazer uma
divisão na parábola, sem que isto necessariamente deturpe a verdade
bíblica, cumpre lembrar que se trata de uma narrativa única, começando no verso 11 e terminando no 32. Como tal, precisa ser lida e estudada na íntegra. Quem lê um livro policial não vai interessar-se apenas
pelo seu início, ou apenas pelo seu final. Como esse livro traz uma
história com um começo, um meio e um fim, ele merece ser lido na
íntegra. O mesmo se aplica aos Evangelhos e à parábola de Lc 15.1132: também aqui os três aspectos (começo, meio e fim) são importantes para o todo da narrativa.
Em virtude destes aspectos, entendemos que a Análise da Narrativa é um método adequado para se ler a Parábola do Pai Amoroso e
dos Filhos Perdidos. Afinal, ela prioriza um entendimento não fragmentado do texto bíblico e, ao mesmo tempo, provê uma base fundamentada não em suposições humanas, mas naquilo que Deus realmente
disse.
O enredo: Para melhor entendermos o enredo do texto, precisamos examinar o que deu origem a ele. Isto se encontra em Lc 15.1-2:
“Aproximavam-se de Jesus todos os publicanos e pecadores para o
ouvir. E murmuravam os fariseus e os escribas, dizendo: Este recebe
pecadores e come com eles”. A partir daí, Jesus conta as parábolas da
ovelha e da dracma perdidas, encerrando o seu “ciclo parabólico” com
a parábola do Pai Amoroso e dos Filhos Perdidos.
Jesus conta essas parábolas com uma intenção apologética. Pretende não apenas explicar e justificar a pregação do evangelho aos
publicanos e pecadores, povo desprezado naquela época,83 mas acima
de tudo mostrar que o amor de Deus ultrapassa as barreiras sociais,
que a salvação é universal. Jesus conta as parábolas da ovelha e da
82
83
William M. Taylor, The Parables of our Saviour (New York: George H. Doran, 1886), passim.
Jeremias, op. cit., p. 134.
36
A PARÁBOLA DO PAI AMOROSO E DOS FILHOS PERDIDOS
(LC 15.11-32) SOB A PERSPECTIVA DA ANÁLISE DA NARRATIVA
dracma perdida mostrando o ponto de vista de Deus: a alegria que há
no céu e, conseqüentemente, a alegria que Deus sente por buscar
aquele que está perdido.84
O auge do ensinamento de Jesus ocorre na terceira parábola. A
exemplo dos perdidos nas parábolas anteriores, aqui também há um
perdido: o filho mais moço. Contudo, a parábola é endereçada a pessoas que, a exemplo do filho mais velho, se ofendem com a universalidade da graça divina. Jesus defende a pregação do evangelho pregando o evangelho, contando a história que se tornou conhecida como
evangelium in Evangelio (“o evangelho dentro do Evangelho”).85
A narrativa indica que se trata de uma parábola, ou seja, algo que
aconteceu ou que poderia muito bem acontecer. Ela é verossímil e familiar à vida dos ouvintes. Apesar de não consistir numa alegoria, onde
todos os detalhes têm significado em e por si mesmos, podemos dizer
que a parábola apresenta alguns traços alegóricos. Estes traços alegóricos consistem na representação dos personagens.
Portanto, vamos começar examinando os elementos que fazem
parte do enredo da narrativa: cenário, personagens e eventos. Cumpre lembrar, todavia, que os três estão interligados, e que, por isso,
não é possível separá-los completamente.
O cenário: Ao longo da narrativa de Lucas, vemos que Jesus sempre andava em meio à multidão. De um lado, escribas e fariseus iam
atrás de Jesus com o intuito de questioná-lo e pô-lo à prova. De outro,
publicanos e pecadores corriam até Jesus para ouvi-lo falar da graça
de Deus dirigida a todas as pessoas.
Jesus, então, conta as três parábolas de Lucas 15. O contexto da
época era um contexto bem rural e, por isso, Jesus fala de uma ovelha
que havia se perdido e também de um homem dono de propriedade
agrícola, na qual trabalhavam servos.
O cenário espacial pretendido por Lucas pode ter sido uma fazenda, uma vila no interior ou algo semelhante. Não era uma metrópole
ou uma cidade bem estabelecida. Este mesmo cenário permeia a narrativa global, onde vemos Jesus caminhando com os discípulos por uma
plantação e colhendo espigas, provavelmente de trigo, para alimentar-se (Lc 6.1-5), contando a parábola da figueira estéril (Lc 13.6-9) e
do grão de mostarda (Lc 13.18-19).
Não é de estranhar que Jesus usasse este cenário também quan-
84
85
O. C. Edwards Jr., Luke’s Story of Jesus (Philadelphia: Fortress Press, 1981), p. 70, 71.
Kenneth Bailey, As Parábolas de Lucas (São Paulo: Vida Nova, 1995), p. 208.
37
IGREJA LUTERANA
do contava suas parábolas: este também era o seu cenário na vida.
Ele andava pelas searas, ia até o mar com os pescadores e conhecia
todo esse contexto rural da época.
Contando a parábola dos filhos perdidos amados pelo seu pai, Jesus refere-se a um homem que tinha dois filhos. Ao prosseguir na narrativa, vemos que o pai tinha uma série de empregados, que o ajudavam na lida (vv. 17, 19, 22). O filho não quis ficar ali e foi até uma “terra
distante” (v. 13). Outro aspecto que mostra a realidade rural é o fato
de o pai ter matado o novilho cevado para a festa de recepção ao filho
(v. 23). O verso 25 fala que o filho mais velho “estivera no campo”.
Todos estes detalhes, contudo, não têm conotações simbólicas para a
interpretação da narrativa.
Quanto aos cenários temporais, o texto nos diz que o filho foi embora “passados não muitos dias” após ter pedido a sua parte da herança. O texto não diz quanto tempo o filho ficou longe de casa. Pode
ser que, “vivendo dissolutamente” (v. 13), tivesse gastado rapidamente
seus haveres e, ante a situação desesperadora do “guardar porcos”
(v. 15), não hesitasse muito em voltar logo para casa.
O cenário social é a parte que mais nos interessa aqui. Contada
para os publicanos e pecadores, e bem especialmente para os escribas
e fariseus, a parábola tem detalhes que realçam ainda mais o
ensinamento de Jesus. Na época, a diferença entre fariseus e publicanos
era enorme, a começar pela situação econômica. Para a população em
geral, publicanos tinham má fama, fama de roubadores do dinheiro do
povo quando da coleta dos impostos. Já os fariseus eram de classe
média inferior, vinham das melhores classes de artífices e pensavam
muito no interesse do povo.86
Os personagens: Na verdade, o narrador (Jesus) não dá as características dos personagens. Ele prefere mostrar os personagens em
ação, levando o ouvinte e leitor a, com base nisso, formar uma imagem
a respeito deles. As palavras e as atitudes nos dão um retrato de
quem são os personagens.
Este método torna a parábola ainda mais interessante, uma vez
que, ao contá-la, Jesus deixou no ar um suspense quanto à identificação dos personagens. Com certeza isso deve ter causado reflexão (e
quem sabe até revolta) nos personagens reais do Evangelho.
H. L. Ellison, “Fariseus”, In: O Novo Dicionário da Bíblia (São Paulo: Vida Nova, 1990), v.1,
p. 604, 605.
86
38
A PARÁBOLA DO PAI AMOROSO E DOS FILHOS PERDIDOS
(LC 15.11-32) SOB A PERSPECTIVA DA ANÁLISE DA NARRATIVA
O filho mais moço: Este toma uma atitude intempestiva: resolve
pedir a parte que lhe cabia dos bens familiares. “Pai, dá-me a parte
dos bens que me cabe”. Aqui recorremos às palavras de Kenneth Bailey,
que, tendo vivido muito tempo no Oriente Médio, constatou o que significa este pedido na prática. Bailey cita uma conversa que teve sobre
o assunto:
Alguém já fez um pedido assim em sua aldeia? – Nunca!
Alguém poderia fazer um pedido assim? – Impossível!
Se alguém o fizesse, o que aconteceria? – Seu pai bateria nele,
sem dúvida!
Por quê? – Este pedido significa: ele quer que seu pai morra!87
Outro aspecto fundamental é que, segundo a lei, os bens somente
podiam ser repartidos depois da morte do pai. Por isso, podemos entender corretamente a afirmação do entrevistado de Bailey, supracitado.
O pedido do filho moço tinha um aspecto duplo. Além de pedir a divisão
da herança, queria ainda dispor dela! Isto era algo inconcebível para a
época.
Se lhe fosse concedido o pedido da divisão da herança, que seria
um ato de muito boa vontade do pai, mesmo assim não lhe seria possível usufruir deste direito. “A propriedade é sua, mas não pode vendêla”.88 O pai não nega o pedido, mesmo diante da exigência imposta
pelo filho: “E ele lhes repartiu os haveres”.
Em outras palavras, o pedido do filho mostra sua ingratidão por
tudo o que o pai lhe havia dado. Não havia compreendido o que era
realmente ser filho. Dispunha de tudo e, ao mesmo tempo, não se via
como dono de nada. Já aqui o autor implícito mostra o tom da narrativa: a compaixão do pai. Seu amor é maior do que a lei. Poderia bater
no filho, repreendê-lo, mas preferiu dar o que ele queria.
Com “dinheiro na mão”, o filho mais moço parte de casa. Uma pergunta que o texto não responde é: o que levou o filho a fugir de casa?
Talvez num ímpeto de liberdade, de querer ser “dono do próprio nariz”,
ele parte para uma terra distante, onde gasta todos os seus bens. O
texto diz ainda que ele viveu de forma dissoluta, devassa, corrupta. E
é daqui que nos vem o “filho pródigo”, o filho esbanjador.
Dividir a comida com os porcos (v. 16) era algo degradante. E esse
87
88
Bailey, op. cit., p. 212.
Ibidem, p. 214.
39
IGREJA LUTERANA
filho, que havia trabalhado guardando porcos e que, portanto, era impuro do ponto de vista cerimonial, esse filho o pai abraçou e beijou,
quando do seu retorno ao lar (v. 20). A esse filho o pai restitui a condição de filho, dá-lhe um anel, que era sinal de autoridade, e as sandálias, um sinal de que era um homem livre, uma vez que os escravos
andavam descalços. A esse filho o pai dá a melhor roupa!
O filho mais novo, ao fugir de casa (v. 13), mostra a atitude dos
publicanos. Estavam longe não apenas da casa do pai, mas também
longe do pai! Porém, ocorre uma virada na vida desse filho: diante das
dificuldades impostas pela vida, pela vida impensada que levara, ele
reconhece sua indignidade (v. 19) e confessa. Os publicanos estavam
indo até Jesus; queriam ouvi-lo, aprender dele (15.1). Deus os recebe,
assim como o pai. Jesus não somente conversava com publicanos e
pecadores, mas inclusive fazia suas refeições com eles.
O filho mais velho: Este questiona (v. 26; cf. Lc 5.30) a atitude do
pai e fica irritado com a situação (v. 28; cf. Lc 15.2). Usa palavras fortes
como, por exemplo, douléuo (“sirvo”), que dificilmente aparece por acaso, querendo dizer, com isso, que servia ao pai como um escravo.89
Mesmo estando em casa, não se sentia como filho; não sabia o que
representava ser, junto com o pai, dono de tudo.
O filho mais velho diz ainda: “nunca transgredi uma ordem tua e
nunca me deste”. As palavras “nunca” denotam que o pai não lhe deu
a atenção devida em nenhum momento, o que era algo, sem dúvida,
um tanto absurdo. Na verdade, neste contexto de indignação, geralmente tende-se a exagerar; trata-se de um personagem bem verossímil.
Continuando o seu discurso, o personagem revela desprezo pelo
seu irmão (v. 30). Volta-se não somente contra o pai, mas também
contra o irmão que havia voltado. Aparentemente, tem um profundo
“zelo” pelas coisas da casa, pelos bens, combatendo assim quem deles abusou (no caso, o irmão mais novo) e quem recebe aquele que
desperdiçou tudo (o pai). Porém, as suas próprias palavras o denunciam. Também ele não se sentia em casa. Estava em casa, mas não era
da casa. Dentro da casa de Deus, no entanto, longe de Deus.90
O conceito de escravo no NT não corresponde exatamente ao que modernamente se
entende por escravo. “Ocasionalmente, escravos recebem uma posição de responsabilidade e comando. Mesmo assim, o escravo deve ao seu senhor obediência exclusiva e
absoluta”. R. Tuente, “Escravo”, In: O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo
Testamento (São Paulo: Vida Nova, 1989), v. 2, p. 85.
90
Ronald S. Wallace, Many Things in Parables (Grand Rapids: Eerdmans, 1963), p. 57.
89
40
A PARÁBOLA DO PAI AMOROSO E DOS FILHOS PERDIDOS
(LC 15.11-32) SOB A PERSPECTIVA DA ANÁLISE DA NARRATIVA
O pai: O pai representa Deus, e isto não apenas porque se usa o
termo “pai”. É importante notar que, na parábola anterior, da dracma
perdida, Deus é representado por uma mulher! Nos três episódios,
Deus é representado por aquele que busca quem está perdido.
O pai é, a rigor, um pai humano. “Todavia, através de algumas expressões, reluz que ele, pelo seu amor, é imagem de Deus”.91 Trata-se,
sem sombra de dúvida, de um pai todo especial. Ele faz a divisão dos
bens e permite que o filho mais moço saia de casa. E, quando este
retorna arruinado, o pai corre ao seu encontro (v. 20). O seu amor é
mais forte do que a ira. Seu perdão é imediato e pleno, inclusive dando
ao filho o que de melhor se poderia dar: os sinais de autoridade e de
restauração como filho.
Ele se alegra com o arrependimento do filho. Porém, ele não ama
apenas este filho. Ama também o filho velho e vai em busca dele, “argumentando” com ele e procurando ganhá-lo para o seu ponto de
vista. O grande ponto de virada na narrativa acontece com o convite
do pai ao filho mais velho.
Ao correr da narrativa, fica evidente que os pontos de vista do filho
mais novo e do filho mais velho devem ser abandonados. Por quê?
Porque o filho mais novo pecou contra o pai, e ele mesmo reconhece
isso; pediu a herança, querendo, em última análise, que seu pai morresse. Foi embora de casa, para um país distante, e lá gastou tudo o
que possuía. Não bastasse isso, foi trabalhar com porcos, o que era
algo indigno. Resolve voltar para casa. A reação natural seria ser mandado embora. Depois do que fizera, não teria nem direito a roupa e
alimentação, talvez nem como empregado. Com certeza, o leitor é levado pelo autor implícito a não aceitar este ponto de vista, pois ninguém quereria primeiro errar para aprender o que é realmente certo.
O filho mais velho mostra sua total falta de compaixão. Pensa que
tem o direito de recriminar o seu pai. Não considera aquele que voltou
seu “irmão”, dirigindo ao pai as palavras “este teu filho” (v. 30). Aparentemente, estava muito preocupado com aquilo que era de seu pai.
No entanto, a sua reação deveria ter sido outra, se é que realmente
estava interessado no bem da família. Uma vez que o pai estava alegre, caberia a ele, como bom filho, também alegrar-se.
É claro que a atitude dele não é apresentada como digna de imitação. Seu ponto de vista é meramente o de “retribuir na mesma moeda”: “O filho gastou o dinheiro? Quis ir embora? Pois bem, que se vá
agora e não retorne mais”.
91
Jeremias, op. cit., p. 130.
41
IGREJA LUTERANA
Mas o ponto de vista preferencial da história é o do pai. Faz a vontade do filho, dividindo os bens. Mesmo após fazer tal ato de amor, o
filho foge. E quando retorna, o pai vai ao seu encontro, corre até ele,
abraça-o e o beija. Para um oriental, pai de família, talvez até de idade
avançada, tratava-se de algo “totalmente incomum e abaixo de sua
dignidade, mesmo quando tem muita pressa”.92
As atitudes do pai são surpreendentes. Tamanho amor assim não é
normal. Não deixa nem o filho terminar o seu discurso, e trata-o como
seu filho querido. Apesar do desacato do filho que havia ficado em
casa, o pai vai até ele com igual amor e procura persuadi-lo a entrar
para a festa. Isso manifesta-se de forma especial na interpelação “meu
filho!”, o que equivale a “meu querido!”93
Conclui-se que o ponto de vista do pai é aquele a ser seguido.
Suas atitudes são admiradas e exaltadas por todos que realmente
entendem a parábola. A despeito das trapalhadas e do desdém dos
seus filhos, o amor do pai sobrepõe-se a tudo e a todos. De tal forma
é o amor de Deus, presente em Jesus Cristo, que os publicanos estavam tentando reconhecer e os fariseus faziam gosto em desmerecer.
Quanto ao irmão mais velho, o leitor implícito provavelmente sentirá uma antipatia com relação a ele. “Não é o tipo de pessoa que quero
ser!” Quanto ao irmão mais novo, é provável que o leitor sinta certa
simpatia quando do seu arrependimento, mas na maior parte da narrativa sentirá aversão a ele, pois viveu de forma desordenada e impensada, gastando algo que o pai havia conquistado com muito trabalho.
A grande simpatia do leitor ficará com o pai. Afinal, ele fez mais,
muito mais do que era esperado. O ponto de vista do pai é o ponto de
vista divino. O pai é o grande personagem, o protagonista por excelência.
Parece claro, pois, pelo contexto da narrativa (15.1-2), que o pai
representa Deus em Cristo; o filho mais velho seriam os escribas e
fariseus; e o mais novo, os publicanos e pecadores.94 Aliás, estes personagens, juntamente com os discípulos (que, em geral, têm o mesmo
ponto de vista de Jesus), são também os personagens do restante do
Evangelho segundo Lucas.
Os acontecimentos: A tônica de conflito que perpassa o Evangelho
92
93
94
Ibidem, p. 131.
Ibidem, p. 132.
Hillyer H. Straton, A Guide to the Parables of Jesus (Grand Rapids: Eerdmans, 1960), p. 89.
42
A PARÁBOLA DO PAI AMOROSO E DOS FILHOS PERDIDOS
(LC 15.11-32) SOB A PERSPECTIVA DA ANÁLISE DA NARRATIVA
tem destaque neste capítulo: Escribas e fariseus versus publicanos e
pecadores. Jesus não explicita na parábola esta classificação, mas a
deixa subentendida. Ambos cumprem um papel importante na narrativa dos Evangelhos.95
A narrativa começa com a especificação de que um pai tinha dois
filhos (v. 11). Isto indica que o filho mais velho está na história desde o
início.96 O filho mais moço, então, pede ao pai a parte que lhe cabia dos
bens. Teria direito a um terço das propriedades. Como foi visto, esta
era uma atitude intempestiva, que trazia uma série de pressupostos
embutidos, como até mesmo almejar a morte de seu pai.
Pediu e obteve. O motivo de sua saída de casa não é explicado
pelo texto. Foi para uma “terra distante” e lá viveu, esbanjando tudo o
que tinha. “Depois de ter consumido tudo” não descreve o tempo que
o pródigo levou até gastar tudo o que possuía, mas denota apenas o
tempo no qual “sobreveio àquele país grande fome”. Não bastasse ter
gasto todo o dinheiro, uma quebra na economia nacional deixou-o em
maus lençóis. Duas desgraças simultâneas ainda não foram suficientes para fazê-lo repensar sua atitude.
Passando necessidade, foi até um dos cidadãos da cidade. Este lhe
deu um emprego: cuidar dos porcos da fazenda. Era o extremo da
humilhação. “Ele tem que ocupar-se com animais impuros (Lv 11.7),
não pode santificar o sábado, isto é, ele chegou ao extremo da humilhação e praticamente obrigado a sempre renegar sua religião”.97 Desejava comer aquilo que os porcos comiam, ou seja, as alfarrobas.98 O
texto diz que “ninguém lhe dava nada”, o que nos faz pensar na hipótese de que até teria roubado para poder se alimentar.
“Caindo em si” é o termo que designa seu arrependimento. Olhou
para trás e viu quantos erros havia cometido ao longo da vida. Notou
também que até mesmo os empregados do seu pai tinham o que comer, e ele tinha de roubar a comida dos porcos. Reconheceu sua indignidade de continuar a ser chamado “filho”, mas iria implorar ao pai que
o tratasse como um simples e humilde servo seu.
Leon Morris, ao comentar os vv. 18 e 19, observa que o motivo
Kingsbury, Conflict in Luke, p. 94.
Leon L. Morris, Lucas – Introdução e Comentário (São Paulo: Vida Nova e Mundo
Cristão, 1990), p. 226.
97
Jeremias, op. cit., p. 131.
98
A alfarroba, segundo a Bíblia de Estudo Almeida, era um fruto em forma de vagem,
proveniente da alfarrobeira, uma árvore comum na Palestina. Essas vagens serviam de
alimento aos animais, e as pessoas sem recursos também as comiam em casos de
extrema necessidade.
95
96
43
IGREJA LUTERANA
inicial do jovem não era especialmente altaneiro (o desejo de ser mais
bem alimentado, 17), mas que “a confissão que planejou fazer é um
clássico. Expressou tristeza, não por aquilo que perdera, mas sim, por
aquilo que fizera: pecara”.99 Ele reconheceu que seu pecado era, antes
de tudo, contra Deus, porque o pecado é sempre contra Deus antes
de ser contra qualquer outra pessoa. Diante disso, voltou.
Um aspecto textual que se destaca é o fato de ele ter voltado “para
seu pai”, e não para sua aldeia, ou para a fazenda. É provável que o
pai tinha esperanças de que o filho voltasse. O que chama a atenção
no texto não é a volta do pródigo; qualquer ser humano em condições
normais de inteligência saberia que não restava ao filho outra saída, a
não ser voltar. Para onde iria, a não ser para casa? Era sua última
cartada.
A grande virada na narrativa é o evento da recepção do pai. Este é
o maior ponto de virada. É algo totalmente ilógico, segundo os padrões judaicos da época. Jesus, então, não economiza detalhes para
mostrar a terna acolhida do pai. “Vinha ele ainda longe, quando seu
pai o avistou, e, compadecido dele, correndo, o abraçou e beijou”. Como
observa Bailey, “o pai faz com que a reconciliação se torne pública, na
entrada da aldeia. Desta forma, o filho entra na aldeia sob o cuidado
protetor do pai”. 100 E os atos do pai dispensam palavras. Não há palavras de aceitação e boas-vindas. O amor expresso é profundo demais
para ser mostrado através de palavras. Só atos conseguem fazê-lo.
O discurso ensaiado pelo pródigo quando ainda em terra estranha
não foi totalmente concretizado. Foi interrompido pelo beijo e o abraço
do pai.101 O filho conseguiu, porém, dizer o mais importante: estava
arrependido de ter pecado contra Deus e contra o pai.102
Continuam os atos amorosos do pai. Manda que seus servos busquem a “melhor roupa”, o “anel” e as “sandálias”. Estes elementos
denotavam o carinho muito especial pelo filho que voltara; são o
restabelecimento da sua condição de “filho”.103 O “novilho cevado” era
um animal cuidadosamente tratado, reservado para uma ocasião especial. O fato de o pai ter ordenado que fosse abatido nessa ocasião
revela que, segundo ele, “dificilmente poderia haver uma ocasião mais
especial do que esta”.104
Começa, então, a grande festa. A ordem vem do próprio pai: “Co-
Morris, op. cit., p. 228.
Bailey, op. cit., p. 230.
101
Straton, op. cit., p. 79, 80.
102
Morris, op. cit., p. 228.
103
Jeremias, op. cit., p. 132.
104
Morris, op. cit., p. 228, 229.
99
100
44
A PARÁBOLA DO PAI AMOROSO E DOS FILHOS PERDIDOS
(LC 15.11-32) SOB A PERSPECTIVA DA ANÁLISE DA NARRATIVA
mamos e regozijemo-nos”. E o grande motivo para a festa é a volta do
filho: “... porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido
e foi achado”.
Este é o ponto central na narrativa: a festa de chegada do pecador
arrependido, fruto do grande e inesgotável amor do pai.105 É interessante notar que, na recepção ao filho mais moço, o tempo do discurso
é bem maior do que o tempo da história. Também é verdade que, em
se tratando do período em que o filho estava fora de casa, o tempo do
discurso é menor do que o tempo da história. Fica claro que a intenção
do autor implícito é ressaltar o comportamento divino do pai, o seu
ponto de vista.
Nas boas-vindas que o pai dá ao filho mais moço, Jesus está ensinando que o Pai celestial dá as boas-vindas aos pecadores que voltam. Isto era o que os fariseus não queriam entender e realmente não
entendiam. Os conflitos com os publicanos e, conseqüentemente, com
Jesus, não deixavam os fariseus entenderem o motivo desta festa celeste.
Mas este grande amor do pai não termina aqui, isto é, não se limita
ao filho mais novo. O pai também ama o filho mais velho. Para surpresa
de muitos pregadores, a narrativa prossegue.106 Há muitos folhetos,
meditações e pregações que falam sobre a primeira parte da parábola; falam coisas bonitas e maravilhosas, mas não dizem, de forma alguma, o que Jesus nos está ensinando. A história continua no versículo
25. É para este tipo de pessoa, orgulhosa, cheia de justiça própria,
que Jesus está contando a parábola.
Agora Jesus volta sua atenção ao filho mais velho. Ele também se
preocupa com os fariseus e aquelas pessoas que eram como eles. Os
líderes religiosos não haviam demonstrado nenhuma compaixão para
com os pecadores arrependidos. Esta seção da parábola é necessária
para a lição integral que Jesus está ensinando.107
O filho mais velho estava trabalhando “no campo” (v. 25) e, enquanto voltava, ouviu a música e o barulho das danças. O som deveria
estar muito alto, provavelmente orquestrado por artistas, não pelos
servos do pai.108 Ele, então, procura um funcionário de seu pai para
saber o que estava ocorrendo.
O servo não se preocupou em contar maiores detalhes ao filho mais
McQuilkin, op. cit., p. 53.
Robert H. Stein, An Introduction to the Parables of Jesus (Philadelphia: Westminster,
1981), p. 121.
107
Donahue, op. cit., p. 156.
108
Morris, op. cit., p. 229.
105
106
45
IGREJA LUTERANA
velho. Porém, o mais importante foi dito: o seu irmão havia voltado e o
pai tinha mandado matar o novilho cevado para comemorar a sua volta. O servo acrescenta ainda: “porque o recuperou com saúde” (v. 27).
A reação do filho mais velho foi de indignação. Mais uma característica sobre seu caráter. Não quis entrar para a festa. Não se pode deixar de ver aqui a semelhança com os fariseus.109 Eles não concebiam a
idéia que Jesus comesse com publicanos e pecadores. Não queriam
cear junto com tais pessoas. E, agora, são convidados a banquetear
todos juntos, como filhos amados de Deus.
Diante disso, a narrativa tem neste momento mais um ponto de
virada: “saindo, porém, o pai, procurava conciliá-lo” (v. 28). Vendo a
atitude grotesca do filho, o pai poderia muito bem tê-lo ignorado, deixando que resmungasse sozinho. Afinal, ele era o dono de tudo, era
pai dos garotos e o anfitrião da festa.
Mas não foi isso que o pai fez. Ele amava o filho mais velho tanto
quanto amava o mais novo. Por isso, foi em busca dele. Procurou trazêlo para junto do irmão mais novo. A festa era para ele também! A
alegria também deveria ser dele! Mas o irmão mais velho não entendeu assim. Seu orgulho não permitiu.
A resposta irada veio como um torpedo para cima do pai: “Há tantos anos que te sirvo e nunca me deste um cabrito sequer para alegrar-me com os meus amigos” (v. 29). Não podia entender por que seu
pai ficou tão cheio de alegria com a volta do pródigo. “Queixa-se que o
pai nunca lhe deu um cabrito (muito menos um novilho) para uma festa
com seus amigos (que seriam pessoas respeitáveis e não como os
colegas do outro filho)”.110
Não entendera a posição privilegiada em que se encontrava, como
dono de tudo que o pai tinha. Realmente, o filho não havia compreendido seu status de filho. Então, continuando com seu discurso de “filho–padrão”, podemos imaginar o filho mais velho dizendo acerca do
pai: “Este recebe pecadores e come com eles” (v. 2). Não considera o
pródigo seu irmão (“esse teu filho” – v. 30).111
No seu longo desabafo, fala que o mais jovem dissipou o dinheiro
do seu pai “com meretrizes”, algo que vai além do que foi dito até
então, e que pode ter sido sua própria invenção.112 Seu egoísmo e
vaidade ainda o denunciam: “tu mandaste matar para ele o novilho
cevado” (v. 30).
109
110
111
112
Prange, op. cit., p. 178.
Morris, op. cit., p. 229.
Bailey, op. cit., p. 245.
Morris, op. cit., p. 230.
46
A PARÁBOLA DO PAI AMOROSO E DOS FILHOS PERDIDOS
(LC 15.11-32) SOB A PERSPECTIVA DA ANÁLISE DA NARRATIVA
Entra novamente em cena o pai. A despeito das grosserias e
xingamentos, o pai dá-lhe uma palavra de ternura: “Meu filho”. Sim, o
filho não é servo, não precisa servir como escravo: ele é filho do pai! A
brandura do pai alcança os dois filhos, e não somente o primeiro.
“Tu sempre estás comigo; tudo o que é meu é teu” (v. 31) é o
argumento usado pelo pai a fim de lembrar ao filho que a distribuição
dos bens continuava de pé. Ele não precisava queixar-se acerca do
cabrito, pois tudo era dele. Tinha os mesmos privilégios do outro filho,
mas infelizmente não reconhecia a extensão desses privilégios.
A parábola encerra aqui. O final da parábola é aberto. Digno de
nota é que o conflito que deu origem à parábola contada por Jesus foi
o fato de ele receber pecadores e comer com eles, conforme os versos
1 e 2. No final da parábola, fica o convite: “Junte-se a nós e vem pra
festa”.113 A pergunta que surge agora é: o filho mais velho entrou para
a festa? Isto o texto não responde. Jesus não responde: a resposta
depende de cada fariseu.114
Esta é uma parábola do reino, embora o texto não o diga explicitamente. Ela revela e ensina a graça do reino. É interessante observar
que a túnica e o banquete simbolizam a graça de Deus. O título da
parábola, “O Pai Amoroso e os Filhos Perdidos”, faz-nos refletir justamente sobre isso: em primeiro lugar está o amor do pai, que perdoa
todos os desvios dos filhos; a força motriz não é algo de bom nos
próprios filhos, que demonstraram o quanto erravam enquanto seguiam seus próprios caminhos. A força motriz é a certeza de que o amor
do Pai é maior do que a ira, e que, junto a ele, o perdão é sempre
certo.
Função literária: “Quando leitores encontram uma parábola nos
Evangelhos, eles precisam perguntar não somente qual é o ponto de
Jesus, mas qual função literária a parábola tem para o evangelista”.115
Este ponto, extremamente relevante, é um dos objetivos desta investigação. A função que a parábola exerce dentro da narrativa maior do
Evangelho conforme Lucas nos ajuda a entender qual o tema central
do relato.
Já vimos que a parábola foi um recurso retórico importantíssimo no
ministério de Jesus, pois através desta didática simples as pessoas
eram ensinadas a respeito da graça divina e também persuadidas a
113
114
115
Prange, op. cit., p. 178.
Donahue, op. cit., p. 162.
Tate, op. cit., p. 117.
47
IGREJA LUTERANA
“entrarem para a festa do reino”, como ficou explícito na parábola do
Pai Amoroso e dos Filhos Perdidos.
Muito se tem argumentado que Lucas escreveu sua narrativa tendo em vista uma apologia da pregação do evangelho aos pobres. Não
há razão para se negar esta afirmação. Realmente, pelo contexto narrativo, vemos que Lucas incluiu, muitas vezes, os pobres e párias da
sociedade para dizer que eles também são dignos de ouvir o evangelho.
Porém, a ênfase extremada nesse tópico pode dar a entender que
Lucas era uma espécie de “radical socialista”, onde quem tivesse um
pouco mais de dinheiro não era amado por Deus e, conseqüentemente, indigno de ouvir a maravilhosa mensagem do amor de Deus.
O que Lucas nos diz está muito acima da pregação do evangelho
aos pobres; o autor implícito dá-nos algo muito maior para o entendimento da narrativa: Deus ama a todos, indistintamente. Ama tanto os
fariseus quanto os publicanos; tanto as mulheres quanto os homens;
tanto os ricos quanto os pobres.
Desde o início da narrativa, Lucas descreve a universalidade da
salvação como o tema característico do seu Evangelho. Lucas usa quatro vezes a palavra “salvação”, duas vezes “Salvador”, e o verbo “salvar” também aparece com freqüência.116 Segundo I. H. Marshall, “a idéia
da salvação fornece a chave à teologia de Lucas”.117
Lucas começa e termina seu Evangelho com pessoas no templo em
Jerusalém. Ao todo, refere-se a Jerusalém 31 vezes. Há referências à
viagem a Jerusalém, ao templo em Jerusalém, e todas estas referências obrigam-nos a não negligenciar a “qualidade judaica”118 do Evangelho, isto é, a narrativa não é dirigida somente aos gentios, mas muito
especialmente também aos judeus.
Isto não é dito apenas pela estatística. O tom pastoral do Evangelho mostra que a mensagem da salvação é dada aos homens em geral, não somente a Israel, e também não somente aos gentios, como
os publicanos e pecadores.
No capítulo 5, começa o conflito que permeia a narrativa de Lucas.
O contexto é Jesus comendo com pecadores, e os fariseus novamente
repudiando a atitude de Jesus. Eles não falam a Jesus, mas interpelam
os discípulos. Jesus responde, dizendo que “os sãos não precisam de
médico, e sim os doentes” (v. 31).
116
117
118
Morris, op. cit., p. 34, 35.
I. H. Marshall apud Morris, op. cit., p. 35.
Morris, op. cit., p. 35, 36.
48
A PARÁBOLA DO PAI AMOROSO E DOS FILHOS PERDIDOS
(LC 15.11-32) SOB A PERSPECTIVA DA ANÁLISE DA NARRATIVA
No capítulo 6, novamente o conflito: Jesus e os discípulos são recriminados por debulhar espigas no sábado. Jesus é o dono da situação,
ele é o Senhor do sábado. Os fariseus parecem não entender, pois
logo em seguida atacam Jesus por curar um homem de mão ressequida num sábado. No verso 35, Jesus diz: “Pois ele [Deus] é benigno até
para com os ingratos e maus”.
O outro lado da moeda é mostrado no capítulo 7. Jesus cura o servo de um centurião, um sujeito de muita autoridade na época. Não são
só os desprezados que são amados por Jesus. Todos são amados por
ele, independentemente da classe social. É verdade que os ricos tinham um apego às riquezas que se tornava um obstáculo à fé, mas
Jesus os considera como “perdidos” e quer trazê-los também para junto
do Pai.
Ainda no capítulo 7, Jesus vai até a casa de um fariseu. Lá também
há um conflito, por causa da pecadora que unge os pés de Jesus. O
fato de Jesus ter repreendido o fariseu com severa lei deve-se ao fato
de ele e, em geral, sua classe, rejeitar a Jesus. A própria parábola do
Pai Amoroso e dos Filhos Perdidos retrata que o Pai celeste faz isto
tendo em mente a salvação dos seus filhos.
Quando Jesus ressuscita a filha de Jairo, o “chefe da sinagoga”
(8.49-56), mais uma vez fica evidente o amor indiscriminado de Deus.
Apesar de rirem de Jesus, apesar de o conflito estar cada vez mais
prestes a estourar, Jesus mostra que o seu amor pelos pecadores supera as fronteiras do pecado.
Mais uma severa aplicação de lei aos fariseus está registrada em Lc
11.37-52. Neste texto, novamente um conflito acentuado, Jesus censura os fariseus por sua falta de fé e, com dor no coração, profere uma
série de “ais”, a fim de que se arrependessem daquilo que estavam
fazendo. A repreensão continua no capítulo 12, mas o cuidado de Jesus é pela salvação de suas almas, o que Lucas mostra com a parábola do homem rico, que perdera sua alma por confiar em si e nos seus
esforços.
À medida que a narrativa prossegue, o conflito se acentua.119 Então, chegamos ao capítulo 15, onde Jesus conta as parábolas acerca
dos perdidos. Estes relatos não são apenas uma justificativa da missão aos gentios120; são mais uma prova de que o amor de Deus alcança fariseus e publicanos, os perdidos, aqueles que estavam longe de
119
120
Esta idéia é advogada por Jack Kingsbury, em “Matthew As Story“ e “Conflict in Luke“.
Edwards Jr., op. cit., p. 70.
49
IGREJA LUTERANA
Deus e que, alcançados pela mensagem salvífica, eram levados a crer.
Sim, Deus vai em busca dos perdidos, fruto de sua misericórdia. Em
cada uma dessas parábolas, a ênfase recai sobre quem encontra, e
não sobre quem está perdido. Essas parábolas apresentam em forma
narrativa a teologia paulina da justificação dos pecadores por dom
imerecido da parte de Deus.121
Com a parábola do fariseu e do publicano no capítulo 18, Jesus
novamente reprova a atitude dos fariseus. O ponto principal é a “justificação” do pecador, o que Jesus queria também para os fariseus, e
não apenas para o publicano. Foi para aqueles “que confiavam em si
mesmos, por se considerarem justos” que Jesus contou a parábola,
querendo que a salvação alcançasse a estes também, por estarem
perdidos.
“Porque o Filho do Homem veio buscar e salvar o perdido” (19.10)
mostra novamente a tônica do evangelho. Os perdidos não são apenas os publicanos, mas também e principalmente os escribas e fariseus,
que, num certo sentido, estavam mais longe de Deus do que os
publicanos e pecadores.
O conflito torna-se insustentável. Parece que não vai haver saída.
Enquanto existir a maldade do pecado na vida do ser humano, e que
só cessará na bem-aventurança eterna, o conflito com Jesus e sua
palavra continuará existindo. No entanto, dentro da narrativa de Lucas
há uma “resolução fundamental” do conflito entre Jesus e os líderes
religiosos. Segundo Kingsbury, essa resolução fundamental ocorre no
final do Evangelho (Lc 22.1-24.53).122 Na última cena em que aparecem
as autoridades, junto à cruz de Jesus (Lc 23.35), tudo parece indicar
que elas saíram vitoriosas. O que elas não percebem, todavia, é a
ironia de que a morte de Jesus era a vontade de Deus. Ao ressuscitar,
Jesus saiu vitorioso em seu conflito com Israel (Lc 24.5-7).
A narrativa total de Lucas nos faz ver um Deus amoroso, disposto e
pronto a perdoar os pecados dos seus filhos. A parábola do Pai Amoroso e dos Filhos Perdidos encaixa-se perfeitamente nesta temática. Deus
vai em busca dos perdidos, sejam eles fariseus ou publicanos, ricos ou
pobres, mulheres ou homens. O evangelho é oferecido gratuitamente
a todos os homens. Esta notícia é maravilhosa! Proclamemos aos quatro ventos esta “manchete internacional”!
121
122
Donahue, op. cit., p. 159.
Kingsbury, Conflict in Luke, p. 106.
50
A PARÁBOLA DO PAI AMOROSO E DOS FILHOS PERDIDOS
(LC 15.11-32) SOB A PERSPECTIVA DA ANÁLISE DA NARRATIVA
Pregando a parábola: As parábolas de Jesus foram e continuam
sendo textos de sermão. Cada nova geração de pregadores precisa
perguntar: como pregar as parábolas? Em resposta, pode-se dizer que
as parábolas precisam ser pregadas respeitando-se três aspectos.
O primeiro diz respeito à descoberta do sentido do todo. Não se
pode “sair pregando” a parábola, agarrando-se a uma palavra aqui,
outra ali, mas é preciso levar em conta o sentido do todo. Por isso, a
Análise da Narrativa propicia que se veja o texto como um todo, como
uma história que tem começo, meio e fim.
Outro aspecto imprescindível é ter em mente o propósito de Jesus.
Ele não contou parábolas para informar ou apenas ilustrar. Contou
parábolas para captar o ouvinte e levá-lo a uma mudança de atitude
diante do reino de Deus. As parábolas são maneiras de falar para dentro de uma situação problemática, de conflito, procurando trazer o ouvinte para o ponto de vista divino.
Estes dois aspectos já foram analisados no decorrer deste estudo.
Compete agora analisar o terceiro: pregar a parábola – e pregá-la de
modo criativo. Como alguém observou certa vez, enquanto Jesus falava por parábolas, nós falamos sobre suas parábolas. Como proceder,
então?
Basicamente, há duas possibilidades. A primeira é apresentada por
Jacques Dupont,123 e consiste em transportar o ouvinte (leitor) moderno ao tempo e lugar em que as parábolas foram inicialmente contadas.
Trata-se de fornecer detalhes históricos, culturais, etc. sobre a vida do
povo daquela época. Pode-se fazer isto, embora logo de saída seja
necessário advertir contra o perigo de transformar o sermão num estudo exegético.
Para a pregação da parábola do Pai Amoroso e dos Filhos Perdidos,
se este for o caminho escolhido, é fundamental que os detalhes históricos e culturais sejam fornecidos. Caso contrário, os ouvintes não entenderão o absurdo do pedido do filho, o fato de ele trabalhar com
porcos, o novilho cevado e outros detalhes empolgantes da história
que Jesus contou. Dupont lembra que “o caminho não é impraticável;
tem o inconveniente de ser longo, de distrair a atenção do essencial
da mensagem em proveito do acessório, de supor um nível cultural
relativamente elevado”.124
Outra possibilidade, na pregação de parábolas, é a tentativa de
123
Jacques Dupont, O método das parábolas de Jesus hoje (Petrópolis: Vozes, 1984), p. 22,
23.
124
Ibidem, p. 22, 23.
51
IGREJA LUTERANA
modernizar as parábolas, adaptando sua linguagem à experiência diária do homem de hoje. Este modelo, levantado por Gerard H. Knoche,
procura traduzir as parábolas para a situação contemporânea, ou seja,
a vida numa sociedade industrializada e urbana. Em outras palavras,
deve-se considerar a possibilidade de traduzir a parábola, usando um
contexto e personagens do mundo de hoje.125
Ligado a isto, e talvez mais complexo ainda, é criar novas parábolas. Nossa tendência, na verdade, é intelectualizar a parábola, explicar
longamente sua lição. Devemos ter em mente que os ouvintes querem
ver, apalpar, sentir – e não tanto pensar. Criar novas parábolas, análogas àquela de Jesus, com a mesma lição, requer esforço. Quem o quiser fazer deve estar disposto a correr o risco de “capotar”. No entanto,
não custa tentar.
Aplicando a Parábola do Pai Amoroso e dos Filhos Perdidos, podese dizer que falar de uma saída de casa, como o caso do filho mais
novo, pode não ser uma boa solução. Há tantos jovens que também
saem de casa, hoje, e não se trata mais de algo tão incomum como
naquela época. O erro de foco com relação ao protagonista pode desvirtuar o ensino da parábola. Colocar a ênfase na volta do filho mais
novo pode dar uma conotação sinergista e legalista para o ensino de
Jesus.
O amor do pai pelos seus dois filhos (e não apenas um deles) é o
ponto alto e central da narrativa. É a festa de recepção que dá o tom
para a virada do enredo. Para mostrar quão surpreendente é a atitude do pai, isto é, a forma amorosa como Deus acolhe o pecador, Archibald
Hunter conta uma parábola oposta, que parece mais verossímil: “Vocês
devem ter ouvido a história daquele pródigo de nossos dias que, aparecendo na terra distante da paróquia vizinha, foi aconselhado pelo
pastor local a ‘voltar para casa, pois o pai acabaria matando o novilho
cevado para ele’. Foi o que o pródigo fez. Um tempo depois, aquele
pastor e o pródigo tiveram novo encontro. O pastor perguntou: ‘E aí, o
pai matou o novilho cevado?’ Ao que o pródigo, com ar de tristeza,
respondeu: ‘Não, mas ele quase matou o filho pródigo”.126
Por isso, propomos um método narrativo para a proclamação da
parábola. Pode-se recontar a história, talvez com fatos atuais, num
contexto bem nosso. Isso pode aguçar a imaginação dos ouvintes, e
fazer com que captem mais propriamente o sentido da parábola.
Por exemplo, dizer que um filho roubara seu pai, fugira de casa,
gastara todo o dinheiro com prostitutas e com drogas, tendo depois
125
126
Gerard H. Knoche, The Creative Task: Writing the Sermon (St. Louis: Concordia, 1977), p. 9.
Archibald M. Hunter, The Parables Then and Now (Philadelphia: Westminster, 1975), p. 60.
52
A PARÁBOLA DO PAI AMOROSO E DOS FILHOS PERDIDOS
(LC 15.11-32) SOB A PERSPECTIVA DA ANÁLISE DA NARRATIVA
que assaltar para poder sobreviver e, mesmo assim, não conseguindo
alimentar-se direito, pode chocar o ouvinte, mas pode retratar o impacto da parábola que Jesus contou. Tal filho não seria digno de voltar
para casa, nem ser recebido por seu pai. Mas acontece o contrário. O
pai gasta uma pequena fortuna para fazer uma festa de recepção ao
filho. Retira um dinheiro da poupança, que estava reservado para a
ampliação de sua empresa, e investe em roupas novas, carro novo e
outros acessórios para o filho que voltara.
O filho que ficara em casa não entende a situação e se revolta.
Apesar disso, o pai vai em busca dele, dizendo que ele também o amava, e que convinha que ele se alegrasse junto com todos os familiares,
por causa do irmão que voltara. O final continua aberto: o filho entrou
para a festa ou não?
Mais uma vez, o que surpreende aqui não é a volta do filho que,
tendo esgotado todo o seu dinheiro e perdido a sua honra, tem como
última alternativa tentar algo em casa, com seu pai. O que chama a
atenção é a atitude do pai, amoroso com o filho, alegre por sua volta,
jubiloso por encontrá-lo com vida. A mensagem também é direcionada
para o filho mais velho, descontente com tal atitude de seu pai; aqui
igualmente fica claro que o filho mais velho não compreende o que
significa ser filho e, conseqüentemente, dono de tudo, juntamente com
seu pai.
Como foi dito, todos os detalhes acima descritos podem chocar o
ouvinte, mas podem dar uma visão do impacto que Jesus causou há
dois mil anos atrás, quando contou esta parábola. Além do mais, o
pregador que não investe na criatividade, segundo Thielicke, acaba se
tornando uma testemunha infiel. Traduzir a mensagem para o homem
de hoje nos leva a fazer tentativas sempre sujeitas a fracassos, e
também correr riscos. Quem sempre repete as velhas frases não corre
riscos. Segundo Thielicke, quem fala a mensagem para a necessidade
atual, sempre corre o risco de queimar os dedos na chapa quente da
heresia.127
Seja como for, as parábolas estimulam a pregação criativa. Elas
indicam que é importante fugir da redução de tudo a um punhado de
teses ou verdades e evitar, na medida do possível, aquela terminologia teológica técnica que, por mais importante que seja no contexto
eclesial e acadêmico, não se destina ao consumo do grande público.
Deve-se resistir ao máximo à tentação de empregar sempre as mesmas velhas palavras em sempre novas combinações. O estudo das
parábolas nos estimula a isso também.
127
Helmut Thielicke, The Trouble with the Church (New York: Harper & Row, 1965), p. 40.
53
IGREJA LUTERANA
54
PROCEDENDO DE ACORDO COM MATEUS
18: UMA INTERPRETAÇÃO DE MATEUS
18.15-20 À LUZ DO SEU CONTEXTO1
Jeffrey A. Gibbs e Jeffrey Kloha
Se teu irmão pecar [contra ti], vai argüi-lo entre ti e
ele só; se ele te ouvir, ganhaste a teu irmão; 16 Se, porém, não te ouvir, toma ainda contigo uma ou duas pessoas, para que pelo depoimento de duas ou três testemunhas toda a palavra se estabeleça. 17 E se ele não os
atender, dize-o à igreja; e se recusar a ouvir também a
igreja, considera-o como um gentio e publicano. 18 Em
verdade vos digo que tudo o que ligardes na terra, terá
sido ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra,
terá sido desligado no céu. 19 Em verdade também vos
digo que, se dois dentre vós, sobre a terra, concordarem
a respeito de qualquer coisa que porventura pedirem,
ser-lhes-á concedida por meu Pai que está nos céus. 20
Porque onde estiverem dois ou três reunidos em meu
nome, aí estou eu no meio deles.
15
Mateus 18.15-202 é talvez o texto mais conhecido no Evangelho de
Mateus ou até mesmo do Novo Testamento. Cristãos o têm usado em
situações de litígio e solução de conflitos congregacionais. Seja para
lidar com falsa doutrina, disciplina eclesiástica ou outras situações. Algumas vezes esse texto até tem funcionado em termos de acusação
mútua entre as partes conflitantes: “você não procedeu segundo
Mateus 18”!
Contudo, nós queremos argumentar que o texto 18.15-20 não deveria ser aplicado em formas que se ignore ou mesmo seja violado seu
1
Jeffrey A. Gibbs and Jeffrey J. Kloha. Professores de Teologia exegética no Concordia
Seminary de St. Louis, U.S.A. Concordia Journal, Volume 29, Janeiro/2003, Número 1,
pp.6-25. Texto traduzido por Anselmo Ernesto Graff, professor na Área Prática do Seminário Concórdia e ULBRA e revisado pelo Dr. Vilson Scholz, consultor da SBB, professor
no Seminário Concórdia e ULBRA. Traduções do Concordia Journal são publicadas na Igreja
Luterana com permissão dos editores.
2
A partir daqui as referências a Mateus serão citadas somente pelo capítulo e versículo.
55
IGREJA LUTERANA
contexto no “Discurso Eclesiástico”, que é 18.1-353. Neste ensaio tentaremos apresentar uma análise da estrutura de 18.1-35, visando mostrar o devido lugar ocupado pelos versículos 15-20, no capítulo como um
todo. Depois procederemos com uma interpretação específica dos
versículos 15-20, procurando entender sua mensagem à luz do seu contexto no discurso completo de Jesus. Além disso, serão feitas algumas
reflexões conclusivas sobre a teologia e aplicação deste texto.
MATEUS 18.1-4 COMO A BASE PARA A ESTRUTURA DE MATEUS 18
Não há um consenso geral a respeito da estrutura e coerência de
18.1-35, o quarto dos cinco grandes discursos no Evangelho de Mateus.
A monografia de William G. Thompson [1970], que é o único e mais
compreensivo estudo publicado sobre este texto, notou essa falta de
concordância há mais de 30 anos atrás e esta situação não se alterou4. Porém, queremos sugerir que Mateus 18 exibe uma unidade
temática que se torna aparente quando alguém define com precisão a
função e figura da criança [paidi,on] em 18.1-4. Antecipando os resultados da análise da estrutura do capítulo, em 18.1-4, Jesus usa uma
criança para redefinir o conceito de “grandeza” no reino dos céus. Na
comunidade dos discípulos que reconheceram a presença do reino dos
céus em Jesus, o maior, o membro mais importante da comunidade é
exatamente aquele que está em necessidade de maior de cuidado,
alimento e proteção. Ao desenvolver consistentemente o tema do “cuidado pelo mais necessitado”, cada unidade em Mt 18 contribui para o
aumento deste cuidado e culmina com o ensino a respeito do perdão
ilimitado que os discípulos de Jesus estendem um ao outro. Para confirmar o entendimento desta unidade temática de 18.1-35, vamos focar
a atenção em 18.1-4, especialmente na imagem da “criança” na sociedade antiga e no Evangelho de Mateus.
Em 18.1 os discípulos de Jesus se aproximam dele e lhe perguntam: “Quem é porventura, o maior no reino dos céus?” Dois fatores
ajudam a mostrar que os discípulos questionam a Jesus duma persAo referir 18.1-35 como “o Discurso Eclesiástico”, a intenção não é negar a conexão
próxima que existe entre Mt 17.22-27 e 18.1-35. William Thompson argumenta que
“naquela hora” (v.1) possui uma grande força conectiva com o texto precedente [“Matthew’s
Advice to a Divided Community, Mt 17.22-18.35“. Analecta Biblica, Roma: Biblical Institute Press, 1970]. De forma similar, D.A.Carson, “Matthew,” in Frank E. Gaebelein, gen.
ed., The Expositor’s Bible Commentary, vol. 8 [Grand Rapids: Zondervan, 1984], 396.
4
Thompson, “Matthew‘s Advice”, 2-4; Donald A. Hagner, Mateus 14-28, WBC vol. 33b
[Nashville: Word, 1995], 514, declara, “Não há unanimidade a respeito da estrutura
desse discurso”. Há também um estudo de Daniel Warren Ulrich, “True Greatness: Matthew 18 in its Literary Context“, [Dissertação de Ph. D., Union Theological Seminary,
Virginia, 1996].
3
56
PROCEDENDO DE ACORDO COM MATEUS 18:
UMA INTERPRETAÇÃO DE MATEUS 18.15-20 À LUZ DO SEU CONTEXTO
pectiva que está muito longe da realidade que reflete o reino dos céus.
Em primeiro lugar, o caráter geral dos discípulos em Mateus5 nos faz
concluir que em outras ocasiões (13.10; 15.12; 17.19) e também aqui,
os discípulos “não sabem o que pedem” (cf.20.22). Um leitor ou ouvinte bem informado do Evangelho de Mateus sabe que quando os discípulos se aproximam de Jesus para lhe perguntar algo, eles quase sempre o fazem em ignorância ou motivação pecaminosa. Em segundo lugar, o fato de Jesus escolher uma “criança” é tão inesperado, que fica
claro que ele estava buscando remodelar e radicalmente reformar o
pensamento de seus discípulos sobre o que significa ser “o maior”6
entre a companhia dos discípulos que o estavam seguindo no tempo7
presente do reino de Deus na história humana8.
A resposta inicial de Jesus (18.2-3) não diz respeito diretamente à
questão da grandeza. Antes, ele responde declarando enfaticamente
que somente aqueles que se tornam “como crianças” entrarão no reino dos céus no último dia9. Para apreender o uso das palavras de
Jesus, deve-se determinar tanto o papel como o lugar que as crianças
ocupavam no mundo antigo e no Judaísmo, bem como verificar o uso
do termo “criança”, particularmente no Evangelho de Mateus.
Thompson, Matthew‘s Advice”, 84, and W. D. Davies and Dale C. Allison, Jr., A Critical
and Exegetical Commentary on the Gospel According to Saint Matthew, vol. 2 [New York:
T. & T. Clark, 1991], 755, concluem que o texto não indica se a pergunta dos discípulos
revela um entendimento deficiente. Porém, o todo mostra os discípulos e as questões que
eles fazem a Jesus, especialmente no Evangelho de Mateus, como favoráveis a essa
interpretação em 18.1 e sua questão como sendo errada ou inadequada. Ver Jeffrey A.
Gibbs, “Jerusalem and Parousia: Jesus’ Eschatological Discourse in Matthew’s Gospel“
[St. Louis: Concordia, 2000], 178. Carson, “Matthew,” 396, concorda que a questão dos
discípulos é equivocada, referindo-se à passagem paralela em Mc 9.33-37.
6
O adjetivo de comparação [mei,zwn, literalmente, “maior”] funciona aqui e no versículo 4,
como um superlativo [cf. F. Blass and A. Debrunner, trans. and ed. by Robert W. Funk, A
Greek Grammar of the New Testament and Other Early Christian Literature - Chicago:
University of Chicago Press, 1961, par. 60; James Hope Moulton, A Grammar of New
Testament Greek, vol. III, Syntax by Nigel Turner, 29].
7
Não há como determinar com clareza se a pergunta dos discípulos “quem é o maior no
reino dos céus”, se refere à manifestação atual do reino dos céus, à futura consumação, ou
mesmo ambos. Contudo, a resposta de Jesus enfatiza o valor e o cuidado dos discípulos
uns pelos outros, já no presente Reino dos céus, presente já agora no ministério de Jesus.
8
Donald Senior, C.P., “Matthew 18:21-35,” Interpretation 41 [1987]: 403-405, comenta,
“ao contrário da comunidade humana comum [cujo espírito está refletido na pergunta dos
discípulos] a comunidade de Jesus está construída sobre um diferente padrão de valores,
valores que vão de encontro ou mesmo subvertem pressuposições normais. Estranhamente, no reino dos céus alguém que é humilde, esse é o maior, aquele que parece ser o
mais fraco, esse é que deve ser o mais valorizado” [403].
9
Em Mateus a frase “entrar no reino dos céus/Deus”, consistentemente se refere à salvação escatológica final [cf. 5.29; 7.21; 19.23, 24]. Uma possível exceção poderia ser
23.13, que, todavia, pode também ser entendida como referência ao futuro. D. L. Stamps,
“Children in Late Antiquity,” in Craig A. Evans and Stanley E. Porter, eds., Dictionary of
New Testament Background [Downers Grove: InterVarsity, 2000],197.
5
57
IGREJA LUTERANA
A cultura e a sociedade greco-romana tinham uma visão diversificada
das crianças e fica difícil resumir em poucas palavras a perspectiva
geral. Todavia, a principal é de que crianças eram consideradas como
“adultos desinformados, que não tinham juízo e por esta razão necessitavam ser treinadas, o que incluía inclusive o castigo físico.”10. Embora as crianças claramente fossem, muitas vezes, amadas em suas famílias, o costume romano também permitia pais rejeitarem os filhos
“indesejados” e deixá-los morrer ou abandoná-los, expondo-os, para
que outros os encontrassem e os criassem como escravos11. A visão de
“criança como uma criança” naquele tempo continha um forte elemento negativo, que talvez possa ter sido o componente principal em como
as crianças eram vistas.
Albrecht Oepke12 pesquisou o lugar das crianças especificamente
no Judaísmo do Antigo Testamento. Ele conclui que “o julgamento geral é bem negativo. A criança não tem entendimento e é teimosa. Sua
inclinação é à desobediência e necessita de firme disciplina humana e
divina” (2 Rs 2.23s; Siraque 30.1-13)13. A pesquisa de outros estudiosos ecoa as conclusões de Oepke14. Crianças não eram modelos de
comportamento para os antigos assim como podem ser nos tempos
modernos. É difícil imaginar um pensador do primeiro século dizendo,
“tudo o que precisei saber, eu aprendi no jardim de infância”.15 Antes,
os antigos geralmente consideravam a criança como o menor, o mais
dependente, falto de entendimento e dependente da provisão de outros.
D. L. Stamps, “Children in Late Antiquity,” in Craig A. Evans and Stanley E. Porter, eds.,
Dictionary of New Testament Background [Downers Grove: InterVarsity, 2000], 197.
Stamps, “Children” 197-198.
12
Albrecht Oepke, “pai/j” in TDNT V.636-654.
13
Ibid., 646.
14
Warren Carter, Matthew: Storyteller, Interpreter, Evangelist [Peabody: Hendrickson,
1996], 250, escreve, “A audiência [do Evangelho de Mateus] sabe que no mundo antigo
as crianças eram geralmente consideradas como seres insignificantes e marginalizados,
o menor, ou menos importante na família (18.2-4). Isto mostra que os discípulos não
buscam por status maior ou de superioridade aos outros. Todos os discípulos compartilham do mesmo status de crianças que dependem uns dos outros e de Deus” [cf.Davies
and Allison, 2.759; Hagner, 517].
15
Ulrich Luz, Das Evangelium nach Matthäus, 3. Teilband Mt 18-25 [Zurich: Benziger
Verlag/Neukirchener Verlag, 1997], 12-13, nos ajuda a entender que na história da
interpretação deste capítulo, comentaristas na maioria das vezes não perguntaram “como
são as crianças”, mas antes “como crianças deveriam ser” [“Die Ausleger fragen meist
nicht danach, wie Kinder sind, sondern danach, wie Kinder sein sollten.”]. Luz, 13, nesse
sentido, dá um exemplo de como intérpretes através dos séculos têm caracterizado a
“criança ideal”. As idéias variam desde a libertação da experiência sexual [Orígenes], até
a disposição em aceitar a disciplina dos pais [Lutero].
10
11
58
PROCEDENDO DE ACORDO COM MATEUS 18:
UMA INTERPRETAÇÃO DE MATEUS 18.15-20 À LUZ DO SEU CONTEXTO
A figura de “crianças” no Evangelho de Mateus combina de maneira
significativa e positivamente com esta perspectiva geral na antiguidade. O vocábulo específico paidi,on em Mateus se refere à figura do
desprotegido Jesus que deve ser abrigado por José e Maria (2.8-9, 11,
13-14, 20-21), a crianças que são alimentadas em meio à grande multidão por ocasião dos milagres de Jesus (14.21; 15.28), às crianças
que recebem o carinho e a oração de Jesus (19.13-14) e os oponentes
adultos de Jesus, os quais são comparados como crianças sem juízo
que choram e murmuram (11.16). Quando alguém expande a pesquisa
para incluir outras palavras que se referem a crianças, os resultados
são essencialmente os mesmos.16 “Crianças” em Mateus, seja como
referência literal ou para adultos que agem como crianças, são inaptas, com necessidades de comida, de proteção, cura, oração, exorcismo e revelação divina. Elas não são modelos a serem seguidos no
sentido de que elas fazem coisas ou agem de forma exemplar. O mais
importante para entender a seqüência estrutural de Mateus 18 é saber que crianças nunca são exemplos de serviço humilde. Quando em
18.2-3 Jesus adverte seus discípulos que eles devem se tornar como
crianças para receber a salvação escatológica final, ele está lhes dizendo que somente aqueles que reconhecem sua completa necessidade e total inabilidade, é que entrarão no reino dos céus no último
dia. Nas palavras de Martin Franzmann, “somente a miséria das crianças pode receber a grandeza que Deus confere...”17
Em 18.4 Jesus realmente responde à questão dos discípulos em
18.1. “Quem é o maior no reino dos céus”? Baseado (ou=n -18.4) no que
Jesus acabou de dizer em 18.3, Jesus responde que “aquele que se
humilhar como esta criança, esse é o maior no reino dos céus”. A interpretação do “humilhar como esta criança” em 18.4 deve ser consistente com o entendimento do “tornardes como crianças” em 18.3, pois
18.4 logicamente está construído sobre 18.3. É aqui precisamente que
a interpretação tem sido às vezes capenga, considerando que “humilhar como esta criança” significa essencialmente “se tornar um servo
de outros”. Thompson, por exemplo, escreve que “todo o que se humilha como uma criança em seu meio será o maior no reino dos céus
(v.4). Com essa orientação inicial apontando para a futura entrada e
grandeza, a seguinte instrução (18.5-20) mostra como um verdadeiro
16
Para “nhpi,oij”, ver 11.25 e 21.16; para “pai/j”, ver 2.16; 8.6, 8, 13; 17.18; 21.15; para
“te,knwn”, ver 2.18; 7.11; 9.2; 15.26; 23.37.
17
Martin H. Franzmann, “Follow Me: Discipleship According to Saint Matthew” [St.Louis:
Concordia, 1961], 151.
59
IGREJA LUTERANA
discípulo pratica uma auto-humilhação semelhante à da criança na comunidade cristã aqui na terra”.18
É certamente o caso que “humilhar-se” pode, no seu devido contexto, ser um equivalente semântico de “tornar-se um humilde servo
de outros”. Este é o sentido geral de outro verbo em Mt 23.11-12 (o
único uso do verbo tapeinow no Evangelho de Mateus), 2 Co 11.7 e Fp
2.8 (cf. o adjetivo usado em Mt 11.29 e 2 Co 10.1). Todavia, “humilharse” no Novo Testamento na maioria das vezes significa “reconhecer a
necessidade de alguém e dependência”, como em Lc 14.11; 18.14; 2
Co 12.21; Fp 4.12; Tg 4.10 e 1 Pe 5.6 (cf. o adjetivo usado em Lc 1.52;
Rm 12.16; 2 Co 7.6; Tg 1.9; 4.6; 1 Pe 5.5). Devido à influência contextual
de 18.3 e à introdução do chamado de Jesus a “se tornar como crianças”, é extremamente improvável que “humilhar-se como uma criança”,
em 18.4, seja uma exortação a ser “maior no reino dos céus”, tornando-se um humilde servo aos outros. Antes, as palavras de Jesus em
18.4 dão uma resposta paradoxal à pergunta dos discípulos. Eles tinham perguntado, “quem é o maior no reino dos céus”? Sua resposta
é de que aquele que é mais parecido como uma criança é o maior – ou
seja, aquele que tem mais necessidades e que demanda um cuidado e
proteção maiores, esse é o maior. Humilhar-se “como uma criança”,
então, não significa “tornar-se um servo dos outros”, mas tem o sentido de reconhecer a posição inferior de alguém e olhar para os outros –
especialmente para Deus – para buscar ajuda, proteção e direção.
Estes pequeninos são os mais importantes, os “maiores” entre os que
reconhecem que o reino final de Deus entrou na história através de
Jesus, o Messias.19 Os discípulos necessitam desta compreensão, pois
este humilhar-se é que evita toda idéia de comparação e auto-suficiência e que olha em necessidade para Jesus como Messias e Salvador.
A ESTRUTURA DE MATEUS 18.1-35: UM CRESCENDO DE CUIDADO
A compreensão de 18.1-4 proposto acima é a chave que revela a
linha consistente e coerente no restante do capítulo – o tema do “cuidado pelo maior”. A idéia é oferecer breves comentários referentes a
Thompson, Matthew’s Advice, 84 [ênfase do autor]. Robert Gundry, Matthew: A Commentary on His Literary and Theological Art [Grand Rapids: Eerdmans, 1982], 361, erra
de um jeito parecido ao escrever que “a humildade não impede a modéstia e a autoestima, mas vai ao encontro do serviço concreto em benefício de outros (25.31-46)“.
19
A passagem paralela em Lc 9.46-48 explicitamente contém este mesmo ensino paradoxal do “menor e do mais necessitado” como o “maior”. Lá, depois de colocar uma criança
no meio dos discípulos, Jesus declara, “pois o menor entre vós, este é o maior”. Esta
teologia do “mais necessitado como o maior/mais importante” é também bem parecida
com o ponto de vista expresso por Paulo em 1 Co 12.22-25, onde “os membros do corpo
que parecem ser mais fracos, são necessários”.
18
60
PROCEDENDO DE ACORDO COM MATEUS 18:
UMA INTERPRETAÇÃO DE MATEUS 18.15-20 À LUZ DO SEU CONTEXTO
cada uma das unidades de Mt 18, e depois proceder com a análise de
18.15-20.
O discurso pode ser dividido de maneira apropriada em duas seções e que são caracterizadas por uma terminologia comum. Davies e
Allison sugerem que os seis parágrafos são constituídos em duas unidades tríades (18.1-5; 6-9; 10-14 e 18.15-20; 21-22; 23-35) e que
estão conectadas por um lado através dos termos “criança/crianças”
(18.2, 4, 5) e “pequeninos” (18.6,10,14) e por outro lado, com o termo
“irmão” (18.15, 21, 35)20. Há, todavia, algum debate a respeito da posição do versículo 5 na estrutura do capítulo. Este versículo está junto
com 18.1-4 ou com 18.6-10? Alguns estudiosos argumentam que em
18.5 há uma mudança de assunto e por esta razão 18.5 deveria estar
junto do que vem depois21. Porém, a “narrativa estranha” somente
será estranha se falhamos em ver que “criança” em 18.1-4 não é tanto
um “modelo para o discipulado”, mas um chamado para abandonar o
orgulho e reconhecer a própria condição humilde e de necessidade
espiritual. No entanto, se alguém entender corretamente o sentido da
comparação com a “criança” em 18.1-4, fica claro que de fato não há
mudança de assunto neste versículo. A “criança” de 18.1-4 não é alguém que está servindo os outros, mas alguém que precisa ser servida e ajudada. As palavras de Jesus em 18.5 avançam neste entendimento de “criança”22, ao afirmar que quando um discípulo recebe e
ministra para tal cristão, que é uma “criança”, aquele discípulo também
está recebendo ao mesmo tempo o próprio Jesus23.
Mateus 18.5 é mais bem entendido como um versículo de transição com forte conexão tanto com 18.1-4, como com 18.6-10. Entre os
vínculos entre 18.5 e o texto que precede estão o uso de paidi,on, que
ecoa o mesmo uso do termo em 18.2-4 e o conectivo kai., que muito
20
Davies & Allison, 750; Craig Keener, A Commentary on the Gospel of Matthew [Grand
Rapids: Eerdmans, 1999], 447-465, concorda com Davies & Allison, embora ele junte
18.21-35 como sendo uma unidade.
21
Thompson, Matthew’s Advice, 101, comentando sobre o v. 5 diz: “Jesus se refere mais
uma vez à criança no meio dos discípulos. Mas desta vez a lição parece ser diferente. A
criança não é mais apresentada aos discípulos como um modelo a ser imitado (vv.3,4),
mas representa o tipo de pessoa que eles irão receber em nome de Jesus”. De maneira
parecida Davies & Allison, 759, alegam que no v. 5 “ a narrativa lógica é um pouco
estranha. A criança não é mais um modelo a ser imitado [como nos vv.3-4], mas objeto de
ação de alguém”.
22
Carson, “Matthew,“ 398, nos ajuda a notar que “em meu nome” em 18.5, está em
paralelo com “aquele que crê em mim” em 18.6. Isto quer dizer que “quem receber uma
criança tal como esta em meu nome”, significa “todo aquele que recebe tal criança que crê
em mim”.
23
Carson, “Matthew“ 398, escreve que 18.5-6 avança com o pensamento ao dirigir a
atenção da auto-humilhação do verdadeiro discípulo (vv.3-4), para a maneira que outros
recebem tal “pequenino”.
61
IGREJA LUTERANA
provavelmente não dá início a uma nova unidade de pensamento24.
Além disso, a inclusão de “um destes pequeninos” em 18.6 e 18.10
sugere que 18.6-10 é uma discreta unidade de material. Por outro
lado, conexões entre 18.5 e o que segue incluem as fortes construções condicionais paralelas em 18.5 e 18.6, e o paralelo conceptual
entre “meu nome” (18.5) e “que crê em mim” (18.6). Também pode
ser acrescentado o fato de que Jesus explicitamente responde à questão dos discípulos (18.1) em 18.4 mostra que 18.1-4 é uma unidade
distinta.
Como as conexões verbais, gramaticais e conceituais se dirigem de
18.5 em ambas as direções, o versículo é visto melhor como uma transição de 18.1-4 a 18.6-10 e que inclui temas de ambas as seções. Com
respeito a 18.1-4, o v.5 acrescenta a verdade que os discípulos de
Jesus deveriam estar dispostos a receber e ministrar a “crianças”, que
são os menores e mais necessitados colegas discípulos,25 e também
saber que ao ministrar a estes “maiores” no reino dos céus, eles também ministrarão para o próprio Jesus26. Em relação a 18.6-10, o v. 5
afirma positivamente (“receber uma criança”), o que 18.6-10 enfaticamente declara negativamente: não cause tropeço a um destes
pequeninos e elimine de si mesmo o que pode escandalizar.27 O que
deveria ser enfatizado sobre toda a seção de 18.1-10, é que há um
No ensino de Jesus no evangelho de Mateus, parágrafos novos geralmente não começam com kai.. O evangelista prefere o uso de de, ou algum outro conector. Uma rápida
pesquisa nos parágrafos apresentados na Nestle-Aland, 27ª edição, revela somente Mt
6.5 como um exemplo de uma nova unidade didática começando com kai.
25
Começando com 18.5, “criança” e “pequenino” se referem basicamente mais aos menores e mais necessitados discípulos de Jesus, do que literalmente a crianças. Isto não
excluiria da consideração cristãos jovens, mesmo crianças, só que eles não seriam
incluídos por causa da sua idade, mas porque são necessitados.
26
Há um óbvio e bem evidente link conceitual entre 18.5 e 25.31-46. Contudo, a teologia
dos dois textos não é idêntica. Para uma discussão mais completa do significado de
25.31-46, ver Gibbs, Jerusalem and Parousia, 213-220.
27
Os vv. 8-9 são melhor entendidos como uma estrutura em separado, o que faz emergir
a advertência contra o escandalizar e fazer cair da fé e em pecado um “pequenino” crente.
A seqüência do parágrafo move do “não coloque pedras de tropeço no caminho de outros”
para o “se há pedras de tropeço ou causas de pecado e/ou descrença em sua própria vida,
elimine os”. Thompson, Matthew’s Advice, 115-117, tenta integrar 18.8-9 de maneira
mais próxima dentro do contexto imediato, ao colocar o verbo skandali,zein, com uma força
“causativa”, que não resulta no sentido de “causar [você] tropeçar”, mas “fazer de você
uma pedra de tropeço”. É verdade que verbos que terminam com i,zw realmente carregam
um sentido causativo [cf. BDF108.3]. Mas Thompson estendeu o que já tinha um sentido
causativo [isto é, “causar alguém outro tropeçar”] para um sentido causativo duplo não
contemplado no léxico [“você causar alguém outro tropeçar”]. Hagner, 523, provavelmente vai mais direto ao ponto quando ele simplesmente escreve sobre 18.8-9, “a gravidade
de pecar e cair da fé é enfatizada com mais ênfase, mas numa espécie de linha de
abordagem diferente”.
24
62
PROCEDENDO DE ACORDO COM MATEUS 18:
UMA INTERPRETAÇÃO DE MATEUS 18.15-20 À LUZ DO SEU CONTEXTO
progresso no pensamento ou um “crescendo” conceitual28. Depois dos
discípulos lhe perguntarem sobre quem é o maior, Jesus não pára com
o ensinamento de que o discípulo “necessitado, que é como uma criança”, é o maior. Ele continua exortando seus discípulos para receber e
cuidar de tais “crianças”, e mais, ele os exorta firmemente a não serem
causa de pecado grave ou descrença a esses “pequeninos”.29 A seção
conclui com uma exortação a não desprezar esses “pequeninos” que
crêem em Jesus. Os anjos estão vendo constantemente a face do Pai
celestial, o que quer dizer que tais discípulos lhe são preciosos (18.10).30
A próxima unidade em Mt 18 é 18.12-14.31Ela tem uma conexão
óbvia com 18.6,10, através da frase “a qualquer destes pequeninos”
(18.14). Em termos de conceito, esses versículos formam uma unidade
distinta que utiliza uma comparação da prática esperada de pastores
em procurar por uma ovelha desgarrada, a fim de argumentar, do menor para o maior, que o Pai celestial dos discípulos não deseja que
nenhum “destes pequeninos” pereça. Em termos de fluência da
temática do discurso, 18.12-14 representa outro avanço, no aumento
da urgência do cuidado por um necessitado discípulo. Não é o bastante meramente evitar a colocação de uma causa de tropeço para alguém outro que está seguindo a Jesus. Não, os discípulos devem reconhecer e agir segundo sua responsabilidade de ir em busca de um
28
Gundry, “Matthew” 358, adequadamente descreve o movimento de Mt 18 quando ele diz
que “os sub-tópicos fluem um dentro do outro quase que imperceptivelmente...”
29
A força contextual de skandali, z ein em 18.6-10 é muito forte, como indicada pelas
drásticas penalidades que esperam aqueles que skandali,zein outro, ou quando se falha em
remover os ska,ndala das suas próprias vidas: a alternativa é a condenação escatológica
final no Geena [cf. Hagner, 522; Davies & Allison, 762; Thompson, Matthew’s Advice,
103].
30
Nós devemos honestamente admitir que não sabemos com precisão sobre o que Jesus
estava falando ao se referir aos “seus anjos” em 18.10. Há alguma evidência no Judaísmo
primitivo, cuja crença num “anjo da guarda” pessoal [cf. T. Levi 5.3, 3 Bar 12-13, T. Adam
4.1, T. Jacob 2.5 – observado em Davies & Allison, 770]. Hagner, 527, tem uma posição
parecida: “o ponto aqui não é especular sobre o papel dos anjos em assistir discípulos de
Jesus, mas simplesmente enfatizar a importância dos discípulos diante de Deus”.
31
Pode muito bem ser o caso que, assim como 18.5, 18.10 é um versículo de transição
entre o texto precedente e posterior. Os links entre 18.10 e o texto precedente inclui “um
destes pequeninos” (cf. 18.6) e a proibição explícita em não desprezá-los (cf. 18.6 e a
proibição de não causar tropeço em pecado ou descrença). A conexão com o que segue
consiste na frase“ um destes pequeninos”, repetido também em 18.14.
63
IGREJA LUTERANA
membro do rebanho que começou a se desviar da vida e fé comum32. É
assim que Deus agiria com um discípulo que começa a se desviar33 e é
assim que os discípulos devem “cuidar do maior/o mais necessitado
discípulo”.
Na seqüência vem 18.15-20. Parte deste capítulo que terá uma
interpretação mais ampla. Contudo, antes de seguir com os próximos
versículos, nós deveríamos notar que 18.15-20 adiciona algo a mais
àquele crescendo temático. Considerando que em 18.12-14 Jesus ensina seus discípulos que eles devem procurar pelo irmão que se dispersou do rebanho, em 18.15-20, Jesus revela a cada um dos seus
discípulos que se um irmão cometer um pecado público, sério e pessoal, contra um deles, cada um tem a responsabilidade de ir individual e
privadamente em busca da reconciliação e a restauração da relação
horizontal que sofreu ruptura. Essa necessidade de cuidado e conquista do irmão pecador é tão urgente que até a comunidade tem
envolvimento. Tragicamente, se esta busca e cuidado se mostrarem
ineficazes, a ruptura da relação horizontal deve ser declarada o que
ela de fato é, a saber, um sinal de que o irmão em pecado também
rompeu sua relação com a comunidade inteira e com o próprio Deus.
As seções finais de Mateus 18 (18.21-22 e 18.23-35) podem ser
consideradas em conjunto. Aqui o ensino de Jesus continua com o tema
do “cuidado pelo irmão que pecou contra mim” que começou em 18.1520. Em 18.21, Pedro se aproxima de Jesus e lhe faz uma pergunta. À
luz de 18.1 e o “caráter” geral dos discípulos, não é de se surpreender
John Paul Heil, “Ezekiel 34 and the Narrative Strategy of the Shepherd and Sheep Metaphor in Matthew,” CBQ 55 [1993]: 698-708, pesquisa o tema do “pastor e das ovelhas”
no evangelho de Mateus. Ele conclui, 704, (corretamente em nosso julgamento) que
18.12-14 se refere mais diretamente à ação dos discípulos em procurar “ovelhas” que se
dispersaram, do que a procura divina em Jesus. Todavia, há um eco consciente da ação
divina nisso, como Heil destaca mais abaixo, no pano de fundo de 18.12-14, há a promessa de Ez 34.16, onde Deus promete “a perdida [avpolwlo,j] buscarei [zh,thsw] e a desgarrada
[planw,menon] tornarei a trazer” (cf. Davies & Allison, 769). Henry Alford, Alford’s Greek
Testament: An Exegetical and Critical Commentary, vol. 1, pt. 1, Matthew-Mark [Grand
Rapids: Guardian Press, 1976], 187, afirma que 18.12-14 se refere “diretamente à obra
de Cristo”.
33
Gundry, Matthew, 365, conclui que “uma ovelha não representa alguém perdido [isto é,
um descrente], mas alguém em perigo de se perder ao afastar-se do rebanho” [isto é, um
discípulo que professou sua fé em perigo de apostatar - cf. Davies & Allison, 773; Hagner,
527]. Isto significa que o sentido de 18.12-14 difere um pouco do texto paralelo em Lc
15.3-7, a principal interpretação da qual se aplica diretamente ao próprio ministério de
Jesus. Tanto John Wenham, Redating Matthew, Mark and Luke: A Fresh Assault on the
Synoptic Problem [Downers Grove: InterVarsity, 1992], 74, and Carson, “Matthew,” 400,
apresentam argumentos convincentes de que embora 18.12-14 e Lc 15.4-7 estão claramente relacionados, eles são unidades distintas e discretas do ensino parabólico de
Jesus.
32
64
PROCEDENDO DE ACORDO COM MATEUS 18:
UMA INTERPRETAÇÃO DE MATEUS 18.15-20 À LUZ DO SEU CONTEXTO
que a atitude de Pedro está longe do ensino do seu Senhor34. Ao invés
de querer perdoar sete vezes ao irmão que pecou contra ele, Pedro
deveria estar pronto a oferecer perdão ilimitado35. Aqui Mateus 18 atinge
o clímax do seu “crescendo de cuidado”. A parábola do credor
incompassivo é significativa pela maneira extravagante que descreve
o perdão divino e que está manifesto em Jesus no reino dos céus36.
Também é notável o ensino que este perdão divino pode, irá e deverá
motivar os discípulos de Jesus a sempre perdoar um ao outro.
Esta é a principal expressão de cuidado pelos “pequeninos” na comunidade. Do mesmo perdão pelo qual os servos são sustentados em
sua relação com o seu rei, fluirá o cuidado destes servos pelos irmãos.
Nós poderíamos resumir a estrutura de 18.1-35 como um todo da
seguinte maneira. Em resposta à desinformada pergunta dos discípulos, Jesus revela que os “maiores” no reino dos céus são realmente os
mais necessitados, aqueles que demandam um cuidado maior dos discípulos. Esta verdade é tão crucial que aqueles que recebem e ministram para tais “pequeninos” deveriam se dar conta de que estão cuidando do próprio Jesus (18.1-5). Aos discípulos não cabe somente receber tais discípulos necessitados, mas eles também devem a todo
custo evitar que sejam motivo de tropeço e fazê-los cair em pecado e
descrença (18.5-10). Sim, Jesus ensina, quando um necessitado discípulo parece ser uma ovelha que está se desviando da segurança do
rebanho, outros discípulos devem ir atrás e trazê-la de volta (18.1214). Mesmo que seja um caso de pecado pessoal contra o próprio discípulo, ele deve sair atrás do irmão ou irmã que pecou e procurar ganhálos de volta (18.15-20). E qual será o tamanho do perdão quando um
Ver nota 3 acima.
Não se deveria perder de vista a alusão a Gn 4.24 na resposta de Jesus a Pedro. Lá,
Lameque orgulhosamente anuncia, “Sete vezes se tomará vingança de Caim, de Lameque,
porém, setenta vezes sete”. Como Thompson, Matthew’s Advice, 208, comenta, “Jesus
reverte o espírito da vingança ilimitada...”
36
Estudiosos rotineiramente notam o incompreensível valor da dívida de 10.000 talentos,
um valor que é “uma hipérbole que chega a ser engraçada ... o pobre homem deve ao rei
mais dinheiro do que está em circulação no país naquela época!” [Keener, Matthew, 458459]. Martinus C. De Boer, “Ten Thousand Talents? Matthew’s Interpretation and Redaction of the Parable of the Unforgiving Servant (Mt 18.23-35),” CBQ 50 [1988]:214-232,
crê que o tamanho da dívida confere à parábola um aspecto de improbabilidade e sugere
que Mateus originalmente tenha pensado em 10.000 denários [De Boer, 218-219]. Davies & Allison, 795, seguem o argumento de De Boer em grande medida. O problema
essencial com o argumento de De Boer é que sua pressuposição é de que as parábolas de
Jesus devem se “
plausíveis”. Como Norman Huffmann, “Atypical Features in the Parables of Jesus“ JBL 97
[1978): 207-220, apontou há muito tempo atrás, muitos se não a maioria, que as parábolas de Jesus contêm elementos que não são “aplicáveis à vida real”.
34
35
65
IGREJA LUTERANA
irmão peca contra o irmão? Tão grande quanto o perdão que os discípulos recebem de Deus, seu Pai celestial (18.21-35). Assim será na
comunidade daqueles que estão sob as bênçãos do reino dos céus,
presente agora em Jesus, que veio para salvar seu povo dos seus
pecados (Mt 1.21).
Mateus 18.15-20 deve ser interpretado neste contexto de cuidado
pelos “pequeninos” que são irmãos. Agora podemos proceder com um
breve exame do texto.
UMA INTERPRETAÇÃO DE MATEUS 18.15-20
À LUZ DE SEU CONTEXTO
O texto de Mt 18.15 apresenta de início um desafio para a interpretação e aplicação. Como deveriam ser lidas as palavras de Jesus? “Se
o teu irmão pecar contra ti”? [eivj se.] Ou deveria a frase preposicional
ser omitida e assim ser possível um sentido mais geral? O problema da
crítica textual é genuinamente difícil, e quase nenhuma discussão significativa do problema aparece na literatura especializada. No apêndice deste estudo nós vamos apresentar evidências e argumentos que
sustentam a leitura mais longa do texto, “contra ti”. Combinado com a
frase do versículo 15 “entre ti e ele só”, a leitura mais longa deixa claro
que a situação projetada no ensino de Jesus envolve um pecado cometido diretamente contra um irmão na fé. O contexto no qual o pecado ocorre é da evkklhsi,a, isto é, uma comunidade ou igreja local dos
discípulos de Jesus.
Porém, o pecado descrito em 18.15 não pode ser considerado como
um assunto “meramente pessoal”. Seguindo com a metáfora de “buscar pela ovelha desgarrada”, o uso do verbo “ganhar” [kerdainw] diz
algo importante sobre a natureza do pecado que Jesus tem em mente
em seu ensino37. O sentido real de kerdainw implica que alguma coisa
ou alguém estava perdido ou não estava na devida custódia. Todos os
usos de kerdainw em Mateus ilustram este ponto38 e podemos até
lembrar 1 Pedro 3.1 e especialmente 1 Coríntios 9.19-22. Como um
resultado do pecado que o ensino de Jesus tem em vista, o irmão
pecador está em perigo de romper sua relação com seus irmãos discí-
William L. Kynes, “A Christology of Solidarity: Jesus as the Representative of His People
in Matthew“ [Lanham, MD: University Press of America, 1991], 120, enfatiza que há uma
conexão conceitual entre “procurar uma ovelha que se extraviou” e “ganhar um irmão que
pode estar perdido” [cf. Wilhelm Pesch, Matthäus als Seelsorger: Das neue Verständnis
der Evangelien dargestellt am Beispiel von Matthäus 18 - Stuttgart: Verlag Katholisches
Bibelwerk, 1966- 37-38].
38
Mt 16.26; 25.16,17,20,22.
37
66
PROCEDENDO DE ACORDO COM MATEUS 18:
UMA INTERPRETAÇÃO DE MATEUS 18.15-20 À LUZ DO SEU CONTEXTO
pulos e em necessidade de ser ganho. Esse pecado é um assunto tão
sério que os outros, que são testemunhas do mesmo (e, a rigor, toda
a comunidade), podem acabar sendo envolvidos na questão.39 Tragicamente, se não houver arrependimento por parte do pecador, o resultado pode ser a declaração de que o pecador impenitente fique caracterizado como “gentio e publicano” e não mais membro da igreja40. É
próprio observar que o pecado tratado pode ser caracterizado como
óbvio e conhecido de outros que testemunhariam sua existência.
O que fica pressuposto no ensino de 18.15-20 é o relacionamento
39
Há uma espécie de “lacuna” semântica na afirmação de 18.16, “que pela boca de duas
ou três testemunhas toda a palavra se estabeleça”. Testemunhar o quê? Luz, Evangelium,
43, representa muitos estudiosos, ao afirmar que as testemunhas adicionais não testemunhariam o pecado em si, mas a conversa entre o irmão que pecou e o ofendido. [cf.
Hagner, 532; Gundry, 368; Leon Morris, The Gospel According to Matthew - Grand Rapids: Eerdmans, 1992- 468; R. T. France, The Gospel According to Matthew: An Introduction and Commentary - Grand Rapids: Eerdmans, 1985 - 274; W. F. Albright and C. S.
Mann, The Anchor Bible: Matthew - New York: Doubleday, 1971 – 220]. Nenhum destes
autores citados acima oferece argumentos consistentes que provem sua posição de que
aquela uma, ou as duas testemunhas não estão testemunhando o pecado que ocorreu.
Carson, “Matthew,” 403, admite que a decisão“ não é clara à primeira vista”. Ele prefere a
opção da maioria porque Dt 19.15 descreve antes uma “condenação judicial” do que
“tentativas de convencer um irmão da sua falta”. Mas isto também não deixa claro por que
isto deveria ser um argumento em favor do que a maioria pensa. Mas diversos fatores
tornam mais provável que “testemunhas” podem testificar que o pecado de fato aconteceu. Primeiro, na passagem do Antigo Testamento aqui citada (Dt 19.15) as testemunhas
envolvidas são testemunhas do pecado. Segundo, nas outras passagens do Novo Testamento que citam ou aludem a Dt 19.15, as testemunhas são testemunhas do assunto
diretamente ligado a elas e não somente testemunhas secundárias para algum processo
posterior (cf. especialmente 1Tm 5.19; também 2Co 13.1; Jo 8.17). Terceiro, podemos
examinar os usos do verbo marture,w para determinar o “objeto” implícito desse “testemunhar”. Na LXX e Novo Testamento somente Dt 31.21 e At 14.3 poderiam ser paralelos de
um “testemunho secundário que uma conversação ocorreu”. Em forte contraste, 10 textos
na LXX e mais do que 70 no Novo Testamento mostram que geralmente alguém é uma
“testemunha” de um ato em que está diretamente envolvido, mesmo quando este testemunhar acontece num contexto subseqüente (cf. Susanna 1:41; At 21.24; 22.5; 26.5).
Para uma importante discussão sobre esta questão do “vínculo externo no caso de palavras que representam acontecimentos” na exegese, ver James W. Voelz, What DoesThis
Mean? Principles of Biblical Interpretation in the Post-Modern World, 2e [St. Louis]. Para
concluir, um momento de reflexão mostra que o ponto de vista majoritário representado
por Luz e outros é inerentemente improvável. Se aquela uma testemunha ou outras duas
devem somente testemunhar de que um irmão confrontou o outro sobre o assunto de um
alegado pecado, e do qual as testemunhas não têm conhecimento primário, o que evitaria
a decepção das testemunhas se elas mesmas não poderiam confirmar o pecado que
ocorreu? Parece ser mais provável que outros que são trazidos para o caso também
estarão aptos para atestar que este pecado de fato ocorreu. Isto também sublinha o fato
de que o pecado é “de tal natureza que não se pode fazer vistas grossas, como se fosse
uma fraqueza da qual todos somos vítimas, algumas vezes diariamente” [R.C.H. Lenski]
The Interpretation of Matthew’s Gospel [Columbus: Wartburg, 1943], 698). Para confirmar nosso ponto de vista, recomendamos ver também Matthew, 454.
40
Davies & Allison, 785, declara com clareza: “Por esta razão, a passagem trata da
excomunhão” [cf. Carson, 403; Gundry, 368].
67
IGREJA LUTERANA
indestrutível entre a dimensão horizontal e vertical da evkklhsi,a cristã.
Certamente, 18.15-20 meramente apresenta um lado da moeda; 18.2135 proclama o outro lado. Por um lado, quando um discípulo peca contra outro, o ofendido reconhece que este pecado é sintomático de um
problema maior e, em preocupação amorosa,41 a parte injuriada vai
atrás para buscar o arrependimento e reconciliação com o pecador
(18.5-20). O motivo real do ofendido é o bem estar espiritual daquele
que pecou. Por outro lado, cada discípulo cristão deve também saber
que, quando o perdão é buscado genuinamente por outro discípulo
que pecou, cada perdão pode ser suspenso somente quando há risco
de violar e negar a relação de alguém com o Pai celestial (18.21-35)42.
O contexto imediato então deixa claro o suficiente que o “ligar e o
desligar” de 18.18 refere-se à declaração43 da igreja sobre a terra do
que já é verdade no céu a respeito do irmão que pecou e sua condição
de membro ou exclusão da comunidade cristã44. A promessa da presença de Jesus45 e da resposta do Pai à oração não são promessas
genéricas. Estas promessas deveriam ser conectadas de maneira esTimothy R. Carmody, “Mateus 18.15-17 in Relation to Three Texts from Qumran, Literature CD 9:2-8, 16-22; 1QS 5:25B6:1,” 141-158, in Maurya P. Horgan and Paul J.
Kobelski, eds., To Touch the Text: Biblical and Related Studies in Honor of Joseph A.
Fitzmyer, S.J. [New York: Crossroad, 1989] apresenta um valioso contraste entre o ensino de Jesus em Mt 18.15-20 e a legislação de Qumran [CD 9:2-8, 16-22 and 1 QS 5:256:1]. Os textos de Mateus e de Qumran têm em comum um mesmo vínculo com o texto de
Lv 19.17-18. No entanto, Carmody escreve que para Mateus “perdão e arrependimento
são as principais preocupações... em contraste, em CD 9:16-22, a infidelidade tem a ver
com a transgressão da lei e é tratada em termos da punição descrita ou prescrita pela
própria lei” [151]. Além disso, em Qumran o ato de reprovar o irmão que pecou é em favor
daquele que fará a reprovação; em Mateus, é em favor daquele irmão que pecou [152].
Terceiro, em Qumran as testemunhas envolvidas devem provar o erro do pecador junto à
corte; em Mateus, elas devem convencer o pecador do seu próprio problema espiritual
[155]. E por fim, em Qumran a parte culpada é punida pela comunidade; em Mateus não há
punição, mas uma mudança de status – de membro de uma comunidade de salvos à perda
de tal condição de membro [157].
42
Victor Pfitzner, “Purified Community–Purified Sinner: Exclusion from the Community
According to Matthew 18:15-18 and 1 Corinthians 5:1-5,” Australian Biblical Review 30
[1982]: 34-55, destaca, 37, que o “v. 17 fala do julgamento de um pecador impenitente.
Igualmente, o irmão que mostrar indisposição para reconsiderar e perdoar outra pessoa
na igreja deve saber que está sob o julgamento divino”.
43
Note os verbos na segunda e terceira pessoas do plural em 18.18-20 [cf. Do poder e
Primado do Papa, Livro de Concórdia, p.350.24].
44
Nós concordamos com Carson, 371-372, que o futuro perfeito perifrástico das formas
verbais em 18.18 [e;stai dedeme,na e e;stai lelume,na] deveriam ser traduzidas mais em sua
força literal “terão sido ligadas/desligadas”. A razão de Carson por esta escolha num
ponto ambíguo da gramática é de que uma completa lista de formas do verbo lu,w estava
disponível para Mateus e que se ele tivesse desejado expressar uma mera forma no futuro
perifrástico [isto é, “será ligado/desligado”], ele poderia prontamente ter feito assim; para
o ponto de vista contrário, C. F. D. Moule, An Idiom Book of New Testament Greek Cambridge: Cambridge University Press, 1979], 18; Ernest DeWitt Burton, Syntax of the
Moods and Tenses in New Testament Greek [Grand Rapids: Kregel, 1982], 94. O fato de
que a decisão da igreja segue a decisão do próprio Deus tanto no aspecto lógico quanto no
temporal não dilui a força do “tudo o que vós ligardes”. A decisão da igreja para ligar ou
desligar é a atualização na terra da realidade celestial.
41
68
PROCEDENDO DE ACORDO COM MATEUS 18:
UMA INTERPRETAÇÃO DE MATEUS 18.15-20 À LUZ DO SEU CONTEXTO
pecial com o assunto em discussão, a saber, a dolorida realidade da
disciplina eclesiástica quando a busca em ganhar o irmão pecador se
mostra infrutífera46.
Em resumo, 18.15-20 é uma peça no contexto maior de Mateus 18
e deve ser lido à luz deste contexto. Jesus ensina em 18.15-20 sobre
o cuidado que os seus discípulos devem aplicar um ao outro, um cuidado que compele a um irmão “ofendido” a buscar o bem do outro que
pecou contra ele. O relacionamento entre os discípulos como “irmãos”
é precioso e deve ser honrado e protegido. E quando isto é colocado
em perigo ou risco, não devem ser economizados esforços na conquista da restauração desse relacionamento e ganhar aquele irmão para a
comunidade e para Deus.
REFLEXÃO E APLICAÇÃO
Mateus 18.15-20 está situado num contexto literário e deve ser
interpretado e aplicado à luz deste contexto. Isto significa, acima de
tudo, que o ensino de Jesus aqui tem a ver com a preocupação e o
cuidado pelo outro, o necessitado irmão cristão – neste caso o irmão
cristão está necessitado e “como uma criança”, precisamente porque
ele caiu em pecado contra o discípulo irmão. Num provável contraste à
abordagem na comunidade de Qumran47 (e a abordagem do “homem
natural” em todas as comunidades), o objetivo primeiro nunca é “convencer” o pecador ou mesmo estabelecer os “direitos” do irmão contra
quem o pecado ocorreu. O irmão que pecou é um irmão em necessidade de arrependimento, restauração e reconciliação. Aquele contra quem
o pecado foi cometido deve ir atrás dele e tentar trazê-lo de volta
como um irmão.
Além disso, o ensino de Jesus trata aqui de maneira clara de casos
de pecados de um cristão contra o outro. O contexto no qual isto acon-
45
Joseph Sievers, “Where Two or Three…: The Rabbinic Concept of Shekhinah and Matthew
18.20“ 171-182, in Asher Finkel and Lawrence Frizzell, eds., “Standing before God: Studies on Prayer in Scriptures and in Tradition with essays in Honor of John M.Oesterreicher“
[New York: Ktav, 1981], argumenta em favor de uma conexão próxima e mesmo literária
entre 18.19-20 e o conceito da presença divina ou Shekhinah que emana da teologia do
templo de Jerusalém como o lugar da habitação de Deus. Sievers levanta a intrigante
possibilidade de que o ensino de Jesus aqui deliberadamente evoca um conhecido ensino
do seu dia. Mas onde a tradição judaica coloca a glória de Deus no meio dos que estudam
a Torá, Jesus afirma que ele estará presente entre os que se reúnem em seu Nome (cf.
Kynes, “Solidarity,” 128, “Jesus assume um papel divino e sua presença com seus discípulos é equivalente à presença do próprio Deus”).
46
De acordo com Kynes, “Solidarity,” 127, a conexão de 18.19-20 a 18.18 é indicada pelo
repetido contraste de “nos céus” e “sobre a terra” (18.18 e 19), bem como pela força
continuativa do “em verdade” [pa,lin] em 18.19.
47
Ver nota 43 acima.
69
IGREJA LUTERANA
teceria é a congregação cristã local, que poderia fazer parte do processo de alcançar o pecador, mas ainda um irmão impenitente. Haverá
muitos casos em que cristãos escolherão “voltar a outra face” e ir “uma
milha extra” num espírito de tolerância, misericórdia e perdão paciente
(Mt 5.38-42). Mas em situações das quais fala 18.15-20, ignorar o pecado não é possível, por causa do perigo que este representa para aquele
que pecou. Por esta razão, o ensino aqui não se aplica a situações em
que cristãos estão em conflito ou disputas um com o outro, a não ser
que o conflito envolva um claro e grave pecado. Esta passagem, porém, não é sobre “resolução de conflitos” em si. Ela é sobre uma profunda preocupação por um irmão que é apanhado em uma transgressão48.
Também podemos afirmar que 18.15-20 não se aplica igualmente a
cada situação que precisa ser corrigida na igreja. Uma ocasião controversa é quando um cristão pensa que outro cristão tem ensinado publicamente doutrina falsa. Mas a não ser que o falso ensino é de tal
natureza que se teme que a pessoa que ensina isso possa estar perdida e em necessidade de ser ganha, é difícil ver como “Mateus 18”
pode ser usado como uma espécie de exigência legal para lidar com
situações desta espécie. Tendo dito isto, contudo, seria de esperar
que em casos onde um cristão (leigo ou clérigo) acredita que outro
ensinou algo que contradiz o puro ensino bíblico, o cristão preocupado
deveria ter o bom senso e a decência cristã e não apressar o julgamento, mas fazer todo o esforço para falar direta, paciente e amorosamente com a outra parte em questão. Mateus 18.15-20 não é, afinal
de contas, o único texto que se aplica ao nosso lidar de um para com
outro, como discípulos de Jesus.
Finalmente, e talvez o mais importante, 18.15-20 não “fornece regras para a excomunhão” (embora isto certamente é uma das mais
doloridas aplicações válidas deste ensino). Antes, esta “regra de Cristo” revela a vontade de Cristo para seus discípulos e seu cuidado de
um para com outro. Numa sociedade humana “normal”, a pessoa que
foi mal-tratada tem seus direitos e a pessoa que cometeu o erro deveria tomar a iniciativa e fazer a reparação. Mas isto não é assim entre os
que seguem a Jesus. O amor perdoador que une os discípulos a Jesus
48
Ao enfatizar uma leitura contextual mais rígida de 18.15-20, não estamos sugerindo
que não se possa aplicar o texto a outras situações, como a resolução de conflitos entre
cristãos. Mas se este trecho da Escritura for aplicado assim, deveria ficar bem claro que
esta aplicação é uma extensão do significado do texto e não o seu sentido primário. Isto
ajudará a prevenir eventuais usos equivocados e abusos da verdade escriturística que
estão sempre à mão quando a Escritura é lida e é usada para extrair textos de prova que
são isolados de seu contexto original.
70
PROCEDENDO DE ACORDO COM MATEUS 18:
UMA INTERPRETAÇÃO DE MATEUS 18.15-20 À LUZ DO SEU CONTEXTO
é tão consistente, que este mesmo amor moverá o irmão que foi prejudicado em direção ao que o lesou. O alvo será restaurar sua relação e
manifestar seu relacionamento comum com Deus em Cristo, através
do arrependimento e restauração perdoadora49.
APÊNDICE: A LEITURA DE “CONTRA TI” [eivj
se]
EM MATEUS 18.15
Introdução ao problema
Originalmente, o texto de 18.15 dizia “se teu irmão pecar contra ti”
[eivj se] ou “se teu irmão pecar?” O aparato crítico da 27ª edição de
Nestle-Aland lista os seguintes testemunhos em apoio à leitura mais
longa: D L W Q 078 f13 33 Texto Majoritário Vetus Latina Siríaca MédioEgípcia, Boaírica (em parte). O apoio para a leitura mais breve vem de
a B 0281 f1 [mas não 118] 22 579 pc [= poucos] Saídica boaírica (parte); Orígenes, Basílio e Cirilo 50 . Nestle-Aland coloca a locução
preposicional entre colchetes, indicando que “os críticos de texto dos
nossos dias não estão completamente convencidos da autenticidade
destas palavras”.51 Comentaristas que abordam 18.15 também não
têm unanimidade quanto à omissão ou inclusão do “contra ti”52. Nós
encontramos somente uma análise completa deste problema de crítica
textual, que é a de José M. Bover, S.J., “Si peccaverit in te frater tuus...
Mt. 18:15,” Estudios Bíblicos 12 [1953], 195-198. Nós faremos referên-
Dietrich Bonhoeffer, Vida em Comunhão, trad. John W. Doberstein [San Francisco:
Harper & Row, 1954], 28, escreve, “Assim a hora de desilusão com meu irmão se torna
incomparavelmente salutar, porque me ensina plenamente que ninguém de nós pode viver
por suas próprias palavras e atos, mas somente por aquela uma Palavra e Ato que nos une
– o perdão de pecados em Jesus Cristo”.
50
A evidência a respeito do minúsculo 22, Basílio e Cirilo vem de M. J. Lagrange, Évangile
selon Saint Matthieu [Paris: J. Gabalda, 1948], 353 [cf. Carson, 404]. A evidência para a
leitura do minúsculo 118 vem de Reuben Swanson, ed., New Testament Greek Manuscripts: Variant Readings Arranged in Horizontal Lines against Codex Vaticanus. Matthew
[Sheffield: Sheffield/Pasadena, CA: Wm. Carey, 1995], 174.
51
Nestle-Aland, Novum Testamentum Graece [Deutsche Bibelgesellschaft, 1994], 49.
Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament [New York: United
Bible Societies, 1971], 45, classifica a leitura com a letra “C,” indicando que “há um
considerável grau de dúvida se o texto ou o aparato contém a leitura preferível” [xxviii].
52
Entre os autores que incluem a locução preposicional estão: Alford, 1.187; Gundry,
Matthew, 367; Davies & Allison, 782; Carson, 404; Luz, Evangelium, 38; Paul Gaechter,
Das Matthäus Evangelium: Ein Kommentar [Munich: Tyrolia-Verlag, 1962], 598. Entre
os que omitem a locução estão R. T. France, The Gospel According to Matthew: An
Introduction and Commentary [Grand Rapids: Eerdmans, 1985], 274; Thompson,
Matthew’s Advice, 176; Pfitzner, “Purified Community,” 37; Lagrange, Saint Matthieu,
353; Carmody, “Matthew 18:15-17,” 150; Kynes, “Solidarity,” 120-121.
49
71
IGREJA LUTERANA
cia aos argumentos de Bover abaixo.
Como há manuscritos que apóiam a leitura mais longa e manuscritos que apóiam a mais breve, que argumentos podem ser usados para
defender cada posição? Nós podemos listar os cinco argumentos seguintes favoráveis à leitura mais longa. Primeiro, é possível que escribas
de um período mais recente tenham omitido a locução preposicional
original, a fim de tornar o ensino de Jesus aplicável de maneira mais
geral e não limitá-lo a pecados que foram cometidos especificamente
contra um indivíduo53. Segundo, pode-se defender a primazia da leitura mais longa porque ela se encaixa melhor dentro do contexto “pessoal”, tanto de 18.15b (“entre ti e ele só”) quanto de 18.21 (“até
quantas vezes meu irmão pecará contra mim...”).54 Terceiro, alguns
estudiosos indicam a possibilidade de que a locução eivj se, tenha sido
omitida mais tarde por causa da pronúncia idêntica à pronúncia da
palavra anterior, a`marth,sh|.55 Quarto, alguns afirmam que a leitura mais
breve surgiu devido a uma assimilação ao texto paralelo de Lc 17.3:
“Se teu irmão pecar, repreende-o; se ele se arrepender, perdoa-lhe”.56
E por fim, baseado na obra de James Royse, pode-se argumentar que,
nos papiros mais antigos, a tendência geral no papiro dos copistas era
a de encurtar o texto, ao invés de alongá-lo, e que a leitura mais breve
de 18.15 surgiu desta tendência57.
Entre os argumentos a favor da originalidade da leitura mais breve
podem ser listados os seguintes. Primeiro, o acréscimo de “contra ti”
poderia ter surgido da tendência geral dos escribas em harmonizar o
texto com o contexto imediato, sendo que, neste caso, um escriba
teria ajustado o texto para fazê-lo mais coerente com o “entre ti e ele
só” em 18.15b e “contra mim” em 18.21.58Segundo, o fato de essa
locução ter pronúncia idêntica à palavra anterior (a`marth,sh| eivj se.)
poderia ter levado à inserção acidental da locução preposicional. Terceiro, pode-se argumentar que a leitura mais breve de fato comporta
de maneira mais concreta a teologia do contexto, pois o pecado não é
uma mera ofensa “pessoal”, mas algo que ameaça o condição espiritu-
Metzger, Textual Commentary, 45; Bover, “Si peccaverit,” 197.
Gundry, Matthew, 367; Bover, “Si peccaverit,” 195; Gaechter, Matthäus, 598.
Carson, “Matthew,” 404; Metzger, Textual Commentary, 45.
56
Luz, Matthäus, 38.
57
James Royse, “Scribal Tendencies in the Transmission of the Text of the New Testament,”
239-252, in Bart D. Ehrman and Michael W. Holmes, eds., The Text of the New Testament
in Contemporary Research: Essays on the Status Quaestionis [Grand Rapids: Eerdmans,
1995], 246.
58
Royse, “Scribal Tendencies,” 246; Thompson, Matthew’s Advice, 176; Lagrange, Matthieu, 353; Carmody, “Matthew 18:15-17,” 150.
53
54
55
72
PROCEDENDO DE ACORDO COM MATEUS 18:
UMA INTERPRETAÇÃO DE MATEUS 18.15-20 À LUZ DO SEU CONTEXTO
al do irmão que pecou.59 E por último, Wilhelm Pesch propõe que a
leitura mais longa surgiu da intenção de enfraquecer a natureza radical da exigência de Jesus sobre cada membro da comunidade, ao limitála somente à pessoa contra quem o pecado foi cometido.60
Como é muitas vezes o caso nas decisões de crítica textual, a evidência e os argumentos parecem, à primeira vista, favorecer ambos os lados.
Antes, porém, de examinar com mais cuidado os argumentos, temos que
prestar atenção aos argumentos que aparecem no único tratamento mais
aprofundado dessa questão de natureza crítico-textual.
O PAPEL DE LUCAS 17.3-4 NO TRABALHO DE J. M. BOVER
“Si peccaverit in te frater tuus...Mt 18.15
Bover escreveu esse artigo em 1953, em espanhol. Sua argumentação principal a favor da leitura mais longa, isto é, da inclusão de
“contra ti”, é, na verdade, extremamente breve: ele simplesmente afirma que o contexto imediato de 18.21 (“Senhor, até quantas vezes
meu irmão pecará contra mim”) é decisivo em mostrar que em 18.15
Jesus também deve estar falando de uma ofensa pessoal. Ele conclui
que o “contra ti” deveria ser visto como parte do versículo 15.61
Bover reforça sua conclusão, contudo, ao apelar para a tradição
manuscrita da passagem paralela em Lc 17.3-4, que diz:
Lucas 17.3: “Acautelai-vos. Se teu irmão pecar, repreende-o; se ele
se arrepender, perdoa-lhe”.
Lucas 17.4: “Se por sete vezes no dia pecar contra ti e sete vezes
vier ter contigo dizendo: estou arrependido, perdoa-lhe”.
Em 17.3, muitos manuscritos adicionam “contra ti” depois de “se
teu irmão pecar”. Em 17.4, um número bem pequeno de manuscritos
omite a locução “contra ti”. Bover argumenta que, em 17.3, a leitura
preferível é a mais breve (sem o “contra ti”) e que, no caso de 17.4, a
leitura superior é o texto mais longo (com o “contra ti”), e com isto nós
concordamos.62
Bover então alega que a tradição manuscrita em Lc 17.3-4 fornece
um exemplo positivo da tendência em “generalizar” o sentido do texto
através da omissão de uma parte, de uma forma que é paralela ao que
se verifica no caso da leitura mais breve em 18.15. Ele assevera que
os manuscritos 28 1675 e uma tradução siríaca (a sinaítica) omitem o
Kynes, “Solidarity,” 120-121.
Pesch, Seelsorger, 37.
61
Bover, “Si peccaverit,” 195, afirma que a pergunta de Pedro em 18:21 “presupone que
Jesús en 18,15, ha hablado de una ofensa personal.”
62
Bover, “Si peccaverit,” 196.
59
60
73
IGREJA LUTERANA
“contra ti” em Lucas 17.4. Ele considera este como um concreto e forte
exemplo paralelo ao que aconteceu em 18.15, onde manuscritos omitiram o “contra ti” para generalizar o sentido de 18.15-20.63
Porém, o argumento principal que Bover extrai do texto de Lucas
17.3-4 desaparece quando examinado à luz de edições críticas e outros recursos contemporâneos.64 De acordo com Swanson e o IGNTP
[Projeto Internacional do Novo Testamento Grego], somente o lecionário
859 e a versão siríaca sinaítica trazem a leitura mais breve em 17.3 e
também omitem a locução preposicional para criar uma leitura mais
breve em 17.4, o que revela uma “tendência generalizante”. No caso
do manuscrito 1675 [e, poderíamos adicionar, 1424], embora a locução
esteja omitida em 17.4, os dois manuscritos cursivos trazem essa locução em 17.3. O cursivo 28, ao invés de omitir a locução preposicional
em ambos os lugares, como Bover afirma, de fato traz essa locução
nos dois versículos. 65 Além disso, o oposto, a tendência
“particularizante”, é muito fortemente atestada na tradição manuscrita, pois um grande número de manuscritos66 traz “contra ti” tanto em
Lc 17.3 como em 17.4, numa aparente harmonização com o contexto
imediato. Se Lc 17.3-4 for usado como um exemplo paralelo das tendências encontradas nos manuscritos, parece que esse texto traz apoio
mais significativo para a conclusão de que, em Mt 18.15, deve-se preferir a leitura mais breve, sendo que, neste caso, a leitura mais longa
teria de ser vista com harmonização com o contexto imediato. Portanto, o artigo de Bover não oferece nenhuma base substancial para se
optar pela leitura longa, a inclusão de “contra ti”, em 18.15.
AVALIANDO OS ARGUMENTOS EM MATEUS 18.15
Ao tentar avaliar os méritos da argumentação a favor do texto mais
longo ou a favor do texto mais breve em Mt 18.15, é preciso sempre
ter em mente que, qualquer que seja a decisão, trata-se de uma decisão difícil e que seria uma atitude muito pouco sábia querer erguer
Ibid., 197.
Bover aqui se baseia na edição crítica, porém equivocada, do texto grego feita por
Hermann von Soden no início do século XX.
65
Reuben Swanson, ed., New Testament Greek Manuscripts: Variant Readings Arranged in
Horizontal Lines against Codex Vaticanus. Luke (London: Sheffield Academic Press, 1995),
293; The New Testament in Greek: The Gospel According to St. Luke, part two, chapters
13-24, edited by the American and British Committees of the International Greek New
Testament Project (New York: Oxford University Press, 1987), 71-72.
66
De acordo com a 27a edição de Nestle-Aland, “contra ti” faz parte do texto de Lucas
17.3 em D F f13 Texto Majoritário c e q r1 vgcl bomss.
63
64
74
PROCEDENDO DE ACORDO COM MATEUS 18:
UMA INTERPRETAÇÃO DE MATEUS 18.15-20 À LUZ DO SEU CONTEXTO
todo um edifício exegético sobre um alicerce tão incerto. Porém, nos
parece que o peso da evidência favorece a leitura mais longa, “se teu
irmão pecar contra ti”. Queremos voltar aos diferentes argumentos
listados acima, discutindo e desenvolvendo-os brevemente.
O argumento da pronúncia idêntica poderia teoricamente favorecer
tanto uma quanto outra possibilidade, pois um escriba tanto poderia
omitir como incluir a locução eivj se. depois do verbo amarth,sh|.67 No
entanto, uma pesquisa no Novo Testamento e na LXX não revelou nenhum exemplo concreto de omissão ou repetição de palavras em situações similares e assim este argumento permanece puramente teórico e subjetivo.68
O argumento que o texto mais longo foi encurtado para “generalizar” o ensino de Jesus é similarmente subjetivo e carece de fundamento. Na verdade, se essa tendência fosse se manifestar em algum
lugar, esse lugar seria, com certeza, Lc 17.3-4. No entanto, não é isto
que se verifica de forma significativa na tradição manuscrita desse texto, como o ensaio de Bover tinha erroneamente afirmado [ver acima].
É provável que o argumento da assimilação a outro texto apóie de
forma mais decisiva o texto mais breve do que o texto mais longo.
Embora a locução pudesse ter sido omitida por assimilação ao mais
distante Lc 17.3, a influência do contexto “personalizado” mais próximo (isto é, “entre ti e ele só” em 18.15 e “contra mim” em 18.21)
parece ser mais forte, confirmando, assim, a tese de que a locução foi
adicionada posteriormente. Sem dúvida, os diversos manuscritos que
67
Para a evidência de que, no processo de transmissão do texto, facilmente se fazia
confusão entre as vogais e os ditongos pertinentes , ver Francis Thomas Gignac, A
Grammar of Greek Papyri of the Roman and Byzantine Periods, vol. 1, “Phonology” (Milano: Istituto Editoriale Cisalpino, sem data), 183, 242-249.
68
A locução preposicional eivj se ocorre no Novo Testamento somente em Mt 18.15 e Lucas
17.4. A LXX fornece dois exemplos pertinentes onde poderia ter havido uma omissão
similar devida à semelhança dos sons. Em Jeremias 31.18 lemos avne,bh eivj se., mas lá não
há variantes mencionadas [Joseph Ziegler, ed., Septuaginta, vol. 15, Ieremias, Baruch,
Threni, Epistula Ieremiae (Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1957), 318]. Em Ezequiel 3.3 se lê dedome,nhj eivj se,. Embora esta situação fônica não seja exatamente idêntica
[visto que o particípio não termina num som de vogal], é interessante notar que a tradição
manuscrita não omite a locução preposicional eivj se, mas registra substituições para ela,
presumivelmente para fugir da repetição de sons: soi, [534], pro,j se, [62] e epi, se, [Zv]
[Ziegler, vol. 16, 1, Ezechiel, 98]. Nota-se o mesmo fenômeno de substituição [não
omissão] em reação à semelhança de sons em Lucas 23.42, onde a seqüência e;lqh|j eivj
th.n | basilei,an| é substituída por e;lqh|j evn th| basilei,a.|
75
IGREJA LUTERANA
trazem esse “contra ti” em Lc 17.3 parecem um exemplo desse tipo de
assimilação ao contexto bem próximo em Lc 17.4.
O que nos resta é a argumentação baseada nas tendências gerais
dos copistas. Aqui a obra de James Royse merece atenção especial69.
O estudo de Royse sobre as tendências dos escribas mais antigos é
uma análise das leituras “singulares” ou “únicas” encontradas nos
papiros 45, 46, 47, 66, 72 e 75 que revelam os “hábitos” daqueles
primeiros escribas cristãos. Duas conclusões de Royse são especialmente importantes para a nossa discussão sobre 18.15. Por um lado,
Royse observa que esses seis escribas antigos revelam uma clara tendência em harmonizar textos com o contexto imediato através de adições ao texto. Essa tendência poderia dar algum apoio à leitura mais
breve em 18.15, já que a “harmonização ao contexto é uma persistente fonte de erro e ela muitas vezes resulta em adições ou acréscimos”70. Contudo, o estudo de Royse mostrou que a grande maioria
das adições singulares que os escribas fizeram a seus textos consistia
em uma única palavra71.
Por outro lado, um segundo resultado do estudo de Royse representa um significativo questionamento do tradicional princípio de crítica textual de que “deve-se dar preferência à leitura mais breve”. Seu
estudo conclui que “a responsabilidade de apresentar provas deve
ser passada daqueles que defendem o texto mais longo para os defensores do texto mais breve. Não é preciso que se apresente uma
‘razão’ para determinada omissão – ao menos durante os primeiros
séculos de transmissão do texto; afinal, a omissão de texto foi o erro
cometido ‘naturalmente’ por esses primeiros escribas”.72 Como é provável que as duas leituras em 18.15 são antigas, as conclusões de
Royse a respeito das tendências dos escribas parecem indicar que se
James Ronald Royse, “Scribal Habits in Early Greek New Testament Papyri” [Th.D. diss.,
Berkely, CA: Graduate Theological Union, 1981].
70
Ibid., 608.
71
Royse, “Scribal Habits,” declara que 24 de 28 adições no papiro 45, são palavras isoladas [124]; 53 de 55 adições no papiro 46 são palavras isoladas [251]; 4 de 5 adições ao
papiro 47 são palavras isoladas [348]; 11 de 14 adições ao papiro 66 são palavras
isoladas [410-411]; 15 de 16 adições ao papiro 72 são palavras isoladas [478] e 11 de
12 adições ao papiro 75 também são palavras isoladas [544-545]. Isto quer dizer que
90.8% das adições “singulares” a seus textos por estes seis escribas consistiram em
uma única palavra.
72
Ibid., 607. Royse, 602, resume os resultados de sua pesquisa. A leitura singular ou
única de cada escriba resulta na seguinte proporção de “adições/omissão = perda de
palavras”; P45 [28/63 = 102], P46 [55/167 = 283], P47 [5/18 = 43], P66 [14/19 = 22],
P72 [16/29= 27], e P75 [12/41 = 53].
69
76
PROCEDENDO DE ACORDO COM MATEUS 18:
UMA INTERPRETAÇÃO DE MATEUS 18.15-20 À LUZ DO SEU CONTEXTO
deveria dar preferência à leitura mais longa, ou seja, a inclusão da
locução “contra ti”.73De fato, pode-se argumentar que uma combinação de fatores dá sustentação à leitura mais longa: [1] a tendência
geral em encurtar textos como descrito acima; [2] a possibilidade de
omissão resultante da pronúncia idêntica de palavras ou locuções (uma
subdivisão do fator número 1); e [3] o simples fato de que a omissão
de “contra ti” em 18.15 (e em Lucas 17.4) não altera radicalmente o
sentido do texto.74 Mas à luz das várias maneiras como se pode examinar a evidência, a decisão quanto ao texto é um grande desafio.
Ibid., 126, 255, 349, 411, 478-79, 546, mostra duas coisas: (1) omissões são bem
mais prováveis do que adições nos papiros mais antigos que ele estudou e (2) as omissões têm a tendência de serem mais longas, consistindo em mais palavras, do que as
adições.
74
Mesmo com as leituras mais breves tanto em Mt 18.15 e Lucas 17.4, permanece claro
que é um irmão que peca e que a necessária interação deve ser em primeira instância num
encontro a sós. Além disso, em 18.15 a natureza pessoal da interação é enfatizada pelo
“entre ti e ele só” e pelas formas verbais que estão todas no singular em 18.15-17.
Outros exemplos da omissão de locuções preposicionais “semanticamente dispensáveis” podem ser fornecidos. Pode-se consultar: [1] Lucas 14.8 e a omissão de ga,mouj
(omitido pelo papiro 75 b as) e upV auvtou/ (omitido pelo papiro 45 it sys.p bo); [2] Atos
15.21 e a omissão de kata. po,lin (omitido pelo papiro 45).
73
77
IGREJA LUTERANA
78
AUXÍLIOS
HOMILÉTICOS
OITAVO DOMINGO APÓS PENTECOSTES
Mateus 13.1-9,18-23
TEXTO E CONTEXTO
Os Evangelhos são narrativas da vida e obra de Jesus. O caráter
narrativo dos Evangelhos sinaliza para o fato que estes “livros” trazem uma história de forma completa. Trata-se de um todo, não de uma
coleção de relatos emendados como uma colcha de retalhos. Nem tudo
está relatado em cada um dos Evangelhos, mas cada evangelista relata aquilo que permite o leitor ter um quadro fiel da narrativa da vida e
obra de Jesus segundo o ponto de vista daquele evangelista (inspirado pelo Espírito Santo, mas conservando sua própria identidade e características).
Um dos aspectos importantes a considerar ao examinarmos um texto
(“perícope”) de um dos Evangelhos é verificar em que “lugar” ele se
encontra na narrativa. Não é diferente na análise das parábolas de
Jesus, conforme relatadas em Mateus capítulo 13. Na verdade, a consideração destas parábolas sem levar em conta o enredo do Evangelho conforme Mateus e o lugar específico em que se encontram tira
bastante da compreensão que o próprio texto procura evocar no leitor.
O capítulo 13 de Mateus traz algumas das bem conhecidas parábolas de Jesus. São alegorias tiradas de situações do dia-a-dia dos ouvintes de Jesus. E são um ensino num contexto de conflito. Opiniões
conflitantes a respeito de Jesus podem ser observadas já no capítulo
11, em João Batista (11.3), nas cidades em que fizera milagres (11.2024), entre o povo (12.23), mas especialmente o conflito se estabelece
com os líderes judeus, na sua crescente rejeição a Jesus (12.2,10,24,38).
E estes, pouco a pouco, vão desenvolvendo o plano para tirar a vida
de Jesus, o que vai levar ao ápice do Evangelho, com o relato da paixão, morte e ressurreição. As parábolas são um marco no relato do
Evangelho. Note-se que logo após relatar a parábola do semeador,
Jesus toma os discípulos à parte e ouve deles a pergunta sobre o
porquê dele ensinar por parábolas. E ele passa a mostrar-lhes o significado. Fica evidenciado que a compreensão das parábolas não se refere simplesmente a entender cada aspecto da história e encontrar
79
IGREJA LUTERANA
seu correspondente na “vida real”. Pelas palavras de Jesus, os discípulos tinham algo que faltava aos demais; por isso, ele os toma para o
lado e passa a explicar o significado da parábola. Não se trata de uma
qualidade inerente a eles. Trata-se do fato que eles estão com Jesus.
Foram chamados por ele e a ele estão ligados.
As parábolas do capítulo 13 de Mateus não são histórias com um
fundo moral (ético). São ensinos a respeito do reino de Deus. Ou seja,
são ensinos a respeito do que acontece quando o reino de Deus vem ao
mundo na pessoa de Jesus. É exatamente a postura da pessoa frente a
Jesus que define se haverá entendimento ou não do seu ensino. As
parábolas refletem de maneira bela, quase poética, a bênção que é ter
o reino de Deus se manifestado (e estar se manifestando) entre a humanidade. A parábola do semeador, sendo lida neste contexto, trará
uma mensagem de alento, força e consolo para todos os que estão com
Jesus. Ao mesmo tempo trará um alerta aos que o desprezam e pensam
poder lidar com a própria vida com uma independência irreal.
Observando os tipos de reação diante da proclamação da palavra
de Deus, conforme descrito por Jesus (vv.19-23) é possível perceber
conexões com as reações diante do ministério do próprio Jesus. E não
é diferente do que ocorre também hoje: confusão quanto ao significado da palavra de Deus, por vezes ocasionada por explicações equivocadas por parte de falsos profetas ou pregadores desorientados; um
ouvir descomprometido e, por isso, superficial; o ouvir da palavra como
um detalhe na vida, por sinal detalhe dos menos importantes. São
reações que fazem a palavra ficar sem sua desejada reação (fruto),
qual seja, fé e vida em comunhão com Deus. O problema não está na
semente (Palavra). Ela já demonstrou sua eficácia na criação do mundo e na encarnação daquele que é o Verbo de Deus. O problema está
no coração humano.
Quando chega a quarta parte semeada, o que há de bom na terra?
“Ouve a palavra e a compreende”, diz Jesus. Chama a atenção o verbo
usado por Jesus, traduzido por “compreender”. O verbo suniemi, que
não é dos mais comuns, não se refere tanto ao entender de um assunto nos seus detalhes. Note-se que os discípulos precisaram que Jesus
lhes ensinasse o sentido da parábola. O verbo se refere a “pegar o
sentido de algo que desafia o pensamento da própria pessoa” (Danker,
Greek English lexicon, 2000, p. 972). Seu uso (por exemplo, Lc 2.50;
18.34; 24.45) acentua que há aquele “detalhe’ que precisa ser “compreendido” e que faz toda a diferença (como mostra o episódio dos
discípulos de Emaús – Lc 24.45). A compreensão não é uma capacidade humana, mas é dádiva que vem pela presença de Jesus. Por isso,
não há como realmente entender as parábolas, ou as coisas do reino
80
OITAVO DOMINGO APÓS PENTECOSTES
de Deus, sem “compreender” a Palavra (o Verbo encarnado). O batismo é o milagre de Deus pelo qual ele cria esta compreensão, que precisa ser alimentada pela boa semente.
APLICAÇÃO HOMILÉTICA
No Ano da Bíblia (assim 2008 tem sido considerado, por marcar os
60 anos da Sociedade Bíblica do Brasil), o texto bíblico sobre a ação da
palavra de Deus pode ser aplicado de maneira bem especial. Ainda
que o texto da parábola enfoque a “palavra” como sendo a proclamação, seu ensino traz luz a nossa compreensão da palavra escrita, a
Bíblia.
Há quem considere a Bíblia pelo aspecto de sua utilidade para manter, conservar e aprimorar a moral de um povo. Nesta visão, a perspectiva ética é considerada a fundamental na leitura da Escritura e no
ensino da palavra de Deus. Também se pode verificar um crescente
entendimento (e uso) da Escritura como literatura, aliás, como excelente literatura. Estes dois aspectos têm sua razão de ser, tanto do
ponto de vista da experiência como teológico. Afinal, a Escritura Sagrada ensina, sim, qual a vontade de Deus para as pessoas. E, da mesma
forma, a Escritura é literatura, visto Deus ter em sua misericórdia escolhido revelar-se de maneira compreensível, usando da língua e da forma de comunicação humanas.
Uma tentação sempre presente é ler a parábola do semeador sob
uma perspectiva moralista. A ênfase acaba recaindo sobre os “quatro
tipos de solo” e a inevitável pergunta acaba sendo feita: “De que tipo
de solo é você?”
No entanto, a parábola do semeador nos convida a considerar a
palavra de Deus, tanto a sua proclamação como a palavra escrita, especialmente como a dinâmica ação de Deus em vir até as pessoas. Por
esta palavra, Deus mesmo confronta o leitor/ouvinte com suas fragilidades, necessidades e pecado, e lhe traz vida e salvação, pelo perdão
e comunhão com Ele mesmo, por meio de Seu Filho (a Palavra encarnada).
Nesta perspectiva, não são diferentes tipos de solo (= diferentes
“tipos” de pessoas), mas diferentes reações ao ouvir da palavra. Ela é
sempre poderosa e capaz de produzir o melhor resultado, ou seja, a
dádiva do Espírito Santo e a fé. Infelizmente cada um de nós tem a
triste capacidade de rejeitar a mensagem.
Não nos parece que a melhor alternativa para o sermão seja conduzir os ouvintes a uma análise sobre em qual tipo de solo cada um se
enquadraria. Melhor seria denunciar, primeiro, os tipos de reações que
81
IGREJA LUTERANA
naturalmente todos temos ao ouvirmos a palavra de Deus e que nos
coloca em confronto com Jesus. E então é preciso enfatizar que esta
palavra é poderosa em si mesma para produzir o efeito desejado. Assim foi no batismo, quando ela nos regenerou, renovou, ressuscitou
para uma vida nova com Cristo. Esta mesma palavra continua conosco,
como marca do reino de Deus entre nós. É, portanto, sinal da graça de
Deus, que continua vindo até nós. O ano da Bíblia nos lembra que
temos o tesouro da palavra de Deus bem perto de nós. Esta é, sem
dúvida, uma manifestação muito evidente da graça e amor de Deus
por todas as pessoas.
Gerson L. Linden
São Leopoldo, RS
82
NONO DOMINGO APÓS PENTECOSTES
Isaías 44.6-8
CONTEXTO
Este capítulo integra a segunda grande divisão do livro de Isaías.
Os capítulos 1-39 falam da situação política e especialmente religiosa
por que passava o povo de Deus ao redor de 740 a.C., na Palestina.
Nesta parte Deus, através do profeta Isaías, filho do Amoz, assegurava a iminência do cativeiro porque o povo de Israel consciente e ostensivamente optava por viver sua religião capitulada pelo sistema idólatra. Esta condição espiritual do povo seria a causa da sua servidão
(novamente) no exílio, agora entre os babilônios. A segunda parte de
Isaías, do capítulo 40-66, Deus, falando pelo mesmo profeta, antecipa
uma outra expectativa na realidade do exílio: o retorno e a salvação
por graça do povo de Israel. No cap. 1.1, se fala em “visão” , ou seja,
o profeta antevê algo que outros não têm a bênção de vislumbrar, a
saber, a antecipação da realidade futura do povo de Deus.
A segunda divisão de Isaías é, por isso, denominada “Livro da Consolação”, porque nela Yahweh efetivamente consola o Seu povo exilado. O cap. 44 integra também o que se chama de “Cânticos do Servo”.
Nos cap. 41 a 53, Yahweh se dirige a Israel como Seu servo, através de
quem Ele cumpre seus propósitos salvíficos com o próprio Israel, com as
nações e o mundo. Vez por outra, o cântico está endereçado especificamente a um indivíduo que, por excelência, é o próprio Messias.
Diante da realidade consumada de que o exílio efetivamente acontecera, no texto de 44.6-8 Deus vem lembrar a Israel de que Ele é o que
possui a exclusiva supremacia e que os deuses em quem Israel confiou
devem ser definitivamente abandonados. Num certo sentido, Yahweh
está vingando os seus profetas que por tantas vezes, começando de
madrugada, alertaram o povo do risco que estavam correndo ao se
agregar ao culto pagão e dispensar as riquezas da graça divina. Assim
como as profecias se cumpriram naquele tempo, culminando no exílio,
também agora a profecia de Deus tem a mesma equivalência de cumprimento com relação ao esplendor da sua divina graça.
TEXTO E COMENTÁRIO
No v. 6, Yahweh se apresenta como o verdadeiro e único Deus em
oposição aos ídolos. Sua identidade é apresentada por meio de vários
83
IGREJA LUTERANA
títulos. “Rei de Israel”, num contexto de exílio, é um título no mínimo
ousado. Por meio dele, Yahweh desmitifica o princípio religioso comum
no Antigo Oriente Próximo de que a nação que domina o faz porque o
seu deus é mais poderoso do que o da nação subjugada. Nesse caso,
Israel, sendo prisioneiro dos babilônios, evidenciava que Marduque
era superior a Yahweh. Mas para Israel, a manifestação divina como
“Rei de Israel” era um bálsamo, o mais puro evangelho porque descreve não apenas a relação de identidade Deus com Seu povo como também o interesse, preocupação e cuidado por ele. Alguém se apresentar como súdito de determinado rei significava revelar a sua própria
identidade que lhe assegurava conseqüente proteção e imunidade.
Mesmo no exílio, Yahweh é a embaixada divina para Israel. O termo
“Redentor” (
) aparece 13 vezes em Isaías e apenas nesta segunda parte (a primeira vez ocorre em 41.14). Como “Redentor”, Yahweh
se apresenta como o parente próximo que liberta o seqüestrado Israel por meio de pagamento de resgate. “SENHOR dos Exércitos” (
) é expressão que não tem relação alguma com exército de qualquer nação, antiga ou moderna. Mas a expressão implica a abrangência
de todas as coisas criadas por Deus. Deus tem o controle da criação
em Suas mãos. A providência divina, como enfatizavam os pais ortodoxos, está presente com Israel. Ele tem o poder sobre tudo nos céus e
na terra para levar a cabo a sua vontade redemptiva. E conclui com
“Eu sou o primeiro e eu sou o último” (o emprego do pronome pessoal
enfatiza a identidade). “Primeiro” (
) e “Último” (
). Deus vai
de horizonte a horizonte. Deus é de “A” a “Z”. Nele estão compreendidas todas as coisas. O fato de esta mesma expressão ser empregada
em relação a Jesus não apenas uma, mas quatro vezes em Apocalipse
(1.17; 2.8; 21.6; 22.13) é uma clara indicação de que Jesus Cristo era
Yahweh encarnado no AT.
V. 7: O no começo deste versículo é mais do que a simples conjunção “e”. Ele dá o motivo para a afirmação descrita no v. 6. Algo como:
“Apenas eu sou Deus, pois ninguém exceto Eu pode profetizar (
)”.
A próxima cláusula é parentética, mas por causa do w torna-se consecutiva: “[se assim não for] então que se declare e exponha diante de
mim”. Yahweh desafia os supostos deuses a darem um passo à frente.
Podem eles submeter também algum tipo de supremacia ou exclusividade? A expressão “povo antigo” (
) é uma referência a Israel
e sua história como povo de Deus. “Estabelecer” (
) é verbo que
está historicamente atrelado à aliança graciosa com Israel no AT. Apenas Deus criou um povo antigo e para ele e por meio dele declarou as
coisas que haveriam de acontecer. Pode um outro deus fazer o mesmo
para Israel?
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84
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NONO DOMINGO APÓS PENTECOSTES
V. 8: O objeto do medo de Israel é o suposto poder dos deuses
pagãos, num país estrangeiro. Em 40.18 e passagens adiante, Deus
mostra que nem mesmo o Israel fiel estava plenamente convencido
que os deuses pagãos eram inúteis. Israel estava infectado com o
medo deles e em 40.27 fica evidente que sua fé na divindade exclusiva
de Deus e Sua ajuda estava sendo solapada. Por isso, este versículo 8
enfatiza bastante, de um lado, a divindade de Deus e, de outro, a
nulidade dos deuses. A forma
é um hapax, mas o paralelismo com
a raiz mais comum
“aterrorizar” requer um significado semelhante
a este. Talvez “não vos aterrorizeis nem vos assombreis (de assombração mesmo...)” seja uma tradução adequada. Deus quer consolar o
Seu povo no exílio, como fizera antes. Israel é testemunha desse fato
passado. Deus assegura que está no controle de tudo o que acontecer ao povo. O momento atual também faz parte do Seu plano amoroso e disciplinador. Israel pode confiar Nele. Afinal, Ele é a “Rocha” (
).
A Rocha está ali muito tempo antes do “povo antigo”, antes das nações poderosas, antes de qualquer hipotético deus. A Rocha ninguém
cria, Deus cria.
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rwc
SUGESTÕES HOMILÉTICAS
1. Vivemos numa era de relativismo. A assim chamada era pósmoderna rejeita a verdade única. Toda verdade é relativa,
caleidoscópica. Por isso rejeita também um Deus absoluto e exclusivo.
Universidades confessionais muitas vezes são criticadas por não serem mais liberais, abertas e pluralistas na sua teologia. Muitos cristãos, até luteranos por vezes, acreditam que todas as religiões são
boas na medida em que falam de Deus (seja lá qual for) e que seja boa
para você. Na verdade, quando você cria um deus, esse deus não é
outra coisa senão a projeção de você mesmo – um deus de cera que
se ajusta às conveniências do seu próprio criador. Idolatria, em última
análise, é o ser humano adorando a si mesmo.
2. Nosso texto, nessa relação, se apresenta com lei na medida em
que destrói essa ilusão e revela um único Deus, o SENHOR, a quem
devemos prestar contas. A lei condena nossa busca e inclinação a outros deuses, quaisquer que sejam, e expõe a nulidade e futilidade
deles. Deus, o SENHOR, é um Deus zeloso pelo Seu povo e por nós.
Não admite partilhar com ninguém e com nada a sua divindade.
3. Mas a exclusividade de Deus não diz respeito apenas ao Seu
ser. Ela é também a fonte de conforto e consolo. Pois Ele é o único
Deus que nos criou e nos redimiu, com o resgate cujo preço exclusivo
Ele mesmo pagou na pessoa do Servo Sofredor (Is 53). Estabelecendo
85
IGREJA LUTERANA
a Sua aliança conosco no nosso batismo, Ele se tornou nosso Rei, nosso Redentor e nós o seu povo escolhido. Como “Primeiro” e “Último”,
Ele protege nossos limites e nossas fronteiras no tempo e no espaço.
Enfim, Ele é a nossa Rocha que lá está desde o início: forte, inabalável,
segura e, segundo Lutero, como “Refúgio” eterno. Enquanto fugacidade
é característica do poder, das nações, dos deuses, perenidade e solidez é característica da Rocha - “Rocha Eterna, meu Senhor” (HL 276).
Acir Raymann
São Leopoldo, RS
86
DÉCIMO DOMINGO APÓS PENTECOSTES
Mateus 13.44-52
Os “eleitos” são agraciados na obra de Deus
CONTEXTO GRAMATICAL E LÓGICO – DESTAQUES EXEGÉTICOS
O locus da eterna eleição de Deus em relação aos seus eleitos é
transparente nas leituras deste 10º Domingo após Pentecostes. Ao
direcionarmos nossa reflexão ao como Deus o faz, a resposta
transparece nas leituras selecionadas para este domingo. O salmista
(119.129-136), nas palavras olha com bondade para mim, teu servo, e
ensina-me as tuas leis (v.135), nos ajuda entender como Deus nos elege. Tanto o ser como o fazer de Deus em relação aos seus eleitos
acontece fora do ser humano, na Sua eternidade. Salomão, por toda
sua importância diante do povo e das circunstâncias iniciais de seu
reinado, mostra-se sábio quando direciona o seu pedido também para
a ação de Deus, necessária como ponto de início para qualquer vocação cristã (1 Rs 3.5-12). O amor, o cuidado e o interesse de Salomão
pelo seu povo tem origem nas intenções de Deus não só para o próprio Salomão, mas para todo o Israel. A eleição e as intenções de Deus
sempre são direcionadas ao seu povo, visto que o chamado individual
só é completo em meio à igreja. O apóstolo Paulo (Rm 8.28-30) descreve a ação de Deus em favor dos eleitos nas seguintes palavras: ...
Deus chamou os que havia separado. Não somente os chamou, mas também os aceitou; e não somente os aceitou, mas também repartiu a sua
glória com eles (v.30). Esta é a ação completa de Deus em favor daqueles que o amam, daqueles que ele chamou de acordo com o seu plano
(v.28). O plano da eterna eleição é composto por verbos intensos e
refletem a ação de Deus: chamar, declarar como justo e repartir a Glória
de Deus, Cristo, ações que ocorrem fora do homem, na eterna presciência de Deus. A manifestação da Glória de Deus, Cristo Jesus, é repartida entre os chamados e declarados justos. Aqui está uma grande
cruz para o teólogo cristão: a eternidade de Deus se manifesta na
transitoriedade humana. A contingência do homem recebe de Deus
uma dimensão de existir sem um fim. A igreja existe quando cada crente é chamado pela ação do Espírito de Deus para integrar aqui e agora
a congregação dos Santos e este chamado acontece na dimensão da
eternidade de Deus.
87
IGREJA LUTERANA
Esta dimensão da eternidade de Deus que se faz presente em meio
à igreja é destacada na leitura do evangelho, Mt 13. Ambos, o tesouro
escondido e a pérola, o mais precioso evangelho, se estavam escondidos ou ocultos, já não estão mais – estão à disposição de todos porque o reino de Deus eterno não pode estar distante dos seres humanos. Dentro do imaginário popular, a busca por um tesouro sempre
tem desafiado a muitos. Em tempos de descobertas, tesouros como o
ouro e a prata sempre moveram muitos a sair da inércia, desafiandoos a se tornarem ricos. Este imaginário pode estar por trás das palavras de Jesus. O homem do campo e o comerciante que encontraram o
tesouro sabem do valor do mesmo. A ênfase de Jesus não está na
ação nem de um nem de outro, mas está no valor do tesouro. Aqui
novamente uma perspectiva de eleição: ela ocorre fora das qualificações dos crentes – ela está unicamente na ação/valor do que Deus
oferece.
Mas para encontrarmos o tesouro escondido e a pérola, precisamos de um mapa adequado. Esta é a dimensão da igreja. Contrapondo a um pensamento exclusivista ou individualista, precisamos destacar o quanto Jesus dá ênfase na capacidade de alguém ler e entender
o mapa que conduz ao verdadeiro tesouro. As coisas “desconhecidas
desde a criação do mundo” (v.35) são explanadas de forma simples e
direta com a linguagem parabólica, mas esta linguagem está carregada de significado. O ministério de Jesus, o ministério pastoral, ajuda os
“eleitos” a lerem o mapa corretamente a encontrarem o tesouro e a
pérola dados e oferecidos por Deus.
Ao mesmo tempo em que a igreja, por causa de seu ministério, tem
a tarefa de ajudar a ler o mapa da fé de forma correta, há uma dimensão apresentada nesta parábola. A perspectiva escatológica também
é marca dos eleitos de Deus. Os eleitos não são eleitos para o aqui e
agora – eles o são para a eternidade. A separação entre os ponhrou.j
evk me,sou tw/n dikai,wn (entre os seguidores de satanás e os justificados) nos remete ao juízo de Deus. Novamente, precisamos perceber
como Deus agracia os seus, oportunizando arrependimento e perdão
em meio à igreja.
CONTEXTO RETÓRICO – DESTAQUES HOMILÉTICOS
Uma das características da Igreja Luterana é seu testemunho sobre a universalidade da graça de Deus. Isto nos leva a entendermos o
quando Deus nos elegeu em Cristo Jesus. O tesouro, a pérola, a separação entre crentes e descrentes, ligados à glória de Deus revelada
em Jesus Cristo, nos direciona para este domingo. O exemplo de
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DÉCIMO DOMINGO APÓS PENTECOSTES
Salomão deve ser seguido porque ele consegue deixar Deus ser Deus
quanto ao seu chamado. Por toda a sua importância social, política e
econômica, o que se destaca em Salomão é que ele tinha (pelo menos
nesta fase de sua vida) encontrado o tesouro e a pérola, o evangelho
de Deus, e a partir dele se coloca à disposição do servir. Sem dúvida, a
mente de Salomão reproduz um mapa apropriado para entender seu
papel em relação a Israel. E é por aí que o pastor precisa conduzir
seus ouvintes: colocá-los diante do Senhor porque Ele os escolheu
desde a eternidade para viverem esta certeza aqui e agora, sem esquecermos a dimensão do juízo. Uma vez na fé não significa sempre
na fé – este determinismo ou pré-determinismo não existe no âmbito
da fé. A partir daí, pode-se destacar o papel hermenêutico – criar o
mapa – para que todos sempre possam encontrar o tesouro e a pérola
dados e oferecidos gratuitamente em Cristo.
Clóvis Jair Prunzel
São Leopoldo, RS
89
IGREJA LUTERANA
DÉCIMO PRIMEIRO DOMINGO APÓS
PENTECOSTES
Romanos 8.35-39
TEXTO NOBRE
Romanos 8.35-39 é uma parte nobre da Escritura Sagrada. É fonte
de segurança e conforto. São palavras de Deus que animam, acalmam
corações, devolvem a segurança e a certeza do amor de Deus, quaisquer que sejam as ameaças ou circunstâncias.
A CARTA AOS ROMANOS
Romanos é uma carta missionária, escrita por um missionário, a
uma congregação missionária e que precisava suporte teológico para
continuar a sua tarefa missionária. Nas palavras de Lutero, Romanos é
puro Evangelho. Cada cristão deveria se ocupar com esse texto diariamente. Nessa carta, o cristão encontra tudo o que deveria saber sobre lei, evangelho, pecado, punição, graça, fé, justiça, Cristo, Deus,
boas obras, amor, esperança e a cruz (Concordia Self-Study Bible, p.
1713).
Nessa carta Paulo lista verdades teológicas fundamentais aos seus
leitores. Algumas são:
1. A realidade da universalidade do pecado – Rm 1.28-32; 3.9;5.12;
2. O pecador é declarado justo diante de Deus pela fé em Cristo –
Rm 1.16-17; 3.28; 5.1;
3. Há frutos dessa justiça atribuída ao crente em Cristo – Rm 5.111;
4. A graça de Deus se manifesta na libertação da escravidão e tirania do pecado – Rm 6;
5. Também é a graça que anula a condenação da lei – Rm 7;
6. Sem condenação, há vida no poder do Espírito – Rm 8.
OS QUATRO PILARES QUE SUSTENTAM A VIDA CRISTÃ
A partir de Rm 8.17, Paulo apresenta quatro pilares sobre os quais
ele constrói passo a passo a certeza de que não há nada que pode
nos desconectar do amor de Deus.
Herdeiros com Cristo no sofrimento e na glorificação, o cristão tem
90
DÉCIMO PRIMEIRO DOMINGO APÓS PENTECOSTES
as seguintes razões para crer que está seguro, mesmo que “caiam mil
ao teu lado e dez mil à tua direita” (Sl 91.7).
Rm 8.18-25: O sofrimento é globalizado (1 Pe 5.9), mas é insignificante se comparado à glória a ser revelada do futuro. É a esperança
que sustenta em meio às tribulações a expectativa dessa glória. E a
garantia antecipada dada por Deus para viver na esperança de um
novo céu e uma nova terra, é o Espírito. Aqui ele é apresentado como
as primícias, os primeiros frutos; em Efésios, numa linguagem comercial, ele “é o penhor da nossa herança até ao resgate da sua propriedade, em louvor de sua glória” (Ef 1.14). Este é o primeiro pilar.
Rm 8.26-27: A segunda coluna do encorajamento para suportar
as aflições do tempo presente está na obra do Espírito. É ele que cobre as fraquezas e a enfermidade irreversível de todo o ser humano, o
pecado. Os filhos de Deus têm dois que intercedem a seu favor no céu.
Cristo (Rm 8.34; Hb 7.25; 1 Jo 2.1-2) e o Espírito (Jo 14.16-17).
Rm 8.28-30: O terceiro pilar que fundamenta o encorajamento aos
filhos de Deus em meio aos tormentos diários consiste na consolação
e na certeza de que todas as coisas têm como propósito último o bem
dos cristãos.
Rm 8.31-34: E, finalmente, a garantia maior que pode ser dada
aos cristãos de que todas as coisas irão contribuir para o seu bem,
está sendo apresentada aqui: Deus está do lado dos seus filhos. E a
maior prova disso está na maior dádiva, o filho Jesus Cristo. Aqui poderíamos lembrar o episódio de Acaz em Isaías 7.10-16. O sinal que
lhe foi oferecido como prova de que Deus estaria do seu lado e que foi
recusado, é tornado público e universal em Jesus Cristo. “Portanto o
Senhor mesmo vos dará sinal: Eis que a virgem conceberá, e dará à luz
um filho e lhe chamará Emanuel” (Is 7.14).
Mais do que um sinal, Jesus é o intercessor e advogado que nos
livra das acusações e condenações que o pecado traz. Por causa de
sua morte e ressurreição (1 Co 15.17), somos justos e aceitos por
Deus. São quatro razões na obra redentora de Cristo e que garantem
que nada pode nos separar do amor de Deus. a. Jesus morreu (Rm
4.25; 5.8); b. Jesus ressuscitou (Rm 6.5; 1 Co 15.17); c. Cristo está
exaltado à destra de Deus, o Deus-homem é Rei (At 2.33); d. Ele é o
nosso intercessor (Hb 7.25).
A TRIUNFANTE CONCLUSÃO – ROMANOS 8.35-39
Ao detalhar, pilar por pilar, a base para encorajar o povo de Deus a
suportar com esperança as adversidades, gemidos e enfermidades, o
apóstolo chega a essa triunfante conclusão. Não há nada que pode
91
IGREJA LUTERANA
nos separar do amor de Deus. É o último degrau na escada do conforto. É uma conclusão acima de qualquer dúvida.
Paulo elabora uma lista inicial do que pode ameaçar essa certeza e
indicar que não estaríamos sendo amados por Deus. E o fundamento
dessa confiança está no caráter da constância do amor de Cristo, certificado pelos fatos relacionados no versículo 34. Não foi um “acidente” que
nos fez filhos de Deus e assim não serão “acidentes” que poderão nos
desestabilizar a ponto de sermos separados do amor de Deus.
As circunstâncias adversas por que passam os santos peregrinos
sobre a terra são superadas pelo amor imutável de Cristo por eles (2
Co 11.23-33). O sofrimento pode causar desespero e tentações, mas
as desventuras listadas no versículo 35 fazem parte de todas as gerações dos filhos de Deus (Sl 44.22; At 14.22; Hb 11.35-38). Porém, elas
nunca foram páreo para o amor imutável de Deus por seus filhos e
revelado de maneira concreta em Cristo Jesus. E nele está o principal
suporte para olhar para frente com certeza e esperança (Sl 44.26).
Nele somos vencedores, mesmo quando a vitória parece ser dos
infortúnios. Em cada encontro com a adversidade, “em todas as coisas”, a vitória é dos filhos amados de Deus em Cristo Jesus (Rm 5.3-4).
O hino triunfante do consolo e da certeza do amor de Deus termina, refletindo a própria convicção do apóstolo. Nenhum poder é capaz
de anular o amor de Deus, o qual está revelado e opera em Jesus
Cristo (Sl 121.6).
SUGESTÃO DE ESBOÇO HOMILÉTICO
INTRODUÇÃO
Lutero afirma que há duas grandes tentações na vida do cristão.
Uma, é não perceber a mão de Deus em meio ao sofrimento. Essa é a
maior. A outra e a mais perigosa, segundo ele, é quando Satanás tenta nos roubar a alegria e confiança na graça de Deus e nas suas promessas de perdão de fortalecimento. É nesta tentação que Satanás
faz jus ao significado do seu nome: acusador. Ele quer transformar em
desespero e dúvida o conforto recebido em Cristo Jesus.
O FATO
Sofrimento é globalizado e vem em todas as épocas, em diferentes
embalagens e em intensidades variadas. O fato é que ele bate à porta
também da vida dos cristãos. E ele causa estranheza quando se sofre
como cristão (1 Pe 4.16).
92
DÉCIMO PRIMEIRO DOMINGO APÓS PENTECOSTES
TRANSIÇÃO
Paulo cuidadosamente esboçou quatro fundamentos que podem
firmar os cristãos, para que eles não se abalem nas tempestades e
turbulências da vida.
O TEXTO/APLICAÇÃO
Não há poder ou situação que pode nos separar do amor de Deus
revelado em Jesus Cristo. Não há ocasião, nem poder, que seja capaz
disso.
ILUSTRAÇÃO – TEXTOS DO DOMINGO
O salmo (136.1-9, 23-26) é um louvor insistente e consistente de
que Deus é bom e sua misericórdia é eterna. O texto do profeta Isaías
(55.1-5) é um convite insistente para os famintos e sedentos pela fiel
misericórdia de Deus. O evangelho (Mt 14.13-21) ilustra esse cuidado
misericordioso de Deus, quando Jesus atende a todas as necessidades das pessoas.
CONCLUSÃO
Pode haver tentações grandes e perigosas, mas as leituras desse
domingo nos deixam a convicção de que não há poder no tempo, ou no
espaço, ou em toda criação, que sejam capazes de anular o amor de
Deus revelado no Senhor Jesus Cristo.
Anselmo Ernesto Graff
São Leopoldo, RS
93
IGREJA LUTERANA
DÉCIMO SEGUNDO DOMINGO
APÓS PENTECOSTES
Mateus 14.22-33
CONTEXTO LITERÁRIO E LITÚRGICO
Em Mateus, a narrativa intitulada “Jesus anda por sobre o mar” vem
imediatamente após a leitura selecionada para o domingo anterior. Ou
seja, não há nenhum intervalo entre a primeira multiplicação de pães e
peixes e a história de hoje. (No caso do domingo seguinte, existe uma
lacuna de mais de 20 versículos. Para fugir à “pericopite” ou excessiva
fragmentação do texto, o pregador poderia fazer a ponte entre a leitura de Mateus 15, prevista para o próximo domingo, e a leitura de hoje).
Quanto às demais leituras, o ponto de contato parece ser este: o
Salmo 28 é um pedido de ajuda (“Salva-me, Senhor!”), paralelo a Mt
14.30. 1Reis 19.9-18 apresenta alguns paralelos com Mateus 14. Talvez se queira comparar o profeta Elias com Jesus (embora em Mateus,
ao contrário de Lucas, não se destaque o ofício profético do Salvador).
Existem também os paralelos do monte e das perguntas em tom de
censura (“Que fazes aqui, Elias?” e “Homem de pequena fé, por que
duvidaste?”). No entanto, parece que a “rima temática” que os
formuladores da série trienal viram entre 1Rs 19 e Mt 14 diz respeito à
semelhança de contexto: teofanias em meio a forças naturais ameaçadoras. Em 1Rs 19, Deus não estava no vento forte nem no terremoto, mas no “cicio tranqüilo e suave” (ARA). Em Mateus 14, o poder de
Deus não está no vento forte que derruba Pedro, mas na mão estendida de Jesus e nas palavras que Jesus dirige a ele. Quanto a Rm 9.15, a epístola do domingo, embora não exista nenhuma garantia de
que vá existir algum paralelo, parece que o texto foi escolhido a dedo
para aprofundar ainda mais a confissão que aparece no final do texto
do Evangelho. Os discípulos confessam: “Verdadeiramente és Filho de
Deus!” Paulo traz uma doxologia que leva isto um pouco adiante (apesar das tentativas de exegetas e tradutores que querem destacar a
segunda metade de Rm 9.5, fazendo dela uma doxologia não
cristológica): “Que Cristo, que é o Deus que governa todos, seja louvado para sempre! Amém”. (NTLH) Em outras palavras, os discípulos
afirmam que Jesus é Filho de Deus. Paulo confessa que ele é Deus!
(Aliás, Rm 9.5 é uma das passagens do NT – poucas, embora significativas – em que se diz explicitamente que Jesus Cristo é Deus).
94
DÉCIMO SEGUNDO DOMINGO APÓS PENTECOSTES
TEXTO
O texto traz muita ação compactada em poucas linhas. (Se esse
script fosse filmado, quanto tempo isso levaria? Quanto tempo teria
Jesus levado apenas para despedir as multidões?) Os diálogos são
mínimos, embora significativos. Há várias cenas. Mateus parece sinalizar o início de cada cena através do uso da partícula grega “dé” (que,
neste caso, poderia ser traduzida por “e”, embora sua função pareça
ser a de sinalizar a continuação da narrativa, com sucessivas mudanças de cenário). As traduções não reproduzem todos esses usos do
“dé”. Quem conferir o grego notará que, seguindo as deixas dessa
seqüência de usos do pequeno “dé”, as cenas são estruturadas da
seguinte maneira: 14.22-23a; 23b; 24; 25; 26; 27; 28; 29a; 29b; 30;
31; 32; 33. Também é possível ver um pequeno “pingue-pongue” na
perspectiva com a que história é narrada, ou seja, o foco é, sucessivamente, Jesus – discípulos – Jesus – discípulos – etc.
Quanto ao texto em si, alguns detalhes chamam a atenção:
2.1. A linguagem do v. 22 é forte, por mais que seja suavizada em
ARA (“compeliu”). Jesus obrigou os discípulos a embarcar. Não nos é
dito o motivo. Há quem diga, à luz do paralelo em Jo 6.15, que os
discípulos ficaram entusiasmados com a possibilidade de proclamá-lo
rei, o que teria exigido um esforço extra para afastá-los do local.
2.2. A subida de Jesus ao monte não nos surpreende (veja-se Mt
5.1 e Lc 9.28) e o mesmo vale, de certa forma, para o fato de Jesus
estar sozinho. Só que a expressão grega “kat’ idían” designa, em geral, nos Evangelhos, um estar a sós com os discípulos. Em poucas ocasiões, como aqui e em Mt 14.13, Jesus está realmente só. O final do v.
23 deixa isto bem claro: “lá estava ele, só”.
2.3. A linguagem dos “muitos estádios” (v.24) precisa ser atualizada, especialmente nestes dias de popularização do esporte. A designação é um tanto vaga. NTLH diz que o barco já estava no meio do
lago. A “quarta vigília” (v.25) é a última vigília da noite. NTLH diz bem:
“de madrugada, entre as três e as seis horas”.
2.4. Chama a atenção a maneira natural com que o evangelista
relata que Jesus andou sobre o mar. Já houve críticos que tentaram
“esvaziar” o texto, dizendo que “epí ten thálassan” significa apenas
“junto à praia”, mas o contexto impede essa manobra.
2.5. Num texto de tanta ação e pouca fala, vale a pena dar atenção
ao que se diz. Isolando as falas, temos o seguinte:
Discípulos: É um fantasma. (Medo e superstição)
Jesus: Tende bom ânimo! Sou eu. Não temais. (Correção e
reafirmação)
95
IGREJA LUTERANA
Pedro: Se és tu, Senhor, manda-me ir ter contigo, por sobre as
águas. (Expressão de dúvida e proposta ousada)
Jesus: Vem! (Reafirmação e anuência surpreendente)
Pedro: Salva-me, Senhor! (Fracasso e pedido de socorro)
Jesus: Homem de pequena fé, por que duvidaste? (Pergunta de
censura; a única no diálogo)
Discípulos: Verdadeiramente és Filho de Deus! (Confissão de fé, em
nítido contraste com a afirmação inicial: “É um fantasma”).
PARALELOS, PONTOS DE CONTATO
Este é um interessante texto que tem paralelo em Marcos e João,
porém não em Lucas. Aliás, nos Sinóticos, como nos lembram os estudiosos do assim chamado “problema sinótico”, são freqüentes as combinações Mt-Mc x Lc e Lc-Mc x Mt. Em outras palavras, quando Lucas e
Marcos andam juntos, Mateus está fora; e quando Mateus e Marcos
andam juntos, Lucas segue seu próprio caminho. É o caso, aqui.
Sempre que há um paralelo sinótico, interessa de perto ao pregador aquilo que só o evangelista do dia apresenta. Em outras palavras,
aquilo que “só Mateus viu (ou ouviu)”. No caso do evangelho de hoje,
trata-se basicamente do relato a partir do v. 28 (Pedro e Jesus sobre
as águas e a confissão dentro do barco). Com certeza, esta deveria
ser a seção a ser explorada pelo pregador do relato de Mateus.
O ponto alto é, sem dúvida, a aclamação de cunho litúrgico, no
final: “Verdadeiramente és Filho de Deus!”. Jesus é o Filho de Deus que
salva do abismo (veja Sl 18.16; 32.6; 144.7; Is 43.2) aqueles que correm perigo dentro do barco.
Outros paralelos são os seguintes: o verbo com que Jesus fala sobre a dúvida de Pedro (trata-se de distázo, e que ocorre apenas essas
duas vezes, no NT) reaparece em Mt 28.17. O mesmo se aplica ao ato
de adoração coletiva (v.33): reaparece em Mt 28.17, ocorrendo também em 28.9 e 2.11. (Aliás, o verbo “adorar” – proskynéo, no grego –
conota a divindade daquele que é adorado.) Já o reconhecimento de
que Jesus é o Filho de Deus reaparece em Mt 27.54, quando o centurião
se manifesta diante da cruz.
USO HOMILÉTICO
Pregadores costumam abordar este texto da perspectiva dos nossos temores, mais ou menos no mesmo estilo da cena em que Jesus
acalma a tempestade. Com certeza, o relato de Mateus permite tal
ênfase. Um exemplo é o seguinte comentário de Joh. Ylvisaker, dos
96
DÉCIMO SEGUNDO DOMINGO APÓS PENTECOSTES
inícios do século 20: “Aqui temos uma impressionante imagem das
andanças espirituais do cristão. Está pisando num mar turbulento, tempestuoso. Enquanto mantém os seus pés firmados nas alianças de
Deus e conserva os olhos da fé fixos nele, tudo vai bem. Ele tem aquele poder que não pode ser vencido, pois vem de Deus. Mas tão logo ele
perde de vista as promessas e permite que seu olhar se afaste do
Senhor Jesus para os muitos perigos e aflições desta vida, passa a ser
sufocado por sua própria fraqueza; pois, então, tudo que lhe resta é
sua própria força, e esta nada pode. Segundo Bengel, aquilo que foi
iniciado por uma pessoa que confia na graça não pode ser completado
através de poder natural. Mas na adversidade Jesus está particularmente próximo daqueles que são dele, e a proximidade de Jesus representa, para eles, salvação” (The Gospels, p. 334).
No entanto, o clímax da história só chega ao final. O evangelista
quer que ouçamos a confissão apostólica: Tu és o Filho de Deus. Por
isso, esta história é, antes de tudo, uma história a respeito de Jesus.
Em muitos dos milagres de Jesus, o discípulos perguntam: “Quem é
este?” Não é o caso aqui, em Mateus 14. No entanto, esta pergunta
está implícita. E existe, da parte dos discípulos, um sensível progresso
na identificação de Jesus. No início, há uma identificação equivocada:
“É um fantasma”. Depois, uma identificação provisória ou incerta: “Se
és tu ...” E, no final, uma confissão de fé: “Verdadeiramente és o Filho
de Deus”.
É claro que a solução perfeita, para o pregador, é a combinação dos
dois temas: temor em meio à fé (levando a nem perceber a presença
de Cristo ou a duvidar dela), o que é um problema; e a graça da mão
de Jesus que nos alcança e leva a confessar, em meio aos nossos
temores: Verdadeiramente és o Filho de Deus!
Vilson Scholz
São Leopoldo, RS
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IGREJA LUTERANA
DÉCIMO TERCEIRO DOMINGO
APÓS PENTECOSTES
Mateus 15.21-28
CONTEXTO
O texto do Evangelho de Mateus nos relata a história, a luta, a
insistência de uma mulher, que nem nome recebe, pela transformação
da realidade em que se encontra. Jesus está caminhando com seus
discípulos numa região fora de Israel, onde vivia um outro povo, de
uma outra cultura. De repente, vem uma mulher gritando em sua direção. Essa mulher era cananéia. E o drama aqui é que era uma mulher!
A mulher, segundo a opinião judaica, estava reduzida a nada, pois os
rabinos chegavam a debater se elas tinham mesmo alma. Se um escravo ou um menino podia ler a lei nas sinagogas, isso não era permitido nem a uma judia adulta. Ela chama, implora por ajuda para sua
filha que está doente. Jesus a ignora. Mas ela não desiste. A mulher
sem nome continua gritando. A reação dos discípulos é afastá-la. A
insistência desta mulher deixa Jesus sem alternativa. Não há mais como
ignorá-la. Jesus tem de ouvi-la. Mas mesmo assim Jesus age de forma
inesperada, áspera. Mas ela não desiste! Ela luta por um espaço na
caminhada de Jesus, o reconhece como Messias – ao se dirigir a Ele
como Filho de Davi – e não se importa com os conceitos e dogmas
preestabelecidos. Se essa mulher vivesse em Betânia ou Jerusalém,
um pedido desses já teria demonstrado uma grande fé. Mas quando o
texto diz que ela era cananéia (dos lados de Tiro e Sidom), não era
judia, tal oração deixou a todos surpresos.
ÊNFASES
V. 21: Tiro e Sidom. A cidade de Tiro alcançou grande poder e esplendor. Cerca de 150 anos depois da edificação do templo de Salomão,
estabeleceu a grande colônia de Cartago – assenhoreou-se da ilha de
Chipre, que continha preciosas minas de cobre – e exerceu domínio
sobre Sidom.
V. 22: Uma Mulher cananéia. O termo vem de cananeus, que inclui
diversos povos distintos, como: os amorreus, os heteus, os girgaseus,
os cananeus, os perizeus, os heveus e os jebuseus. No sentido mais
apropriado, esse nome é aplicado a uma só tribo, àquela que habitava
98
DÉCIMO TERCEIRO DOMINGO APÓS PENTECOSTES
à beira-mar e pela ribeira do Jordão. Os cananeus tinham por objetos
de adoração Baal e Astarote. A expressão “Filho de Davi” diferenciava
as petições a Cristo. Quando um dos que se chamavam “pertencentes
a Deus” (fariseus) oravam, faziam-no para aparecer. Aquela mulher
estava convicta de que aquele Jesus, de quem ouvira falar em suas
terras, era diferente do deus ao qual seu povo adorava. Não apenas
um Jesus que operava milagres, mas sim um que podia tirar o pecado
pela raiz.
V. 23: Parece estranho a indiferença de Jesus. Como diz o texto:
“Mas Jesus não respondeu nada”. O fato de Jesus não lhe ter respondido coisa alguma, mostrou para os discípulos e para aquela mulher que a
fé que movimenta alguma coisa só é manifestada através da total humilhação aos pés do Senhor. Isso acontece quando uma pessoa se esvazia completamente, chega ao zero diante de Deus, quando não tem
mais palavras ou argumentos para tentar reivindicar algo de Deus. Quando entra totalmente, como criança, na dependência do Pai.
V. 24: Agora parece ser o cúmulo do absurdo. Jesus dá uma palavra
dura aos ouvidos de quem estava por perto e mais ainda àquela mulher que clamava. O que Jesus quis dizer com isso? Jesus estava apenas explicando seu propósito, que era resgatar e religar o povo de
Israel ao seu verdadeiro Deus.
V. 25: O clamor da completa !dependência.
V. 26: Se antes parecia o cúmulo do absurdo, do que se pode denominar esta passagem?! Jesus, com muita coragem, simplesmente chama a mulher de “cadela”.
Quando Jesus fala dessa forma, deixa mais claro ainda o seu propósito junto ao Pai. Veio para restaurar a casa de Israel. Aí, sim, temos
uma tipologia interessante e aplicativa nos dias de hoje. “Pão dos filhos” significa Israel. Dá-los aos cachorrinhos significa o povo alcançado e adquirido pela graça salvífica de Jesus. Visto que Israel não o
recebeu como Filho de Davi, pois “veio para os seus e os seus não o
receberam”, Jesus estendeu sua misericórdia e salvação aos que não
pertenciam à casa de Israel.
V. 27: Jesus tinha uma capacidade incrível de incitar as pessoas a
se moverem no campo da fé. Dava-lhes a oportunidade de dialogar, o
que tem sido quase que extinto. Uma pessoa com tanto prestígio e
poder dar ouvidos a publicanos, prostitutas, cegos, mendigos. Isso
era maravilhoso para eles, mas muito criticado e abominado pelos outros denominados “filhos de Deus”.
V. 28: A mulher cananéia obtém uma recompensa graciosa: “Mulher, você tem muita fé! Que seja feito o que você quer! E naquele momento a filha dela foi curada”.
99
IGREJA LUTERANA
PARALELOS
O Salmo 67 destaca a misericórdia e a bênção do Senhor, tanto no
campo material quanto no espiritual. Isso é motivo de temor e louvor
por parte dos povos do mundo inteiro. Deus quer que todos se alegrem e cantem de alegria, que a sua salvação seja conhecida por todos os povos. Isaías 56 destaca o amor e a fidelidade de Deus para
com o seu povo de Israel e, ao mesmo tempo, demonstra o quanto ele
deseja que também os estrangeiros possam apresentar “sacrifícios e
ofertas” em seu altar e estar em sua “casa de oração para todos os
povos”. Deus quer que outros povos sejam juntados ao seu povo,
para que todos, a uma voz, possam “ficar felizes na minha casa de
oração”. Em Romanos 11, Paulo dirige-se a não-judeus que, pela fé em
Cristo, tornaram-se “amigos de Deus” e receberam a vida.
SUGESTÕES HOMILÉTICAS
TEMA
Verdadeira fé pode ser encontrada onde menos se espera.
APLICAÇÕES
– A aflição, por vezes, é transformada em bênção para a vida da
pessoa.
– O povo de Deus, com freqüência, mostra-se menos misericordioso e compassivo do que as orientações do próprio senhor.
– A fé sincera no Senhor certo de nossas vidas resulta em bênção e
ajuda.
CONCLUSÃO
A oração dessa mãe foi:
– Sincera e breve. O momento não era para usar muitas palavras,
mas para dizer apenas a razão que a levara à presença de Jesus.
– Foi humilde: ela prostrou-se aos pés de Jesus. Ela estava em
público e não se importou com os que a presenciavam naquele seu
gesto de tão profunda humildade.
– Foi fervorosa: fez a súplica com fé, na certeza de que Jesus
podia todas as coisas e não deixaria de atender aos rogos de uma
mãe que desejava ardentemente a cura de sua filha.
– Ela foi modesta: limitou-se a pedir a Jesus o que mais necessita-
100
DÉCIMO TERCEIRO DOMINGO APÓS PENTECOSTES
va naquele momento. Nenhuma outra coisa a preocupava mais que a
cura de sua filha.
– Foi reverente: usou a expressão “Filho de Davi”, chamando-o de
Rei. Ela creu. Essa expressão, que talvez para nós não diga nada, mas
para o contexto dela (em que todos esperavam a chegado do Messias) estava dizendo: “Eu creio que Tu és o Messias, filho de Davi, enviado por Deus, e que tens poder para libertar minha filha”.
– Foi perseverante: não obstante o aparente desinteresse do
Mestre pelo seu pedido, ela insistiu, permaneceu perseverante, crendo que seria atendida. Diante disso, Jesus disse: “Ó mulher, grande é
a tua fé. Faça-se contigo como queres”. A Bíblia diz que desde aquele
momento a filha dela ficou sã.
Paulo Gerhard Pietzsch
São Leopoldo, RS
101
IGREJA LUTERANA
DÉCIMO QUARTO DOMINGO APÓS
PENTECOSTES
Mateus 16.13-20
CONTEXTO
Jesus está se aproximando do tempo de ser crucificado. Logo após,
o texto prediz a sua morte e ressurreição (Mt 16.21). Portanto, dentro
deste contexto, a confissão de Pedro, “Tu é o Cristo, o Filho do Deus
vivo” (v. 16), tem um sentido bem específico: Cristo, o Ungido de Deus,
vem para dar sua vida e para vencer a morte, garantindo-nos, assim,
vida eterna.
Dentro do contexto litúrgico, este texto faz parte do 14º Domingo
após Pentecostes da Série A. Os domingos após Pentecostes enfatizam
os ensinamentos e o ministério de Jesus.
TEXTO
Os discípulos precisavam ser preparados para os dias difíceis que
iriam acontecer mais tarde, quando Jesus seria entregue para morrer
e ressuscitar. Precisavam crescer na fé em Jesus para não vacilarem
nos momentos de sua paixão e morte. Fazendo um teste para a fé dos
discípulos, Jesus lhes pergunta sobre o testemunho do povo a respeito dele.
Apesar das constantes injúrias que os fariseus faziam sobre Jesus,
o povo ainda tinha uma grande estima por ele: comparam-no a um
profeta. As respostas do povo são diversas, mas convergem na crença
popular de que um dos mortos tenha ressuscitado: João Batista, Elias,
Jeremias ou algum outro profeta. De fato, Jesus era um profeta, como
já estava predito: “O Senhor, teu Deus, te suscitará um profeta do
meio de ti, de teus irmãos, semelhante a mim; a ele ouvirás” (Dt 18.15).
Herodes Antipas já havia pensado de Jesus que ele seria João Batista,
ressuscitado dentre os mortos. A volta de Elias era aguardada pelo
povo de Israel, antes do Dia do Senhor, como precursor do Messias (Ml
4.5-6). No entanto, mesmo tendo Jesus em alta estima, o povo não
tinha noção da verdadeira identidade de Jesus.
Jesus, ao fazer a pergunta aos discípulos sobre sua identidade,
apresenta-se como o Filho do Homem (v. 13). O impetuoso Pedro imediatamente responde em nome dos discípulos com um testemunho de fé
102
DÉCIMO QUARTO DOMINGO APÓS PENTECOSTES
inabalável: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (v. 16). Foi uma declaração concisa, todavia precisa e completa sobre a divindade de Jesus.
Expressa a fé dos discípulos em Jesus como o Redentor prometido. Foi
uma réplica à afirmação que Jesus fez sobre si como o Filho do Homem
(v. 13).
Jesus qualificou Pedro como bem-aventurado (v.17) em vista da sua
resposta. Mas isto não se deveu a um mérito de Pedro: foi uma revelação do próprio Deus. O correto conhecimento de Jesus Cristo, a fé
verdadeira, é obra e dom de Deus. Jesus ainda acrescenta uma promessa a esta afirmação: “Também te digo que tu és Pedro, e sobre
esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (v. 18). Pedra aqui também pode ser traduzida por
rocha. O nome Pedro também significa pedra, rocha e aqui Jesus faz um
jogo de palavras entre pétros (Pedro) e pétra (pedra, rocha). A igreja, o
povo messiânico, edificada sobre a firme afirmação de Pedro, não precisa temer o inferno.
Em vista da afirmação de Pedro, Jesus confere as chaves do reino
dos céus aos discípulos. Em Jo 20.23, fica evidente que estas chaves
são concedidas a todos os apóstolos.
O texto conclui com o pedido de Jesus de que não fosse divulgado
ser ele o Cristo. Os judeus estavam com uma falsa concepção, procurando um Messias que fosse político. Se isto fosse espalhado, poderia
precipitar-se uma rebelião contra Roma. Somente mais tarde, diante
de sua crucificação, Jesus respondeu publicamente ao sumo sacerdote
que ele era o Cristo.
APLICAÇÕES HOMILÉTICAS
O texto nos mostra Jesus como “o Cristo, o Filho do Deus vivo”.
Jesus é o fundamento da igreja sobre quem o inferno não tem poder
de vencer.
A moléstia é reconhecer em Jesus um profeta como outro qualquer
e não ver nele o próprio Deus que se faz homem para padecer, morrer
e ressuscitar por nós. Jesus continua hoje a ser visto apenas como um
exemplo de bondade que se destaca em sua doação às pessoas, sem
ser visto como o Salvador da humanidade. Em nossos tempos, precisamos cuidar para não nos acomodarmos e deixar que Jesus seja visto das mais diferentes formas. Não podemos nos calar diante das opiniões diversas sobre Jesus. Precisamos interferir para mostrar que “Jesus é o Cristo, o Filho do Deus vivo”.
Os meios para vencer esta visão incompleta sobre Jesus o próprio
Deus nos dá. Assim como Deus revelou a Pedro que Jesus é “o Cristo,
103
IGREJA LUTERANA
o Filho do Deus vivo”, ele continua a nos levar a esta fé e certeza
mediante a pregação de sua palavra e a administração dos sacramentos. Motivados pela certeza que Deus nos dá, não precisamos mais
deixar de divulgar que Jesus é o Cristo, pois agora já ficou claro que o
Messias não veio para uma libertação política, mas para a maior libertação de que temos necessidade: a libertação de nossos pecados.
Com as chaves do reino dos céus, podemos ter a certeza da ligação de
Deus conosco mediante sua palavra e sacramentos.
PROPOSTA HOMILÉTICA
QUEM É O FILHO DO HOMEM HOJE?
I – O Filho do Homem continua alvo de controvérsia
II – A verdade sobre o Filho do Homem é eterna: é o Cristo, o Filho
do Deus vivo.
Raul Blum
São Leopoldo, RS
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DÉCIMO QUINTO DOMINGO APÓS
PENTECOSTES
Romanos 12. 1-8
A nova vida no serviço de Deus
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
O apóstolo Paulo terminou a primeira sessão de sua epístola aos
Romanos, ou seja, a parte doutrinária. Mostrou como ajustar e manter relações com Deus. Ele descreveu as diversas e variáveis manifestações da compaixão e misericórdia divinas em relação ao ser humano
e a amorosa e incansável busca de Deus em meio à desobediência e
ingratidão humanas. O apóstolo agora faz a transição entre a base da
manifestação do amor de Deus para a prática da vida. A vida cristã
pretende ser radicalmente consagrada a Deus, vivida não em conformidade com o mundo, mas em “transformação” no sentido, a partir e
na direção de Deus.
TEXTO
V. 1: “Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que
apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus,
que é o vosso culto racional”.
Pois, ou, por esta razão: Rogo. O modo como o apóstolo se dirige
aos cristãos romanos é modelar para todos os tempos. Sua exortação
é evangélica, não uma demanda da lei. Ele não escreve: eu determino,
ou eu mando, mas: eu rogo. O apóstolo quer que os cristãos vivam em
conformidade com a sagrada e santa vontade de Deus, não no sentido
de que esse esforço ou comportamento mereçam ou tenham o mérito
de salvar ou, da salvação. A exortação do apóstolo baseia-se exclusivamente nas misericórdias de Deus. Ele chama os cristãos de Roma de
irmãos, como filhos com ele do mesmo Pai celestial e, por esta razão,
numa voluntária submissão a Ele em todos os tempos e em todas as
coisas. A imerecida graça de Deus, a insondável riqueza da sua misericórdia, que os leitores experimentaram em seus corações, esse é propriamente o motivo e incentivo do modo cristão de viver.
Deste modo, tudo que o cristão oferece e sujeita complacentemente ao Senhor e à Sua vontade, não é um ritualismo formal e morto, mas
é culto, adoração em espírito, uma mente incessantemente ativa em
105
IGREJA LUTERANA
planejar e pensar em como o conjunto do corpo, de todo seu ser, possa
viver para a honra de Deus.
V. 2: “E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos
pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa,
agradável e perfeita vontade de Deus”.
Os cristãos, sob nenhuma hipótese, desejam acomodar-se aos costumes, hábitos e práticas que são comuns nesta vida. Eles estão no
mundo, mas por estarem convertidos por dentro, de coração e alma,
eles querem assumir um jeito de ser diferente enquanto no mundo.
Isto eles querem realizar através da renovação da mente e do coração
que começa justamente na conversão e se estende por toda vida,
num confronto permanente entre carne e espírito. Esse testemunho
dos cristãos é, na realidade, o propósito deles estarem e permanecerem aqui no nesta vida.
Vv. 3, 4, 5: “Porque, pela graça que me foi dada, digo a cada um dentre
vós que não pense de si mesmo além do que convém; antes, pense com
moderação, segundo a medida da fé que Deus repartiu a cada um. Porque
assim como num só corpo temos muitos membros, mas nem todos os
membros têm a mesma função, assim também nós, conquanto muitos,
somos um só corpo em Cristo e membros uns dos outros”.
Até hoje, esta primeira instrução prática da vida cristã tem a maior
relevância, qual seja, que todos sejam modestos na posse e na prática de dons que Deus repartiu a cada um. Todos dons e habilidades
devem servir para o bem comum, para o serviço de um para o outro, e
não para a própria promoção ou exaltação. Simplesmente, modéstia e
humildade precisam caracterizar a vida prática no reino de Deus.
Vv. 6, 7, 8: “tendo, porém, diferentes dons segundo a graça que nos foi
dada: se profecia, seja segundo a proporção da fé; se ministério, dediquemonos ao ministério; ou o que ensina esmere-se no fazê-lo; ou o que exorta
faça-o com dedicação; o que contribui, com liberalidade; o que preside, com
diligência; quem exerce misericórdia, com alegria”.
Os dons da graça percebidos na vida dos cristãos são diversos e
variados. Porém, seu objetivo e fim são os mesmos, quais sejam, não
servir para vantagens pessoais, mas para servir ao Senhor. O apóstolo, sem dúvida, está pensando na comunidade cristã como uma organização social, com seus vários membros cooperando para “um fim
proveitoso”, para o bem comum. A lista de dons que segue mostra
isso ao correlacionar as diversas funções, por exemplo: a profecia segundo a proporção da fé projeta harmonia entre conteúdo da fé e o
discurso na pregação e a conseqüente manifestação através do comportamento. Ministério, ensino e exortação para terem efeito precisam
ser usados, cada qual, em seu devido lugar. A contribuição seja exercida
106
DÉCIMO QUINTO DOMINGO APÓS PENTECOSTES
sem ostentação; quem preside, ou seja, quem lidera, tanto na congregação quanto no lar, o faça com o maior zelo; e quem exerce misericórdia, que o faça com alegria, compaixão, afabilidade.
PENSAMENTOS HOMILÉTICOS
- O apóstolo lembra, exorta no sentido de que a vida cristã é necessariamente coerente com a fé (base doutrinária) e, por isso, pretende ser radicalmente consagrada a Deus, não em conformidade com
o mundo, mas em “transformação” no sentido, a partir e na direção de
Deus.
- Os dons da graça de Deus, que Ele distribui segundo lhe apraz,
devem servir sempre para o bem comum e não para a própria exaltação
ou promoção.
- Modéstia e humildade precisam caracterizar a vida prática no reino de Deus.
Norberto Ernesto Heine
Porto Alegre, RS
107
IGREJA LUTERANA
DÉCIMO SEXTO DOMINGO
APÓS PENTECOSTES
Mateus 18.15-20
AS OUTRAS LEITURAS DO DOMINGO
SALMO 119.113-120
Uma possível ligação com o texto de Mateus são as palavras de
juízo e condenação contra os “malfeitores”, “os que se desviam dos
teus decretos”, os “ímpios” (vv. 115, 118, 119). A realidade e seriedade da condenação do pecador impenitente sob a lei de Deus fica evidente.
EZEQUIEL 33.7-9
Neste texto, o profeta é colocado como “atalaia sobre a casa de
Israel.” A função do vigia ou sentinela é soar o alarme ou “soltar o
grito” quando algum perigo se aproxima. Semelhantemente, o profeta-atalaia seria responsável por anunciar a lei ao “perverso”. Ele deveria confrontar o pecador com o seu pecado. As alternativas colocadas
diante do profeta são: a) não avisar/confrontar (nesse caso, o perverso morreria na sua iniqüidade e o profeta seria responsável por isso);
b) avisar/confrontar (nesse caso, mesmo se o perverso não se arrependesse, o profeta não seria mais responsável por isso). O texto
revela, ao mesmo tempo, a ira de Deus contra o pecado (que leva o
pecador impenitente à condenação) e o seu desejo de salvar o pecador. Deus não tem prazer na morte do ímpio. Por isso, ele envia o
profeta como atalaia para tentar obter o arrependimento e a salvação
do perverso.
ROMANOS 13.1-10
Neste mundo, Deus pune o transgressor ou recompensa o que
pratica o bem por meio de seus ministros/servidores/agentes, no caso
as “autoridades superiores”.
O cristão é chamado a se submeter em amor e colaborar com
as autoridades para que, no exercício correto de suas funções, a vontade de Deus se realize e se estabeleça e mantenha um ambiente
108
DÉCIMO SEXTO DOMINGO APÓS PENTECOSTES
em que todos possam viver em paz e tranqüilidade. O amor ao próximo é a lei suprema que deve governar os relacionamentos do cristão
no mundo.
Este texto, portanto, amplia o campo de visão dos demais textos da perícope mostrando que o amor ao próximo não se limita à
preocupação com a sua alma ou com seu bem-estar e salvação eterna,
mas que este amor se reflete também em ações concretas na vida
cotidiana neste mundo.
CONTEXTO
Um dos artigos desta edição da Igreja Luterana, da autoria de Gibbs
e Kloha, trata exatamente da interpretação de nosso texto em seu
contexto. Recomendo insistentemente que o leitor leia esse artigo em
preparação para a sua mensagem. Mas, para aqueles que estão recorrendo a este auxílio homilético na undécima hora, seguem algumas
observações extraídas do artigo citado. (No entanto, fica a recomendação de que estes leiam o artigo na segunda-feira).
A figura da criança (18.1-4) é decisiva para compreender a unidade
temática do capítulo. Os discípulos perguntam a Jesus quem é “o maior
no reino dos céus”. Jesus responde que aquele que se humilhar como
aquela criança que ele colocara no meio deles é “o maior no reino dos
céus”. Gibbs e Kloha esclarecem que, em Mateus, crianças são vistas
como “impotentes, necessitadas de comida, proteção, cura, oração,
exorcismo e revelação divina”. Esclarecem também que “humilhar-se”
significa muitas vezes no Novo Testamento “reconhecer sua necessidade e submissa dependência”. Portanto, a resposta de Jesus aos
discípulos é de que o maior é aquele que tem as maiores necessidades, aquele que é o mais dependente de cuidado e proteção por parte
dos outros discípulos.
A estrutura do capítulo 18 revela um crescendo de “cuidado pelo
mais importante”. Jesus sublinha a importância desse cuidado pelos
“pequeninos” dizendo que quem os recebe e os serve está cuidando
do próprio Jesus. Esses discípulos necessitados precisam ser “recebidos” pelos outros discípulos; estes devem evitar, a todo custo, de
escandalizá-los (18.5-10). Quando um deles começar a se extraviar do
rebanho, os demais discípulos devem procurá-lo e trazê-lo de volta
(18.12-14). Mesmo que o discípulo tenha sido vítima de um claro pecado, ele deve ir ao encontro do pecador que o ofendeu para procurar
ganhá-lo de volta (18.15-20). O perdão que o discípulo estende àquele que o ofendeu dever ser tão amplo quanto aquele que ele próprio
recebeu de seu Pai celeste (18.21-35).
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IGREJA LUTERANA
ALGUNS DESTAQUES DO TEXTO
“Se teu irmão pecar contra ti”. Os discípulos de Jesus são irmãos na
fé. Esse relacionamento horizontal é precioso e deve ser preservado
especialmente porque ele remete, imediatamente, ao relacionamento
vertical, com o Senhor.
O pecado cometido neste caso não é um pecado qualquer que pode
ser ignorado ou simplesmente esquecido. Trata-se de uma ofensa grave que põe em risco a vida espiritual do ofensor. Ou seja, a ofensa
cometida é sintomática de um problema mais sério e maior: a ruptura
do relacionamento horizontal está, no mínimo, ameaçando romper seu
relacionamento vertical com Cristo. O fato de que o irmão precisa ser
ganho de volta mostra isso e revela que ele estava perdido ou em
risco de se perder como a ovelha extraviada que o Senhor procurou e
trouxe de volta (18.12-13).
A expressão “contra ti” é controvertida. Há argumentos a favor e
contra sua inclusão no texto. Por isso, no dizer de Gibbs e Kloha, “construir um edifício exegético sobre um alicerce tão incerto seria muito
imprudente”.
“Vai argüi-lo”. Eléncho é “mostrar às pessoas os seus pecados e
chamá-las ao arrependimento” (Kittel). O amor leva o discípulo a se
importar suficientemente com o irmão a ponto de não ignorar o risco
espiritual em que o mesmo se encontra. O irmão culposo precisa ser
confrontado com seu pecado para que possa se arrepender e ser restaurado. O cristão é chamado aqui a ser o atalaia que avisa ao
transgressor sobre as conseqüências eternas que seu pecado lhe causará (Ez 33.7-9).
“Entre ti e ele só”. O verdadeiro amor e a genuína preocupação
com o próximo querem também preservá-lo de conseqüências negativas que seu erro lhe poderá trazer neste mundo (cf. Rm 13.1-10). É
preciso proteger o bom nome do irmão e não expô-lo à maledicência e
difamação de más línguas (cf 1 Pe 4.8; Tg 5.20).
“Se ele te ouvir, ganhaste a teu irmão”. Eis o ponto-chave e o alvo
de todo o processo. O objetivo da confrontação é ganhar o irmão:
buscá-lo, conduzi-lo ao arrependimento, trazê-lo de volta à comunhão.
Obviamente, para que este objetivo seja alcançado, todo o confronto
precisa ser feito com muito amor, tato, carinho e gentileza.
“Se, porém, não te ouvir”. Infelizmente, existe esta possibilidade. Por mais que o cristão se esforce com amor insistente e incansável,
pode acontecer que alguém endureça seu coração e não reconheça
seu erro. Nesse caso, mais uma ou duas pessoas podem ser convida-
110
DÉCIMO SEXTO DOMINGO APÓS PENTECOSTES
das para ajudarem no confronto e na tentativa de buscar e salvar a
ovelha extraviada.
Finalmente, depois de esgotadas todas as possibilidades e esperanças, a igreja ou congregação local é envolvida no processo. Se,
mesmo assim, não houver arrependimento, aí finalmente ocorre a exclusão do pecador impenitente da comunhão dos irmãos. Essa é uma
drástica e trágica declaração para o próprio envolvido e para os demais de que o ofensor rompeu não só o relacionamento horizontal,
mas também o relacionamento vertical com o Senhor e de que ele não
pode mais ser considerado um irmão mas, sim, uma ovelha extraviada.
É uma declaração dura, mas necessária para alertar o pecador das
terríveis conseqüências eternas que sua impenitência irá trazer sobre
ele (cf. Ez 33.7-9).
SUGESTÃO HOMILÉTICA
Mateus 18 tem sido interpretado e usado de muitas maneiras. Seu
objetivo, com certeza, não é o de “provar a culpa” ou “sentenciar” um
réu. Também não é o de fornecer “regras para a excomunhão”, mesmo
que essa venha a ocorrer no processo.
O objetivo do texto, como seu contexto claramente revela, é o de
trazer um pecador de volta a um relacionamento fraterno com seus
irmãos na fé e, ao mesmo tempo, restabelecer seu relacionamento
como o próprio Senhor Jesus Cristo.
Aparentemente, há muitas possibilidades diferentes de reação quando se é ofendido por alguém. Mas, basicamente, todas essas reações
podem ser classificadas em duas categorias: a) reações segundo o
espírito do mundo e da carne; e b) reações segundo o espírito de
Cristo. O mundo e a carne costumam reagir ou com fuga ou com agressão. Isto é, procura-se negar a ofensa, ignorá-la, fugir do agressor ou,
então, se ataca o ofensor seja com palavras (ofendendo-o, difamando-o, etc.) ou seja com agressão física que pode até culminar em assassinato em casos extremos. A reação conforme o espírito de Cristo
procura o bem e a salvação do agressor.
É claro que a velha natureza do cristão quer sempre seguir a receita do mundo quando ofendido por alguém. O novo homem, porém, é
guiado pelo Espírito Santo e busca forças em Cristo. A fé que produz
as obras de amor em relação ao próximo é alimentada e cresce quando recebe a dádiva do Evangelho. O Evangelho revela que Cristo morreu por nós “sendo nós ainda pecadores” e que ele nos reconciliou
com Deus quando nós ainda éramos inimigos de Deus (Rm 5. 8, 10). Se
111
IGREJA LUTERANA
realmente recebemos esse incompreensível presente do perdão e reconhecemos nossa total indignidade em recebê-lo, devemos, também,
repassar tal amor ao próximo que não o merece (Mt 18.21-35).
Paulo Wille Buss
São Leopoldo, RS
112
DÉCIMO SÉTIMO DOMINGO
APÓS PENTECOSTES
Salmo 103.1-13; Gênesis 50.15-21;
Romanos 14.5-9; Mateus 18.21-35
Se vivemos, para o Senhor vivemos.
SALMO 103.1-13
Este domingo afirma a razão da existência do próprio Deus. O Senhor faz justiça: Ele perdoa, redime e farta (v. 3-6). O Senhor é:
misericordioso, benigno, compassivo (v. 8). Portanto a grandeza de
Deus se revela na sua misericórdia. Ele nos “redime da cova” e afasta
as nossas trangressões “tanto quanto o Oriente está afastado do
Ocidente”.
Em contraste ao que Deus é e faz, estamos nós, em nossa estrutura de pó. Mas a misericórdia do Senhor dura para sempre (v.17) e
domina sobre tudo (v. 19 -22).
Esta leitura do Salmo encontra eco nas demais leituras deste domingo ao mostrar a fidelidade de José a este Deus e a infidelidade a
este Deus na pessoa do credor sem misericórdia. Este texto do Evangelho encerra a lição de Jesus sobre a prática do perdão em Mateus
18. A lição de Mateus 18 termina com a advertência àqueles que não
forem fiéis a Deus por pensarem e agirem com impiedade contra pessoas que tenham caído em tentação.
GÊNESIS 50.15-21
Os irmãos de José têm a consciência pesada. Atentaram contra a
sua vida entregando-o por inveja a mercadores de escravos. José fora
eliminado da família. O motivo? Os irmãos já não suportavam ver José
sendo abençoado pelo pai com amor e carinho. Era errado o que estava acontecendo. A atenção do pai por José os ofendia. A ofensa tinha
de ser afastada para que eles tivessem paz.
Agora, passados esses anos, como encarar José? O que dizer? Ofensa, justiça e paz agora adquiriram novo significado. Os papéis se inverteram. A autoridade que exerceram sobre José agora paira sobre
eles como justo juízo.
113
IGREJA LUTERANA
Exercer autoridade sobre alguém não se justifica em si mesmo. Até
que ponto o juízo que pronunciamos sobre alguém pode vir a ser o
juízo que condena a nós próprios?
Com José aprenderam a conhecer uma nova dimensão da vida. Há
um Senhor que dá vida, cuida e protege. Ele conduz a vida segundo os
seus desígnios, independentemente do que nós julgamos certo ou
condenável.
Esta não é simplesmente a história de José e seus irmãos. Nela
Deus expõe e questiona a nossa motivação nas relações familiares e
os problemas que elas nos acarretam. Isso tanto se refere à família
nuclear quanto à família ampliada.
ROMANOS 14.5-9
O apóstolo direciona a teologia da sua carta para dizer nas conclusões onde e como a teologia cristã manifesta o seu propósito: Acolhei
ao que é débil na fé (14.1); Porque foi para esse fim que Cristo morreu
e ressuscitou (14.9).
O apóstolo, nesta carta, percorreu um longo caminho, expondo duas
realidades conflitantes e irreconciliáveis. De um lado, a maldade da
natureza humana, absoluta e incorrigível. De outro lado, a incrível
realidade: as pessoas todas, o mundo inteiro vive porque Deus o preserva, Deus encaminha as ações humanas. Mas acima de tudo está a
motivação de Deus: Ele preserva o mundo porque o mundo foi salvo
na ação de Deus a favor do mundo em Cristo. Em Cristo Deus revela a
sua verdadeira natureza e intenção final. É precioso ser acolhido em
Deus pela palavra do Evangelho. Por esta razão: Acolhei (14.1), não
para julgar (14.10).
Viver para o Senhor. Em outras palavras, reconhecer que cada aspecto da nossa vida, por menor e mais insignificante que possa parecer, é cuidadosamente encaminhado por Deus. Não vivemos uma vida
própria, nossa, mas vivemos a vida que Deus nos presenteia a cada
dia. Nada temos ou somos que não seja do Senhor (14.8).
Amigos, vizinhos, família, colegas, patrões, empregados, oportunidades, empecilhos, obstáculos, em tudo isso Deus se manifesta a nós
por causa da obra de Cristo que selou para nós o amor de Deus para
sempre. Nada temos, mas temos tudo. Nada somos, mas somos filhos
e herdeiros do Criador e Mantenedor.
O pecado em nós nos humilha diante de Deus e do semelhante.
Mas por Cristo e em Cristo, Deus nos livra do mal e protege na tentação. Em razão disso, ninguém mais pode olhar com desprezo para o
ímpio e o pecador, porque reconhecemos que Deus, em Cristo, nos
114
DÉCIMO SÉTIMO DOMINGO APÓS PENTECOSTES
presenteia diariamente com a santidade e a dignidade com que somos
vistos e amados pelos que nos cercam. Essa é também a dívida de
amor que devemos a cada criatura de Deus e muito mais àqueles que
andam ao nosso lado na mesma fé.
Paulo está preocupado com o fato de que na igreja freqüentemente
as pessoaas se expressam de tal maneira que alguns sejam vistos e
até marcados como pecadores. Incluíam-se os ascetas que afirmavam
que o corpo e as sensações físicas, especialmente o prazer (inclua-se
aí, especialmente, os prazeres da comida, da bebida e do sexo) não
passavam de manifestações inferiores que deviam ser superadas pela
espiritualidade. Atraíam atenção sobre si e se davam como pessoas
puras e superiores. Com isso, as pessoas que não tinham esse estilo
de vida ficavam em dúvida quanto à sua religiosidade. Esses movimentos encontravam apoio entre os cristãos judaizantes com sua noção
de pureza herdada dos fariseus. Nesse sentido podemos ver a carta
aos cristãos romanos como esclarecedora, ao afirmar a absoluta dependência do ser humano da graça de Deus em Cristo, na medida em
que toda a justiça que é visível ao outro é graça de Deus e não tem
qualquer mérito pessoal nisso.
O pecado maior é apropriar-se desta justiça que Deus nos presenteia e ostentá-la como justiça própria e superior à do próximo (14.10).
MATEUS 18.21-35
É de supor que Mateus tenha agrupado tematicamente estes textos do capítulo 18, o que em Marcos e Lucas não se repete. São exclusivos de Mateus os textos sobre a argüição do faltoso e a parábola
deste domingo. O cabeçalho que Mateus nos oferece para essas palavras de Jesus é a questão suscitada pelos discípulos: Quem é o maior
no reino dos céus? (18.1). Em outras palavras, como se deve definir a
autoridade sobre os demais. O que dá a alguém a autoridade de opinar e julgar no reino dos céus. O reino dos céus não é uma realidade
imaterial. O reino dos céus se manifesta na relação com o irmão, o
irmão fraco e o irmão perdido.
Este é um domingo que exige a ousadia profética de assumir o papel
do arauto e mensageiro para denunciar a maneira segundo a qual os
discípulos queriam ser igreja e a maneira como Jesus e seus enviados
reverteram o raciocínio moldado pela natural soberba da carne que se
insinua no discurso e nas relações entre irmãos. Não importa como por
vezes o raciocínio dos discípulos se instala e governa na igreja. O que
realmente importa é a palavra final que o senhor dirige ao seu administrador: “[...] não devias tu, igualmente, compadecer-te [...]?
115
IGREJA LUTERANA
Desta vez a parábola não deixa o final em aberto. O fechamento é
duro e seco. Trata-se da obra de Deus no seu princípio mais essencial
e determinante: “Foi precisamente para esse fim que Cristo morreu e
ressurgiu”. Os discípulos jamais serão senhores. São servos a serviço
da obra do Senhor. “Senhor tanto de mortos como de vivos” (Rm 14.9).
SUGESTÃO TEMÁTICA
Vivemos para o Senhor
1. Buscando a vida nele em nossa debilidade
2. Acolhendo pessoas em suas debilidades
Nota: O título dado à perícope em Rm 14.1-12, versão ARA, não
reflete bem a verdade do texto. Não se trata de mera sugestão pela
tolerância. Trata-se aí da própria essência da obra de Cristo e da sua
visibilidade no mundo. O perdão não é uma formalidade pontual. É a
própria vida cristã. Mais adequado está a NTLH: Não julgue os seus
irmãos.
Paulo P. Weirich
São Leopoldo, RS
116
DÉCIMO OITAVO DOMINGO
APÓS PENTECOSTES
Mateus 20.1-16
Eu não sou injusto com vocês
PARÁBOLA
A perícope de Mt 20.1-16 é uma parábola. A parábola é uma figura
de linguagem, uma comparação, uma história curta, real ou imaginária,
uma ilustração contada para ensinar uma verdade espiritual maior. O
objetivo principal do uso de uma parábola é tornar mais clara e mais
simples uma verdade eterna para o ouvinte ou leitor. O uso da parábola é um método didático-pedagógico que Cristo aplicou na maior parte
de suas pregações. É o mestre destas ilustrações. Usou mais de 40
parábolas diferentes em seu ministério público. “Jesus não dizia nada
a eles sem ser por meio de parábolas” (Mt 13.34). “Parábolas... Jesus
falava ao povo de um modo que eles podiam entender” (Mc 4.33).
Normalmente, cada parábola ensina e sublinha apenas uma grande
verdade. O ponto principal da “parábola dos trabalhadores na vinha”
é mostrar que Deus, o “dono do reino dos céus”, é justo e bom, e que
a entrada no reino dos céus é favor de Deus e não mérito humano
(Justo: correto, honesto, íntegro, exato, digno. Bondoso: bom, misericordioso, benevolente, benigno, gracioso, generoso).
Reino dos céus – Jesus usa as expressões “reino dos céus” e “reino de Deus” como sinônimos (Mt 19.23,24). Das 40 parábolas que Jesus usou, cerca de 20 delas falam do “reino dos céus” ou “reino de
Deus”. As parábolas sobre o reino, por vezes, ensinam verdades sobre a vida presente – o reino da graça com a vinda do Ungido – falando
sobre a importância de o povo ouvir a mensagem da salvação; por
vezes, falam sobre a vida futura – o retorno de Cristo para julgar vivos
e mortos. O “reino dos céus” de nossa perícope aparece numa perspectiva escatológica – o julgamento no futuro, no “último dia”.
Plantação de uvas – É uma figura de linguagem que representa
Israel, o povo de Deus, como mostra o profeta Isaías em 5.7: “A plantação de uvas do Senhor Todo-Poderoso... é o povo de Israel...” Mais
tarde, também passou a significar o “novo Israel”, a igreja cristã.
Acerto de contas – O dono da plantação de uvas contratou trabalhadores em cinco horários diferentes para a mesma tarefa e no mesmo dia: 1º grupo – 6h; 2º grupo – 9h; 3º grupo – 12h; 4º grupo – 15h;
117
IGREJA LUTERANA
5º grupo – 17h. Às 18h, o “dono da vinha” disse ao administrador
fazer o pagamento aos trabalhadores. Os do 1º grupo trabalharam
12h; os do 5º grupo, apenas 1h. E houve surpresa. Todos os grupos
receberam o mesmo salário. E começou a reclamação, a murmuração,
a acusação, a inveja pelos que trabalharam mais tempo. Claro, segundo “a justiça humana”, o dono da vinha estava cometendo uma terrível
e clamorosa “injustiça humana”. Mas o “dono da vinha” – “o Dono do
reino dos céus” resolveu a questão, dizendo a cada um: você não
recebeu o que nós combinamos? Você não concordou? Então o que
você está reclamando? Não fui justo com você? Pegue o seu pagamento e vá embora!”
Não injustiça – O fato de Deus ser bondoso e generoso com todos
não pode ser interpretado como injustiça de Deus (cf. Is 55.8). “São
maus teus olhos por que eu sou bom?” Assim é o nosso Deus, graças
a Deus: Dá o mesmo reino, o mesmo galardão, o mesmo prêmio, a
mesma vida eterna aos que foram cristãos desde seu batismo infantil,
ao longo de toda a vida, como aos que foram convertidos e creram no
Salvador minutos antes de sua morte – como é o caso do malfeitor na
cruz. Mais: não só Israel de ontem pode receber o “reino dos céus”,
mas também os gentios dos “confins da terra” de hoje podem receber
o “reino dos céus” pela fé no Salvador Jesus. Neste caso, nós estamos
entre os últimos, os “de hoje”. A graça de Deus, a bondade de Deus, o
favor de Deus e o amor de Deus – revelado e consumado em Cristo –
que confere o “reino dos céus”, é o mesmo para os cristãos das 6h da
manhã como para os cristãos das 17h! Graças a Deus! Profissão de fé
e serem chamados por Deus e receberem a mesma vida eterna como
nós!
Primeiros e últimos – As aparências podem enganar. Deus prepara surpresas. Cristo, em muitos ensinos, gosta de surpreender e de
chocar com paradoxos e com inversão de valores. Com pequenas variações, Cristo aplica a mesma verdade dos “últimos serão primeiros, e
os primeiros serão últimos” em diversas e diferentes oportunidades:
Aqui, no vers. 16, ele mostra que os trabalhadores das 17h podem ser
os primeiros e os das 6h da manhã podem ser os últimos; em Mt 19.30
e Mc 10.31, aplica a mesma sentença sobre conceder a “vida eterna”
ao falar sobre o perigo das riquezas; em Lc 13.30, ao falar sobre o
“esforçar-se para entrar pela porta estreita” e apontar para o juízo
final, Jesus também surpreende: muitos primeiros podem ser os últimos, e muitos últimos podem ser os primeiros. Por quê? Como? É que
os homens julgam pelas “grandes e belas aparências exteriores” e
Deus não olha as aparências externas, a cara, a posição, a cultura, as
118
DÉCIMO OITAVO DOMINGO APÓS PENTECOSTES
riquezas, a roupa, os títulos acadêmicos das pessoas – que podem ser
mascarados, falsos e hipócritas – mas Deus olha o amor, a sinceridade,
a fé e a esperança que está no interior, no coração do filho de Deus! “O
Senhor não vê como o homem. O homem vê o exterior, porém o Senhor
vê o coração” (1 Sm 16.7). Os homens podem se enganar. Deus nunca
se engana!
PROPOSTA DE ESTRUTURA DE SERMÃO
Sempre traçando o necessário paralelo, fazendo a correta interpretação e oportuna aplicação, o sermão poderia ser escrito e anunciado com o seguinte tema e partes, apontando para a lição maior da
perícope:
INTRODUÇÃO
Pode ser próprio iniciar com a verdade que Jesus expressa no v.
16: O juízo final reserva muitas surpresas. Por quê? Desperta a curiosidade e a atenção dos ouvintes.
Tema: Eu não sou injusto com vocês
Por que Deus não é injusto? O texto apresenta, no mínimo,
três razões.
PARTES
I – Porque eu fui justo e bondoso quando considerei iguais os
diversos trabalhadores contratados nos diferentes horários.
II – Porque eu fui justo e bondoso quando considerei iguais todas
as horas de trabalho pagando a cada um o que havia prometido.
III – Porque eu sou justo e bondoso quando considero iguais todos os que estarão comigo no reino dos céus.
CONCLUSÃO
Tendo cuidado para fazer clara diferença entre lei e evangelho,
entre justificação e santificação, é oportuno fazer os seguintes destaques:
- Retomar a surpresa da Introdução: Juízo final
- Repetir e sublinhar o tema e as partes
- Destacar a ação graciosa de Deus: criação, redenção, santificação
(Lutero)
119
IGREJA LUTERANA
- Como redimidos e santificados e candidatos ao reino dos céus,
“trabalhar na vinha” (igreja), considerando um privilégio de Deus e
não mérito humano
- “Sempre abundantes...” – 1 Co 15.57,58
- “Sê fiel...” – Ap 2.10
- “Entra no...” – Mt 25.21
Leopoldo Heimann
São Leopoldo, RS
120
DÉCIMO NONO DOMINGO
APÓS PENTECOSTES
Mateus 21.28-32
Não raras vezes vemos que a parábola dos dois filhos tem-se
transformado numa incitação à obediência cristã. Na verdade, o
texto é mais rico do que isso. Ele fala de arrependimento e fé.
CONTEXTO HISTÓRICO
O evangelista Mateus relata que a parábola dos dois filhos fora
contada após uma série de acontecimentos que acenderam a ira e a
indignação dos chefes dos sacerdotes, dos mestres da Lei e de alguns
líderes judeus, todos registrados no capítulo 21. Primeiro, a sua entrada triunfal em Jerusalém, sendo aclamado e adorado como o “Filho de
Davi” que veio “em nome do Senhor” (v. 9). Segundo, sua interferência
ante os “prestadores de serviço” do templo (cambistas), derrubando
mesas e cadeiras e os expulsando da “casa de oração” (v. 13). Terceiro, as curas que Ele efetuara no templo a cegos e coxos, que resultaram em líderes religiosos zangados (v. 15). Quarto, os louvores bradados pelas crianças no templo como eco da sua entrada em Jerusalém
(v. 15), os quais Jesus interpretara como “perfeito louvor” (v. 17). E,
por fim, o relato da ida de Jesus ao templo e que, estando lá a ensinar,
fora questionado pelos chefes dos sacerdotes e líderes judeus, quanto à autoridade que Ele tinha para realizar “estas coisas”, isto é, as
curas e milagres que praticava (v. 23).
Ler o texto de Mt 21.23-27 é fundamental para entender a parábola dos dois filhos. Há aqui uma situação de conflito. A liderança religiosa judaica estava desafiando a Jesus. Queriam saber com que autoridade realizava tais sinais e quem lhe havia dado tal autoridade. Jesus
não rebate diretamente, mas lança um desafio. Caso respondessem,
Jesus lhes responderia também. A pergunta de Jesus: quem deu autoridade a João para batizar as pessoas – Deus ou seres humanos?
A resposta era óbvia. Tão óbvia que os próprios líderes religiosos
se sentiram como se estivessem em uma cilada. Se respondessem que
a autoridade de João para batizar tinha vindo de Deus, Jesus perguntaria a eles porque não haviam crido na sua mensagem; caso respondessem que a autoridade de João era humana, tinham medo da reação do povo, que considerava João um profeta. “Não sabemos”, foi a
121
IGREJA LUTERANA
saída encontrada pelos religiosos. Então Jesus também estava desobrigado a responder com que autoridade realizava seus atos.
TEXTO – MEDITAÇÃO PRÁTICA
“E que vos parece?” – pergunta Jesus. E passa a contar a parábola
dos dois filhos, registrada somente por Mateus. Na verdade, esta é a
primeira de três parábolas, onde Jesus ataca o merecimento dos líderes religiosos judeus quanto a serem membros do reino de Deus. São,
então, parábolas do reino, embora não ditas explicitamente no texto.
O desafio proposto por Jesus foi mais do que encurralar os religiosos. Ele tinha por objetivo ligar a sua autoridade à autoridade de João.
As duas eram divinas. E ambas, em seus discursos e práticas, tiveram
ampla aceitação entre as pessoas comuns e aquelas que eram rejeitadas pela sociedade altamente religiosa dos judeus, como os publicanos
e as prostitutas.
Na parábola, ambos os filhos recebem o mesmo convite: trabalhar
na vinha do pai. O primeiro disse, prontamente, que iria, mas não foi. O
segundo respondeu, rudemente, que não queria, mas acabou indo.
Por quê? ARA traduz: “depois, arrependido, foi”; NTLH traz: “mas depois mudou de idéia e foi”. Arrependido e mudou de idéia aqui é
metamelhqei.j, um particípio aoristo passivo do verbo metamelomai. Embora a LXX não faça distinção entre os dois verbos, é bem provável
que o NT faça uma distinção entre eles; o exemplo de Judas torna claro
isso. Judas reconheceu que Jesus fora falsamente condenado, lastimou sua traição (Mt 27.3), mas não achou o caminho para o arrependimento verdadeiro. A palavra “arrependimento” pode ter um sentido
amplo, a conversão como um todo (reconhecimento do pecado, contrição
e fé), mas também pode ter um sentido restrito, que é reconhecimento
do pecado, coração quebrantado e contrição. Na parábola dos dois
filhos, as evidências indicam, pelo verbo usado, que se trata de arrependimento no sentido restrito, isto é, reconhecimento do erro e tristeza no coração.
O que se deduz de tudo isso, e é corroborado por Walther (Lei e
Evangelho, Edição Condensada, p. 85), é que o segundo filho sentira o
efeito da lei: o pesar em seu coração por não cumprir a vontade do pai.
O primeiro filho não havia passado por essa tristeza. Não havia se
preocupado com seus pecados e, assim, também fora impossível ter
vindo à fé. “Não pode haver fé num coração que, primeiramente, não
esteve atemorizado”, diz Walther. Este era o caso dos fariseus e líderes religiosos judeus. Por não terem reconhecido seus pecados nem
122
DÉCIMO NONO DOMINGO APÓS PENTECOSTES
sentido contrição por eles, estavam entre aqueles “noventa e nove
justos que não necessitam de arrependimento”, ironicamente assim
chamados por Jesus. A sua justiça própria era tão eminente que os
impedia de responder a qualquer convite de arrependimento.
Este é o tertium comparationis da parábola. O pai é Deus, em Jesus. Os líderes religiosos judeus, a hierarquia espiritual judaica e os
intérpretes da lei escrita e da tradição oral foram incluídos no comportamento do primeiro filho. Os párias religiosos (prostitutas e cobradores de impostos) são o segundo filho, que creram (epi,steusan)
na mensagem de João Batista, isto é, reconheceram sua indignidade
e agarraram-se às promessas de Deus. Os judeus, ao contrário, confiavam na sua dignidade: cumpridores das leis de Moisés, participantes assíduos da sinagoga, ofertantes de dízimos, doadores de esmolas, praticantes de orações diárias públicas e particulares –obediência era a marca registrada deles! Eles se achavam totalmente justos,
sem pecado. Por que, então, arrepender-se? Jesus deixa claro: porque Deus não nos aceita pela obediência, e sim por arrependimento
e fé! Os supostos justos não passaram pelo reconhecimento de seus
pecados (ou de. metemelh,qhte) e muito menos creram (evpisteu,sate)
na mensagem de justiça (dikaiosu,nhj) do reino de Deus. Desprezaram a Cristo, “SENHOR, Justiça Nossa” (Jr 23.6), “a justiça que procede
de Deus, baseada na fé” (Fp 3.9).
PONTOS DE CONTATO
Colocar a ênfase do texto sobre a obediência à lei como fazer a
vontade do pai é tornar a obediência à lei como pré-requisito para a
entrada no reino de Deus. Isso é alegorizar a parábola e, mais que
isso, é totalmente anticristão. Isso é salvação por obras! Jesus explica
a parábola: a vontade de Deus é, antes de obediência, que todos se
acheguem a Ele, de graça, tocados por seu amor, depositando nele
toda a sua esperança, crendo em Jesus como seu Salvador, perdoados
dos seus pecados, e recebam o reino dos céus. O texto fala de sentir
indignidade e descansar em Deus, pela fé. Era justamente isso que os
publicanos e prostitutas experimentaram – a graça incondicional de
Deus! Somente depois de experimentarem tristeza pela vida que levavam e de serem aceitos pela fé, por crerem na mensagem, por obra do
Espírito (note: o texto é relativo a Pentecostes!), foi que passaram a
levar uma vida de filhos de Deus. Obediência é conseqüência de arrependimento e fé.
123
IGREJA LUTERANA
CONTEXTO LITÚRGICO
O texto é relativo ao 19° Domingo após Pentecostes. O período de
Pentecostes nos lembra justamente o que o texto ensina: arrependimento e fé (perdão) são as chaves para a entrada no reino de Deus.
Isso não é obra humana, não é justiça própria, como pensavam os
líderes religiosos judeus. Isso é obra divina, justiça em Cristo. O Salmo
25, versos 1 a 10, são uma oração de arrependimento, escrita por
Davi. “Meu Deus, eu confio (espero) em ti. (...). Esquece os pecados e
os erros da minha mocidade”, não porque eu sou bom e justo, mas
“por causa do teu amor e da bondade”. O profeta Ezequiel, na leitura
do AT (Ez 18.1-4,25-32), nos lembra do objetivo de Deus em relação ao
seu povo: arrependimento (v. 30), conversão sincera (coração novo e
mente nova, v. 31). Deus não quer a morte do pecador – quer que ele
viva, em arrependimento e fé. A epístola (Fp 2.1-5) lembra que a obediência (veja os conselhos de Paulo nos versículos 2 a 5) só provêm do
fato de que estamos “unidos com Cristo” (v. 1 – NTLH), e então há
comunhão do Espírito (v. 1 – ARA).
Esse conjunto de perícopes poderia estar na Quaresma, mas é pregada no Pentecostes. Bela lembrança! Lembrança de que arrependimento e fé são obra do Espírito Santo!
SUGESTÃO HOMILÉTICA
Tema: Que filho nós somos?
Uma boa maneira de entendermos uma parábola contada pelo Senhor Jesus é nos colocando na pele dos seus personagens. Convido
vocês a fazerem esta viagem e a se imaginarem na pele de um dos
dois filhos da história. Isso causa um choque, mas um choque espiritual que é bem-vindo.
a) primeiro filho, líderes religiosos judeus
- primeiro choque: pensar que os líderes religiosos não sejam justos por aquilo que fazem!
- mas é assim: nem eles nem nós somos justos por nós mesmos;
- aliás, somos tentados por nosso velho homem, por nossa justiça
humana, a esperar méritos e recompensas espirituais por serviços prestados;
- mais do que obediência, Deus quer o coração voltado a Ele (arrependimento e fé);
- justiça espiritual só pode vir dEle!
b) segundo filho, cobradores de impostos e prostitutas
- outro choque: pensar que, espiritualmente, podemos nos compa-
124
DÉCIMO NONO DOMINGO APÓS PENTECOSTES
rar a cobradores de impostos (traidores do povo, ladrões, gente impura e egoísta);
- o fato é que a atitude dessa gente, no tempo de Jesus, foi elogiada, justamente por não terem nada de que se orgulhar e achar-se
digno;
- não confiaram em si, mas creram na mensagem de amor e graça
divinos (arrependimento e fé);
- nós, também, somos indignos, mas somos amados;
- por isso, somos incentivados a respondermos à ação de Deus,
por sua palavra e promessa de amor incondicional, em arrependimento diário e confiança na sua graça;
- pelo batismo fomos tornados justos, em Cristo;
- pela fé nele descansamos em seu amor, mesmo ainda pecadores.
ILUSTRAÇÃO
Um missionário propôs-se a traduzir o Evangelho de João para o
dialeto local da tribo que estava evangelizando, porém deparou-se
com uma enorme dificuldade ao ter de encontrar uma palavra adequada para traduzir a palavra bíblica “crer”. Continuou a fazer o seu trabalho, mas tinha que deixar um espaço em branco sempre que essa palavra particular surgia.
Então, um dia, um estafeta chegou ao acampamento ofegante,
depois de ter percorrido uma grande distância com uma mensagem
muito importante. Depois de entregar a mensagem, caiu completamente
exausto numa maca. Ele balbuciou uma frase breve que parecia exprimir tanto a sua grande fadiga quanto o seu contentamento em ter
encontrado um lugar delicioso para relaxar.
O missionário, que nunca antes tinha ouvido aquelas palavras, perguntou a um presente o que é que o estafeta tinha dito.
– Oh, ele está a dizer: “Cheguei ao fim de mim mesmo, por isso
estou a descansar aqui!”.
O missionário exclamou:
– Louvado seja Deus! É esta exatamente a expressão que preciso
para a palavra “crer”!
Povo de Deus, segundo filho!
Cheguemos ao fim de nós mesmos, de nossa justiça, e descansemos na graça e no amor de Jesus. Amém.
Júlio Jandt
Barra do Garças, MT
125
IGREJA LUTERANA
VIGÉSIMO DOMINGO
APÓS PENTECOSTES
Salmo 118.19-24; Isaías 5.1-7;
Filipenses 3.12-21; Mateus 21.33-43
Pentecostes é o período da igreja que ora celebramos. A cor verde
desse período nos leva à reflexão quanto à vida espiritual que nos é
concedida diariamente por Deus. Somos o povo escolhido, recebemos
a sua vinha e somos chamados para servi-lo com todo amor e gratidão. Temos a oportunidade de, através dessa parábola, refletir sobre
nossa vida diária. É momento de questionarmos quanto aos frutos
que estão sendo produzidos e também usarmos o exemplo de Israel
como advertência contra a insensibilidade espiritual, a apatia no servir
e a falsa segurança da filiação congregacional.
Jesus conta essa parábola com o objetivo de mostrar para os fariseus
que sua religião não passava de hipocrisia e corrupção. A ilustração da
vinha era bem conhecida de seus ouvintes. Nela o Senhor mostra tudo
o que havia feito por aquele povo. Tudo era obra dele, desde a sua
escolha até a terra em que habitavam.
O objetivo dessa escolha era que fossem frutíferos em sua missão
de portadores da mensagem da salvação. Todas as vezes que se desviaram dessa missão, Deus enviou seus mensageiros para reconduzilos ao arrependimento e todos foram rejeitados. Agora chegara o momento decisivo, o seu filho estava ali. O povo escolhido estava prestes
a chegar ao ápice de sua maldade, estava disposto a matar o Filho de
Deus. Assim, vem a terrível declaração: “Portanto, vos digo que o reino
de Deus vos será tirado e será entregue a um povo que lhe produza
os respectivos frutos”.
Nós somos o povo que recebeu o reino de Deus. Fomos chamados
para assumir o lugar daqueles que falharam. Assim como Israel, fomos
escolhidos unicamente pela graça divina, como aprendemos no Catecismo Menor: “Creio que por minha própria razão ou força não posso
crer em Jesus Cristo, meu Senhor, nem vir a ele; mas o Espírito Santo
me chamou pelo evangelho, iluminou com seus dons, santificou e conservou na verdadeira fé”. Nossa missão também é a mesma, como
encontramos em Isaías 5.7b “este [Deus] desejou que exercessem
juízo...e justiça..”. Somos chamados para “exercer juízo” através de
uma vida fiel aos seus mandamentos e “justiça” através de uma vida
de fé e obras de amor.
126
VIGÉSIMO DOMINGO APÓS PENTECOSTES
O único meio para que alcancemos essa missão é construirmos
nossa vida sobre “a pedra que os construtores rejeitaram ... a principal pedra, angular”. O Espírito Santo nos chamou para a fé em Cristo,
através do qual nos tornamos filhos e herdeiros de Deus. Deus nos dá
todo o necessário para uma vida de fé e obras: a Palavra e os Sacramentos. Por eles somos perdoados, orientados e fortalecidos.
Cada dia que recebemos é uma oportunidade de produzirmos bons
frutos em honra ao nosso Senhor. Os frutos são o testemunho e a vida
consagrada em todas as esferas de nossa vida. Na igreja, no lar, no
trabalho e na sociedade temos a missão de sermos portadores da
mensagem da salvação.
Infelizmente, vivemos em tempos onde grande parte do povo de
Deus segue os mesmos passos de Israel. A cada dia que passa, os
frutos estão escasseando. O mundo secular domina os lares e não há
mais tempo para a palavra de Deus. Os mandamentos não fazem mais
sentido e são reinterpretados de acordo com os objetivos de cada um.
O temor e amor reverencial têm esfriado em muitos corações. Os pregadores de hoje precisam ter a mesma coragem e a mesma fidelidade
dos profetas para anunciar a vontade de Deus com o objetivo de despertar o povo para a realidade.
O amor de Deus por esse povo é o amor da cruz. Esse amor se
manifesta na sua longanimidade e na presença constante de seu Espírito que jamais nos deixará sem a Palavra e os Sacramentos. Através
desses meios, Ele quer despertar o seu povo para uma vida de santidade com o objetivo de salvar a muitos pelo testemunho de uma vida
piedosa e em conformidade com a lei do amor.
Essa parábola é um exemplo de como Deus trata o seu povo. Ele é
persistente e misericordioso, mas também é justo e não aceitará a
rebeldia e o desprezo para com o seu reino. Vale lembrar o alerta que
Paulo nos faz em sua carta aos Romanos “Bem! Pela sua incredulidade
[dos judeus], foram quebrados; tu, porém, mediante a fé, estás firme.
Não te ensoberbeça, mas teme. Porque, se Deus não poupou os ramos naturais, também não te poupará” (Rm 11.20,21).
SUGESTÃO DE USO HOMILÉTICO
Assunto: Santificação
Objetivo: Refletir sobre a bênção e a responsabilidade de nossa
missão no reino de Deus. Através da lei, olhar para nossos frutos e
pelo evangelho mostrar tudo aquilo que Deus nos oferece para uma
vida frutífera.
Tema: Produzamos frutos que glorifiquem a Deus
127
IGREJA LUTERANA
INTRODUÇÃO
Como está nossa produção?
O que temos produzido?
1. Por que produzir frutos?
- Porque essa é a vontade de Deus (Mt 21.43)
- porque temos o exemplo de Israel que mostra o zelo de Deus
- porque fomos escolhidos por Ele
- porque Ele nos deu todos os meios para a produção (Mt 21.33)
2. Quais são os frutos?
- Juízo e Justiça (Is 5.7)
3. Como produzimos?
- Construindo nossa vida sobre Jesus, a pedra principal
- Buscando força e orientação nos meios da graça
- Abandonando o pecado e vivendo como filho de Deus (Fp 3.1314)
CONCLUSÃO
Glorifiquemos a Deus por tudo o que recebemos de suas mãos
com uma vida frutífera.
Cezar Squiavo Schuquel
São Leopoldo, RS
128
VIGÉSIMO PRIMEIRO DOMINGO
APÓS PENTECOSTES
Filipenses 4.4-13
LEITURAS DO DIA
Estamos nos aproximando do final do ano litúrgico. É um tempo
apropriado para meditarmos na Pátria Celestial, porém ainda estamos
em Pentecostes! A ênfase especial deste período é o crescimento espiritual da Igreja. O Salmo (Sl 23), talvez o mais conhecido de toda a
Escritura, é um belo poema no qual Davi expressa sua total dependência de Deus, ao mesmo tempo em que demonstra o total cuidado do
pastor, o qual provê o bem-estar de suas ovelhas. Somos, com isto,
encorajados a confiar que Deus cuida de todas as nossas necessidades. É possível estabelecer uma relação entre o presente salmo com a
explicação do primeiro artigo do credo, no catecismo menor: “...supreme abundante e diariamente de todo o necessário para o corpo e a vida”...
A mesa farta, símbolo da aliança de Deus com o seu povo, é citada
por Isaías (Is 25.6-9). O texto não apenas aponta para a era messiânica,
como também retrata o “quadro” da vitória final da Igreja, e sua felicidade completa no banquete celestial. É em sua morada celeste que
Deus irá congregar todos os povos da terra. No evangelho (Mt 22.110), Jesus enfatiza que, mesmo que alguns desprezem o convite, este
continua sendo feito para todos, inclusive para os que o rejeitam. Aqui
transparece a graça de Deus, cujo desejo é que todos tomem parte no
banquete celestial. O convite está lançado, e a vontade do dono da
festa é que todos vistam as vestimentas lavadas no sangue do Cordeiro e ocupem seus lugares no banquete da festa bendita, seja aqui
neste mundo, crendo, ou na eternidade, livres do pecado, do inferno e
da morte.
CONTEXTO
A igreja de Filipos foi fundada pelo apóstolo Paulo, a quem ele endereça a carta de filipenses entre os anos 53 e 55 A.D. Os cristãos de
Filipos deram muitas alegrias ao apóstolo, porque colocaram a graça
de Deus em prática e sempre o ajudaram na divulgação do evangelho
por todo o Império Romano. Na carta aos filipenses, Paulo expressa
sua gratidão por toda a ajuda recebida desta igreja, especialmente
129
IGREJA LUTERANA
durante o tempo que esteve na prisão (Fp 4.10-19). No texto proposto, Paulo fala da alegria que o cristão deve sentir em sua vida de comunhão com Deus e com o próximo. O apóstolo lança uma palavra de
encorajamento e de estímulo aos filipenses, motivando-os a viverem
alegres e com humildade, a fim de manter a comunhão com Deus e
também no plano horizontal. Embora estivesse preso, Paulo possuía a
certeza de que a sua alegria residia em Cristo.
TEXTO
V. 4: Alegria - A alegria é um mote, cuja freqüência percorre toda a
carta aos filipenses. Este verbo ocorre quatorze vezes nesta epístola.
O apóstolo refere-se a uma alegria que ultrapassa a emoção natural.
A fonte desta alegria está além da terra. É alegria no Senhor, e, portanto, está baseado fora de nós mesmos. Sua base está na esperança e
confiança da justificação mediante Cristo Jesus. Este tipo de alegria está,
freqüentemente, relacionada aos eventos escatológicos da volta de
Cristo, quando a alegria será completa no banquete celestial.
Por tratar-se de uma alegria que se origina fora do ser humano,
entendemos o motivo pelo qual ela persiste também nas dificuldades
e sofrimentos (Hc 3.17-18).
V. 5: Moderação - Nesta primeira parte do versículo, Paulo trata dos
relacionamentos da esfera horizontal, tais como a maneira como os
cristãos devem se portar uns diante dos outros e até mesmo perante
os de fora da igreja. Ser moderado é tomar cuidado com os julgamentos e opiniões precipitadas. No texto original, esta palavra denota inclusive humildade, capaz de submeter-se a injustiças e maus tratos,
confiando a Deus o comando da vida humana, especialmente nesses
momentos.
Perto está o Senhor - Trata-se do retorno glorioso de Cristo, dia que
será de alegria completa para o povo de Deus (Fp 1.6; 3.20). Nesta
esperança e certeza reside a verdadeira alegria cristã.
V. 6: Não andeis ansiosos - Paulo orienta os cristãos a não se preocuparem com as dificuldades terrenas (Mt 6.25-34), mas na hora da
necessidade, que clamem ao Senhor (Ef 6.18). O apóstolo lembra também que a gratidão e o reconhecimento das misericórdias passadas
são constantes na vida do cristão. Paulo exorta os filipenses a não se
tornarem ansiosos, pois as preocupações provenientes das dificuldades e fardos da vida diária podem impossibilitar a alegria. A fé e as
preocupações são dois sentimentos conflitantes: enquanto o primeiro
é a total dependência de Deus, o segundo pertence ao assegurar-se a
si mesmo.
130
VIGÉSIMO PRIMEIRO DOMINGO APÓS PENTECOSTES
V. 7: Paz de Deus - Trata-se de uma paz que vai além de um sentimento meramente psicológico. É uma paz completa baseada na tranqüilidade que vem do próprio Deus, e da certeza de que Ele nos perdoa o pecado. É importante notar que esta expressão não é um manifesto de desejo, e sim uma declaração. Trata-se de uma promessa, do
poder de Deus que guarda a pessoa na salvação trazida por Cristo
Jesus.
Guardará - Esta palavra é um termo militar que representa os soldados em guarda. Refere-se à vigilância, ao cuidado constante. A promessa é de que Deus irá cuidar dos nossos corações, isto é, dos nossos pensamentos e das nossas vontades.
Vv. 8 e 9: O versículo 08 é introduzido pela palavra “finalmente”,
que é uma expressão de exortação. O apóstolo cita uma lista de virtudes oriundas da filosofia estóica. Todos os conceitos aqui adotados
pelo apóstolo pertencem à vida civil, constituem valores sociais que
aqui são tomados a serviço do estilo de vida cristã. Estas virtudes
devem ser continuamente observadas. A combinação delas resulta em
excelente testemunho da fé.
V. 10: Renovastes - Esta palavra poderia ser também traduzida por
“desabrochar”, cujo sentido descreve o germinar e florescer na primavera. Assim como a flor por si só não desabrocha, dependendo do
Criador, também o cuidado dos filipenses para com Paulo desabrochou
do evangelho a eles pregado. Paulo também reconhece que o desabrochar das lembranças, que em outras palavras nada mais é do que a
gratidão que sentia pela ajuda recebida dos filipenses, brotava da sua
união com Cristo.
Vv. 11-13: Paulo faz uma reflexão sobre a origem da sua autosuficiência, isto é, da sua satisfação apesar das dificuldades. A razão
não se encontra nele, mas apenas em seu Senhor. Paulo encerra sua
reflexão no versículo 13 com a expressão “tudo posso por intermédio
daquele que me dá força”. Não é a força e a autodisciplina dele que o
faz superior, mas é outro que o segura. Por isso ele não tem necessidade de dissimular sua própria fraqueza e humanidade, não precisa
transformar-se em algo especial ou mesmo num super-homem. Justamente em sua fraqueza é que se evidencia nele o poder de Cristo (2
Co 12.9s.). Não precisa temer, nem negar a sua situação, porque conhece um Senhor cuja graça o envolve já aqui neste mundo. E sendo
esse Senhor o Crucificado, mesmo aflição e morte não podem opor-se
à sua proximidade. Eis a razão da sua alegria!
131
IGREJA LUTERANA
COMENTÁRIO HOMILÉTICO
Ao aproximar-se do final do ano eclesiástico, penso que o pregador, à luz dos textos do dia, deveria pregar o contraste entre as alegrias efêmeras da terra e as eternas do céu. É uma bela oportunidade
para falar da eternidade e da verdadeira alegria que aguarda a todos
os que se assentarão no grande banquete celestial.
Sugestão de tema: Em Cristo, Deus torna-se a nossa alegria!
Emerson Carlos Ienke
Itaguaçu, ES
132
VIGÉSIMO SEGUNDO DOMINGO
APÓS PENTECOSTES
Mateus 22.15-21
“15 Então, retirando-se os fariseus, consultaram entre si como o surpreenderiam em alguma palavra.
16
E enviaram-lhe discípulos, juntamente com os herodianos, para dizer-lhe: Mestre, sabemos que és verdadeiro e que ensinas o caminho de
Deus, de acordo com a verdade, sem te importares com quem quer que
seja, porque não olhas a aparência dos homens.
17
Dize-nos, pois: que te parece? É lícito pagar tributo a César ou não?
18
Jesus, porém, conhecendo-lhes a malícia, respondeu: Por que me
experimentais, hipócritas?
19
Mostrai-me a moeda do tributo. Trouxeram-lhe um denário.
20
E ele lhes perguntou: De quem é esta efígie e inscrição?
21
Responderam: De César. Então, lhes disse: Dai, pois, a César o que
é de César e a Deus o que é de Deus.”
Olhando para o contexto, vemos uma região sob o domínio romano. Domínio romano que inclui o culto à “deusa” Roma, culto ao imperador, impostos, etc. O fator político em si já é uma afronta às tradições
e costumes do povo judeu, que é monoteísta, dizimista, nacionalista,
povo escolhido de Deus. É um fardo grande estar sob o domínio de
uma nação estrangeira.
Nesta segunda tentativa de pegar Jesus em contradição, ele é cercado por representantes de um dos principais grupos religiosos judeus, os fariseus, que seguiam rigorosamente a Lei de Moisés e as
tradições e os costumes dos antepassados. Juntos estão, também, os
representantes de Herodes, do partido de Herodes. “A pergunta, quanto ao ser lícito ou permissível pagar imposto a César, ou não, foi, portanto, bem escolhida para prender Jesus num dilema: ou negar a autoridade de César (sedição), ou plena autoridade de Deus (traição e
blasfêmia).” (Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento,
p.337 - César).
O tributo, imposto, traduz a palavra kenson, “taxa per capita”, “que
era o imposto de recenseamento exigido de todas as pessoas adultas
e pago diretamente ao tesouro imperial. Distinguia-se do tele, palavra
usada para designar impostos indiretos cobrados mediante direitos
aduaneiros” (TASKER, comentário de Mateus, p.170).
133
IGREJA LUTERANA
Quando da resposta de Jesus, é empregado apodote, restituir, devolver. Dá idéia de não ser um pagamento indevido, mas de fato uma
restituição por direito. É de direito da administração pública ter restituição para manter o império.
Para termos um uso coerente do texto, precisamos superar alguns
obstáculos. O primeiro deles é de que no contexto brasileiro vivemos o
regime da democracia. Isso traz dificuldades no sentido de não podermos simplesmente transportar o texto para hoje, um paralelo direto. É
preciso uma triagem.
Como povo de Deus, pagamos impostos. É lícito que o povo de
Deus pague imposto? Vamos nos rebelar contra o governo? Pregar em
nossas igrejas contra o imposto cobrado pelo governo? Primeiramente, no regime da democracia os impostos são aprovados, votados, por
representantes da população no governo. Isso implica responsabilidade pessoal, que começa antes das eleições com a escolha de possíveis
candidatos. Em suma, não há uma ditadura imperial sobre nós, mas
somos co-responsáveis pela maneira como são cobrados os tributos e
em que são aplicados. Não podemos simplesmente fazer a pergunta:
é lícito pagar imposto ao governo ou não? Temos o dever de aprovar,
desaprovar, controlar, fiscalizar, etc.
Outro aspecto importante é sobre a minha relação de filho de Deus
com o governo secular, com a administração do Brasil. Vivo para Deus e
para a igreja e o resto é resto? “No ponto de vista de Jesus, era falsa
a antítese: não há necessariamente conflito algum entre a autoridade
política e a divina. O pagamento do imposto é uma obrigação legítima
dentro do complexo de relacionamentos humanos” (Dicionário Internacional de Teologia do NT). Se a antítese era falsa na época de Jesus,
também o é hoje.
Entramos, assim, na complexa discussão a respeito dos “dois reinos”, “reino da direita”, de Deus, e “da esquerda”, terrestre, secular.
Somos cidadãos destes dois reinos, um perfeito, outro imperfeito, o da
esquerda. Ora, por ser o reino da esquerda imperfeito não significa
que iremos desprezá-lo e deixar a encargo do próximo. Vivemos na
tensão que chamamos em nossa teologia de “já e ainda não”. Portanto, neste sentido, temos participação na perfeição pela fé e somos coparticipantes deste mundo imperfeito regido por políticas públicas que
não só “afetam” o povo de Deus como têm o “dedo” dos crentes na
formulação das leis com a busca de interesses próprios, do crente individual, ou de congregações, de igrejas.
É saudável, ao abordar este texto, ter em mente o que Paulo fala a
cerca da “obediência às autoridades” em Romanos 13. Vou dar “imposto”, “dízimo”, “oferta” somente para a igreja e não ao país? Aqui
134
VIGÉSIMO SEGUNDO DOMINGO APÓS PENTECOSTES
entramos na questão da sonegação de impostos, que pode ocorrer
em maior ou menor grau em nossas congregações, em nível pessoal
ou de comunidade. Estamos honrando as autoridades ou desonrando
na medida em que damos um “jeitinho brasileiro” na administração
pessoal ou congregação local?
Dai a César o que é de César! Está pesado demais? O que fazer?
Burlar a lei ou lutar para mudar a aplicação e o retorno destes recursos? “O homem pode viver dentro dos relacionamentos humanos de
autoridade e obrigação e ainda ‘dar a Deus aquilo que é devido a Deus’”
(DITNT).
SUGESTÃO DE USO HOMILÉTICO
Assunto: Mordomia cristã nos dois reinos; responsabilidade cristã
Objetivo: levar o cristão individual e a congregação cristã a refletir
sobre a sua prática, suas ações, no reino da esquerda e da direita,
considerando a clara distinção entre ambos e a linha tênue na qual
vivemos ao levar essa distinção em conta.
Tema: O secular e o divino
1. “Dai a César o que é de César”
2. “Dai a Deus o que é de Deus”
3. O envolvimento cristão na polis
a) princípios bíblicos diluídos na vivência diária
b) princípios: amor - domínio próprio - respeito à autoridade - amor
ao próximo, etc.
c) testemunho - ética
4. O envolvimento cristão na Igreja - parece redundante mais não
é. Pessoas que se servem da religião, mas não estão dispostas a servir a Deus ou ao próximo. É preciso comprometimento.
5. O secular e o divino – o viver ético nos dois reinos.
a) envolvimento nas decisões acerca da aplicação de recursos provenientes de impostos cobrados pelo governo
b) projetos no terceiro setor
c) envolvimento nas decisões acerca da aplicação de recursos provenientes das contribuições voluntárias nas igrejas
d) lembrar que é dia da criança – responsabilidade para com elas.
Marco Antônio Meyer Jacobsen
Canoas, RS
135
IGREJA LUTERANA
VIGÉSIMO TERCEIRO DOMINGO
APÓS PENTECOSTES
Mateus 22.34-40
O evangelho deste domingo é o resumo dos Dez Mandamentos,
trata da questão do “grande mandamento” (ARA) ou do “mandamento
mais importante” (NTLH). Há a sugestão da leitura ir além, incluindo os
vv. 41-46, quando Jesus pergunta aos fariseus sobre o paradoxo do
Messias ser descendente de Davi e Senhor de Davi. Talvez as duas
perícopes possam ser integradas num único sermão, mas fosse melhor focalizar apenas uma das presentes leituras. O presente estudo
focará a primeira parte. Sugerimos ao leitor o estudo homilético deste
mesmo texto na Igreja Luterana de 1996, nº. 1, vol. 55, pp. 118-120,
do Rev. Luiz Carlos Garlipp, a fim de que este não se torne repetitivo.1
CONTEXTO
O texto está inserido na semana da Páscoa judaica. Jesus havia
entrado em Jerusalém (Mt 21) e no decorrer da Semana Santa foi confrontado pelas autoridades religiosas. Esta batalha de palavras inclui
uma série de três questionamentos. O primeiro foi sobre a questão
dos impostos (15-22), em seguida a ressurreição (23-33) e, finalmente, o grande mandamento. Perguntas cujo objetivo era derrubar Jesus, mas que falharam. Quem realmente foi brilhante, tanto nas três
respostas como na pergunta que ninguém foi capaz de responder (4146), foi Jesus.
TEXTO
Vv. 34-36: Este trecho relata a ação dos fariseus. Eles viram que os
saduceus “se deram mal”, reuniram-se em conselho para conseguir
uma prova contra Jesus. Para isso, elegeram um especialista em Lei
para perguntar a Jesus qual era o mandamento mais importante.
Vv. 37-40: Aqui temos a resposta de Jesus. O primeiro, o maior e o
mais importante é o amor “integral” (coração, alma e mente) a Deus,
1
Quem não tem a revista em mãos, está disponível no site do Seminário Concórdia, no
seguinte link: http://www.seminarioconcordia.com.br/Biblioteca_arquivos/Page576.htm
136
VIGÉSIMO TERCEIRO DOMINGO APÓS PENTECOSTES
que ocorre através da fé. Jesus também lembra do segundo maior
mandamento, que é parecido com o primeiro: amar o próximo como a
si mesmo.
Toda a Lei de Moisés e os ensinamentos dos Profetas se baseiam
nestes dois mandamentos. Os fariseus e os escribas que se gabavam
do “viver pela lei”, não compreendiam estes dois mandamentos, pois
não tinham fé em Jesus, e muito menos, amor pelo próximo (Mt 5.17).
Compartilhamos duas citações de teólogos brasileiros, que não falam diretamente do texto, mas ajudam na reflexão deste tema. A primeira é do saudoso Dr. Martim Warth:
Quando Deus nos dá a sua Fé, o seu Nome e o seu Reino,
como faz do 1º ao 3º mandamento, então estamos aparelhados para servir ao próximo e proteger sua autoridade,
sua vida, seu sexo, seu dinheiro, sua honra, sua casa e
sua família, como Deus nos ensina no resto do Decálogo,
do 4º ao 10º mandamento.2
A segunda é do Dr. Ricardo Rieth:
A confiança em Deus não tem seu fundamento em mim, em
minhas virtudes, capacidades ou ações. A confiança em
Deus baseia-se em seu amor inesgotável por nós. No amor
incondicional de Deus somos acolhidos. Do amor de Deus
originam-se a confiança e o amor que, de nossa parte,
sentimos por ele. Da mesma forma, é pelo amor incondicional de Deus que somos levados a desviar os olhos de
nós mesmos para direcioná-los amorosamente às pessoas ao nosso redor.3
PROPOSTA HOMILÉTICA
Assunto: O amor a Deus e ao próximo.
Objetivo: Refletir sobre a nossa vida com Deus e com as pessoas
ao nosso redor. Os dias pós-modernos são mais hedonistas, com espírito imediatista (“eu quero e é agora”) e há pouco tempo para tudo
(“era pra ontem”), afetando as relações familiares e a vida espiritual.
Num ambiente desses, está cada vez mais difícil viver o amor a Deus e
ao próximo.
2
WARTH, Martim Carlos. A ética de cada dia. Canoas: Ulbra, 2002, p. 102. Interessante
ver o esquema utilizado para expor a citação acima.
3
RIETH, Ricardo Willy. Martim Lutero, discípulo, testemunha, reformador. São Leopoldo:
Sinodal, 2007, p. 57.
137
IGREJA LUTERANA
TEMA E PARTES:
TEMA
Deus nos amou para amarmos
INTRODUÇÃO
Relatar sobre os dias que estamos vivendo, que são corridos e
agitados, tornando-se até impessoais (com amigo converso por um
programa de mensagem instantânea, por exemplo: MSN, Skype; com
a família talvez nem isso, é a esposa trabalhando fora para ajudar no
sustento da casa, é o televisor ligado, o filho no quarto navegando na
internet ou saindo para ir a outros lugares).
I - Morto não pode amar!
A lei nos orienta para amarmos a Deus e ao próximo, mas não o
fazemos e nem o conseguimos. Pelo contrário, amamos a ídolos (dinheiro, trabalho, etc.) e não queremos ouvir a Deus. Com um coração
egoísta buscamos bem-estar, não nos preocupamos com os outros e
como conseqüência acabamos sacrificando a família com a falta de amor.
Estas crenças e atitudes são reflexos de nossos valores, que são a
morte espiritual e a impossibilidade de reversão devido ao pecado.
II - Ressuscitado ama!
Por isso que Jesus veio ao mundo, para reverter essa triste situação. Hoje, pelo batismo, não estamos mortos, mas ressuscitados e
com vida nova (Rm 6.4). O amor de Deus nos capacita a amar todos
que nos cercam, seja na família, na escola, no trabalho, na sociedade.
Para desviarmos os olhos de nós mesmos e direcioná-los ao próximo.
E então, quando Deus nos deixa aparelhados, quando recebemos tudo
de Deus, estamos prontos para realizar a nossa tarefa: de proteger o
próximo com amor.
CONCLUSÃO
A capacidade não está em nós, mas no Deus Espírito Santo que nos
alimenta com Palavra e Sacramentos e sempre nos oferece o perdão de
Deus em Cristo Jesus para vivermos amando a Deus e ao próximo.
Sugestão de hino do dia: HL 381
Marcos Jair Fester
São Leopoldo, RS
138
VIGÉSIMO QUARTO DOMINGO
APÓS PENTECOSTES
Mateus 23.37-39
CONTEXTO
A missão redentora do Filho de Deus está chegando ao seu ápice,
pois o momento da crucificação está à porta. Sob a sombra da cruz,
Jesus profere as palavras de Mt 23.37-39. O lamento sobre Jerusalém
encontra-se logo após uma severa repreensão de Jesus aos Escribas
e Fariseus (Mt 23.1-36). Os ais (Ouvai,), a eles dirigidos, condenam uma
religiosidade legalista e de aparências. Religiosidade esta que perseguiu e matou os profetas e que ainda perseguiria o próprio Cristo e
seus discípulos – o legalismo não suporta a pura mensagem do Evangelho – O lamento também precede o sermão profético da destruição
do Templo. Logo, o texto situa-se em um importante ponto de
intermediação.
V. 37: Jerusalém é caracterizada como aquela que apedreja os que
foram enviados, a matadora dos profetas e aquela que rejeita a ação
protetora de Jesus. Em contraposição, Jesus é aquele que sempre expressou o desejo e atitude de reunir os filhos desta sob as suas asas.
É importante a constatação do uso de dois aoristos: Jesus diz que
muitas vezes ele quis (hvqe,lhsa) reunir os filhos de Jerusalém. O aoristo,
como ação no passado e acabada, indica a descontinuidade deste querer. Evidentemente que Jesus ainda trabalha em sua Igreja a favor da
conversão e salvação de todos os seres humanos, afinal de contas,
Deus “deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno
conhecimento da verdade” (1 Tm 2.4). Mas, no contexto específico de
nosso texto, o quis é um indicativo de juízo sobre Jerusalém; o que se
confirmaria com sua queda no ano 70 d. C. O segundo aoristo explicita
o porquê do juízo: “vós não o quisestes (hvqelh,sate)”. Jesus continuamente trabalha e anseia para que as pessoas se convertam a Ele e
nEle creiam como único e suficiente Salvador. Porém, muitos o rejeitam. E essa rejeição mantém o juízo que pesa sobre o ser humano. A
Jerusalém que simboliza a religião de aparências, legalista e de justificação pela lei está sendo substituída pela nova Jerusalém, que é a
religião do Espírito e da verdade. O apóstolo Paulo compara Jerusalém
com Sara (de onde nasceu o filho da promessa) e Agar (da qual nasceu
o filho segundo a carne): “Ora, Agar é o monte Sinai, na Arábia, e
139
IGREJA LUTERANA
corresponde à Jerusalém atual, que está em escravidão com seus filhos.
Mas a Jerusalém lá de cima é livre, a qual é nossa mãe” (Gl 4.25-26).
A imagem da galinha que ajunta seus pintinhos debaixo das asas
dá continuidade às alusões do Antigo Testamento que tratam da proteção usufruída pelos tementes de Deus: “Cobrir-te-á com suas penas,
e, sob suas asas, estarás seguro” (Sl 91.4). É muito significativo o fato
de que a galinha exerce a proteção mediante seu próprio corpo, mesmo que este venha com isso a sofrer agressões. A proteção de Deus
também implicou no ferimento da sua própria carne. Para nos proteger
da condenação do juízo, Jesus entregou sua própria vida para ser
sacrificada.
V. 38: A ARA traduz: “Eis que a vossa casa ficará deserta”. Uma tradução mais literal do texto grego diria: “Eis que a vossa casa está sendo
deixada deserta”. A ênfase no presente explica que o juízo já pesa
sobre Jerusalém e suas conseqüências já estão em ação. Todo aquele
que rejeita o Filho de Deus não apenas estará algum dia (juízo final)
em condenação, mas já está a partir de agora. A condição de salvos ou
condenados é uma situação que se inicia na fé ou em sua ausência,
apenas se consumando no último dia.
V. 39: Jesus prediz que um dia todos dirão “bendito o que vem em
nome do Senhor!”. Não se trata da chamada entrada triunfal em Jerusalém, pois Mateus já a relatou no capítulo 21. Estas são palavras que
serão ditas no dia da vinda do Filho do Homem, no qual “todos os povos
da terra se lamentarão” (Mt 24.30). Bem-aventurados são aqueles que
dirão tais palavras estando entre os escolhidos, entre aqueles que aceitaram a proteção divina e buscaram refúgio sob suas asas.
DICAS HOMILÉTICAS
Há uma conhecida estória que conta sobre um marinheiro que, após
um naufrágio, refugiou-se sobre uma rocha em meio às ondas e à tempestade. No outro dia, quando enfim o resgataram, perguntaram a
ele: – Você não tremeu de medo diante de tantos ventos e ondas? –
Tremi, sim! – respondeu ele – mas, a rocha não tremeu; e isso foi a
minha salvação.
Caso Deus fosse inconstante em seu amor e em sua misericórdia,
nós estaríamos perdidos. No entanto, Deus busca a salvação do ser
humano desde o momento de sua queda e continuará buscando até a
consumação dos séculos. Sendo assim, o texto de juízo profético sobre Jerusalém não é o apontamento de uma descontinuidade da misericórdia divina, no sentido de que aquilo que Ele desejava – a salvação
– não mais se faz presente. O texto aponta para a seriedade do juízo
140
VIGÉSIMO QUARTO DOMINGO APÓS PENTECOSTES
divino e as terríveis conseqüências da negação do Filho de Deus. Deus
continua a estender amorosamente suas asas com o intuito de nos
proteger.
Outra conseqüência que podemos extrair do texto é a de que nem
sempre a mensagem evangélica será bem recebida. Na realidade, pela
dureza do coração humano, a Escritura está repleta de exemplos contrários. Assim como Jerusalém matou e perseguiu os mensageiros de
Deus, também hoje, certamente, muitos estão sendo perseguidos. Os
critérios humanos de sucesso como anunciador da boa notícia não são
os critérios divinos. Portanto, não é o número de pessoas que está a
sua frente para ouvi-lo ou o entusiasmo que demonstram com suas
palavras que espelharão a veracidade de sua mensagem. A verdade
da mensagem está no anúncio do Deus que chora e se lamenta por
todos aqueles que rejeitam sua proteção em Cristo.
PROPOSTA DE ESBOÇO
Tema: Deus lhe quer debaixo de suas asas.
Objetivo: Levar o ouvinte a buscar em Jesus a salvação e o refúgio.
a) A contínua busca do perdido.
b) A rejeição e suas conseqüências.
c) A não-rejeição e suas conseqüências.
Lademir Renato Petrich
Juiz de Fora, MG
141
IGREJA LUTERANA
DIA DA REFORMA – 31 DE OUTUBRO
Salmo 46; Jeremias 31.31-34;
Romanos 3.19-28; João 8.31-36
DESTAQUES E PONTES DO SALMO 46
Muito tempo depois daquele 31 de outubro de 1517, Martinho Lutero
esteve encerrado no castelo de Wartburg. Sem dúvida, desde sua juventude já conhecia a segurança, a força e a paz que vinham dos
castelos europeus, aquelas construções antigas e enormes, que em
situação de conflito, albergavam e protegiam os amigos do Rei.
Por isso, quando os conflitos e as pressões da Reforma sacodem a
vida de Martinho Lutero, ele se lembra do Salmo 46 e relaciona estas
famosas e firmes construções com a presença de Deus na nossa vida
no que se tornou o hino oficial da Reforma: “Castelo Forte é o nosso
Deus”. O Salmo 46 é um dos “cantos de Sião”, onde ressaltam a glória
de Jerusalém como “cidade de Deus” e é também uma confissão de fé
no poder do Senhor.
Quando este Salmo é visto na perspectiva da palavra “segurança”,
outros detalhes aparecem: terra abalada, mares agitados, montes que
tremem (2,3). É constatação da realidade. Por outro lado, aparece a
ação de Deus: Ele está do nosso lado (7), acaba com as guerras, quebra os arcos, despedaça as lanças e destrói os escudos (paz). Além da
ação, está sua ordem: “Parem de lutar e fiquem sabendo que eu sou
Deus”.
Como conclusão, repete com outro enfoque o primeiro versículo: “O
Deus de Jacó é o nosso refúgio”.
Quais são os refúgios do nosso século? Onde as pessoas encontram segurança na atualidade? Família, estabilidade econômica, etc.?
Justo quando escrevo este material escuto notícias sobre o terremoto
na China (12 de maio de 2008) onde mais de 80 mil pessoas faleceram
e outras 20 mil estão desaparecidas. Onde agarrar-se quando a terra
treme? “Deus é o nosso refúgio e a nossa força, socorro que não falta
em tempos de aflição” (46.1).
DESTAQUES E PONTES DE JEREMIAS 31.31-34
“Embora eu fosse o Deus deles, eles quebraram a minha aliança”. A época da Reforma foi precedida por momentos de escuridão
teológica. A Bíblia, ainda manuscrita e de difícil acesso, estava longe
142
DIA DA REFORMA
das mentes e dos corações humanos e gerava uma grande insegurança. A imagem de Deus era a pior possível, utilizada para gerar medo e
tornar as pessoas dependentes dos líderes religiosos. A venda de indulgências, nesta crise de conhecimentos bíblicos, era apenas uma
gota de água. A aliança com Deus estava quebrada, embora Deus continuasse sendo o Deus deles. Com o impacto da Reforma e a distribuição de Bíblias através da invenção de Guttenberg, o povo começa a
conhecer e a reconhecer o Deus Eterno. Como está nosso povo diante
de Deus? Vive sua aliança com o Pai Eterno? A Palavra de Deus está à
disposição de todos, nunca houve tantas Bíblias e traduções. Preocupa o fato que o povo conheça a ação e a vontade de Deus e se leva a
sério esta aliança com tantas pressões e tentações como o materialismo, consumismo, feitiçaria e hedonismo. Fica nosso desafio como igreja: “Procure conhecer o Deus Eterno... eu perdoarei os seus pecados e nunca mais lembrarei das suas maldades”.
DESTAQUES E PONTES DE ROMANOS 3.19-28
Necessitamos de outra Reforma? Infelizmente a salvação por obras
segue sendo moda no mercado religioso da atualidade. Quantos exemplos escutamos no dia-a-dia: fulano está no céu, pois foi bom aqui;
preciso cumprir com a penitência até o fim para que Deus atenda os
meus pedidos; procissões, promessas e até sacrifícios para obter os
favores de Deus.
Infelizmente, continua faltando base bíblica como a de Romanos, por exemplo: “Deus aceita as pessoas por meio da fé que elas
têm em Jesus Cristo e não por fazer o que a lei manda”. Essa objetividade de Romanos necessita chegar ao povo que vive fazendo intercâmbios com Deus à sua maneira. Como Igreja herdeira da Reforma,
necessitamos trabalhar nesta perspectiva de levar o verdadeiro evangelho a quem o necessita. Boa oportunidade são os festejos da Reforma onde a história de Lutero e seus contemporâneos ajudam a resgatar o papel de Cristo na salvação das pessoas, que são “aceitas por
Deus pela fé e não por fazer o que a lei manda”.
JOÃO 8.31-36
Então Jesus disse para os que creram nele: Se vocês continuarem a
obedecer aos meus ensinamentos, serão, de fato, meus discípulos.
“Creram Nele” – na verdade, eram judeus que esperavam um libertador sócio-político para libertá-los do poder do Império Romano. Mesmo que seja a mesma palavra utilizada para aceitação, fé, confiança,
31
143
IGREJA LUTERANA
entrega absoluta, Jesus mostra seu pensamento crítico especialmente
em João 2.23 quando os considera “duros de coração”.
“Serão, de fato, meus discípulos” – A diferença entre “os que creram” e os “discípulos” está na obediência aos ensinamentos de Jesus.
32
e conhecerão a verdade, e a verdade os libertará.
Conhecer a verdade sobre Deus é conhecer o seu amor por nós
através de Jesus. Essa é a única maneira de estar livre da escravidão
do pecado. Conhecer também implica transferir estes dados da mente
para a vida, do conhecimento histórico da salvação para o arrependimento e confiança no Salvador Jesus. Falar em verdade em tempos
pós-modernos é a grande missão da igreja, pois a notícia do evangelho é a única que pode salvar vidas e libertar de todas as amarras e
consequências do pecado. Jesus mesmo é a verdade que liberta, mostrando o caminho para a vida eterna com o Criador.
33
Eles responderam: Nós somos descendentes de Abraão e nunca
fomos escravos de ninguém. Como é que você diz que ficaremos livres?
O grande orgulho do povo judeu era ser filho de Abraão e sua condição de ser livre. A idéia de ser escravo do pecado desde a desobediência de Adão e Eva era inconcebível. Falar de um ser humano caído
em pecado também é um grande desafio na atualidade. Buscamos
subterfúgios e outras palavras (problema de fábrica, pecado original),
mas este é, na verdade, o grande problema do ser humano e de sua
convivência no planeta. Inclusive a natureza treme e mostra sua imperfeição.
34
Jesus disse a eles: Eu afirmo a vocês que isto é verdade: Quem peca
é escravo do pecado.
O pecado tem sua maneira de escravizar-nos, controlar, dominar e
ditar nossas ações. Jesus pode libertar-nos desta escravidão que impede a pessoa de ser o que Deus tinha em mente ao criá-lo. Se o
pecado limita, domina e escraviza, Jesus pode destruir esse poder que
o pecado tem sobre a sua vida (Santificação – frutos do Espírito Santo).
35
O escravo não fica sempre com a família, mas o filho sempre faz
parte da família.
Escravo era objeto de negócio, propriedade de quem tinha mais
dinheiro para pagar. Escravo estava na casa enquanto fosse útil. O
filho, por sua vez, mesmo quando fugisse de casa, tinha seu lugar
reservado. No discurso de Jesus fica evidente o seu amor e sua iniciativa para que os que ainda não acreditassem nele pudessem voltar
aos braços do pai.
36
Se o Filho os libertar, vocês serão, de fato, livres.
Implícito no ministério de Cristo, desde sua primeira autodeclaração
144
DIA DA REFORMA
em Nazaré (Lucas 4.16) até sua vitória sobre a morte, está o conceito
da total libertação do homem de tudo o que escraviza, desumaniza e
limita a realização do seu potencial como ser humano e cristão. É assim como o evangelho, no processo que alcança libertar-se da sua
bagagem tradicional e cultural, sempre abre portas nas condições que
escravizam a humanidade e proporciona ao cristão redimido uma perspectiva autenticamente livre.
APLICAÇÃO
Na comemoração da Reforma, sempre é importante ressaltar que
os conceitos de liberdade e verdade estavam muito confusos tanto na
época de Jesus como na época de Martinho Lutero. Os ventos pósmodernos da atualidade questionam a verdade de Jesus defendendo
que todos os caminhos levam a Roma, todas as religiões levam a Deus.
No entanto o evangelista João registra a centralidade e exclusividade de Jesus, pois ele “é o caminho, a verdade e a vida; ninguém
vem ao Pai” senão através dele.
Essa verdade, defendida na Reforma, passa a ser essencial em
tempos de tantas “verdades”.
Christian Hoffmann
Montevidéu, Uruguai
145
IGREJA LUTERANA
VIGÉSIMO QUINTO DOMINGO
APÓS PENTECOSTES
Oséias 11.1-4,8,9
A FIDELIDADE DE DEUS
Pelas palavras do profeta Oséias Deus fala a linguagem que lhe é
mais própria, a linguagem do amor extremo. Uma linguagem viva, concreta, a que cada ser humano pode se associar. É linguagem que toca
nas mais profundas emoções da experiência humana.
Para tanto, Deus não deixa que Oséias fique somente no discurso.
Oséias deve mostrar na sua vida o que significa o amor de Deus. No
primeiro capítulo Deus faz Oséias desfilar diante do público o papel de
marido traído: “Vai, toma uma mulher de prostituições”. A fidelidade de
Oséias a esta mulher é um retrato pálido, mas vivo, do amor de Deus
pelo seu povo, sua igreja. Onde qualquer homem se sentiria desonrado, aquilo que repugna o ser humano, isso é a ação de Deus a favor do
pecador.
É menos penoso informar pessoas de que Deus ama o pecador do
que tentar descrever ou ainda demonstrar e viver esse amor na sua
dimensão real. O nosso pecado, conforme Deus demonstra pelo profeta Oséias, é tão grande e constante que Deus nos poupa de vê-lo na
sua realidade. Lutero vê nisso uma das grandes bênçãos que Deus
nos concede e à qual muitos não dão o valor: “Sem dúvida, ... Deus
dispôs as coisas de tal maneira que o ser humano não perecesse ao
enxergar os seus males mais íntimos. Ele os esconde ...” (OS 2. 17).
Assim, no entender de Lutero, a natureza humana não é diferente
diante da lei, seja ela de um criminoso quanto a de um fiel cristão. O
que o leva a afirmar: “Quantas pessoas são enforcadas, estranguladas, afogadas ou mortas à espada que talvez tenham cometido pecados menores do que nós! Sua morte e miséria são colocadas diante de
nós por Cristo também como espelho no qual podemos ver o que nós
merecemos ... Quantos milhares estão no inferno e na condenação
eterna que não tem a milésima parte de nossos pecados!” (OS 2.23)
Essa compreensão da nossa realidade é a que Jesus tenta transmitir ao falar da torre de Siloé em Lc 13. Essa compreensão de que o
pecado permanece em nós vivo e pronto a se soltar mesmo na pessoa
cristã após o batismo foi a encruzilhada teológica para os cristãos em
todos os tempos, especialmente na Reforma.
146
VIGÉSIMO QUINTO DOMINGO APÓS PENTECOSTES
Razão porque as palavras de Oséias no capítulo 11 se tornam tão
preciosas para o cristão. Ele é amado porque é um pecador perdido.
Na Apologia os confessores marcaram essa verdade ao dizer que a
graça de Deus somente faz sentido e é de vital importância para o
crente na medida equivalente da sua consciência em relação à sua
condição de pecador até a morte.
“Não atinavam que eu os curava” (v. 3). Deus vê o seu povo como
um pai que se vê diante do filho. Os cuidados do pai pelo filho são tão
constantes e regulares que o filho já não se dá conta de que vive pela
e da proteção do pai. Os cuidados do pai são rotina à qual se habituou. Não há mais surpresas. Tudo se tornou normal e esperado ao
ponto de o filho já imaginar e agir como se tudo fosse seu de direito ao
ponto de a figura do pai se tornar irrelevante para ele. Isso nos reporta à parábola conhecida como “Do Filho Pródigo”: “Dá-me a MINHA
parte da herança” (Lc 15) Não há mais gratidão no coração do filho
que Deus “amou quando era menino no Egito” (Os 11.1)
Mas o coração do Pai é um coração comovido de amor e de compaixão pelo filho (v.8). Ele não se enfurece contra o filho. Por quê? “Porque eu sou Deus e não homem . . . Não voltarei em ira” (v.9)
Se Deus pensasse como pensa o homem o juízo já teria se abatido
sobre a humanidade muitas vezes como foi no dilúvio. Mas Deus pensa
como Deus. O seu juízo o próprio Deus faz abater sobre si próprio. Na
morte de Cristo vemos tudo aquilo que o juízo de Deus exige como
pagamento e resgate. Infelizmente até isto o ser humano recusa aceitar e corre atrás de cultos e cerimônias que não o confrontem com o
seu pecado e ingratidão e lhe permitam alimentar a ilusão de que ele
faz o seu próprio destino.
Busca ignorar as evidências mais claras de que os seus dias estão
nas mãos de Deus. A ciência, o acaso, a sorte, a reencarnação são
alguns dos deuses pelos quais evita o confronto com o seu Criador
diante do qual terá de se explicar. Cega-se a si mesmo e endurece o
coração para não admitir que doença, morte, fome, miséria, conflitos e
ódios, injustiças e perseguições são os sinais do pecado do qual somos acusados por Deus e do qual teremos de prestar contas.
Entretanto, nem por isso Deus deixa o ser humano à deriva. Como
a esposa de Oséias ou o filho em nosso texto, o acolhimento é de tal
ordem que os erros passados e presentes não interferem na decisão
de Deus de continuar acolhendo aqueles que a sua vontade perdoou.
“Tomei-os nos meus braços, mas não atinaram que era eu quem os
curava” (v.3). Deus não recebe gratidão. Deus é ignorado como aquele que salva, mas nem por isso despeja o filho dos braços. Reconhecer
que não andamos pelos caminhos do bem com as próprias pernas,
147
IGREJA LUTERANA
mas reconhecer que andamos pelos caminhos do bem porque somos
carregados neles por Deus, isto é a fé que dá a devida honra a Deus.
O eco dessa palavra de Oséias percorre as cartas de Paulo. Quando,
por exemplo, diz aos Efésios 2: “Pois somos feitura dele, criados em
Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou
para que andássemos nelas” (v.10).
Nesse sentido, toda a honra e dignidade são dons de Deus imerecidos, estando nós mortos em delitos e pecados. Mas Deus se agradou de nós e nos adotou em Cristo para que, acolhidos em seus braços, não tenhamos mais medo de admitir e confessar o que se move
em nosso íntimo. O medo de que essa natureza humana se solte, esse
medo deve ser direcionado para a cruz que conforta e promete que o
Pai nos acolhe, carrega e protege do nosso próprio pecado.
Assim “vivemos para Deus” (Rm 14.8) e não mais para nós mesmos. Vivemos da palavra que perdoa, acolhe e dá segurança. Pois não
podemos apontar nada digno em nós que Deus possa aceitar como
tal. Mas ele nos reveste de uma dignidade e nos educa e tira o véu da
cegueira humana para aprendermos amar essa dignidade de Deus que
o mundo acaba rejeitando em nós. “Todavia, eu ensinei a andar a Efraim
... atraí-os com laços de amor” (Os 11.4).
A vida que vivemos é a vida que Deus preparou e na qual ele nos
conduz dia após dia. Nada é do acaso. Lutero redescobriu isso quando
ensinou que a vida que agrada a Deus não é a dedicação ao mundo
eclesiástico governado pelos homens onde as pessoas recebem o
galardão desta vida. “Olha o teu estado (vocação) à luz dos Dez Mandamentos, se és pai, mãe, filho, filha, patrão, patroa, empregado, empregada, etc.” Deus não espera de nós obras grandiosas, renúncias
pessoais, a não ser aquelas simples, corriqueiras e diárias de quem
ama e respeita aqueles que lhe são próximos, na família e na sociedade. Ali Deus promete acompanhar, carregar e dignificar os filhos que
esperam pelo auxílio e proteção.
Tema: Deus é fiel
1. De Deus, por natureza, nada esperamos a não ser rejeição
2. De Deus tudo recebemos além do que seria de esperar
3. Deus continue a carregar-nos como o Pai que carrega o seu filho.
Paulo P. Weirich
São Leopoldo, RS
148
ANTEPENÚLTIMO DOMINGO
DO ANO ECLESIÁSTICO
Mateus 24.15-28
A VINDA DO FILHO DO HOMEM
Vivemos os tempos do fim. Tal afirmação poderá causar espanto e
até aterrorizar algumas pessoas. As agendas lotadas e os vencimentos das prestações do imóvel não têm espaço para tal verdade. Há
programações previstas para o próximo ano e a última prestação só
vence em 60 meses. Por outro lado, se alguém quiser anotar a data e
a hora para vinda de Jesus e para o fim do mundo, não poderá fazê-lo,
pois ninguém sabe quando será.
Os cristãos vivem todos os dias este paradoxo. E precisam vivê-lo,
afinal, não podem e não precisam esperar de braços cruzados a segunda vinda de Jesus. Eles foram criados por Deus e recriados no batismo, e como filhos de Deus, por causa de Jesus, eles agora se ocupam com suas famílias, empregos e planejam o futuro, dentro da esfera da criação divina e como parte da criação já regenerada, que, entretanto, ainda aguarda a total restauração. Os cristãos também são lembrados de que tudo nesse mundo passará e “não ficará pedra sobre
pedra”. Antes do fim, entretanto, alguns sinais surgirão, como a grande tribulação, falsos cristos e falsos profetas, os quais tentarão enganar os eleitos. Mesmo diante de tal perspectiva, os cristãos não se
vêem abandonados ao desconhecido. Jesus indica que o tempo da
tribulação será abreviado por causa dos eleitos e que a vinda do Filho
do Homem será como o relâmpago que sai do oriente e se mostra no
ocidente.
O longo período após Pentecostes, que também sinaliza o período
que vive a Igreja Cristã atual, agora visualiza as últimas coisas até
que Cristo venha. O Domingo anterior enfatiza os sinais do fim. Jesus
fala sobre o princípio das dores. Assim também o penúltimo domingo
do calendário dá ênfase ao grande julgamento. Entre estes fatos do
fim está a vinda do Filho do Homem, a qual será visível e gloriosa. Esta
parece ser a ênfase deste antepenúltimo Domingo Após Pentecostes.
A NARRATIVA
O quinto discurso proferido por Jesus em Mateus, no qual ele fala
149
IGREJA LUTERANA
das coisas do fim, estende-se entre os capítulos 24 e 25. Em particular,
no monte das Oliveiras, depois de Jesus ter afirmado que não ficará
pedra sobre pedra do templo, os discípulos lhe perguntaram: “Dizenos quando (1) sucederão estas coisas e que (2) sinais haverá da tua
vinda e da consumação dos séculos”. Aparentemente, mas não de forma rígida, este discurso de Jesus procura responder estas duas questões: 1) quando e 2) que sinais.
Assim, depois de anunciar que o Evangelho do reino será pregado
por todo o mundo antes do fim, Jesus passa a falar sobre “... o abominável da desolação de que falou o profeta Daniel” (v.15). Essa parece ser
uma referência à destruição da cidade de Jerusalém e do lugar santo.
O relato de Lucas é mais específico: “Quando, porém, virdes Jerusalém
sitiada de exércitos, sabei que está próxima a sua devastação” (Lc
21.20). O próprio contexto nos dá uma idéia dessa desolação: “...não
ficará aqui pedra sobre pedra que não seja derribada...” (24.2). Já o
profeta Daniel havia anunciado a destruição da cidade e do santuário
como segue: “Depois de sessenta e duas semanas, será morto o Ungido e já não estará; e o povo de um príncipe que há de vir destruirá a
cidade e o santuário, e o seu fim será num dilúvio, e até o fim haverá
guerra; desolações são determinadas” (Dn 9.27). Aparentemente Jesus atualiza as profecias de Daniel e projeta dois eventos, um do futuro próximo (a destruição de Jerusalém) e outro evento final (a perseguição intensificada no final dos tempos) em uma única figura.
Com relação ao primeiro evento, a advertência de Jesus é que todos fujam, não voltem para buscar alguma coisa da casa. Será um
tempo difícil para as grávidas e para as que estiverem amamentando.
Será difícil se a fuga tiver que ser no sábado ou no inverno. Os pormenores parecem indicar que esta é uma referência à destruição de Jerusalém, a qual aconteceu no ano 70 A.D., quando Jerusalém foi destruída
pelo exército Romano comandado pelo imperador Tito.
Há também uma referência à grande tribulação que, segundo o
próprio Jesus, será de grau e intensidade únicos, como jamais existiu,
nem jamais existirá. Entretanto, “por causa dos escolhidos, tais dias
serão abreviados” (v. 22). Há alguém no controle destes eventos e
que se preocupa com os eleitos. A NTLH traduz “Deus diminuiu esse
tempo de sofrimento”. A tradução assume que é Deus que está no
controle destes eventos e age em favor dos eleitos. Há aqui uma indicação também de que a perseguição não se limita a Jerusalém ou aos
judeus, mas é direcionada contra toda a igreja, uma vez que Jesus diz
que aqueles dias serão abreviados “por causa dos eleitos”.
Também nesse tempo os falsos cristos e falsos profetas surgirão
fazendo milagres e maravilhas, com o objetivo de enganar, se possí-
150
ANTEPE NÚLTIMO DOMINGO DO ANO ECLESIÁSTICO
vel, os próprios eleitos. Os tempos serão difíceis, de grande tribulação,
e as pessoas procurarão, ou quererão saídas para seus sofrimentos,
o que fará florescer o ensino dos falsos cristos, especialmente se houver grandes sinais e milagres. A pergunta que segue é: “Como distinguir os falsos cristos e profetas do verdadeiro Cristo?”
Jesus não deixa seus discípulos na ignorância, mas prediz e indica
sinais, os quais não foram dados para o cálculo do tempo exato da
consumação dos séculos, mas indicam que esse tempo, de fato, chegará. Quando surgirem falsos profetas, não acreditem neles, diz Jesus, pois a vinda do Filho do Homem será como o relâmpago que sai do
oriente e se mostra no ocidente. A vinda do Filho do Homem será visível a todos. Não será secreta, mas será acompanhada de sinais evidentes para todos, assim como também os abutres avistam o cadáver.
É preciso ter sempre em mente que aquele que vem é o Salvador
Jesus. Mais uma vez lembramos o que o profeta Daniel diz: “naquele
tempo, será salvo o teu povo, todo aquele que for achado inscrito no
livro” (Dn12.1). A igreja vive, portanto, os últimos tempos e vivencia a
presença de falsos cristos e falsos profetas, contudo, não fica sem o
testemunho do Evangelho do reino, o qual, segundo o próprio Cristo,
será pregado por todo o mundo antes que venha o fim (Mt 24.14). O
perdão anunciado no Evangelho e pregado pela Igreja aos pecadores
hoje antecipa o que acontecerá no juízo final, quando o Filho do Homem vem com poder e glória, trazendo a redenção final. Assim é, portanto, significativo perceber que este Filho do Homem que virá com
poder e glória é aquele que foi morto na cruz e ressuscitado dos mortos em favor dos pecadores. Por isso, uma vez que Cristo conquistou a
vitória decisiva sobre Satanás, pecado e morte no passado, os eventos escatológicos do futuro são o cumprimento final daquilo que já foi
colocado em movimento pelo evento central da história da humanidade, ou seja, a obra de Cristo na cruz e sua ressurreição (CTCR,
September 1989, p. 20).
Assim, Jesus profetiza a destruição de Jerusalém, mas também fala
de uma tribulação maior e final e do aparecimento de falsos cristos e
falsos profetas, antes da vinda gloriosa do Filho do Homem, o qual
aparecerá como um relâmpago. Quanto à tribulação, esta será abreviada por causa dos eleitos. Já o Filho do Homem que vem é o mesmo
que conquistou perdão dos pecados na cruz pelos pecadores e, portanto, os cristãos não precisam se sentir aterrorizados com o fato de
viverem o fim dos tempos, nem cruzar os braços à espera da vinda de
Jesus. Pelo contrário, por causa do perdão de Cristo, eles podem assumir suas vocações, certos de que estão servindo a Deus, quando
trabalham em prol do próximo. O perdão anunciado pelo Evangelho a
151
IGREJA LUTERANA
eles será o mesmo declarado pelo Filho do Homem naquele dia. A diferença será que Ele estará presente então de forma gloriosa e com
poder e fará com que o “ainda não” se torne um “já” eterno.
SUGESTÃO DE TEMA E PARTES
A vinda do Filho do Homem
1. Antes da vinda haverá grande tribulação
2. Falsos cristos e falsos profetas
3. Correr para onde?
Entretanto,
4. A tribulação será abreviada, por causa dos eleitos
5. A vinda será como o relâmpago, visível do oriente ao ocidente.
6. Jesus vem buscar os seus.
BIBLIOGRAFIA
The End Times: A study on Eschatology and millenialism, Commission
on Theology and Church Relation of the LCMS, September 1989.
Clécio L. Schadech
Angra do Heroísmo, Açores – Portugal
152
PENÚLTIMO DOMINGO
DO ANO ECLESIÁSTICO
Salmo 105.1-7; Jeremias 25.30-32; 1
Tessalonicenses 1.3-10; Mateus 25.31-46
A PERÍCOPE
1. Intróito: Sl 105.1-7
1.1. Ênfases
1.1.1. Louvor: “Rendei graças” (v. 1), “Invocai o seu nome” (v. 1),
“Cantai-lhe, cantai-lhe salmos” (v. 2), “Gloriai-vos no seu santo nome”
(v. 3).
1.1.2. Testemunho: “fazei conhecidos, entre os povos, os seus feitos” (v. 1), “narrai todas as sua maravilhas” (v. 2).
1.1.3. Meditação: “Buscai o Senhor e o seu poder” (v. 4), “Lembraivos das maravilhas que fez” (v. 5).
1.2. Aplicação: O Sl do Penúltimo Domingo do Ano Litúrgico descreve
a rotina dos filhos de Deus enquanto esperam o grande dia do encontro com seu Senhor: eles meditam na sua palavra, louvam o seu Deus
e testemunham a sua fé, anunciando os grandes feitos de Deus.
2. Antigo Testamento: Jr 25.30-32
2.1. Ênfases
2.1.1. Escatologia: “O Senhor lá do alto rugirá”, “rugirá fortemente
contra a sua malhada”, “fará ouvir a sua voz”, “com brados contra
todos os moradores da terra”, “como o eia! dos que pisam as uvas”.
(v. 30). “Chegará o estrondo”, “o Senhor tem contenda contra as nações”, “entrará em juízo contra toda carne”, “os perversos entregará à
espada” (v 31). “Grande tormenta se levanta” (v.32).
2.1.2. Antropologia: “Eis que o mal passa de nação para nação” (v.
32), “toda a carne” (v. 31).
2.1.3. Universalidade dos planos de Deus: “contra todos os moradores da terra” (v. 30), “até à extremidade da terra”, “tem contenda com
as nações”, “entrará em juízo contra toda a carne” (v. 31), “confins da
terra” (v. 32).
2.2. Aplicação: As perícopes dos últimos domingos do Ano da Igreja
enfatizam os tempos do fim, a volta de Cristo, o juízo final, a condenação dos ímpios e a salvação dos cristãos. E isto fica muito claro em
Jr.25.30-32. O profeta anuncia o juízo que sobrevirá a todas as nações.
153
IGREJA LUTERANA
3. Epístola: 1 Ts 1.3-10
3.1. Ênfases
31.1. Vida santificada: “operosidade da vossa fé”, “abnegação do
vosso amor”, “firmeza da vossa esperança” (v. 3). “Vos tornastes imitadores nossos e do Senhor (v. 6), “vos tornastes o modelo para todos os crentes” (v. 7), “de vós repercutiu a palavra” , “se divulgou a
vossa fé” (v . 8). “que repercussão teve”, “deixando os ídolos”, “para
servirdes o Deus vivo e verdadeiro” (v. 9).
31.2. Escatologia: “da firmeza da vossa esperança em nosso Senhor Jesus Cristo” (v.3). “para aguardardes dos céus o seu Filho”.
3.2. Aplicação: Os cristãos de Tessalônica, sem dúvida nenhuma,
eram os que mais ardentemente aguardavam a segunda vinda de Cristo. Tinham tanta pressa quanto à vinda de Cristo, que foi preciso o
apóstolo Paulo escrever e lhes fazer vários esclarecimentos a respeito
deste assunto. Eles chegavam até a ser um pouco ingênuos quanto à
volta de Cristo, mas a aguardavam ardentemente. E esta perspectiva
escatológica contribuía para que vivessem tão intensamente a sua fé,
levando o apóstolo Paulo a agradecer a Deus por isso e a elogiá-los
pelas suas vidas santificadas. Em seu livro “Ética do Novo Testamento”, F. Wendland afirma que se o cristão perder a perspectiva
escatológica, ele também se perde na ética cristã. Os cristãos de
Tessalônica são a prova de que o cristão que vive na expectativa da
volta eminente de Cristo investe na sua santificação.
4. Evangelho: Mt 25.31-46
4.1. Ênfases
41.1. Escatologia: “Quando vier o Filho do Homem” (v. 31), “separa
uns dos outros” (v.32), “vinde, benditos” (v. 34), “apartai-vos de mim,
malditos” (v. 41), “irão este para o castigo eterno”, “porém os justos,
para a vida eterna” (v 46).
41.2. Universalidade dos planos de Deus: “todas as nações serão
reunidas em sua presença” (v. 32).
41.3. Critérios para o julgamento: “me destes de comer”, “me destes
de beber”, “me hospedastes” (v. 35), “me vestistes”, “me visitastes”,
“fostes ver-me” (v. 36). Ou não ...
41.4. Destinos: “as ovelhas à sua direita”, “os cabritos, à sua esquerda” (v. 33). “Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita:
Vinde... Entrai na posse do reino” (v.34), “porém os justos, para a vida
eterna” (v. 46). “aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de
mim... para o fogo eterno”, “e irão estes para o castigo eterno” (v.46).
4.2. Aplicação: Este é um dos textos que relata o juízo final com
uma riqueza muito grande de detalhes. Aparentemente ele contradiz
154
PENÚLTIMO DOMINGO DO ANO ECLESIÁSTICO
outros textos que afirmam a salvação pela fé, pois ele mostra que as
pessoas serão julgadas pelas suas obras. No entanto, se observarmos o contexto amplo das Escrituras Sagradas, veremos que não há
contradição neste texto. É preciso levar em consideração que o juízo
final será um ato público, no qual serão comprovadas tanto a salvação
dos crentes quanto a condenação dos ímpios. E por se tratar de um
ato público, as evidências terão de ser concretas e não abstratas. Terão de ser objetivas e não subjetivas. Por isso Jesus estará mostrando os frutos para comprovar a fé dos salvos e, por outro lado, estará
mostrando a ausência dos frutos para comprovar a falta de fé dos
condenados.
PROPOSTA HOMILÉTICA
O cristão espera ardentemente pela vinda de Cristo (Como?)
1. Meditando diariamente na sua santa palavra (Sl 105.4,5)
“Buscai o Senhor e o seu poder” (v. 4), “Lembrai-vos das maravilhas que fez” (v. 5).
2. Louvando seu Senhor e Salvador (Sl 105.1-3)
“Rendei graças” (v. 1), “Invocai o seu nome” (v. 1), “Cantai-lhe,
cantai-lhe salmos” (v. 2), “Gloriai-vos no seu santo nome” (v. 3).
3. Testemunhando sua fé (Sl 105. 1,2; 1Ts 1.3,6,7,8 e 9; Mt 25.35,
36)
- “fazei conhecidos, entre os povos, os seus feitos” (v. 1), “narrai
todas as suas maravilhas” (v. 2).
- “operosidade da vossa fé”, “abnegação do vosso amor”, “firmeza
da vossa esperança” (v. 3). “Vos tornastes imitadores nossos e do
Senhor (v. 6), “vos tornastes o modelo para todos os crentes” (v. 7),
“de vós repercutiu a palavra” , “se divulgou a vossa fé” (v . 8). “que
repercussão teve”, “deixando os ídolos”, “para servirdes o Deus vivo
e verdadeiro” (v. 9).
- “me destes de comer”, “me destes de beber”, “me hospedastes”
(v. 35), “me vestistes”, “me visitastes”, “fostes ver-me” (v. 36).
Geraldo Walmir Schüler
Cacoal, RO
155
IGREJA LUTERANA
ÚLTIMO DOMINGO DO ANO
ECLESIÁSTICO
Mateus 25.31-46
CONTEXTO
a) Histórico: Considerem-se dois aspectos: a época (situação) e o
tempo. O nosso está 1900 anos além do dos apóstolos, que, considerando ambos, diziam com razão: “O fim está próximo”(1 Pe 4.17; 1 Co
10,11). Os sinais (situação) que identificaram para afirmar isso, estão
hoje tanto ou mais presentes.
b) Litúrgico: O Ano da Igreja tem dois tempos: o de Cristo e o da
Igreja. O Último Domingo liga ambos. Por isso é denominado: Domingo
do Cumprimento (“Fulfillment”). A segunda opção de cada leitura aponta
para o coroamento da primeira parte do ano. Estas destacam Cristo, o
Rei. A primeira opção, com ênfase escatológica, como nos quatro domingos anteriores, aponta o coroamento do “tempo” da Igreja com o
Juízo Final e a eternidade.
Ao escolher o texto de Mateus 25.31-46 não privilegiamos só a
segunda opção, pois este texto reúne as duas ênfases: a do Rei (vv.
31,34,40,41) e a do Juízo e da eternidade (vv.32,34,41,46). Na verdade, chamamos a atenção para o critério, apontado por Jesus, como
decisivo para o Juízo: a atitude com o próximo. Pois nela se evidencia,
ou não, a fé e o amor. Amor, pois são atos feitos às pessoas por reconhecer nelas “um destes meus (de Jesus) pequeninos irmãos”. Fé,
porque os atos são feitos não apenas aos homens, mas por confiança
e obediência a Jesus (“a mim o fizestes”).
c) Bíblico: O texto é a conclusão do último grande discurso-sermão
de Jesus, relatado por Mateus (cap. 24,25). Seu contexto carrega admoestações e exortações à sabedoria (24.4,5,11,23, 24; 25.1-10), à
confiança (24.6-8,13,22,26,31; 25.14), fidelidade e perseverança
(24.9,11,13,22; 25.16,17, 20-23), à prática do amor e da misericórdia
(24.10,12,45-51) e à vigilância (24.33,39,42-44; 25.13).
Jesus diz aos discípulos que sua esperança não está em conhecer
os sinais do fim e encontrar “uma via de escape” ou “rota de fuga”
(24.15-18) da realidade, mas em “estar aí” para cumprir deveres dentro de sua realidade. Assim, através da ação da palavra de Deus neles
e através deles, Deus estará, permanentemente na história, sinalizando a existência do seu reino (24.14). A ação evangélica da igreja e
156
ÚLTIMO DOMINGO DO ANO ECLESIÁSTICO
sua reação à agonia e ao caos do mundo são os sinais permanentes
de Deus. Jesus diz assim a seus discípulos, em todos os tempos, que
tipo de pessoas eles devem ser, quais as suas atitudes e comportamento (2 Pe 3.11-15): “... santo procedimento e piedade ... empenho
pela paz, sem mácula e irrepreensíveis” (ARA).
Tudo isso forma o contexto, o pano de fundo, do texto e do tema e
partes propostos neste estudo. Destaque-se a terceira parábola
(25.14-30), que mostra como a “recompensa” (25.21,23) não é pagamento de salário, mas dom da graça, presente gratuito, acima de qualquer mérito pessoal. A vida eterna e todos os dons de Cristo, cada um
deles é sempre e totalmente algo imerecido. Só acontecem na vida do
cristão por que é nela que é revelado o seu maravilhoso e miraculoso
(evangelho). Isto também mostra (lei) que o “não ter” (25.24-26, 2830) é a suprema culpa. Ter um dom, talento, e não usá-lo, é lavrar a
própria sentença de morte!
O TEXTO
“Reunir” (25.32; 24.31), “separar” (25.32; 24.40,41) é um jogo de
palavras. Mostram que compartilhamos a “humanidade” com todos;
mas somos o povo separado para Deus (1 Pe 2.9,10). A forma radical
desta realidade é mostrada no Juízo com o “venham” (25.34) e o “afastem-se” (25.41).
Observe-se que Jesus não cita “obras ostensivas”: sacrifício extremos, construções ou doações milionárias. Também não “pecados clássicos”: matar, roubar, imoralidade, mentira. O que conta é “o não ter feito”
atos de amor a uma destas pessoas mais humildes. É no dia-a-dia, em
atos de amor comuns e cotidianos que a fé é exercitada. Ou então é
manifesta a falta dela pela omissão da ajuda e amparo ao carente.
Pela fé em Jesus, que o Espírito Santo planta em nosso coração, o
Senhor cria um vínculo pessoal entre ele e o cristão, que nele confia
como o seu Salvador. É o “foi a mim que fizeram”. O resultado da fé é
um outro vínculo pessoal. Mas esse agora é um vínculo de amor entre
o cristão e o seu próximo. É o “quando vocês fizeram isso ao mais
humilde dos meus irmãos”.
Que a recompensa é dada pela graça fica evidente na afirmação de
que o reino (já) está preparado para eles desde a fundação do mundo. Pelo fato de que eles são abençoados por Deus (Mt 5.3-11) para
poderem servir a Jesus. E porque os próprios discípulos não contavam
que seus serviços seriam lembrados. Não por último porque o inferno
foi preparado para o diabo e seus anjos; os que para lá irão, só podem
culpar-se a si mesmos por terem seguido o príncipe das trevas.
157
IGREJA LUTERANA
PROPOSTA HOMILÉTICA
Quando o Filho do Homem voltar
O mundo incrédulo se escandaliza com a verdade de que todo homem é pecador e, mais, de que ele está sujeito ao Juízo. E ainda que
aceite que cada um será julgado por suas obras e omissões, considera
loucura que só tenham valor as obras feitas na e pela fé em Jesus. Mas
este fato também causa alegre surpresa e feliz espanto às ovelhas de
Jesus.
1. Ele será o Juiz, que julgará as nações (25.32)
a) As reunirá na sua presença gloriosa (Fp 2.10,11; Mt 24.30)
b) Separará, como o Pastor, as pessoas umas das outras (Jo 10.2;
Mt 24.31)
2. Ele será o critério do Juízo (Mt 25.40c,45c)
a) Quem espalha, é lançado fora (Mt 3.12; 12.30; 25.24,26,30,41)
b) Quem com ele ajunta, é recolhido (Mt 3.12; 25.21b,23b,34)
3. Ele será “a recompensa” dos que o serviram (25.34b)
a) Ele reconhecerá o serviço dos discípulos (Mt 10.40-42;
25.35,36)
b) Ele recompensará, por graça, o serviço deles (25.21,23; 25.34;
5.3-12)
Breno C. Thomé
Estância Velha, RS
158
AÇÃO DE GRAÇAS
Salmo 65; Deuteronômio 8.1-10;
1 Timóteo 2.1-4; Lucas 17.11-19
Dia de Ação de Graças é um dia especial
BREVE HISTÓRICO
Cada ano, o presidente dos Estados Unidos da América convoca
os cidadãos dos 50 Estados da União para agradecerem a Deus pelas
bênçãos recebidas no último ano. Cristãos respondem à proclamação
do Presidente alegremente e tributam louvor ao Deus Triúno pelas
bênçãos recebidas de muitas formas.
Nas congregações luteranas tem sido costume observar a Festa da
Colheita para agradecer ao Deus todo-poderoso pelos frutos da terra
para a subsistência da vida humana. Fazem isto conforme os moldes
da Festa da Colheita, ordenada por Deus ao povo de Israel (cf.: Êxodo
34.22; Levíticos 23.16 e Atos 2.1. A Festa da Colheita, celebrada por
ocasião de Pentecostes, 50 dias após a Páscoa, é a segunda maior
festa das três grandes festas anuais do povo de Israel, e a primeira
das festas agrárias: Festa das Semanas ou Dia das Primícias. Neste
dia, celebravam também a entrega da lei a Moisés). As diferentes Ordens Litúrgicas mostram como as congregações européias celebravam
sua Festa da Colheita, no dia de São Miguel, dia 29 de setembro. (cf.:
as Agendas Litúrgicas de Calenberg, 1542, Osnabrueck, 1543,
Hilderheim, 1544, Prússia, 1558). Os imigrantes europeus trouxeram
esse costume para a América. Em 13/12/1621, o Governador Brandford
conclamou o povo para agradecer, após a 1ª colheita. Em 26/11/1789,
o Presidente George Washington ordenou pela primeira vez um culto
público de agradecimento. Já em 1858, vinte e cinco governadores ordenaram o dia anual de Ação de Graças. Em 1863, o presidente Lincoln
ordenou o dia Nacional de Ação de Graças. Desde lá os Presidentes
dos Estados Unidos conclamam o povo para a Ação de Graças na quinta-feira, da última semana cheia de novembro.
Em 1909, Joaquim Nabuco, embaixador do Brasil em Washington,
propôs que se instituísse um Dia Internacional de Ação de Graças, destinado ao solene reconhecimento da providência divina entre os homens e nações, mesmo que vivam nas mais difíceis circunstâncias. Hoje,
mais ou menos 150 nações, de diferentes raças, credos e línguas, celebram a benevolência do Criador nesta data.
159
IGREJA LUTERANA
No Brasil, o dia foi instituído pelo Presidente Gaspar Dutra, por lei
do Congresso Nacional de número 781, de 17/08/1949: Que se celebre em todo o território nacional um dia de Ação de Graças em fins do
mês de novembro. O governo Castelo Branco fixou a data para a quarta quinta-feira de novembro. Durante o regime militar até o governo
Geisel, a Igreja Católica eliminou a data do seu calendário litúrgico. Em
conseqüência disso, o grupo Bradesco, presidido pelo empresário de
credo evangélico, o sr. Amadeu Aguiar, assumiu a data, dando-lhe sentido ecumênico e repercussão Nacional, na “Cidade de Deus”, em
Osasco. No Brasil, a data foi também fixada para a quinta-feira na última semana cheia de novembro.
Agradecer a Deus está de acordo com a vontade de Deus expressa no Antigo e no Novo Testamentos
É próprio dos cristãos agradecerem e louvarem a Deus pelas muitas bênçãos materiais e espirituais. Abrindo a Bíblia, vemos que cada
Testamento tem seu vocabulário próprio. No hebraico, as palavras
adah e yada são as palavras mais usadas e se encontram mais de 60
vezes nos diversos livros do Antigo Testamento. Há diversas exortações ao louvor em 26 Salmos. A palavra para “dar graças” é todah.
Um dos sacrifícios ordenados por Deus foi o sacrifício de agradecimento (Levítico 2).
O Novo Testamento usa um número de diferentes palavras para
expressar o “dar graças”, como, por exemplo: eucharisteo, dar graças,
ekshomolgeomai, dar glórias. Além disto, temos muitos exemplos de
Jesus e Paulo dando graças a Deus em diferentes ocasiões. Há mais
de 100 passagens que expressam a apreciação das bênçãos de Deus.
OS TEXTOS DO DIA
Salmo 65: Um Salmo de louvor de Davi.
Vv. 1-4: Deus se alegra quando sua grei (igreja), que ele chama,
ilumina e congrega se reúne e, firmada na graça de Cristo, se entrega
confiante às mãos de Deus com louvor e agradecimentos.
Vv. 5-8: Deus lhe respondeu com feitos tremendos (tanto ao castigar os inimigos, como ao salvar os seus pelo sacrifício de Cristo). E os
que o conhecem exultam de júbilo.
Vv. 9-13: Ele mantém no universo verão e inverno, concede por sua
bênção o alimento. Paulo Gerhard o resume no seu hino: Exalto-te em
meu coração. (HL 224)
160
AÇÃO DE GRAÇAS
Deuteronômio 8.1-10: O concerto de Deus é um dom, ao qual queremos responder:
V. 1: Lembrando cuidadosamente suas leis. Deus formou o povo de
Israel, o abençoou e o libertou. Maior ainda é a libertação por Cristo.
V. 2: Importa recordar sempre estas bênçãos. Também nos momentos em que nos humilha por nos termos desviado, para nos reerguer
por sua graça.
V. 7: Deus prometeu ao povo uma terra abençoada; a nós o seu
amparo na peregrinação e a vida eterna.
1 Timóteo 2.1-8: Uma exortação à oração
Falar com Deus é um privilégio dos filhos de Deus. Quando nos
dirigimos a Deus em oração, iniciamos com o louvor ao seu poder, sua
bondade e sua graça. A oração dos filhos (justos) pode mais do que
qualquer outro poder, mas a oração não é um meio da graça. Deus nos
ordenou orar e prometeu atender. Humildemente nós nos colocamos
em suas mãos e dizemos: Seja feita a tua vontade. As formas são
muitas: súplicas, intercessões, ações de graça. Oramos confiantes em
nome de nosso Mediador, Jesus Cristo.
Lucas 17.11-19: Gratidão e ingratidão.
Estamos bem conscientes do que Deus nos fez em Jesus Cristo, ao
nos escolher desde a eternidade, ao nos chamar e iluminar no tempo,
de nos conservar na fé? Somos gratos por isso, adorando e confessando quantas bênçãos materiais e espirituais estamos desfrutando
diariamente? De todo o coração renderei graças ao Senhor, na companhia
dos justos e na assembléia. Grandes são as obras do Senhor, consideradas por todos os que nele se comprazem (Sl 111.1,2).
SERMÃO
Para introdução pode ser usada a história do dia. Usando a epístola podemos destacar a oração, tanto o agradecimento como a intercessão. Se usarmos o evangelho, podemos explorar bem a história e
aplicá-la, na medida em que a expomos à nossa realidade.
Horst R. Kuchenbecker
São Leopoldo, RS
161
IGREJA LUTERANA
PRIMEIRO DOMINGO DE ADVENTO
Salmo 98; Isaías 63.16b-17; 1 Coríntios 1.3-9;
Marcos 13.33-37
SALMO 98
Um salmo de louvor a Deus por Ele ter memória. Toda expressão
de júbilo está centrada no fato de que Deus “fez notória sua salvação”
e “lembrou de sua misericórdia e de sua fidelidade”.
ISAÍAS 63.16b-17
Também o texto do AT faz referência à lembrança. Desde a antiguidade o Senhor é o nosso Redentor. E o profeta está pedindo por uma
volta ao passado. No sentido de pedir auxílio a Deus pela certeza de
que os tempos em que tudo andava bem podem voltar a acontecer no
presente.
1 CORÍNTIOS 1.3-9
A certeza da “confirmação até o fim” está baseada no fato histórico
da salvação por Cristo. “Só quem tem passado tem futuro”, diz uma
frase. Em termos cristãos, isto é essencial. Quem recebeu, pelo Espírito Santo, a fé no ato histórico da redenção de Cristo, obtida na morte
e ressurreição, sabe que pode aguardar com confiança e certeza a
revelação de nosso Senhor Jesus Cristo. Fatos do passado que continuam com efeito no presente.
Ou seja, os textos do domingo buscam não apenas o fato histórico
em si, mas os atos de Deus que trazem vida, perdão, reconstrução no
presente. E são estes fatos que apontam para o futuro promissor, com
a vinda de Cristo, a vida eterna, que o advento celebra, relembra e
promete.
MARCOS 13.33-37
Na parábola proposta por Jesus, o passado tem um papel importante. Por que vigiar? Porque sabemos que, em algum momento, alguém avisou que voltaria e que gostaria de encontrar-nos alertas.
Sem o conhecimento desta notícia, o vigiar torna-se supérfluo, e até
questionado: “esperar pelo quê?”
162
PRIMEIRO DOMINGO DE ADVENTO
Vivemos uma geração que, tendo já desacreditado do futuro,
em função de tantas ameaças à humanidade, também está se desligando do passado. Isto porque a conexão está somente com o presente, e a internet é um paradigma disso. Navegar pela web é ‘esticar
o presente’, fazer o agora durar o tempo que se desejar, clicando no
que se desejar, para satisfazer necessidades das mais diversas. Todas imediatas.
O advento nos relembra dos atos e das promessas de Deus, que
são fundamentais para que entendamos a necessidade de vigiar, esperar atentamente, ter pela fé convicção do novo mundo, o novo céu e
nova terra, que Cristo irá nos dar. O que nos faz olhar para além de um
mero presente à deriva e sem sentido.
PROPOSTA HOMILÉTICA
Levar os ouvintes a, firmados nos feitos memoráveis de Deus, olharem com expectativa e alegria para o futuro, especialmente o futuro
celeste.
Moléstia
O presente nos prende de tal forma que nos desligamos do passado e desesperamos do futuro.
Meio
O principal ato da História humana, a obra de Cristo, pela fé nos
fortalece a dirigirmos nosso carro utilizando o espelho retrovisor para
jamais nos esquecermos de onde viemos, mas com os olhos sempre
fitos na estrada à nossa frente, dirigindo atentamente, esperando a
chegada da cidade eterna.
Tema: Vivendo de passado com a esperança no futuro.
ESBOÇO
INTRODUÇÃO
“Quem vive de passado é museu”. Esta frase precisa ser corrigida.
Pois todos vivemos de passado. “Quem não tem passado não tem
futuro”. O que não podemos é viver no passado.
Ilustração: Espelho retrovisor e sua importância. Sem ele, teríamos que dirigir olhando pra trás e isto representa um grande risco Ele
nos auxilia a lembrarmos de onde viemos. Mas não podemos dirigir
somente olhando para ele, o que é igualmente perigoso.
163
IGREJA LUTERANA
I – O PERIGO DO PRESENTE
Nossa geração vive muito no presente.
Ilustração: A explosão da internet e da busca por prazeres imediatos (álcool, futebol, jogos, pornografia...) é um sinal claro disto.
Sem memória, sem lembrar das promessas do passado, perde a
importância do esperar pelo futuro.
II – TER MEMÓRIA NOS DÁ FUTURO
Deus, com seus atos, não nos deixa esquecer o que realmente
importa. Tendo, pela fé, na memória o que nos dá a identidade de
filhos, nos reforça a certeza do Advento. O grande ato que jamais pode
sair da memória, do coração, Cristo consumou na cruz e no túmulo
vazio.
Na Ceia, um memorial das obras de Deus (Lutero utilizando o Salmo 111.4), somos fortalecidos no perdão para o passado e na esperança para o futuro.
III - CONCLUSÃO
Quem vive no passado, acaba ficando sem presente. Mas nós, filhos de Deus, vivemos de passado, da obra salvadora de Cristo, da
filiação a Deus em fé, vivemos na expectativa do futuro brilhante. Podemos, portanto, continuar no presente dirigindo com segurança, em
Suas mãos. Pois Cristo nos colocou na estrada certa. Que leva aos
céus.
Lucas André Albrecht
Canoas, RS
164
SEGUNDO DOMINGO DE ADVENTO
Salmo 19
ASSUNTOS DAS LEITURAS BÍBLICAS DO DIA
Sl 19: Toda a criação anuncia a grandeza de seu Criador. A Palavra
deste Deus Criador nos dá forças e nova vida. Is 40.1-11: O Senhor
Deus pede que o seu povo seja consolado. O povo precisa estar preparado para a vinda do Senhor. A palavra de Deus dura para sempre.
O Senhor cuidará do seu povo como um pastor cuida de suas ovelhas.
2Pe 3.8-14: O Senhor faz o que promete. Deus não quer que sejamos
destruídos, mas quer que nos arrependamos de nossos pecados. O
Dia do Senhor virá, mas não sabemos quando isto acontecerá. Mc 1.18: Conforme a promessa do Antigo Testamento, João Batista aparece
no deserto da Judéia pregando, batizando e anunciando a vinda do
Messias.
RELAÇÃO ENTRE AS LEITURAS E O PERÍODO LITÚRGICO
O consolo da vinda de Cristo, anunciado desde o Antigo Testamento, nos leva a louvar o nosso Criador e a confiar nas suas promessas.
O período de Advento, que destaca a preparação cristã e a esperança
que aponta para Cristo, vem reforçar a certeza do cumprimento das
promessas de Deus, que lemos na sua Palavra consoladora.
TÍTULOS DO SALMO 19
Almeida Revista e Atualizada: A excelência da criação e da palavra de Deus – “Ao mestre de canto. Salmo de Davi”. Almeida Revista e
Corrigida: A excelência da criação e suas leis, assim como da palavra
de Deus – “Salmo de Davi para o cantor-mor”. Nova Tradução na Linguagem de Hoje: A glória de Deus revelada no céu e na lei – “Salmo
de Davi. Ao regente do coro”. Concordia Self-Study Bible – NVI: “For
the director of music. A psalm of David.”
DOUTRINAS RELACIONADAS COM O SALMO 19
De acordo com a primeira parte do Salmo 19 (v.1-6), as obras de
Deus testemunham a respeito do próprio Criador. A “Dogmática Cristã”
(p.152-155), e o “Sumário da Doutrina Cristã” (p.26-28) tratam deste
165
IGREJA LUTERANA
assunto, falando do conhecimento natural e revelado de Deus. Esta
parte do Salmo também está relacionada com os seguintes temas abordados pelo “Catecismo Menor” (p.36-38, 71-81): “Primeiro Mandamento”
e “O Primeiro Artigo – Da Criação”.
De acordo com a segunda parte do Salmo 19 (v.7-13), “a lei do
Senhor” nos fortalece. Para compreender esta parte, é necessário saber em que sentido está sendo usado o termo “lei”, ou seja, no sentido geral: palavra de Deus, onde é revelado o Evangelho. A “Dogmática
Cristã” (p.443-444) e o “Sumário da Doutrina Cristã” (p.144-146) também tratam deste assunto, na explicação sobre lei e evangelho. Observação: as páginas da “Dogmática Cristã” e do “Sumário da Doutrina Cristã”, citadas na primeira parte do Salmo 19, também são fundamentais para se compreender esta segunda parte, relacionada com a
questão da revelação de Deus através da Bíblia.
E, ainda, a conclusão do Salmo 19 (v.14), uma petição para que
nossos pensamentos e palavras sejam aceitáveis a Deus, é citada no
“Catecismo Menor” (p.117), quando se trata de “O Pai Nosso – Da
oração em geral”, na questão “Que é a oração?”.
SUGESTÕES DE DIVISÃO DO SALMO 19
O Salmo 19 pode ser dividido em três partes: a) v.1-6: a criação
canta ao Criador; b) v.7-13: características e resultados da Palavra de
Deus; c) v.14: oração final. Outra divisão possível: a) v.1-6: a criação
canta ao Criador; b) v.7-10: características da Palavra de Deus; c)
v.11-14: atitude humana frente à Palavra de Deus.
COMENTÁRIOS E REFLEXÕES SOBRE O SALMO 19
Vv. 1-6: Como conhecer a Deus: Sabemos que existe um Ser Supremo através da natureza, pois esta anuncia a glória de Deus. Também sabemos que precisamos prestar contas a um Ser Superior através da nossa consciência. Mas conhecemos o Salvador Jesus apenas
através do testemunho do Evangelho que temos na Bíblia.
O texto (vv.1-6) trata da revelação de Deus através da natureza. A
natureza testemunha a respeito do seu próprio Criador numa linguagem que todos podem compreender. Até mesmo o silêncio do céu proclama a glória de Deus. Comparação: Assim como a luz do Sol é necessária para o mundo, a luz de Deus é necessária para a nossa vida
verdadeira. Temos esta luz na Palavra de Deus: Jesus.
Vv. 7-9: Lei de Deus e Justo Juiz: A perfeita lei de Deus (a Palavra
de Deus) nos dá forças, os confiáveis conselhos de Deus dão sabedo-
166
SEGUNDO DOMINGO DE ADVENTO
ria às pessoas, seus ensinos certos alegram o coração, seus
ensinamentos claros iluminam nossas mentes. É bom temer ao Senhor, e sua misericórdia dura para sempre. O julgamento de Deus é
justo e verdadeiro.
O texto (vv.7-9) também trata da revelação de Deus através da
sua Palavra. Enquanto a natureza anuncia o seu Criador, a Palavra
anuncia quem é, de fato, este Criador. No texto (vv.7-9), ainda temos
uma descrição de algumas características da Palavra de Deus. Neste
Salmo, entendemos que o termo “lei do Senhor” se refere a toda a
Palavra de Deus (Lei e Evangelho). Só assim explicamos que a “lei do
Senhor” pode nos restaurar e fortalecer. Pois a “Lei” de Deus no sentido estrito, apenas nos acusa e destrói. Mas o Evangelho, sim, renova
e transforma nossa vida completamente.
Vv. 10-11: Ensino e recompensa: Os ensinos de Deus são preciosos, puros e doces. Os ensinamentos de Deus nos concedem sabedoria e o servo obediente é recompensado.
As características apresentadas a respeito da Palavra de Deus (vv.79) nos mostram que esta é muito mais valiosa do que qualquer riqueza, mesmo o ouro, e muito mais agradável e afável do que o mel. Em
última análise, o real motivo de tanto valor dado à Palavra de Deus é o
fato de o Evangelho ser anunciado, nos revelando a obra de Cristo por
nós. Nem todos consideram a Palavra de Deus desta forma. Mas a
recompensa para aquele que ouve este Evangelho é muito mais valiosa que o ouro e muito melhor que o mel. Em Cristo, guardamos e obedecemos aos ensinamentos divinos e, por isso, recebemos a salvação.
Quem conhece o Criador, procura seguir os ensinamentos da sua Palavra e é abençoado por este Deus.
Vv. 12-13: Cometemos pecados consciente e inconscientemente:
Muitos dos nossos erros não conhecemos, vemos ou entendemos. O
Senhor nos purifica até mesmo dos erros que cometemos sem perceber. Também cometemos pecados consciente e intencionalmente. Que
Deus nos livre do domínio do pecado e sejamos pessoas direitas e
livres.
A Palavra de Deus também nos revela a respeito de nós mesmos. A
Lei de Deus nos convence do pecado, mas Deus nos livra de todos
através de Cristo, mesmo daqueles que cometemos sem perceber. A
Palavra de Deus nos concede a força necessária (v.7) para que o pecado não nos domine.
Vv. 14: Pecamos por pensamentos, palavras, ações e omissões:
Pedimos a Deus que nossos pensamentos e palavras agradem a ele.
Este Deus é a nossa rocha e o nosso defensor.
A conseqüência de conhecer o Criador e sua Palavra é louvar a
167
IGREJA LUTERANA
este Deus com o coração, com a mente e com as ações. O salmista
Davi ora a Deus (v.14) fazendo um pedido neste sentido.
PASSAGENS PARALELAS AO SALMO 19
V. 1: Sl 89.5; Is 40.22; Sl 50.6; Sl 148.3; Rm 1.19; Sl 4.2; Sl 8.1; Sl
97.6; Is 6.3; Gn 1.8; Sl 8.6; Sl 103.22. v.2: Sl 74.16. v.3: Sl 148.3. v.4:
Rm 10.18; Jó 36.29; Sl 104.2; Jz 5.31. v.5: Jl 2.16; Jó 36.29; 1Sm 17.4.
v.6: Dt 30.4; Sl 113.3; Ec 1.5. v.7: Sl 1.2; Sl 119.142; Tg 1.25; Sl 23.3;
Sl 93.5; Sl 111.7; Sl 119.138, 144; Dt 4.6; Sl 119.130. v.8: Sl 33.4; Sl
119.128; Sl 119.14; Ed 9.8; Sl 38.10. v.9: Sl 34.11; Sl 111.10; Pv 1.7;
Ec 12.13; Is 33.6; Sl 119.138. v.10: Jó 22.24; Sl 119.72; Pv 8.10; Sl
119.103; Ct 4.11; Ez 3.3; 1Sm 14.27. v.11: Pv 29.18. v.12: Sl 51.2; Sl
90.8; Ec 12.14. v.13: Nm 15.30; Sl 119.133; Gn 6.9; Sl 18.32. v.14: Sl
104.34; Sl 18.31; Êx 6.6; Jó 19.25.
SUGESTÃO DE USO HOMILÉTICO PARA O SALMO 19
Assunto: A Criação e a Palavra anunciam a respeito de Deus, o
Senhor.
Objetivo: Fé no Criador e vida de acordo com a vontade de Deus. A
palavra de Deus transforma nossas vidas, fazendo com que nossos
pensamentos e palavras sejam aceitáveis ao nosso próprio Criador e
unindo nossas vozes com a natureza num cântico de louvor.
Tema: Deus se revela a nós.
a) Através da natureza.
b) Através da sua Palavra.
Conclusão: Resultados da revelação de Deus na nossa vida de fé.
BIBLIOGRAFIA UTILIZADA
MUELLER, John Theodore. Dogmática Cristã; KOEHLER, Edward W.
A. Sumário da Doutrina Cristã; CATECISMO MENOR – Editora Concórdia;
O NOVO COMENTÁRIO DA BÍBLIA – Edições Vida Nova; KUNSTMANN,
Walter G. Seleção de Salmos; BÍBLIA DE ESTUDO NTLH – SBB; CONCORDIA
SELF-STUDY BIBLE – NIV – CPH.
Ezequiel Blum
Novo Hamburgo, RS
168
TERCEIRO DOMINGO DE ADVENTO
1Tessalonicenses 5.16-24
1 TESSALONICENSES 5.16-24 - CONTEXTO
A antiga colônia grega de Termas foi fundada pelo rei macedônio
Cassandro em 315 a.C. Cassandro modificou o nome da cidade para
Tessalônica em homenagem à sua esposa, de mesmo nome. Em 146
a.C., os romanos conquistaram a cidade e a promoveram para capital
da província da Macedônia. Tornou-se uma cidade próspera, pois tinha
um bom porto e por ela passava a Via Egnatia, que ligava Roma a
Bizâncio. Havia uma comunidade judaica florescente naquela região.
Paulo pregou na sinagoga de Tessalônica, mas não obteve muito sucesso (At 17.2). Seu trabalho teve mais aceitação entre os gregos (At
17.4). Dali surgiu uma comunidade cristã composta principalmente de
artífices e pequenos comerciantes.
1Ts é o primeiro escrito de Paulo no Novo Testamento (em ordem
cronológica). Na segunda viagem missionária passou por Tessalônica
(At 17.1) - provavelmente no verão do ano 50. Perseguido pelos judeus da cidade (At 17.5-12), dirigiu-se a Atenas e Corinto. Foi de
Corinto, provavelmente no inverno de 50-51, que escreveu 1Ts. Silas
e Timóteo estavam com o apóstolo quando escreveu esta carta (At
18.1-5).
TEXTO
1Ts 5.16-24 situa-se entre as breves exortações para a vida da
comunidade e uma saudação final de Paulo (5.12-28). Do trecho de
1Ts proposto para o Terceiro Domingo de Advento, destaco duas expressões:
Ficai sempre alegres (v.16). A alegria cristã é um tema constante
nas cartas paulinas. Na carta aos Filipenses somos convidados a nos
alegrarmos no Senhor (Fp 3.1; 4.4). Nas saudações finais de 2Co, o
apóstolo exorta a comunidade a alegrar-se (2Co 13.11). A alegria não
depende das circunstâncias, ela pode ser incessante, pois é dom do
Espírito Santo (Gl 5.22ss). Nem mesmo as perseguições ou dificuldades formam obstáculo para a verdadeira alegria, pois esta é superior
às coisas passageiras do mundo. Por isso, todo cristão tem direito e é
convidado a alegrar-se no Senhor.
169
IGREJA LUTERANA
Orai sem cessar (v.17). No ministério e nas cartas de Paulo, a oração é mais do que um assunto ou um tema teológico. A vida de oração
sustenta todo o agir missionário de Paulo. Por conseguinte, a oração
aparece naturalmente nos textos de Paulo. Destaco aqui algumas passagens das cartas paulinas: Rm 1.10; 12.12; Ef 6.18; Fl 1.3-4; 4.6; Cl
1.3; 4.2; 2Ts 1.11; 1Tm 2.8; 5.5; 2Tm 1.3. Quando Paulo exorta a comunidade a “orar sem cessar”, não está dizendo algo absolutamente
novo. Já nos evangelhos Jesus aconselha a orar sem cessar: “contoulhes ainda uma parábola para mostrar a necessidade de orar sempre,
sem jamais esmorecer” (Lc 18.1).
O propósito último da oração é que seja efetivada a vontade
amorosa de Deus em nossas vidas. A fé não deseja outra coisa senão que “seja feita a Tua vontade” como ensinou Jesus no Pai-nosso. Em outras palavras, que Deus vença toda oposição e efetive o
seu domínio irrestrito (Gustaf Aulén). Contudo, a tentação é entender o “seja feita a Tua vontade” como se tudo o que acontecesse
em nossa vida fosse vontade de Deus. Pelo contrário, a vida humana está repleta de situações que não expressam a vontade de Deus.
Quando oramos “seja feita a Tua vontade”, estamos pedindo entendimento a Deus para que captemos plenamente a vontade divina e
seus objetivos e para que essa vontade domine inteiramente em
nossas vidas.
No Catecismo Maior, Lutero exorta: “Peçamos sem cessar: ‘Querido
Pai, faça-se a tua vontade, não a vontade do diabo e de nossos inimigos, nem de nada daquilo que quer perseguir e suprimir a tua santa
palavra ou quer impedir o teu reino. E dá-nos que suportemos com
paciência e vençamos tudo o que tivermos de sofrer em razão disso,
para que nossa pobre carne não ceda nem apostate, por debilidade
ou indolência’” (CMa 67).
APLICAÇÃO
Alegria. Eis uma atitude que precisamos sempre de novo resgatar
em nossas vidas e comunidades cristãs. A poeira do cotidiano cobre
rapidamente a alegria que mora em nós. Por vezes esquecemos de
espanar a poeira da tristeza e deixar que a alegria brilhe plenamente
a partir de nós. Num mundo profundamente ferido, num tempo profundamente marcado por corações dilacerados urge que nós, cristãos,
sejamos sinal de alegria no mundo.
A alegria cristã não está fundamentada no poder, no sucesso, no
dinheiro ou na saúde. A mídia atrelou alegria ao consumismo e ao ter.
A mensagem subliminar da mídia é: “Só pode ser alegre quem conso-
170
TERCEIRO DOMINGO DE ADVENTO
me”. “Só pode ser alegre quem tem um corpo escultural.” “Só pode ser
alegre quem venceu profissionalmente.” “Só consegue ser alegre quem
tem dinheiro.” As pessoas internalizaram essa mensagem da mídia. As
próprias igrejas assumiram em muitos casos esse jeito perverso da
mídia. E o resultado nós vemos na expressão do rosto de muitas pessoas: pressa, abatimento, descontentamento. As pessoas vivem em
função de um amanhã. A alegria está geralmente atrelada a alguma
conquista que pode não vir. E quando conquistam já haverá outra coisa para conquistar e a alegria fica de novo como algo inatingível.
A fé cristã ensina que até mesmo doente e pobre posso ser alegre.
A alegria vem de fora, de Deus, e jorra de dentro do cristão como uma
fonte. Ela é um presente do Espírito que em nós habita. Ela não depende de mim ou de algum mérito espiritual da minha parte. É oferta,
é gratuidade. Ou acolhemos a alegria ou a rejeitamos, mas ela sempre
estará ali à nossa disposição.
Ora, se alegria já está à nossa disposição, precisamos entrar em
contato com esta alegria que já está dentro de nós. Um modo interessante de despertar a alegria é fazer com que as pessoas lembrem-se daquilo com que se alegravam quando eram crianças. Quando crianças nos contentávamos com qualquer brinquedo. Qualquer
coisa era motivo para alegria e encantamento. Hoje, saturados que
estamos pelo consumismo, nada mais nos desperta alegria. Reviver
a criança que está dentro de nós é um bom modo de despertar a
alegria escondida em nós. Outro caminho é despertar o encantamento pelas pequenas coisas: o sorriso de uma pessoa idosa, o sol
se pondo, a brisa que bate leve em nosso rosto, as crianças brincando no parque, o movimento das folhas secas levadas pelo vento,
etc.
Infelizmente uma comunidade cristã ou um cristão não pode ser
alegre por decreto. Mas até mesmo nossas falhas e limitações estão
guardadas na misericórdia divina. Na oração de Daniel pelo povo fica
bem expressa a verdade teológica de que até mesmo nossas falhas
estão guardadas na misericórdia divina (Dn 9.4-19).
Por fim, os textos bíblicos anunciam aquele que é a fonte de toda
alegria: Jesus, nosso Salvador. Deus, em sua misericórdia, enviou seu
Filho ao mundo. Deus se fez como um de nós. Deus se fez servo para
nos libertar de toda escravidão. Deus se fez fraco para nos dar a força
do seu Espírito. Ele, Jesus, é o motivo da nossa alegria. Alegria que
tomou conta do coração de Isaías e de Maria. Sim, Jesus é o motivo da
nossa alegria. Em Jesus, “Deus não responde ao porquê do sofrimento. Ele sofre junto. Deus não responde ao porquê da dor. Ele se faz
homem das dores. Já não estamos mais sós na nossa imensa solidão.
171
IGREJA LUTERANA
Ele está conosco. Não somos mais solitários. Mas solidários... O menino que nasce em Belém nos revela: Tudo possui um sentido secreto e
tão profundo que Deus mesmo quis assumi-lo. A estreiteza de nosso
mundo no qual Deus entrou tem uma saída abençoada e um desfecho
feliz” (Leonardo Boff).
Gelson Neri Bourckhardt
Concórdia, SC
172
QUARTO DOMINGO DE ADVENTO
Salmo 98; 2 Samuel 7.(1-7)8-11,16;
Romanos 16.25-27; Lucas 1.26-38
SALMO 98
Trata-se de um canto de vitória. O Natal está às portas e por isso
tem cheiro de vitória no ar. Às portas do Natal, o Salmo 98, que aparece também em outras datas do calendário litúrgico, é um convite para
a festa da vitória de Deus e de seu povo. O povo de Deus festeja o
fato de que “com amor e fidelidade, ele cumpriu a sua promessa ao
povo de Israel” (v.3). “Ele governará os povos com justiça” (v. 9). A
justiça através da qual ele governa o seu povo é a justiça da fé, que
brota do evangelho. Pois o Natal é a festa da vitória do evangelho.
2 SAMUEL 7. (1-7) 8-11,16
Promessas são a tônica maior desse texto. Ao longo da história, o
SENHOR faz inúmeras promessas a seu servo Davi. No texto em foco,
ele traz uma mensagem encharcada de promessas. Destaca-se aquela promessa que está ao final do versículo 11: “lhe darei descendentes” e no versículo 16: “Você sempre terá descendentes, e eu farei
com que o seu reino dure para sempre. E a sua descendência real
nunca terminará”.
“Davi teria descendentes que seriam reis de Israel para sempre
(12,14,16). Essas promessas aparecem em outros livros do Antigo Testamento; especialmente nos Salmos (18.50; 89.3-4, 26-27, 36,37; 132)
e nos profetas (Is 9.6; 11.1-10; 16.5; Mq 5.2). No Novo Testamento,
elas são vistas como profecias a respeito de Jesus, o descendente de
Davi (Jo 7.42; At 2.30). Jesus, o Messias, é chamado de “Filho de Davi”
(Mt 21.9). (Nota introdutória da Bíblia de Estudo da NTLH).
Os reis não são reis para sempre. Somente o Rei dos reis é Rei para
sempre e reina para sempre. No Natal vemos essa promessa se cumprir. Os reis deste mundo vão. O nosso Rei vem!
ROMANOS 16.25-27
Necessariamente a Epístola não precisa rimar com as demais leituras do dia. Ela sempre segue um caminho próprio. Quando rima é uma
feliz coincidência. Na epístola para este Domingo encontramos termos
173
IGREJA LUTERANA
e expressões que rimam, não só com estas leituras, mas com todas as
mensagens evangélicas que são pregadas de nossos púlpitos. Destacam-se: “fé”, “evangelho” e “mensagem a respeito de Jesus Cristo”. E
nesses dias em que o cheiro de Natal já está no ar, a mensagem é só
sobre Jesus Cristo. Ao menos nas igrejas.
LUCAS 1.26-38
É sempre um desafio pregar textos dos primeiros capítulos de Lucas.
No Natal temos praticamente só Lucas. Mateus não traz nada de
anunciação. Nem de Jesus e muito menos de João Batista. Começa
falando já do nascimento de Jesus. João entra por um outro caminho,
seguramente mais elevado. Marcos não tem sequer uma de suas “manchetes” sobre o tema do nascimento, quem dirá da anunciação. Que
bom que o Espírito Santo conduziu Lucas a escrever sobre a anunciação
e sobre o nascimento de Jesus. Sem Lucas, não teríamos narrativa do
Natal, ou a teríamos de forma muito mais pobre.
Desde a anunciação, as histórias de João Batista e de Jesus estão
conectadas. Aqui a conexão é feita com as palavras do evangelista
“quando Isabel estava no sexto mês de gravidez...” (v.26) e com as
palavras do Anjo falando a Maria: “Fique sabendo que a tua parenta
Isabel está grávida, mesmo sendo tão idosa” (v. 36).
Sobre Maria, nunca é demais lembrar a sua idade aproximada. Maria tinha entre doze e quatorze anos. Só. Era a idade com que as
moças contratavam casamento e se casavam na época, entre o povo
judeu.
A expressão “descendente do rei Davi” (v. 28) é aplicada aqui a
José, e, por conseguinte a Maria, afinal os dois eram da mesma tribo.
Fecha-se a idéia do “descendente” prometido a Davi, na leitura do AT.
Provavelmente Maria tivesse visto o anjo. Sendo assim, é bom considerar o misto de surpresa e de susto da jovem ao ver o que viu (um
anjo) e ouvir o que ouviu do anjo: “Que a paz esteja com você, Maria...”. A palavra de paz era a saudação comumente usada entre os
judeus. Ainda assim Maria podia saber que o anjo falava de uma paz
que ia além, ou que vinha do além.
Depois de ouvir a palavra do anjo, ela “ficou muito admirada” (NTLH)
ou “perturbou-se” (ARA). Admirada ou perturbada. Tanto faz. Não era
para menos.
Penso que mereça destaque, pela simples curiosidade, o fato de o
anjo dizer a ela “você ficará grávida” e de ela responder, em meio a
sua admiração e perturbação, “mas isso não é possível, pois eu sou
virgem” (NTLH) ou “não tenho relação com homem algum” (ARA). Quer
174
QUARTO DOMINGO DE ADVENTO
me parecer que ela ouviu o anjo dizer: “você está grávida!”.
Ainda sobre isso, vê-se que Maria não tinha clareza ou conhecimento da Palavra do SENHOR através dos profetas de que o Messias
nasceria de uma virgem. Mas, também, ela era apenas uma menina de
12 ou 13 anos. E isso fazia muita diferença, ao menos naquele lugar e
naquela época.
O texto original grego relaciona o “não tenha medo, Maria” com a
graça, o que é preservado pela ARA (“achaste graça diante de Deus”)
e desprezado pela NTLH. Em todo caso, a graça está presente. Pela
graça de Deus Maria não precisa ter medo, ou podia parar de ter medo.
O Natal que está às portas é graça pura. No Natal a graça de Deus
vem ao mundo embrulhada em carne humana. A graça de Deus assume forma de gente. E só por isso Maria não precisava ter medo e só
por isso nosso povo também pode parar de ter medo.
Nestor Duemes
Esteio, RS
175
IGREJA LUTERANA
VÉSPERA DE NATAL
Isaías 9.2-7
LEITURAS DO DIA
Deus está no meio do seu povo. Deus está com o seu povo. Estas
são as grandes ênfases que as leituras propostas para este dia nos
lembram. Em vista disso, celebremos ao Senhor com uma nova canção
pela maravilhosa presença do Deus vivo em nossa vida.
SALMO 96
Este salmo faz parte de um bloco de salmos (Sl 95 até 100) que
Lutero destaca nas palavras: “É uma profecia de Cristo”, ou então, “do
reino de Cristo”. Este foi um dos salmos cantados quando Davi trouxe
a arca de Deus ao templo (citado quase textualmente em 1 Cr 16.2333). Este hino de louvor celebra a realeza divina e a vinda do Juiz do
mundo – o Messias prometido. Através do Reino deste Messias, Deus
trouxe a paz ao mundo. O nome do Messias é Jesus Cristo! Eis o motivo para cantarmos uma nova canção neste natal e em todos os momentos de nossas vidas.
ISAÍAS 9.2-7
O profeta Isaías está anunciando o nascimento do Príncipe da Paz.
Agora o povo que andava nas trevas (estavam perdidos e condenados) verão a grande luz da salvação, através do menino que Deus
enviou ao mundo para ser Rei. Este Rei possui vários adjetivos que
serão conhecidos entre as nações (cf. v.6): “Conselheiro Maravilhoso”,
“Deus Poderoso”, “Pai Eterno”, “Príncipe da Paz”. Seja qual for seu
título, as bases do seu governo serão sempre a fonte de toda justiça,
paz e salvação. O seu reinado não terá fim (Lc 1.33).
TITO 2.11-14
“Deus revelou a sua graça para dar a salvação a todos” (v. 11). Este
versículo é um convite para uma nova vida, uma vida de santificação.
Fomos tocados pela graça salvadora de Jesus que nos torna naturalmente praticantes de boas obras, independente de nossa atividade
176
VÉSPERA DE NATAL
social. Abençoados com a presença constante de Deus, seremos libertos de toda maldade e seremos pessoas dedicadas na prática do bem
(cf. v. 14 e Sl 130.8).
LUCAS 2.1-20
Este é um texto obrigatório no Natal. Afinal de contas, o Natal é
nascimento de Jesus. Aqui temos o pano de fundo para o verdadeiro
sentido de nossa festa – uma festa baseada na humildade, nos milagres, no sobrenatural e que celebra o amor de Deus para com seu
povo ao enviar o menino Jesus, o Salvador do mundo.
CONTEXTO
Isaías dedicou grande parte de seu ministério a pregar juízo e condenação especialmente aos políticos e militares de Judá. Como o Império Assírio estava cada vez mais em ascensão, dois grupos levantaram-se dentro de Israel: um procurava aliança com o Egito, outro com
a temida Assíria. Isaías pregou que se apegassem a Iahweh. Foi um
momento decisivo da vida da nação.
Os líderes de Judá, ao invés de confiarem em Iahweh, achavam
que através de pactos e alianças com nações pagãs iriam garantir paz
e segurança frente à ameaça iminente. Porém, mesmo com os prognósticos de juízo contra Jerusalém e Judá, o profeta prevê o glorioso
tempo da vinda do Messias.
A terra das tribos de Zebulom e de Naftali ( 9.1) suportaram duramente as invasões de Tiglate-Pileser, rei da Assíria, por volta do ano
733 a.C. As áreas aqui mencionadas são as partes de terra que, por
razões geográficas, eram especialmente vulneráveis à influência e domínio dos gentios; daí também a designação “Galiléia dos gentios”.
Porém toda a dor da opressão e o desespero agora vão dar lugar à
alegria e à esperança, “pois já nasceu uma criança, Deus nos mandou
um menino que será o nosso rei...” (9.6 NTLH). Este versículo assume
um caráter messiânico explícito. Jesus, o descendente de Davi, vai dar
liberdade ao seu povo e governará com justiça e paz (2 Sm 7.1-29).
Dias melhores virão - para sempre!
TEXTO
Vv. 2-5: “O povo que andava na escuridão viu uma forte luz” é o povo
que vivia na Galiléia (Zebulom e Naftali). A partir desta região, o profeta estende os seus olhos para Israel como um todo. Sua visão é de
177
IGREJA LUTERANA
dor, trevas, morte e angústias extremas. A luz simboliza salvação. Essa
luz em primeiro momento descreve a libertação política – libertação do
jugo assírio. É uma libertação alusiva à vitória conquistada por Gideão
sobre os midianitas nesta mesma região (Jz 6-7). No sentido mais amplo
e espiritual, esta salvação aplica-se a Jesus que é a luz do mundo (Jo
8.12). Aquele que dissipa as trevas – as trevas do pecado para a luz
do perdão dos pecados.
V. 6: A alegria da libertação do futuro ultrapassa os limites humanos comuns. Isaías de forma alguma tem em mente um príncipe terreno, mas está se referindo diretamente ao grande Rei do futuro, que
seria chamado, em sentido especial, de Messias ou Ungido. Esta criança traz sobre seus ombros o governo, a autoridade, isto é, o poder
espiritual. Por isso, o profeta passa a descrever os vários títulos e
adjetivos que apresentam o futuro grandioso deste menino.
“Conselheiro Maravilhoso” – “Conselheiro” porque sendo ungido com
o Espírito de sabedoria (cf. Is 11.2), ele tem em si os conselhos sábios
necessários ao exercício do seu ofício real, e indispensáveis para a
salvação do Seu povo (cf. 1.26; 3.3; Mq 4.9). “Maravilhoso” transcende
os limites humanos comuns (cf. Jz 13.18).
“Deus Forte” – juntamente com “conselheiro”, as duas qualidades
cardinais de um rei. Os frutos de um bom governo são os sábios conselhos acompanhados do poder para ação.
“Pai Eterno” – Sua paternidade é perene, pois o seu reino não terá
fim (Is 40.9-11). Nesta passagem temos uma alusão àquele que intervirá na vinda da criança anunciada, portanto é clara e decisiva a referência à encarnação e à união do divino e do humano na pessoa de
Cristo (Is 7.14; Gl 4.4; Lc 1.35). O título designado ao Menino não é
somente a possessão da eternidade, mas também de todos os cuidados que ele tem para com o seu povo (Is 22.21). Ele é o Pai eterno e
como o eterno, rei de amor, de acordo com as descrições do Sl 72.
“Príncipe da paz” – o profeta retorna à descrição da paz que nasce para Israel (v. 4). Paz que no hebraico é “shalom” não deve ser
apenas interpretada como ausência de luta, visto que esta palavra
também tem sentido de salvação, bênção e felicidade. Os profetas de
Deus dizem que a verdadeira paz escapa das limitações terrenas e
deformações pecaminosas, transformando-se num elemento essencial na pregação escatológica. Os oráculos ameaçadores concluem com
um anúncio de restauração (Os 2.20; Am 9.13). Se espera “aquele que
será a paz” (Mq 5.4). Isaías nos diz do Príncipe da Paz, que concede
uma paz para sempre (v.7), reconciliando, em si, Deus e os homens
(2Co 5.18-19). E essa paz é a “paz que excede todo entendimento”
(Fp 4.7) humano.
178
VÉSPERA DE NATAL
V. 7: Este versículo descreve as características de como será o
reinado do descendente de Davi (Is 11.1-5; 2 Sm 7.12-14; Jr 23.5;
33.15). O governo de Jesus será baseado num reinado de paz por
todo o império, as bases do seu governo serão de juízo e justiça, onde
o amor prevalecerá por todo o sempre. Esta visão do futuro é boa
demais para ser verdade. Mas ela será realizada: o zelo do Senhor
dos Exércitos fará isto. O seu zelo é o seu amor abrasador pela causa
do Seu reino e pela salvação do Seu povo (cf. Zc 1.14). Só o zelo do
amor do Todo-Poderoso pode cumprir tais milagres, mas não há dúvidas de que ele consegue fazê-lo. Afinal, para Deus não há nada impossível (Lc 1.37).
PROPOSTA HOMILÉTICA
O pensamento central do texto é que mesmo em meio às trevas
surge a Luz – Cristo Jesus. A luz do primeiro natal continua brilhando
como sempre brilhará. Mesmo quando em muitos corações o verdadeiro sentido do Natal caminha a passos largos cada vez mais para as
“trevas” do esquecimento, da indiferença, da falta de amor e de paz.
As conseqüências do pecado atrapalham nossas expectativas de
que dias melhores virão. Desanimamos frente às dificuldades que enfrentamos diariamente, dos obstáculos da ganância, do ciúme e da
inveja. Mesmo diante da adversidade, resta-nos uma esperança: Uma
luz brilha no meio das trevas – Jesus Cristo!
Tema: Jesus, a luz do mundo, quer brilhar em nossos corações!
I – Dando-nos a salvação
II – Nos motivando com seu amor a compartilhar esta luz.
Héber Guéter Fach
São Paulo, SP
179
IGREJA LUTERANA
DIA DE NATAL
Lucas 2.1-20
LEITURAS DO DIA
As leituras do dia para o dia de Natal são, além do evangelho, Lc
2.1-20, o Sl 98, a leitura do Antigo Testamento, Is 62.10-12 e a epístola, Tt 3.4-7. O Sl 98 proclama a salvação universal de nosso Deus e
incita para o louvor, principalmente no v. 4: “Celebrai com júbilo ao
Senhor, todos os confins da terra”. A leitura do Antigo Testamento manda
que a filha de Sião prepare o caminho para seu Salvador que vem com
a sua recompensa. A epístola fala da benignidade de Deus, nosso Salvador, e do seu amor para com todos, que nos salvou não com obras
de justiça praticadas por nós, mas segundo sua misericórdia, a fim de
que, justificados por sua graça, nos tornemos seus herdeiros. As leituras culminam com o relato de Lucas da História do Natal, num estilo de
uma admirável simplicidade, mas ao mesmo tempo majestoso e memorável, em que a salvação pela graça e pelo amor de Deus brilha em
todo o seu esplendor.
CONTEXTO
Depois que Lucas relatara o anúncio do nascimento de João Batista, o de Jesus, a visita de Maria a Isabel, o cântico de Maria, o nascimento de João Batista e o cântico de Zacarias, ele prossegue no cap. 2
a relatar o nascimento de Jesus, sua apresentação no templo e sua
estada no meio dos doutores no templo, aos doze anos, encerrando
assim sua narração sobre a infância de Jesus que só ele nos transmite
com tão ricos detalhes. O nosso texto nos descreve o nascimento de
Jesus, o seu anúncio aos pastores e o encontro deles com a criança,
sua mãe e seu pai adotivo, na estrebaria de Belém.
TEXTO
V. 1: Com as palavras “naqueles dias” Lucas nos introduz no panorama político daquele tempo. O rei Herodes, o Grande, ainda estava
vivo e o imperador de Roma, Augusto (31 A C. – 14 A.D.), no auge de
seu poder, emitiu um decreto para que toda a população do império,
no original, todo o mundo habitado, fosse recenseada. O propósito de
180
DIA DE NATAL
Augusto era de estabelecer uma base para a cobrança de imposto e
uma melhor organização do rol de seus súditos.
V. 2: Foi esse o primeiro recenseamento feito quando Quirino era
governador da Síria. A Síria era a província romana à qual pertencia a
Palestina. Deve ter ocorrido nos anos 6 ou 5 A.C. Embora Quirino naquele tempo não fosse o governador oficial da Síria, ele era o comandante em chefe do exército, sob cujas ordens certamente ocorreu o
censo. Uma tradução estritamente literal de Lc 2.2 poderia ser assim
redigida: “Este recenseamento teve lugar como o primeiro, Quirino regendo (estando à testa de) a Síria (cf. Arndt, W. Dificuldades Bíblicas,
p. 59).
Vv. 3-5: Cada um teve de recensear-se na cidade da origem de
seus antepassados e como os antepassados de José e Maria descendiam do rei Davi, tiveram de ir para a cidade de Davi, chamada Belém.
Originalmente seu nome era Efrata (Gn 35.39). Era uma cidade situada
a uns 8 quilômetros ao sul de Jerusalém.
De acordo com o texto Nestle-Aland, Lucas fala de Maria como a
prometida em casamento a José, em outras palavras, como a sua noiva (cf. a tradução do Novo Testamento Interlinear Grego-Português),
mas, a esta altura, ela já era sua mulher, como fica claro de Mt 20.24.
No entanto, como ainda não tinham relações sexuais, continuavam a
viver como noivos, de acordo com Mt 1.24b, 25 e Lucas, talvez em vista
disso, a descreve simplesmente como noiva de José. Temos traduções
diferentes em nossas Bíblias, devido a leituras diferentes nos manuscritos. Na ARA lemos: “sua esposa” e na NTLH, “com quem tinha casamento contratado”. Essa última leitura, que adota o texto de NestleAland, parece a mais evidente.
Vv. 6,7: “Estando eles ali” pode enfatizar simplesmente a sua estada no local. Como parece, o nascimento ocorreu imediatamente após a
chegada, talvez já na mesma noite, de maneira que José teve pouco
tempo para procurar um local mais adequado para sua pousada. A
complementação dos dias diz respeito à gravidez de Maria. “Ela deu à
luz o seu filho primogênito (prwto,tokoj) sugere que ela teve outros
filhos depois (cf Mt 13.55; 12.46,47; Mc 3.31,32; Lc 8.19,20). Se fosse
seu único filho, deveria constar o adjetivo monogenhj. Há uma porção
de interpretações do lugar em que Jesus nasceu. Não vamos deternos em sua avaliação. O essencial é que Jesus nasceu num ambiente
de extrema pobreza, que pode ter sido uma estrebaria, ou um lugar
em que se alojavam animais e sua primeira caminha era uma manjedoura ou cocho em que os animais comiam. Isso aconteceu porque
José não encontrara lugar numa hospedaria, pensão ou pousada, porque esses lugares estavam superlotados ou por pessoas que vieram
181
IGREJA LUTERANA
para o recenseamento, ou por funcionários do governo que o realizavam.
Assim também há corações que não possuem lugar para Jesus porque são superlotados por desejos de riqueza, por prazeres mundanos, pela ânsia de prestígio e honra, por preocupações e temores, por
ódios e ressentimentos.
Para que Jesus possa habitar em nosso coração é preciso que sejamos regenerados pelo poder do Espírito Santo e creiamos em Jesus
como nosso Salvador, cujo sangue também purifica a nós de todo o
pecado (1 Jo 1.7). Disse uma vez alguém: “Se Jesus tivesse nascido mil
vezes em Belém e não em mim, então eu ainda estaria perdido”.
Não havia lugar para Jesus na hospedaria. Há lugar para ele no
seu coração?
Contrastemos a profunda pobreza e humildade de Jesus com o imperador Augusto, assentado sobre o trono de seu império mundial.
Mas já vislumbramos nesse ambiente paupérrimo de Jesus alguns raios de sua glória. O poderoso imperador teve de servir ao filho de Maria
sem o saber. Ele teve de cooperar com a vontade de Deus para que
Cristo nascesse em Belém (cf. Mq 5.2). O imperador não tinha nenhuma idéia a respeito do efeito e das conseqüências de seu decreto. Ele
nada sabia do reino eterno dessa criança, que ofuscaria todos os reinos do mundo, também o dele. Nem ele, nem a alta sociedade de Belém
e Jerusalém tinham a mínima noção da manifestação da benignidade
de Deus e do seu amor para com todos (Tt 3.4).
Graças ao bondoso Deus que nos revelou o que ocultou a muitos
sábios e instruídos, o que muitos profetas e reis quiseram ver e ouvir
e não o viram e ouviram (cf. Lc 10.21,24). Podemos hoje adorar e louvar o nosso Salvador que se encarnou nessa criança, que, sendo rico,
se fez pobre por amor de nós para que, pela sua pobreza, nos tornássemos ricos (2 Co 8,9). Aquele que não poupou o seu próprio Filho,
antes, por todos nós o entregou, porventura, não nos dará graciosamente com ele todas as cousas? (Rm 8.32). Veja também outras passagens sobre o amor de Deus, como Jo 3.16; Rm 5.5,8; 8.35,39; 1 Jo
3.1 etc.
Vv. 8-11: Lucas agora nos narra como o nascimento de Jesus e o
seu significado foi divulgado naquela noite. No lugar em que Jesus
nasceu parece que o evento teve pouca repercussão. Os recipientes
da mensagem eram gente humilde, pobre, de pouca influência social,
pastores de ovelhas, que guardavam, nos campos próximos a Belém,
seu rebanho durante as vigílias da noite. Eram pessoas de quem não
se esperava que recebessem uma distinção tão honrosa. No entanto,
182
DIA DE NATAL
eram pessoas piedosas, provavelmente conhecedoras das profecias
messiânicas e, como o velho Simão, esperavam a consolação de Israel
(Lc 2.25).
De repente a noite iluminou-se, um anjo lhes apareceu e a glória
do Senhor brilhou ao redor deles. A “glória do Senhor”, na Septuaginta,
é a expressão usada para designar a manifestação da presença de
Deus no tabernáculo e no templo, numa nuvem luminosa, que mais
tarde o judaísmo designou de Shekinah. Em o Novo Testamento, designava o brilho que indicava a presença de Deus ou de um de seus
mensageiros (cf. Lc 9.31ss e 2 Co 3.18). É bem natural que os pastores
ficassem com muito medo. Desde a queda no pecado, a reação a uma
manifestação sobrenatural é medo ou até pavor.
O anjo, contudo, mitiga o seu medo com o anúncio da boa-nova de
que hoje lhes nascera o Salvador que veio justamente para libertá-los
de todos os temores, entre os quais avultam o pecado, a morte e o
poder do diabo. Essa boa-nova era de grande alegria e para todo o
povo, não só para o povo de Israel, mas para todas as pessoas, pois
lao,j é usado às vezes para designar o povo em geral, o que acontece
nesta passagem (cf. Lc 8.47; 9.13; 18.43; 21.38). O lema da IELB “Cristo
para todos” identifica-se com o sentido do termo aqui usado.
No entanto, de suma importância para os pastores era o pronome
vos. Hoje vos nasceu o Salvador. Também eles faziam parte do povo
para quem era a boa-nova de grande alegria.
E esse Salvador era o prometido Messias tão longamente esperado. Era Cristo, o Senhor. Chama-se Cristo ou Messias, porque é o Ungido pelo Espírito Santo para ser o nosso profeta, sumo sacerdote e
rei. Ku,rioj (Senhor) é o termo usado pela Septuaginta para traduzir o
nome de Deus, Javé ou Jeová. No Antigo Testamento, é usado com
referência a Cristo no Sl 110.1 e em o Novo, em At 2.36, onde Pedro
proclama as palavras: “... a este Jesus, que vós crucificastes, Deus o
fez Senhor e Cristo”. Com esse nome o anjo faz alusão à sua divindade e, por isso, os cristãos primitivos insistiram em atribuir esse título a
Jesus e jamais a um imperador romano.
V. 12: Ao encerrar sua mensagem, o anjo ainda lhes dá um sinal
para acharem a criança recém-nascida. Iriam encontrá-la não em algum palácio feericamente iluminado, mas, envolta em panos e deitada
numa manjedoura. Assim eles foram prevenidos de não chocar-se com
o contraste entre o anúncio glorioso e as circunstâncias reais do lugar
de seu nascimento.
Ainda hoje experimentamos o mesmo contraste em cada festejo de
Natal, onde celebramos a origem humilde de nosso Salvador e o seu
183
IGREJA LUTERANA
glorioso significado com hinos de Natal, entre os quais se destacam os
versos:
Ó do universo Criador,
quiseste ser humilde assim,
por ser profundo teu amor,
baixaste qual menino a mim.
(Hinário Luterano, hino 26, estrofe 9)
V.13: A mensagem do anjo culmina com um espetáculo inesperado
e inesquecível. Subitamente apareceu uma multidão de anjos falando
e cantando o que foi chamado mais tarde o Gloria in Excelsis Deo e que
ainda hoje ecoa em corais do mundo inteiro. Glorificaram a Deus que
habita também nas maiores alturas, muito acima de suas criaturas,
por ter proporcionado uma tão grande salvação aos homens, caídos
em pecado, com os quais agora, por intermédio de seu Filho amado, se
reconciliara, oferecendo-lhes a sua paz. É uma paz totalmente diferente da pax romana do imperador Augusto. Já dizia o filósofo romano do
primeiro século, Epitecto, que o imperador tinha o poder de proporcionar a paz política e social, mas era incapaz de conceder a paz do coração, libertando as pessoas de suas paixões, mágoas e invejas, por
cuja libertação ansiavam mais do que pela libertação dos inimigos externos. Os anjos falaram daquela paz cujas características essenciais
são o perdão dos pecados e a libertação do medo da morte e do poder
do diabo. Essa paz está à disposição de todos os homens e é apropriada pela fé em Jesus, o Príncipe da paz (cf. Is 9.6). Deus a oferece a
todos os homens, aos quais agora com a oferta da reconciliação quer
bem.
Vv. 15-16: Após os anjos terem partido deles para o céu, os pastores imediatamente se mobilizaram para a ação da procura do menino.
Não disseram: “Vamos a Belém e verifiquemos se é verdade o que
ouvimos”, mas: “Vejamos a palavra (tradução literal) que o Senhor nos
deu a conhecer”.
Foi o primeiro fruto de sua fé: confiaram na palavra transmitida pelos anjos e não duvidaram. “Foram apressadamente”, outro fruto de
sua fé. Estavam ansiosos de encontrar seu Salvador no mais breve
tempo possível e não adiaram o encontro para mais tarde, cometendo
o pecado da procrastinação.
E sua fé foi coroada de pleno êxito. Encontraram tudo exatamente
de acordo com o sinal dado pelo anjo. “Aqui vemos o que é a verdadeira fé”, observa um comentarista. “A fé confia na palavra que o Senhor
184
DIA DE NATAL
agora faz pregar por intermédio de homens para homens, na palavra
de Cristo que lhe promete graça, paz, vida e salvação”. Todo aquele
que crê nesta palavra já desfruta agora antecipadamente algo do que
desfrutará um dia plenamente na bem-aventurança eterna.
Vv. 17-19: A fé se manifesta necessariamente por outro fruto, que
é o testemunho. Os pastores, logo depois de seu encontro com o menino Jesus, divulgaram as palavras que lhes foram transmitidas pelos
anjos. Todos se admiraram, mas não todos creram. Isso sempre de
novo está acontecendo. Muitos se admiram, até se emocionam até as
lágrimas, com a mensagem natalina, mas são poucos que, como Maria,
a guardam no coração, refletindo e meditando sobre ela, aplicando-a à
sua vida diária.
V. 20: Voltaram os pastores, glorificando e louvando a Deus. Na sua
vida externa nada mudara, mas em seu coração nascera uma nova
luz. Da palavra que ouviram tudo dependia. Creram nela, mas permaneceram na sua profissão, exercendo-a com toda a fidelidade. No entanto, não puderam deixar de dar testemunho dela a todos que os
rodeavam. Tornaram-se mensageiros natalinos pelo resto de sua vida.
Também para nós o maior presente de Natal é ter o nosso coração
cheio da maravilha de nossa salvação que faz a nossa boca falar do
que está cheio o coração (Lc.6.45).
PROPOSTA HOMILÉTICA
A história de Natal está tão repleta de conteúdo que jamais caberia
num único sermão. Por isso sugerimos vários temas com suas partes:
1 A encarnação do Filho de Deus
1.1 Sua história maravilhosa
1.2 Seu significado
2. Hoje vos nasceu o Salvador
2.1 É o Salvador de todos
2.2 É também o meu Salvador
3. A maravilha da mensagem de Natal
3.1 É a mensagem de nossa salvação eterna
3.2 É a mensagem da paz verdadeira
4. O cântico dos anjos
4.1 Glória a Deus nas maiores alturas
4.2 Paz na terra entre os homens a quem ele quer bem
185
IGREJA LUTERANA
5. Vamos com os pastores até Belém
5.1 para contemplar o menino Jesus na manjedoura
5.2 para voltar glorificando e louvando a Deus
5.3 para testemunhar a todos que nos rodeiam
Paulo F. Flor
Dois Irmãos, RS
186
VÉSPERA DE ANO NOVO
Lucas 13.6-9
Mais uma chance
CONTEXTO
O contexto para a nossa perícope é muito importante. Em Lucas 12
vemos Jesus orientando os discípulos sobre a vida neste mundo. “Nada
há encoberto que não venha a ser revelado” – Lucas 12.2. Ajuda seus
discípulos a viverem vigilantes, pois não sabem quando virá o Senhor
– Lucas 12.35-48. E, por fim, fala dos sinais dos tempos – Lucas 12.5459.
Lucas 13 inicia falando de arrependimento. Talvez esse seja o grande
tema do capítulo. Jesus usa o exemplo da morte dos galileus para
mostrar que todos somos pecadores e necessitamos do perdão.
Como contexto litúrgico, não podemos deixar de lembrar que este
é o último dia do ano. Normalmente fazemos uma avaliação de tudo
que aconteceu durante este período. Todos os acontecimentos podem
ser analisados e veremos que Deus continua nos dando oportunidades de arrependimento e realmente tarda em nos condenar.
TEXTO
O texto de Lucas 13.6-9 tem algumas particularidades interessantes. De uma forma geral, a mensagem inicial da parábola chama a atenção à necessidade de arrependimento, a oportunidade que Deus dá
ao pecador e que esta oportunidade não dura para sempre.
Nestes quatro versículos podemos destacar:
V. 6: “figueira plantada numa vinha” – isto é importante pois demonstra que o solo em que estava plantada a figueira era fértil. Se o
solo era fértil, realmente algo estava errado com a figueira.
V. 7: “há três anos” – segundo os entendidos em plantações, a
figueira necessita em média quatro anos para começar a produzir. Após
isto ou produz todos os anos ou não produz nada. O texto sugere que
esse tempo já havia passado e, posteriormente, a figueira ficou três
anos sem produzir nada. Esta figueira era estéril, ou seja, não haveria
possibilidade, pelo menos aparente, de vir a produzir.
“ocupando inutilmente a terra” – palavras duras em relação à fi-
187
IGREJA LUTERANA
gueira. Estava ocupando espaço que poderia ser de outra árvore.
Melhor cortar.
V. 8: “deixa ainda este ano” – oportunidade. O Senhor da vinha dá
uma oportunidade para que a figueira produza frutos. Mais um período
em que se vai investir nela, mesmo sabendo da dificuldade em produzir algo depois de tanto tempo estéril.
“escave ao redor dela e lhe ponha estrume” – aqui o adubo é o
diferencial para que talvez venha a produzir frutos. Deve-se investir
tempo para cavar ao redor da figueira para que o adubo chegue à raiz.
V. 9: “se vier a dar fruto, bem está; se não, mandarás cortá-la” –
se depois de todo este investimento ela produzir, ganhaste uma árvore, se não, o Senhor da vinha mandará cortá-la. Importante notar que
o agente do corte é o Senhor, dono da vinha.
APLICAÇÕES
Como podemos notar no texto acima, o Senhor da vinha concede
oportunidades a uma figueira para que venha a produzir e não fique
ocupando lugar inutilmente.
Quando Jesus dirige estas palavras, está falando com o povo judeu. A referência de Lucas sugere que o povo de Israel era como uma
figueira estéril. Automaticamente esta mensagem vem até os dias de
hoje, pois também estamos na mesma situação. Desde o batismo a
luta é diária – justos e pecadores.
Quando se fala em frutos, logo se imagina que o problema está
na produção em si, o que não reflete a verdade bíblica. O problema
está na pré-produção, ou seja, naquilo que motiva a produção de
frutos. Transportando para a nossa linguagem, o problema não está
nas obras em si, mas na fé que produz obras, ou melhor, neste caso
a falta de fé.
Arrependimento está intimamente ligado à fé. Neste texto, Jesus
dá um aviso claro de que Deus é tão bondoso que ainda dá tempo,
ainda permite que muitos venham a arrepender-se. Chegará uma época
que isso não vai acontecer. Por isso anteriormente se falou no final dos
tempos.
O fato importante é que vivemos este “um ano”, período em que o
povo está sendo “adubado” pela palavra de Deus e pelos sacramentos. Tudo isto Deus faz para chegar à “raiz”, ao coração humano e
modificar a nossa condição de perdidos e condenados para sãos e
salvos. Não sabemos quanto tempo tem este período. Também não
sabemos quanto tempo ficamos “sem produzir”. Deus investiu tempo.
Deus investiu seu único Filho “para que todo que Nele crê não pereça,
188
VÉSPERA DE ANO NOVO
mas tenha a vida eterna”. – João 3.16. Esse é o motivador da vida
cristã.
E, por fim, vale ressaltar que o agente do “corte” é Deus. Nós temos apenas e simplesmente a missão de levar a mensagem, adubar,
escavar às vezes, mas a ação é de Deus. E se a ação é Dele, temos a
garantia de um Deus misericordioso que dá tempo para o arrependimento e mais ainda, diz que “Ele não quer que nenhum se perca” –
Mateus 18.
SUGESTÃO DE TEMA
Tema: A chance da nossa vida
1. De recebermos perdão (arrependimento) – desde o Batismo
2. De nos fortalecermos – Palavra e Santa Ceia
3. De darmos frutos – Vida Cristã
Último dia do ano: a introdução pode ser voltada a perguntas relacionadas ao ano que passou e o que fizemos nele.
Paulo Sérgio Kühl
Novo Hamburgo, RS
189
IGREJA LUTERANA
ANO NOVO
Filipenses 2.9-13
Deus faz
Começar o ano costuma fazer com que as pessoas se sintam diante de um grande vazio que precisa ser preenchido. A saudação “Feliz
Ano Novo” parece deixar no ar a idéia de que o NOVO seja aquilo que
o VELHO não conseguiu ser. As charges que aparecem nos jornais refletem isso ao apresentar o ano cessante como um senhor velhinho,
encarquilhado, parecendo derrotado, enquanto que novo ano aparece como um bebê engatinhando, sorridente, pleno de boas expectativas. Isso se reflete também nos votos e promessas que as pessoas
fazem a si mesmas e aos outros: “Neste ano vai ser diferente!” querendo dizer: Neste ano, sim, as coisas vão ser melhores. Metas de
melhoria são propostas, mudanças de postura e comportamento são
propostas e prometidas.
Cristãos usam a mesma linguagem. Ouvem-se palavras de estímulo e ouvem-se correspondentes promessas de que também nós vamos fazer isso e aquilo de maneira diferente, melhor. Prometemos ser
mais assíduos, participativos, comprometidos em coisas que julgamos
relevantes para Deus, a igreja, o grupo de trabalho, etc.
Nesta reflexão homilética, gostaria de fazer uma crítica a esse jeito
de pensar e oferecer alguns indicativos a partir da carta de Paulo e
dos textos sugeridos para esse dia. Nada contra que se celebre a
passagem de ano e da avaliação de expectativas que datas especiais
oportunizam. A questão é quanto ao espírito da coisa.
A crítica: Não estamos em dívida sobre o ano que passou.
O apóstolo está ensinando os Filipenses, entre outras coisas, a
também aprender a olhar para o passado e o futuro.
Aliás, apesar de fazermos isso de maneira mais intensa em momentos de passagem na vida individual e familiar (aniversários, batismo, confirmação, casamento, novo emprego, aquisições, etc), o final
de ano realmente é especial porque é coletivo, é globalizado e conduzido pelos meios de comunicação.
1. QUANDO PAULO OLHA PARA O PASSADO,
ELE VÊ A OBRA DE DEUS
Esta obra de Deus é Cristo. Mas não somente o Cristo na cruz. O
190
ANO NOVO
texto que antecede o desse dia é dos mais ricos e abrangentes, e
aponta para o fato maior da obra de Deus: a encarnação. A encarnação
de Deus em Cristo mostra Deus a serviço da humanidade. Revela que
não há limites para o que Deus é capaz de fazer no amor que tem pela
sua criatura. Deus nos dá inúmeros sinais de que sua vontade é boa
para nós.
Final de ano, festas, é tempo de muita insegurança entre as pessoas. Pessoas fazem muitas coisas que demonstram essa insegurança.
Quase todos fazem votos de renovados esforços e comprometimentos
em diferentes áreas da vida. Cuidar mais da saúde. Ser mais atencioso
com a família. A lista pode não ter fim. Demonstra, por isso mesmo, a
insegurança de quem de alguma forma pensa que tem de assumir o
controle da sua vida. Até certo ponto, sim, o ser humano tem controle
sobre muitos dos seus atos e decisões. O engano está em pressupor
também que os resultados decorrem desse controle. Como se dominar
o caos da existência humana em pecado estivesse ao alcance da criatura.
Isso significa que de nós mesmos e de qualquer outra pessoa nada
temos a dizer a respeito do futuro nesse sentido. Jesus expressou
isso em termos positivos: “Lançai sobre ele toda a vossa ansiedade,
porque ele tem cuidado de vós”. Que palavra de esperança teríamos,
então, a dizer a nós próprios e aos demais? Ficamos sem ter o que
dizer?
2. QUANDO PAULO OLHA PARA O FUTURO,
ELE O VÊ ATRAVÉS DA OBRA DE DEUS NO PASSADO
Deus exaltou o humilhado Jesus, seu Filho. Nele e a partir dele que
deixamos de ser palha ao sabor do vento do caos a que o pecado
legou a humanidade. Isso não é falar no abstrato, numa realidade
espiritualizada e imprecisa. Essa realidade foi cravada no solo do
Calvário, viva, real e concreta, aos olhos de todos que naqueles dias
estavam em Jerusalém, vindos de todas as partes do mundo (At 2).
Não foi divulgada de maneira impessoal num noticiário impresso ou
digitalizado. “Homens falaram da parte de Deus”. “Disso nós fomos
testemunhas.” Pessoas que haviam concorrido para a sua morte,
reconheceram:”Matamos o autor da vida”. Mas disseram isso já com
bálsamo do perdão e da paz que Deus derramou sobre eles: “Para vós
é a promessa e para vossos filhos e para todos os que ainda estão
longe, isso é, para quantos o Senhor, nosso Deus, chamar”.
Aquelas pessoas, olhando para esse passado, passaram a louvar
a Deus todos os dias (At 2. 47) e, dessa maneira, atraíam sobre si e
191
IGREJA LUTERANA
sua fé a simpatia de todo o povo. Aprenderam a gloriar-se do futuro
com os olhos nesse passado. Era isso que cantaram nas prisões, que
lhes deu forças sob a perseguição, e recontando esse passado se
animavam a encarar o presente. Até hoje, joelhos continuam se dobrando de felicidade quando a pecadores perdidos é estendido o braço de comunhão manifestado por Deus concretamente em um lugar e
num dia da nossa história.
Ali, naquele lugar da maior humilhação, todos fomos feitos participantes da glória de Deus. Não perguntamos mais: “O que devo fazer
para merecer uma migalha da graça de Deus? O que me reserva o
futuro?” E as pessoas que vêm até nós com essa angústia, nós apontamos uma nova realidade e ensinamos a ver o futuro sob essa nova
visão: a fé que vem desse passado reconstruído por Deus. Ali, passado e futuro se fundem numa só nova realidade.
Esta boa vontade de Deus é a garantia a partir da qual começamos
o novo dia. Essa boa-vontade fez com que as coisas cooperassem
também nas coisas materiais para o bem dos filhos de Deus. O que de
mais precioso alguém poderia desejar do que contar com a boa-vontade de Deus em todas as coisas?
Dificuldades? Tribulações? Ameaças? Essa é a estrada do peregrino. Por ela chegamos até aqui. A estrada continua a mesma. Mas a
boa vontade de Deus é luz e sombra, indicativo e proteção nas decisões que Ele puser diante de cada pessoa que ele ama. A estrada
muda de feição muitas vezes. O que não muda é aquele que faz a
estrada e nos chama a andar por ela.
Ao olharmos para o ano que passou, a fé nos mostra a ação contínua de Deus em cada um dos nossos momentos. Ele deixa de ser um
ano de frustrações. É um ano de bênçãos, no qual Deus nos protegeu,
amparou e guiou. Desviou nossos passos do mal. Perdoou continuamente nossos pecados e transformou nossas intenções e ações imperfeitas em atos de amor na família e na vida. E fez de nós testemunhas a apontar para ele, o Senhor, diante de quem dobramos os joelhos para que todos o louvem. Com os olhos fixos nele, não temos
dúvidas em desejar uns aos outros um novo e feliz ano de fé e testemunho.
Paulo P. Weirich
São Leopoldo, RS
192
PRIMEIRO DOMINGO APÓS O NATAL
Isaías 45.22-25
A Justiça de Deus nos ’dois natais’
CONTEXTO LITÚRGICO E DEMAIS LEITURAS
Este domingo mescla os dois natais: o nascimento do Messias com
o Natal dos gentios. Isaías já antecipa que “no Senhor será justificada
toda a semente de Israel” e serão “salvas todas as extremidades da
terra” (v. 25a, 22b). Dessa forma, Iahweh é fiel à Aliança feita com
Abraão: “em ti serão benditas todas as famílias da terra” (Gn 12.3).
Dentre os temas abordados pelas leituras, destaca-se a justiça de
Deus em ser fiel à Aliança. O Salmo 111, um belíssimo acróstico, aborda Deus e suas obras. No v. 3 o salmista lembra que “a justiça de Deus
permanece para sempre”. E, nos vv. 5 e 9, lê-se: “[Deus] lembrar-se-á
sempre de sua Aliança...e enviou ao seu povo a sua redenção; estabeleceu para sempre a sua aliança...”.
Em Lucas 2.25-40, notamos esta mescla litúrgica entre os dois natais. Simeão, zeloso nos costumes judaicos, aguardava a “consolação
de Israel”. E, movido pelo Espírito, tomando Jesus nos braços, lembra
que a “consolação de Israel” é também a “salvação preparada diante
da face de todos os povos; luz para epifania dos gentios”.
O TEXTO E SEU CONTEXTO
CONTEXTO
Isaías dirige os capítulos 39-66 de seu livro à futura comunidade
exílica. O objetivo desta seção do livro é duplo: 1. fortalecer a fé dos
exilados na justiça do Deus UNO que é fiel e justo para salvar o povo
escolhido; 2. alertar contra a idolatria.
No contexto imediato, os capítulos 44 e 45 repetem seis vezes a
afirmação “Eu, Iahweh, sou Deus, e além de mim não há outro” (44.6,
8; 45.5, 6, 14, 21). Isaías contrapõe a idolatria e suas conseqüência
funestas com a fidelidade de Deus à Aliança firmada com Seu povo. O
capítulo 45 começa com a comissão dada a Ciro1 e Deus realizando
algo incomum: utilizando um estrangeiro para ´libertar´ Israel. Além
disso, Isaías lembra que a ´justiça de Deus´ e o Reino da Graça não
se dirigem somente a Israel, mas a todos os povos.
193
IGREJA LUTERANA
O TEXTO
cvy
- “Salvar, libertar”: Primordialmente, o termo possuía
V. 22:
significado estritamente material. Denotava a ação de Deus em libertar o povo de um inimigo externo. Depois,
recebeu o significado
teológico de ´libertar do pecado’, sendo atrelado e tornando-se paralelo ao termo “Justiça”. Em Is 45.21 já se nota este paralelismo: “Deus
é Justo e Salvador”.2
Para Isaías, a salvação de Deus revela-se na justificação do povo
pelo sofrimento do Servo do Senhor.
Is 45.22, junto de Gn 12.1-3, Êx 19.5-9 e Is 49.6 podem ser considerados a Grande Comissão do Antigo Testamento: “e sejam salvas
todas as extremidades da terra”. É esta noção de ´graça universal´
que Simeão evoca em seu cântico. 3
V.23:
– O termo ‘jurar’ relaciona-se com ‘sheba’ (sete). Considera-se que, ao jurar, os hebreus comprometiam-se com ‘sete coisas’. Por exemplo, Abraão dá sete cordeiros no juramente entre ele e
Abimeleque.4 Na cultura semita, jurava-se por alguém que era considerado mutuamente maior e mais precioso do que aquele que faz o
juramento. Como não há ninguém maior do que Deus, Ele jura por si
mesmo5 (Hb 6.13). E, sua ‘Palavra não volta atrás’6.
O juramento de Deus evoca sua fidelidade. Ele nunca deixará de
cumprir suas promessas. Essa fidelidade se revela em sua Justiça em
ser fiel à Aliança de abençoar em Abraão todas as famílias da terra.
Mas, a salvação/justiça de Deus também guarda uma séria ameaça: todos os joelhos se dobrarão diante de Deus e toda lingua ‘jurará’
[que só Deus é o Senhor].7 No dia de Iahweh, o ato será para uns
homologação da salvação e, para outros, reconhecimento da condenação. Pode-se ver aqui uma antecipação da profecia de Simeão dita à
Maria: “Eis que este menino está destinado tanto para a ruína como
para livramento de muitos...” (Lc 2.34b).
cvy
yTi[B. v; n. I
1
Se considerarmos a autoria única do livro, calcula-se que Isaías escreveu os capítulos
39-66 cerca de 150 anos antes do nascimento de Ciro.
2
Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova,
1999. Cf. Is 1.27: “Sião será redimida pelo direito, e os que se arrependem pela justiça”.
3
Lc 2.30-32: “pois os meus olhos viram a tua salvação, a qual preparaste diante da face
de todos os povos e luz para epifania dos gentios”.
4
Cf. Gênesis 21.
5
Deus também jura por si mesmo ao reafirmar sua Aliança com Abraão, após o teste do
sacrifício de Isaque.
6
O v.23 é paralelo a Is 55.11: “assim será a palavra que sair da minha boca: não voltará
para mim vazia, mas fará o que me apraz e prosperará naquilo para que a designei.”
7
Cf., Rm 14.11, Fp 2.10-11.
194
PRIMEIRO DOMINGO APÓS O NATAL
hqdc.
V. 24:
– “Justiça”. Em Isaías, o termo recebe o significado de
“Deus proteger e livrar o povo com o qual possui Aliança”. Como expressão do poder de Deus, a sua justiça significa que, devido à sua
fidelidade, Ele vindica e salva seu povo”8 Devido a essa ênfase na Aliança, a justiça divina se transforma em fidelidade às promessas. Deus
é justo ao ser fiel!
Neste versículo, o termo justiça e força formam um binômio interessante. O termo
(força) denota uma ação concreta, material. É ‘energia
dinâmica’ e não potencial. Assim, Isaías transmite a idéia de que somente Iahweh possui a força (energia) de exercer justiça/salvação.
É esta mesma força que “traz à vergonha pública”9 todos os que se
“incendeiam em raiva” contra Deus.
V. 25: Um dos objetivos dos capítulos 39-66 de Isaías é manter a
esperança do livramento viva entre os judeus exilados. Por isso, o
termo ‘remanescente’ recebe valor diferenciado. Ao saber que a “toda
a semente de Israel será justificada”, os exilados são animados a perseverar na fé em Iahweh e resistir à idolatria. É esta bela esperança
que motiva o povo a confiar em Deus e esperar pelo dia da volta à
terra natal para a reconstrução do Templo.
Como previsto no significado de
, “justiça”, o fruto da ação
salvífica e justificante de Deus é exultação/júbilo do povo salvo.
Sobre o júbilo como fruto da salvação efetuada por Iahweh, Paulo
em outra perícope deste domingo escreve: “Habite ricamente em vós a
palavra de Cristo; instruí-vos e aconselhai-vos mutuamente em toda a
sabedoria, louvando a Deus, com salmos, e hinos, e cânticos espirituais,
com gratidão, em vosso coração (Cl 3.16)”.
z[ow
hqdc.
COMENTÁRIOS HOMILÉTICOS
A lei-moléstia do texto encontra-se no contexto histórico de nosso
texto. Isaías 45.22-25 destina-se ao povo exilado que viveria cercado
de tentações idólatras presentes nas terras babilônicas e, mais tarde,
medo-persas. O profeta ensina: “Todos os artífices de imagens...não
são nada, e a suas coisas...são de nenhum valor,”10 e “nada sabem os
que carregam o lenho das suas imagens de escultura e fazem súplicas
8
id. ibid. p. 1265.
9
Vwbo é muitos mais do que ´envergonhar´. O idéia do verbo é “trazer à vergonha /fazer cair
em desgraça” , o que enfatiza o sentido de desgraça pública.
195
IGREJA LUTERANA
a um deus que não pode salvar.” 11 A idolatria é totalmente improdutiva! Não há outros deuses capazes de salvar!
De certa forma, a Igreja, o povo de Deus, vive no exílio atualmente.
“Aqui nós vivemos distantes do lar” e cercados de tentações à idolatria. Na época de Lutero, o grande Baal era Mamôn. Hoje, Baal mudou
de nome. De forma subversiva, a ditadura do ‘politicamente correto’
procura dobrar os joelhos cristãos diante de valores anti-bíblicos. Retraídos pelo medo, nosso testemunho e pregação tornam-se ‘espadas
de algodão’ ou dicas de ‘auto-ajuda’, incapazes de mostrar a realidade
do pecado e a podridão resultante. Falta-nos a coragem de João Batista. O grande Baal moderno é a relatividade da verdade e a ditadura
do ‘politicamente correto’.
Isaías nos faz recordar que ‘nesse deusinho aí’ não há salvação,
nem consolo. Pois, “só Iahweh é Deus e nenhum outro”. O primeiro
domingo após Natal é dia propício para proclamar com coragem a justiça de Deus nos dois natais. Devemos vibrar de júbilo e proclamar o
nascimento do “consolo de Israel” e da “luz dos gentios”. O menino
Jesus, Servo do Senhor, é o cumprimento da promessa que ‘Deus por
si mesmo jurou’ a Abraão. Em Cristo, a justiça de Deus se revela tanto
aos judeus como a toda extremidade da terra.
Por isso, impulsionados pela força dinâmica de Deus, somos capazes de proclamar com ímpeto a justiça de Deus em ser fiel à Sua
promessa nos dois Natais: 1. Aos gentios: “Voltem-se para Deus e
sejam salvos todos os povos da terra, porque Iahweh é Deus e nenhum outro. Cristo, o menino-Deus, é a luz dos povos!” e 2. aos
judeus: “No Senhor será justificada a semente de Israel. O ‘consolo
de Israel’ já veio para redimir a todos e para a glória de Seu povo
Israel.”
O resultado da justiça de Deus em nossas vidas é mais coragem
para dobrar os joelhos diante de Cristo, confessar que só Ele é o Senhor e
exultar a Deus com nossas vidas. O júbilo é fruto da ação salvífica de
Deus em nossas vidas.
10
11
Is 44.9a
Is 45.20
196
PRIMEIRO DOMINGO APÓS O NATAL
PROPOSTA HOMILÉTICA
Tema: A Justiça de Deus brilha no menino Jesus
I – que justifica toda a semente de Israel (v.45)
Moléstia: Época do exílio o povo vivia cercado de idolatria.
1. Hoje: a ‘tentação idólatra’ é calar-se para ser ‘politicamente correto’.
Evangelho: Deus foi fiel à Aliança (Sl 11.5-9).
a. Povo no exílio encontrou forças ao confiar no juramento que Deus
fez. “Somente no Senhor há justiça e poder...toda a semente de Israel
será justificada” (vv. 24-25).
b. Nós encontramos forças em Deus, “que é fiel e justo para nos
perdoar e nos purificar de toda injustiça.” O ‘consolo de Israel’ esperado por Simeão é nosso consolo também!
II – pois só Ele é Deus e nenhum outro.
Moléstia: Isaías alertava o povo exilado acerca do perigo da idolatria: “nada sabem os que...fazem súplicas a um deus que não pode
salvar” (45.20).
1. Hoje: Além da adoração de imagens, deve-se ter cuidado com os
falsos profetas que ensinam o povo a confiar em ‘rosas milagrosas’ e
outras relíquias ditas ‘evangélicas’.
Evangelho: Deus convida: “Virem seus olhos para mim e sejam salvos” (v.22) .
a. Hoje: Deus nos ilumina com sua Justiça. Jesus veio ao mundo
revelar o amor do Pai e sua fidelidade à Aliança. Nenhum outro pode
nos justificar, somente Iahweh.
CONCLUSÃO
Pela Justiça de Deus revelada no Natal, todos os povos da Terra se
dobrarão e confessarão que Jesus é o Senhor e louvarão a Deus (Is
45.25 e Cl 3.16).
Mário Rafael Yudi Fukue
Passo Fundo, RS
197
IGREJA LUTERANA
SEGUNDO DOMINGO APÓS NATAL
João 1.1-18
O Verbo (Palavra) se tornou um
ser humano e morou entre nós (v.14)
CONTEXTO (CENÁRIO LITÚRGICO E HISTÓRICO)
O Prólogo Joanino (Jo 1.1-18) é um “tratado teológico” sobre a divindade de Jesus, bem como um resumo de todo o evangelho que
proclama tal mensagem. O tema central do livro está em 1.14: “O Verbo (Palavra) se tornou um ser humano e morou entre nós”, cujo enfoque
pode ser aplicado diretamente ao Natal recém comemorado.
O pano de fundo do pensamento e da linguagem de João pode ser
encontrado no Antigo Testamento, onde a “palavra de Deus” indica
Deus em ação, seja na criação do mundo, na revelação de sua vontade bem como na libertação de seu povo. O prólogo de João parece
também levar em conta o gnosticismo, que pregava a total separação
entre Deus e a matéria, negando a humanidade de Cristo, a encarnação
de Deus e a ressurreição. A salvação, de acordo com os gnósticos,
seria conseqüência do conhecimento. João aborda a questão do conhecimento ligado à salvação, contudo, fala do conhecimento de Deus
através do verbo encarnado, Jesus Cristo (17.3).
TEXTO: ÊNFASES, EXPRESSÕES QUE SE DESTACAM, ANÁLISE
O objetivo primeiro do evangelho de João foi expresso por ele mesmo no capítulo 20.31, onde escreve: “Estes, porém, foram escritos para
que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo,
tenhais vida em seu nome”. João enfatiza que o conhecimento de
Jesus e de suas obras conduzem à verdadeira fé em Deus e esta fé
produz vida espiritual e eterna naquele que crê. Apenas alguns dos
tantos conceitos importantes presentes no prólogo joanino poderão
ser aqui analisados:
Verbo (Logos): traduzido como “Verbo” ou “Palavra”, expressa “a
palavra em ação”. João parece querer mostrar que tudo o que foi registrado no evangelho, desde o episódio de João Batista batizando no
rio Jordão até as aparições de Jesus depois da ressurreição, são uma
prova viva de como a Palavra eterna de Deus tornou-se carne, para
que toda a humanidade pudesse vir a crer e a viver Nele. Logos tam-
198
SEGUNDO DOMINGO APÓS O NATAL
bém foi uma palavra-ponte através das quais pessoas educadas na
filosofia grega (século II) foram conduzidas ao Cristianismo joanino.
Quando João diz que “o verbo se fez carne” aponta para a realidade
histórica de Jesus, afirmando que Deus se tornou um ser humano real,
tal como nós.
Luz (vv.4,5,7,8 e 9): João se refere a Jesus como a luz que dissipa
a escuridão do pecado e da descrença; o termo está ligado à iluminação espiritual que marca o novo nascimento. A luz sempre será mais
forte que as trevas, ou seja, a verdade e a bondade encarnadas em
Jesus sempre vencem a maldade e a falsidade daqueles que estão
afastados da luz de Cristo. Cristo é a luz que ilumina a todos (v.9), sem
distinção, o que nos remete ao resumo de todo evangelho bíblico, expresso em Jo 3.16.
Testemunho: é outro dos grandes temas que transversalizam o
evangelho de João. Abrange o testemunho do Pai (5.32,37 e 8.18), do
Filho (8.14,18) e do Espírito (15.26), bem como das obras de Cristo
(5.36 e 10.25), das Escrituras (5.39) e dos discípulos (15.27). Todos
estes testemunhos têm a grande finalidade de levar as pessoas a crer
em Jesus como verdadeiro Deus e Salvador, objetivo final do evangelho (20.31).
“Morou entre nós” (v.14): Para M.J. Harris eskenosen (v.14) significa o tabernáculo, a localidade da presença de Deus na terra (AT), em
que se faz presente entre os seres humanos; já no NT, isto é feito
através da pessoa de Jesus Cristo. Portanto, onde estiver Cristo, ali
estará Deus. Literalmente o texto diz: “A Palavra se fez carne e montou sua tenda no meio de nós!”. O conceito de glória (doxa) também é
importante na relação do Deus do AT com o Deus do NT. A mesma glória
que foi revelada a Moisés (Êxodo 33.18ss.) é revelada agora a todos
por meio de Jesus.
PARALELOS, PONTES E PONTES DE CONTATO
Há textos paralelos importantes que auxiliam na compreensão do
prólogo joanino. Os versículos 1-3, que afirmam a pré-existência de
Jesus com o Criador e sua participação na obra da criação (a relação
com Gênesis 1 é explícita), são corroboradas por Paulo em Colossenses
1.16ss. Outros textos de contato são Hb 1.2 e Ap 3.14. Já o conceito
de vida no v.4 e 13 precisa ser visto, além do significado de uma nova
vida espiritual (o novo nascimento expresso em Jo 3: Jesus e
Nicodemos), mas também sob a perspectiva de Jo 5.19-29, em que
Jesus tem a mesma autoridade do Pai para dar a vida aos outros,
apontando para a ressurreição do mortos e a vida eterna aponta para
199
IGREJA LUTERANA
a ressurreição de Lázaro em Jo 11.38ss. Entre os demais textos do
dia algumas pontes de contato são: Salmo 147.12-20: Aponta para
o louvor a Deus, Criador e Mantenedor deste mundo, cujas ordens
(Palavra) são obedecidas por toda a natureza e criação, que nada
mais são do que uma expressão da própria palavra de Deus. Is 61.10
– 62.3: Aponta para o Louvor a Deus que providenciou salvação a
todas as nações. Ef 1.2-6, 15-18: Reafirma-se neste texto a relação
íntima entre Deus Pai e Jesus Cristo na missão redentora da humanidade e a necessidade de conhecermos este Deus com profundidade
para recebermos as suas bênçãos.
SUGESTÕES HOMILÉTICAS (ASSUNTO, OBJETIVO,
TEMA, DESDOBRAMENTOS)
Tema: Jesus, o Verdadeiro Deus, morou entre nós (v.14).
1. Para que a luz e a glória divina brilhassem sobre nós (vv. 4 e
14).
Jesus é a representação viva do poder e da glória de Deus. Ele nos
mostra quem é o nosso Deus, Criador e Preservador de todas as coisas. Este Deus poderoso se aproxima e mora entre nós, se torna íntimo dos seres humanos. Deus se dá a conhecer a nós e compartilha
conosco de sua luz e de sua glória.
2. Para que, em Cristo, nos tornássemos filhos de Deus (v.12).
A obra da salvação está ligada ao amor de Deus Pai, que vem morar entre nós em Jesus, seu Filho e por meio dele nos convida a fazer
parte de sua família. Jesus é o mediador da salvação, mas não originador
dela (Cl 1.20, 2 Co 5.19). Jesus estabelece a ponte segura entre Criador e criatura.
3. Para nos abençoar com as riquezas do seu amor (v.16).
Como um pai amoroso que zela pelo bem-estar de sua família, ao
morar entre nós, Deus nos convida a usufruir das bênçãos advindas
de sua proteção e cuidado.
4. Para que também nós nos tornássemos suas testemunhas (v.7).
Assim como Deus enviou a João Batista para dar testemunho da luz
e da verdade, para ser a “lâmpada que ardia e iluminava” (Jo 5.35),
cada um de nós também é chamado para ser esta lâmpada. Para que
“as pedras não clamem” (Lc 19.40) é necessário que nós, cristãos,
também proclamemos que Deus, em Jesus, morou entre nós e que
quer morar no coração de tantos que ainda não o conhecem verdadeiramente.
Thomas Heimann
São Leopoldo, RS
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