O Estado do Maranhão São Luís, 14 de maio de 2014 - quarta-feira Adeus a JOSÉ CHAGAS 7 1 9 2 4 - 2 0 1 4 Um homem da POEMAS POESIA E D A PROSA Soneto 40 A literatura de José Chagas vivia entre dois mundos de linguagens diferentes: a poesia e a prosa; quando questionado sobre essa dualidade, ele fazia questão de separar os versos do lírico e dos argumentos do dissertador CRÔNICA Alc ntara - inferno sem barreira D e Alcântara bem se pode dizer que é uma cidade infeliz, castigada por um azar histórico. Ali a palavra infelizcidade quase que deve ser cunhada assim, o adjetivo infeliz acoplado ao substantivo cidade, como uma chaga cancerosa. O poeta Agostinho Reis parece ter adivinhado algo a cair em forma de praga sobre ela, quando afirmou nos tercetos de seu conhecido soneto: Rainha da opulência destronada, / tu tens por fausto – o mar; por trono – o nada; / grandezas que te restam do passado... // Tudo roubou-te, tudo, a negra sorte! / Parece que os teus passos segue a morte / como segue a desgraça o desgraçado! E é isso. Ontem, o mar e o nada, hoje, o espaço e o vazio. Que destino! E de fato, vítima tanto do tempo quanto do espaço, Alcântara sofre pelo passado que lhe arrancaram à força e por um futuro que também à força lhe querem dar. A rigor é uma cidade que não tem presente. Eu disse sobre ela, no meu livro - Alcântara – negociação do azul ou a castração dos anjos - que ali “o tempo se condensou em tempo de espera / espera de tudo / e o grande orgulho da cidade / é saber hoje esperar / o passado / que pelo futuro / qualquer cidade espera.” Em verdade, nela o passado é um tempo que se esqueceu de passar ou se comporta como ainda estando por vir. E ela não só aguarda para sempre a prometida vinda de um imperador, como que parece ainda escutar as profecias da Mãe Calu, anunciadas para o passado. No livro, falei também das duas quedas de Alcântara: - a queda natural, para baixo, no tempo, que a levou às ruínas, e a queda inesperada para o alto, no espaço, com risco de transformá-la em nuvens ou fumaça. Assinalei, no livro, que “a queda para cima / é mais precipitada / porque mais se aproxima / do fundo do nada.” Se, como diz Agostinho Reis, a morte seguiu os passos de Alcântara, na terra e num passado que foi despojado de tudo, também seguiu os seus vôos, no espaço e num perigoso futuro que lhe querem impor, pelo que já sofreu o maior desastre ocorrido na era espacial, em nosso país, com a perda de quase duas dúzias de técnicos e cientistas. Algo inteiramente irreparável, sob todos os pontos de vista. Um crime sem perdão. Isso porque devem ter sido os fados que indicaram para Alcântara a destinação de estar no cruzamento, no desencontro ou na colisão entre a geografia e a história, já que sua posição na superfície do planeta passou a ser utilizada pelos potentados, que viram nela a vantagem de economizar combustível, na corrida para o espaço cósmico. E como na verdade quem está exclusivamente olhando para o alto não pode mes- mo perder tempo em atentar para o que se passa a seus pés, Alcântara, em razão desse “privilégio” geográfico, foi afetada brutalmente no seio de sua história e de sua cultura. Para que se colocasse ali toda a parafernália tecnológica, muita gente pobre teve de ser arrancada de sua área de vivência, isto é, dos terrenos em que gerações e gerações vinham realizando os seus plantios, ou das faixas marítimas em que praticavam a sua pesca, na luta pela vida. Não se discute o que tinha de ser feito, mas o modo como foi feito. E as conseqüências disso não são levadas em conta, visto que o que importa agora é dar atenção aos que desejam arrendar o espaço aéreo e não aos que persistem em ficar arranhando o chão. Aliás, quem, segundo os noticiários, anda de olho neste chão são os americanos, que, pelo seu gosto, ficariam com o espaço cósmico e também com o solo de Alcântara. E não se duvide. A sorte dela está lançada como um trágico foguete. O fato é que Alcântara, saltando de súbito de um sofrido passado para um duvidoso futuro, o mais que conseguiu, no presente, foi tornar-se o palco de um dos mais funestos acontecimentos, sem que até hoje se saiba qual foi a causa ou as causas e, pelo visto, acabará incluído no rol de suas lendas, pois o governo não parece encarar isso como uma realidade nem ouvir o clamor dos órfãos das vítimas. O Centro de Lançamento é hoje apenas mais uma ruína e mais um mistério, na cidade submetida irremediavelmente ao seu fatalismo já observado pelo soneto de Agostinho Reis. Pelo azar de colocar-se logo abaixo da linha do Equador, Alcântara, que poderia sair de seu purgatório para atingir um paraíso, teve de assumir a missão que era dada à Barreira do Inferno, no Rio Grande do Norte. Quem foi que disse que abaixo do Equador não existe pecado? Se todo o grande interesse estava em saber que a força de gravidade aqui era menor, esqueceram-se de que havia algo de maior gravidade causado pelo modo como parece ter sido tratado o Centro de Lançamento, pois isso tem sido motivo de longas discussões, em que muitas causas são atribuídas, sem que nunca se tenha uma explicação plausível e sem que ninguém se responsabilize por nada. É o tipo da coisa em que os próprios entendidos não se entendem e o que se sabe é que, por causa da vantagem de as grandes potências do mundo terem oportunidade de achar meios mais fáceis de economizar combustível, a Barreira do Inferno, no Rio Grande do Norte, foi desativada e tudo quanto cabia a ela teve de ser transferido para Alcântara, inclusive o próprio nome, pois lá nunca aconteceu um fato tão dantesco como o que infelizmente se deu na cidade maranhense, que se tornou um inferno sem barreira. Ainda bem que agora se diz que o Centro de Lançamento se transformará num Centro Espacial Comercial, cuja expansão se dará sem que prejudique o ambiente e a comunidade. Mas com que dinheiro? Crônica publicada na coluna Hoje É Dia de, em 5 de agosto de 2008 BIBLIOGRAFIA Poesia Tabuada de Memória (1994); O Discurso da Ponte (1959); A Mão do Presidente ou Impressões O Caso da Ponte de São Francisco (1964); Digitais de uma Época (1995); Os Telhados (1965); O Fio-Dental (1997); Maré/Memória (1973); Antologia Poética (1998); Lavoura Azul (1974); Os Azulejos do Tempo (1999); Colégio do Vento (1974); As Armas e os Barões Assassinalados (2000); Maré de Moça (1977); Poema da Lagoa (2004); Os Canhões do Silêncio (1979); Prosa De Lavra e de Palavra ou Campoemas (1980); Pedra de Assunto (crônicas) (1961); Maré de Aço (onda de alumínio) ou o Naufrágio da Um homem debaixo de seu chapéu (discurso de Ilha (1983); posse na AML). (1975); A Cor do Puro (1983); De Píndaro à raposa ou Castro Alves! quem diria... Cem Anos de Infância ou o Poeta e o Rio (1985); acabou num aranhol (1977, co-autoria com Jomar Águas de Silêncio (1987); Moraes); A Arcada do Tempo (1988); São Luís com S (1984, co-autoria com Mário Antropoema ou O signo da humana dor (1988); Meireles e Manuel Lopes); Alcântara - Negociação do azul ou A Castração dos Da arte de falar bem (crônicas) (2004); Anjos (1994); In: Colégio do Vento, 2013 São Luís de quatro séculos Cigarra e formiga - antifábula São Luís, no aniversário, não sabe se canta ou chora; no seu quarto centenário, mal ou bem canta e aflora. Fala-se mal da cigarra, fala-se bem da formiga, pois que uma canta e farra e outra em labor se fatiga. Chora a morte do poeta que a encheu de poesia, e com ela se completa sempre que aniversaria. Diz-se que uma só gasta, e a outra guarda o que tem, e em sua riqueza vasta não quer ajudar ninguém. O poeta não morreu, no aniversário da Ilha, o que ele deixou de seu ainda faz com que ela brilha. É uma história que se narra, sem graça, de tão antiga, e nela nem a cigarra se envolve, nem a formiga. Cercada de sonhos, lendas, como uma ilha de ouro, sempre enfrentou as contendas. dos que buscavam tesouro. Ambas nada têm com isso que seu La Fontaine inventa, com um fundo moral cediço de uma fábula odienta. Perdeu sua identidade com outros nomes que dão e tanta gente que a invade quer se permita quer não. Cada qual cumpre a missão que lhes deu a natureza; nada têm com o que dirão contra a cigarra indefesa. Por não saber a raiz de sua origem arcaica deixa de ser São Luís para ser uma Jamaica. Querem por força lançar cigarra contra formiga, a fingir-se um falso ar de tradição inimiga. Com já 400 anos, é que a cidade assim é, sofrendo perdas e danos mas ainda está de pé. Cigarra e formiga juntas vivem, dando o que falar, mas não respondem perguntas de um mundo raso e vulgar. São Luís ainda brilha como o fez antigamente. Em nosso mar, é uma ilha, na cultura, é um continente. Elas estão muito acima do que nossa vida engana, e nenhuma se aproxima de nossa atitude humana. Quatro séculos apenas para incutir na história uma simbólica Atenas e uma França Provisória. Não é com cigarra alguma nem com formiga qualquer que alguém, a seu modo, assuma a tolice que quiser. Ela não foi descoberta por nenhum povo europeu. A ilha é uma bela oferta que a natureza nos deu. Sem nunca cometer falha, sem descuidar-se um instante é que a formiga trabalha para que a cigarra cante. Sei que ela não se envergonha, mas talvez se sinta mal, se por acaso ainda sonha com França Equinocial. O canto é tão necessário quanto o labor. E entre os dois não se sabe, em seu fadário, quem vem antes ou depois. Ela se fez patrimônio da humanidade cansada, nas mãos de um povo inidôneo, que da terra não quer nada. O homem, com braço e garganta, suaviza a sua batalha, e trabalha, enquanto canta e canta, enquanto trabalha. Todos amam São Luís, só da boca para fora, e o que só a boca diz a alma não comemora. O canto é irmão do labor e, irmãos, se dão por completos, jamais iriam propor uma disputa de insetos. Cidade que se fez minha, como também me fiz dela, por seu porte de rainha, por ser cultural e bela. Deixe-se a cigarra em paz, deixe-se em paz a formiga, e seja o homem capaz de amar trabalho e cantiga. Cantarei a vida inteira, mas com alma e coração esta terra sobranceira, toda glorificação. Não há povo que não cante nem povo que não trabalhe, e a poesia é reinante, no todo em cada detalhe. * Poema escrito pela passagem dos 400 anos de São Luís (Poema inédito) Apanhados do Chão (1994); Canção da Expectativa (1955); Pão e Água (1978); Circulam sombras lúgubres do campo, pela minha memória represada, como um poço de angústias que destampo e onde se esconde o tudo do meu nada, persiste ainda ali o pirilampo, da minha infância pouco iluminada, o corte dos meus sonhos no sarampo da meninice em dor, na madrugada, a solidão azul de um céu escampo com uma estrela tremendo de assustada, os andaimes da vida com o seu grampo a me prender à cal de minha ossada, e o próprio impulso com que agora tampo meu poço de memória estagnada.