Kierkegaard: O itinerário dialético
entre finito e infinito
Inês Helena Madruga Nunes *
RESUMO: O artigo reconstrói o
pensamento de Kierkegaard (18131855) a partir do caráter subjetivo do
conflito articulado nos estados da existência. Uma luta entre corpo e alma
em busca da realização do ser espiritual que se encontra suprimido em níveis de consciências que devem ser
ultrapassados. O ser humano compreendido como o terceiro elemento da
relação entre o finito e o infinito, é o
Eu constituído que, refletindo sobre
si mesmo, não pode ser o que é. A tensão constante do vir-a-ser, frente às
possibilidades, gera o desespero existencial da angústia das incertezas implícitas em cada possibilidade. O salto
é a dimensão consciente de assumir o
desespero com confiança existencial,
é a transição entre o estado estético
ao ético, do ético ao religioso. O itinerário dialético proposto pelo autor tem
como objetivo conduzir o homem à
reflexão de sua realidade espiritual e
da contradição entre estado orgânico
e psicológico, onde o desespero existencial, como doença do espírito, gera
ABSTRACT: The article rebuilds
the thought of Kierkegaard starting
from the subjective character of the
articulate conflict in the states of the
existence. A fight between body and
soul in search of the spiritual being’s
accoomplishment that one finds
suppressed in levels of consciences that
should be outdated. The human being
understood as the third element of the
relationship between the finite and the
infinite, it is it I constituted that,
thinking about him cannot be that is.
The come-to-being’s constant tension,
front to the possibilities, generates the
existential despair of the anguish of the
the implicit uncertainties in each
possibility. The jump is the conscious
dimension of assuming the despair
with existential trust; it is the transition
among the aesthetic state to the athical,
of the ethical to the religious person.
The itinerary dialético proposed by the
author has as abjective drives the man
to the reflection of his/her spiritual
reality and of the contradiction among
organic and psychological state, where
* Acadêmica em Filosofia Unilasalle.
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NUNES, Inês Helena Madruga
a incerteza de ser ou não ser cristão.
A crise existencial é o desesperar de
si mesmo, é o reconhecimento de seu
eu infinito se debatendo para realizarse como ser eterno.
PALAVRAS-CHAVE: Finito, infinito, desespero, angústia, possível, necessidade.
the existential despair as disease of the
spirit, generates the uncertainty of to
be or not to be Christian The existential crisis, is despairing of himself, it is
the recognition of yours me infinite
struggling to accomplish as to be eternal.
KEYWORDS: Finite, infinite, despair, anguish, possible, needs.
O texto aqui estudado, O desespero humano, escrito por Sören Aabye
Kierkegaard, em 1936, reconstrói o que para ele seria a trajetória do eu espiritual
a partir da vida. O desejo de criar formas abstratas, sobretudo através de luta de
consciência, cada vez mais intensa diante da situação do próprio existir, superando a contradição entre organismo e consciência. Ao analisar os estados da vida,
Kierkegaard, preocupado com o caráter individual humano, descreve a contradição subjetiva entre corpo e alma, e a busca do sentido existencial, e sua conciliação entre estado orgânico (corpo) e estado psicológico (alma). O devir existencial
depende da conciliação de ambos. O desespero move o espírito e o orienta ao
reconhecimento de si mesmo. A realidade antagônica da vida é uma acentuada
relação de liberdade e necessidade em permanente conflito, até o desdobramento
do ser humano, o eu espiritual. Segundo o autor, o eu busca sua existência distinta na consciência simples entre corpo e alma.
Sofre e desespera no desejo de realização, suprimido na dupla força contrária. No conflito e na força contraditória, o eu desenvolve um movimento que age
sobre o estado orgânico e psicológico. Dessa contradição surgem duas formas de
desespero genuíno. Caso o estado orgânico não influenciasse o estado psicológico, haveria somente uma relação de desespero, e assim a vontade de ser do eu não
existiria. Entretanto, a dependente relação impede o eu de, por si só, conseguir o
equilíbrio para libertar-se. Não havendo conciliação entre corpo e alma, não há
equilíbrio, e o ser humano não pode realizar-se como Eu eterno. O desespero
humano, segundo Kierkegaard, reúne três estados de consciência: entre natureza
finita, natureza infinita e vontade de querer Ser. Negar o desespero é agregar
mais uma relação de discórdia que, agindo sobre si mesma, afeta o estado psicológico do homem.
Ao refletir sobre a identidade do eu, Kierkegaard desenvolve sua teoria dos
três estados de consciência. Para ele, no primeiro estado, o desespero é inconsciente de ter um eu (homem estético); no segundo estado, o homem se desespera
por ter consciência do eu e não quer ser o eu (homem ético); no terceiro estado,
o homem se desespera, deseja ser ele próprio (homem religioso). Na dialética do
desespero, Kierkegaard se apropria do argumento da idéia abstrata da luta do eu
em querer se realizar plenamente, e tece seu pensamento sobre as vantagens que
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há no desespero humano. Sofrer do desespero é meio para o homem plasmar em
si sua identidade, sua existência; é erguer-se da mediocridade de si mesmo ou não.
E qual vantagem do homem de querer Ser? No pensamento de Kierkegaard,
o homem não está pronto, sua existência está na dependência da mediação entre
o finito e o infinito. O eu quer ser. Para se realizar, precisa libertar-se da oposição
entre organismo e consciência. Em seu contínuo devir, através do desespero existencial, o ser humano reconhece sua infinita natureza, seu próprio Eu, sua personalidade eterna.
A vantagem de desesperar amplia o horizonte da consciência e propicia ao
eu conciliação consigo mesmo, o faz transpor do potencial e imaginário para o
1
atual e concreto. Tomar consciência é abrir-se ao possível, é passar do virtual
para o real. Esse é o mover progressivo da ascensão do eu. Caso isso não ocorra,
o desespero em potência no ser é suprimido e esgota-se. Não desesperar é aniquilar a possibilidade de ser, é negar a vida.
A existência do homem e sua possibilidade de Ser é o fundamento do itinerário filosófico de Kierkegaard, em que o possível, orientado pela oposição de
ser ou não ser, não depende do contingente, mas da vontade do eu. A vida é
movimento contínuo do nascer ao morrer, a existência do homem é luta árdua
consigo mesmo, um inquietar-se sobre o que há de sobrevir. Existir não está na
dependência da necessidade, mas da possibilidade. O homem é “nada além de
possibilidade”.
Contudo, insiste Kierkegaard, o desespero é discordância interna da relação
consigo mesmo e possibilidade de realização do Ser. Assim como o desvario é
uma forma de manifestação da alma, um estado mórbido de desânimo, assim
como o estado de desvario é para a alma, o estado de desespero é para o espírito;
ambos os estados são análogos. Da analogia entre desvario e desespero, manifesta-se o desespero como discórdia constante e dependente da relação em si mesmo. Toda vez que a discórdia se manifesta, é preciso remontar cada movimento
do desespero.
Para Kierkegaard, a possibilidade não depende de condições reais; o possível, em outras palavras, pode ser pensado como uma condição metafísica. A condição metafísica do desespero e seu movimento progressivo derivam do fato de
ser uma categoria do espírito. Então, podemos interpretar o possível como condição do que pode ser não do que é. As múltiplas possibilidades suprimem o
necessário!
Quanto mais o eu é suprimido, mais aumenta o desespero. O desespero não
é o efeito da discórdia: ele é a causa da discórdia. Da discórdia, acrescenta
Kierkegaard, o homem não tem como escapar, pois o eu é constituído a partir da
discórdia que há entre estado orgânico e psicológico em constante devir. O de1
“Possível” vem do latim posse, que deriva de potis esse, que significa “ser padrão de”, “ter em seu poder”. O possível
é tudo o que pode ser feito e realizado na experiência. O possível pensado por Kierkegaard remete ao existir do homem.
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sespero como, doença mortal, remete à ideia de agonizar e não poder morrer;
é agonizar e estar morrendo; é estado moribundo, na qual a vida não permite
esperança, em que a desesperança é a impossibilidade da última possibilidade de
morrer:
Estar mortalmente doente é não poder morrer, mas neste caso a vida não
permite esperança, e a desesperança é a impossibilidade da última esperança, a
impossibilidade de morrer. Enquanto ela é o supremo risco, tem-se confiança
na vida; mas quando se descobre o infinito do outro perigo, tem-se confiança
na morte. E quando o perigo cresce a ponto de a morte se tornar esperança,
o desespero é o desesperar de quem nem sequer pode morrer
(KIERKEGAARD, 1979, p. 199).
O desespero, doença mortal, um afligir contraditório, enfermidade do eu, é
morrer sem estar morto! Morrer não significa, aqui, o término da vida, mas o
morrer do eu eterno. Em Kierkegaard, o desespero é a manifestação do estado
doentio do espírito por não poder morrer. A enfermidade do espírito é diferente
da enfermidade do corpo. A enfermidade do corpo o consome e mata; enfermidade do espírito não: consome, aflige e não mata; é um morrer continuamente,
um morrer transformado em viver. O que há no eu espiritual não pode ser morto
a golpes de punhal; de igual modo, o desespero, como um verme imortal, comenta
Kierkegaard, permanece no espírito, querendo morrer para se libertar. A doença
do eu espiritual se manifesta como vontade de destruir o desespero para ficar
livre e viver. A impotência da autodestruição do eu eterno é o constante conflito
em sua essência refratária que resiste toda e qualquer influência, não se destrói.
Quando Kierkegaard afirma o desespero como um tipo de força latente no espírito que, envolvendo o sentimento a partir de critérios de escolha levada às últimas conseqüências, culmina no desesperar para superar a contradição. Atingindo
o limite supremo de etapas, o eu espiritual desperta à vida, afirmando as múltiplas possibilidades de realizações do ser humano, não somente como ser orgânico, mas como ser espiritual:
Sócrates provara a imortalidade da alma pela impotência da doença da alma
(o pecado) em destruí-la, como a doença destrói o corpo. Pode-se demonstrar
a eternidade do homem pela impotência do desespero em destruir o eu, por
esta atroz contradição do desespero. Sem a eternidade em nós próprios não
poderíamos desesperar, mas caso ele pudesse destruir o eu, também não haveria desespero (1979, p. 201).
Entretanto, quando o pecado entra em discussão, Kierkegaard afirma que a
passagem do modo de vida estético para o ético representa etapas conscientes
que definem a passagem ao estado religioso. O malogro da vida ética constitui a
mais profunda contradição entre sentimento de pecado e arrependimento, forçando a passagem do modo de vida objetivo e racional à conduta subjetiva e
irracional do absurdo da fé.
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O absurdo da fé é a concessão infinita e a garantia de vida que o homem tem
sobre si mesmo. Não há homem que viva e não se desespere. Não há saída para o
desespero existencial a não ser pelo salto ao absurdo da fé, aceitando-o como
exigência que suprime a conduta de vida independente de qualquer norma, simplesmente distingue que o desespero é uma forma de ansiedade do sentimento
de pecado que o reconduz a reconhecer sua existência espiritual e decide dar o
salto ao absurdo da fé, porque reconhece que se desespera não dos fatos contingentes, mas de si mesmo. Verifica, em seu desespero, a contínua inquietação e
desarmonia espiritual: é o vazio não preenchido pelos prazeres e os deveres impostos à vida. A aceitação da vida espiritual é uma conversão que se dá como um
modo de recomeço aberto a todas as possibilidades.
O homem, por desconhecer-se, receia a adversidade exterior, que é, na realidade, um receio inconsciente de si mesmo. A maior adversidade trava-se no estado psicológico do homem. Da adversidade interior, surge o paradoxo do destino
do homem de construir-se a si mesmo, implicando a intensa experiência da contraposição entre incerteza objetiva e certeza subjetiva, culminando no paradoxo
do absurdo da fé! Na concepção geral do desespero o homem pode mascarar o
significado de sua existência revestindo-a com superficialidades, o que é considerado roupagem exterior, ou seja, uma vivência objetivada que nega a certeza da fé
e o essencial, que é a infinitude de Deus que, segundo Kierkegaard são absolutamente reais e incompreensíveis. Por isso, acreditar impõe transformação no modo
de percepção do homem, colocar de lado a razão.
O desespero orienta o homem ao irracional absurdo da fé como movimento
converso que potencializa a vida espiritual. Não ter consciência desse movimento é, em outras palavras, não ter consciência da existência. Desespero, enfermidade do espírito, é preexistente. É estado inquietante de espírito e conflito dialético
permanente entre o finito e o infinito.
Conforme Kierkegaard, a dialética do eu desesperado se faz perceber até na
aparente tranquilidade. Estar calmo, afirma o autor, pode ser um sintoma de
desespero. Todos os homens sofrem dessa doença mortal, poucos o sabem, porque, no silêncio, no vazio de si mesmo, na recôndita solidão, é que o homem se
reencontra consigo. Não há analogia para descrever com exatidão os sintomas do
desespero do mesmo modo, não há cura imediata desse estado doentio do espírito. Entretanto, o desespero é o meio pelo qual o homem é levado a reconhecer
sua infinita existência de ser humano e seu predestino espiritual como um contínuo voltar-se a Deus. Nesse sentido, não dá para ignorar que o homem é realmente predestinado! O eu espiritual se desdobra e eleva-se na plena realização de
si através do binômio dialético. De acordo com o pensamento de Kierkegaard, é
precisamente a inconsciência desse destino infinito da vida, o maior entrave.
O homem se perde de si mesmo, até na aparente harmonia e paz, ali se encontra
o eu desesperado, porque o eu não se realiza na felicidade. Felicidade é o resultado das condições físicas e psicológicas do homem e serve de refúgio para ocultar
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o desespero. Não há lugar mais seguro para o desespero do que a felicidade. Do
mesmo modo, paz e segurança servem de refúgio para a angústia!
O medo do desconhecido, a angústia, em outras palavras, é o medo de arriscar, de tomar decisão entre múltiplas possibilidades. A apreensão é o excesso de
preocupação que impulsiona o homem a inventar artifícios e neles se refugiar.
Uma forma de fugir da realidade e dissimular o desespero que, neste caso, é o
medo do desconhecido, o risco de uma nova possibilidade que mais apavora o
homem. Trazer o eu radicado no desconhecido ao conhecimento da consciência
de si mesmo, faz-se necessário, segundo Kierkegaard, para que o homem possa
refletir sobre o nada, isto é, esvaziar-se de todos os artifícios. Adquirir consciência do eu infinito é, de certa forma, crer no que não vê. Na dialética do desespero,
a pior enfermidade é não sentir o próprio desespero, todavia, felicidade é suportar o desespero para alcançar a cura do espírito. Portanto, o desespero serve como
regra para todo aquele que o suporta e reconhece sua origem:
A maior parte das pessoas vive sem grande consciência do seu destino espiritual... e daí toda essa falsa despreocupação, essa falsa satisfação em viver, etc.,
etc., que é o próprio desespero. Mas aqueles que se dizem desesperados, em
regra gerais, uns, é porque tinham suficiente profundidade para tomar consciência do seu destino espiritual, os outros, porque dolorosos sucessos ou violentas decisões os levaram a aperceber-se dela [...] o que se dizer da angustia
humana [...] existências malbaratadas! Mas só se desperdiça aquela que as alegrias e as tristezas da vida iludem a tal ponto que jamais atinge, como um
ganho decisivo para a eternidade, a consciência de ser um espírito, um eu, por
outras palavras, que jamais conseguem constatar ou sentir profundamente a
existência de Deus (KIERKEGAARD, 1979, p. 206).
As muitas experiências frustradas e pensamentos banais envolvem as pessoas de tal modo que descuram do ser interior, o eu espiritual! Desperdiçam a
vida real e inventam uma representação da vida. O modo representativo de
vida inventado pelo homem conduz ao engano. Viver a aparente vida exterior
em detrimento da interior é engano dos sentidos que perpassa à eternidade, ou
seja, não conciliar estado fisiológico e psicológico traz prejuízo ao estado espiritual (mental).
Esse engano, afirma Kierkegaard, faz o homem andar em rebanho. Andar
em rebanho, em outras palavras, é ser comum na multidão e não refletir sobre
a própria existência, é afastar-se sempre mais de si mesmo. Reencontrar a vida
infinita é um esvaziar-se de si mesmo, é afastar-se do trivial das opiniões e, no
isolamento de si mesmo, no jardim individual, é possível refletir, é possível conquistar a si mesmo. No individual, na reflexão, o homem atinge o único fim que
tem validade de vida eterna. No esvaziar-se de si mesmo, no silêncio de si, o
pior segredo é desvelado: o desespero mascarado em felicidade! Eis aí a felicidade, quando manipulada, silencia a dialética do eu e esgota sua possibilidade
de realização.
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Viver na inconsciência do eu espiritual é impedir a dialética entre vida orgânica e a psicológica, é negar a possibilidade infinita da vida. Não havendo dialética, não há identidade, consequentemente, não há equilíbrio entre ambos os estados, esgotando, assim, a possibilidade da liberdade do eu. Quando há equilíbrio
dialético, o eu faz a mediação. Quanto maior a consciência de si, tanto mais o eu
se realiza; quanto mais cresce a consciência do eu, mais cresce a vontade de ser.
A vontade cresce na mesma proporção do eu. Em um homem sem vontade, o eu
é inexistente, não há consciência de si, não há vontade de ser!
O eu é o resultado da síntese dialética entre estado orgânico e psicológico em
relação de equilíbrio. Da síntese de ambos, a permanente evolução da existência
do eu segue seu curso e afasta-se sempre mais do finito em direção ao infinito.
Visto que o eu em potência não constitui existência real, e não é senão o que será.
Na dialética do desespero, a síntese se dá a partir da luta entre os contrários, em
que o desespero se define e se constitui no eu real. Ao se definir, sintetiza a
contradição dialética entre o finito delimitado e o infinito ilimitado. Liberto da
contradição, o eu transcende ao infinito.
Certamente, transcender do finito ao infinito depende de conhecimento e da
vontade. A força da imaginação inspira ao homem o sentimento de querer conhecer a si mesmo e ter vontade de refletir sobre si. A imaginação, diz Kierkegaard,
cria no homem o reflexo de infinito:
O que há de sentimento, conhecimento e vontade no homem depende em
última análise do poder da imaginação, isto é, da maneira segundo a qual todas
as faculdades se refletem: projetando-se na imaginação. Ela é a reflexão que
cria o infinito [...] a imaginação é reflexão; reproduz o eu e, reproduzindo-o,
cria o possível do eu; e a sua intensidade é o possível de intensidade do eu
(1979, p. 208).
A imaginação possibilita ao homem transcender ao infinito. Quanto mais
o sentimento se envolve na imaginação, mais o eu evapora-se até tornar-se
sensibilidade impessoal, sem vínculo com o indivíduo: assim, o sentimento
absorvido pela imaginação se inclina sempre mais ao infinito, sem perder as
características de autenticidade, em que o conhecimento se desenvolve paralelo à consciência.
Quanto mais o homem conhece, tanto mais o eu se conhece. Do mesmo
modo, a vontade é igual aventura. Conquanto, a vontade é em si mesma concreta
e abstrata, aberta a todas as possibilidades. Quanto mais a vontade transcende,
mais imanente fica. Portanto, a vontade é transcendente e imanente, e sua principal atividade é correr o risco de cada nova possibilidade do eu perder-se na vontade de querer, de conhecer e sentir.
Já no domínio religioso, o eu busca compreender o vazio do infinito. Só há
um caminho para chegar ao vazio do infinito: A fé! Quando mencionamos que o
desespero provém da mediação dialética do eu no conflito entre o finito e o
infinito, podemos perceber que a incompreensão sobre a origem da vida afasta
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sempre mais o homem de si mesmo. Espiritualmente nos castramos, porque a
estrutura originária está sempre presente, entretanto, o desequilíbrio entre o estado orgânico e psicológico remete o homem à idéia de medo do desconhecido.
O medo de nova possibilidade faz o eu renunciar ser ele mesmo ou não ousar sêlo. Entretanto, Kierkegaard pensa que muitos não conseguem a autenticidade em
decorrência das influências dos artifícios que preenchem de tal modo suas vidas
que, nessa ladainha de ocupações se esquecem de si mesmos, distanciando-se
mais e mais de seu próprio ser. Ao afastarem-se de si, se sentem seguros em
assemelhar-se aos outros: é mais fácil ser uma imitação do que correr o risco de
se tornarem autênticos. Assim, o homem extravia-se e corrompe-se! Torna-se
uma ovelha perdida do aprisco da vida, perdida de si. Nessa circunstância,
o infinito já não é mais entrave; sem rumo o desespero oscila em qualquer
direção, isto é, o homem que não reconhece sua natureza espiritual, não discerne sua realidade no mundo, não tem consciência de si. O desespero comenta
Kierkegaard, faz de tal homem um oscilante sem direção, sem regras de prudência, sem entrave:
Se arrisco e me engano, seja! A vida castiga-me para me socorrer. Mas se nada
arriscar, quem me ajudará? Tanto mais que nada arriscando no sentido mais
lato (o que significa tomar consciência do eu) ganho ainda por cima todos os
bens deste mundo – e perco o meu eu (1979, p. 211).
No corpo, o homem vive uma vida superficial, pode conquistar tudo que
deseja, mas por não reconhecer seu ser humano, vive um vazio existencial, e, no
excesso do egoísmo, constrói sua existência material em prejuízo da vida espiritual. O possível e o necessário são dupla força contraditória em movimento constante de transformação. A realização do eu depende dessa relação oposta. Em
Kierkegaard, o desespero do possível ou a carência da necessidade, depende da
dialética de ambos. A função do possível é reter o finito e o infinito, limitando o
eu a uma relação. Se o possível repelir a necessidade, o eu precipita-se e perde-se
na necessidade. A necessidade indica as fronteiras internas, ou seja, o eu habita a
necessidade: para realizar-se se desloca da necessidade, ampliando o campo do
possível. Desse modo, o possível tudo abarca e o eu absorvido pela necessidade
arrisca a possibilidade de se realizar. Para haver intensidade de a possibilidade se
fazer real, o instante do possível deve mover-se numa rapidez tal que ao eu tudo
pareça possível: assim, atinge uma dimensão imaginária sem limite. O eu, como
necessidade, precisa do possível; portanto, a necessidade se unifica a possibilidade da realidade:
[...] a realidade não se une ao possível na necessidade, mas é esta última que na
realidade se une ao possível. Não é também por falta de força [...] que o eu se
extravia no possível. O que lhe falta, no fundo, é a força de obedecer, de se
submeter à necessidade inclusa no nosso eu, do que se pode chamar as nossas
fronteiras interiores (KIERKEGAARD, 1979, p. 212).
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Kierkegaard: O itinerário dialético entre finito e infinito
Não se trata, aqui, de defender o individualismo, mas o que o autor pondera
é o problema do modo como o homem pensa e refina a sensibilidade entre os
estado estético, ético e religioso. O mundo é um meio de apreensão, onde o
homem apreende sua existência. Ao tomar consciência de si, percebe que a necessidade de realizar-se como ser espiritual é uma luta entre multiplicidades e
possibilidades. Sem pretender alterar a condição da fragilidade da natureza humana, a intuição é o caminho para o reconhecimento concreto, a partir do qual,
o homem decide sobre suas escolhas e a própria identidade. A partir da intuição,
o homem chega à subjetividade da fé e se coloca diante de Deus.
A profundidade da vida espiritual diante da aflição da consciência, da culpa,
do pecado, é o vínculo da relação oposta entre o corpo e a alma. Nessa luta dos
opostos, o homem se desorienta, porém, o desespero sempre o reconduz à realização da plenitude da vida. Para Kierkegaard, o desespero é meio pelo qual o
homem rompe os limites da possibilidade, amplia sua imaginação para além da
razão e aflora ao sentimento de fé. A passagem da razão finita à infinita, ou seja,
o salto do racional ao irracional possibilita ao homem se autoconscientizar de sua
existência eterna. O eu espiritual livre avança, refletindo um imaginário de possibilidades e age como um espelho que reflete o interior para o exterior. Refletindo
o ser oculto, reflete o homem real. Olhar somente no próprio possível, pensa
Kierkegaard, é semiverdadeiro. O homem deve abarcar-se, compreender-se como
finito e infinito. Desse conflito entre ser e não ser, o homem define-se e ultrapassa
sua existência pessoal, potencializando o sentimento de liberdade transcendente,
em que o espírito se ergue sem fronteira e perpassa a intuição subjetiva no intimo
da fé, na Revelação de Deus!
Quando Kierkegaard fala da Revelação de Deus, instaura-se um paradoxo
racionalmente incompreensível. O paradoxo da verdade subjetiva, a contradição
da vida entre o racional e irracional. A luta dos opostos, na qual a vida no antagonismo de forças contrárias se esforça para se realizar e alcançar seu estado pleno!
Existem verdades as quais precisamos compreender a partir do esforço próprio. O em si da vida possui sentido subjetivo, é dimensão individual, na qual o
homem mantém relação consigo como possibilidade para si. A alma agita-se com
as incertezas e limites. Para superar a angústia do desespero e todo esse conflito
entre estado físico e mental, o homem deve encontrar força justaposta como um
meio de libertar-se das incertezas das múltiplas possibilidades de escolhas.
Podemos acrescentar os desvarios como um sentimento que tem sua origem
no desejo dividido entre nostalgia e melancolia. Nesse sentido, a persuasão do
pensamento do autor ao imaginar a angústia como uma possibilidade para encontrar esperança à vida. Partindo dessa convicção, Kierkegaard vê na fé um
meio que orienta à certeza irracional. Ter fé é assumir o risco de escolher querer ser,
aceitar as infinitas possibilidades de relação com o mundo; consigo mesmo e
com Deus.
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NUNES, Inês Helena Madruga
Nos três níveis de consciência, à existência estética, ética e religiosa, estão em
correlação com as duas zonas-limite: Ironia e humor! A ironia é a zona-limite
entre estética e ética; o humor, a zona-limite entre ética e religião. Os estados se
transformam, e, como num salto, o homem passa de um estado para outro. Não
há síntese, caso houvesse uma síntese dos estados, a existência humana deixaria
de ser, é o homem decide passar de um estado a outro.
Quando o possível se realiza, se desprende da necessidade, mas traz consigo
a angústia. Na angústia encontra-se toda a possibilidade de esperança da vida,
porque, o desejo da realização do possível, faz o eu perder o rumo de regresso a
si mesmo. O melancólico ao perseguir o possível da angústia, afasta-se sempre
mais de si mesmo. Sucumbindo em sua própria angústia, transvia-se por não
querer correr o risco de escolher uma possibilidade.
Esperar um possível, de igual modo, é desesperar. Assim, a espera traz em si
o desesperar. Por ex., se para Deus tudo é possível, significa dizer que, a qualquer
momento algo pode realizar-se. Parece uma expressão deslocada, mas para o
homem que crê é decisiva. Quando os possíveis humanos se esgotam, os possíveis da esperança de que para Deus tudo é possível se renovam. À vontade de
realização do homem permite o salto da fé. Porém, crer em algo abstrato, é crer
para compreender. Crer é transcender a própria razão, é transpor os limites da
razão e fazer do irracional um meio para alcançar um fim: Aceitar Deus através
do ato irracional da fé!
A liberdade espiritual, o supremo impossível humano é a luta entre racional
e irracional. A possibilidade é o ato que move o desesperado a renovar forças
para viver, sem esperança de vida, não há possibilidade de crer. Esse é o movimento dialético da fé, um combate entre esperança e provável. O medo de aventurar-se a um perigo, cujo risco depende de diversos fatores. O que crê sabe que
corre risco, mas suprime o medo através da esperança. Aquele que espera, espera
o que não vê, e, para esperar o que não vê, precisa acreditar no possível. Ter
confiança de que o possível de Deus é presente na angústia, e, Ele pode sempre!
Essa é a saúde da fé, afirma Kierkegaard, uma fé saudável que resolve contradições. Assim, a certeza humana se desprende na angústia para encontrar em si a
existência infinita.
Para o homem determinista e fatalista há somente necessidade. Não há relação entre possível e necessidade. Formar a personalidade do eu espiritual é uma
alternativa que envolve inspiração e expiração para não asfixiar o eu. No caso do
fatalista, ao perder o eu, perde também Deus. Ter carência de Deus é ter carência
do eu. Para o fatalista, a necessidade está acima de Deus. Conforme o autor,
Deus é ausência de necessidade, como o fatalista cultua a necessidade, seu eu
espiritual é mudo, falta-lhe a dialética da fé. Orar é um exercício voltado para o
possível. Para orar é necessário um Deus Absoluto e um eu autêntico. O mover
da oração faz o eu nascer continuamente para vida espiritual e tomar consciência
de que para Deus tudo é possível.
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Kierkegaard: O itinerário dialético entre finito e infinito
Conforme o exemplo do homem fatalista, se houvesse somente necessidade, a natureza humana seria sem linguagem, sem dialética. Na dialética da fé,
através da linguagem o homem se comunica com Deus pela oração. Necessidade, em outras palavras, é carência de compreensão espiritual. Para o que crê,
seu desespero se refugia no domínio da esperança. Nesse domínio, o desespero
é o desafio entre fraqueza e condensação, é um desespero mais qualificado, de
natureza dialética ético-religiosa, é a idéia de Deus elevando-se na imaginação
do homem.
A contradição dialética da fé relacionada à culpa do pecado perpassa do
psicológico à existência religiosa, uma idéia de desespero resignado, voltado a
Deus. A vida estética é uma soma de erros e desencontros, uma vida onde o
pecado é agregado. Uma relação estética da imaginação entre o bem e a verdade, em vez de uma orientação real para construir a própria vida, a identidade do
eu espiritual. O desespero do estético é suprimido pela consciência de estar
perante Deus. Entretanto, como não há dialética de fé, a existência estética é
uma impenetrável confusão. Em seu suplício, só Deus pode salvá-lo, contudo,
o estético ama tanto seu suplício que não quer livrar-se dele, em outras palavras, está muito apegado ao que lhe traz conforto e felicidade. Não havendo
dialética de fé, só lhe resta o espinho na carne como sinal de que ele deve humilhar-se e reconhecer seu ser espiritual e seu lugar natural de homem. Assim, o
estético imita outras pessoas, não reflete sobre sua existência, pensa ser alguém, quanto espiritualmente não existe!
As graduações da consciência do eu até o salto do finito ao infinito é um
processo de conscientização que move o homem a desenvolver em si os termos
dialéticos entre um salto a outro, são estados de consciências do ser humano, cuja
mediação é o próprio homem que faz. Quando esse eu humano perante Deus
adquire atributos infinitos, deixa de ser um eu mediado pelo homem para ser um
eu mediado por Deus. A mediação do eu é sempre o que tem diante de si. Por
ignorância, o ser estético eleva o pecado a um infinito de potência, considerando
Deus como que externo ao seu ser pensa que seu pecado jamais é contra Deus:
[...] o eu tem a idéia de Deus, mas isso não o impede de não querer o que Deus
quer, nem de desobedecer. Tampouco nem só por vezes se peca perante Deus
[...] o que transforma um pecado numa falha humana é a consciência de que o
culpado tem de estar perante Deus (KIERKEGAARD, 1979, p. 242).
O desesperado condena-se à proporção da consciência do eu, mas o eu condena-se na mesma proporção da mediação infinita. Há uma reciprocidade entre o
eu finito e o Deus infinito. A ideia de reciprocidade conscientiza o eu de estar
perante Deus, fazendo-o concreto e individual. Desse modo, o egoísmo pagão
não pode ser qualificado como egoísmo cristão. O eu do pagão não tem consciência de Deus, só tem como mediação o próprio humano. Sob o ponto de vista
infinito, Deus ao julgar o homem a partir da eternidade, sabe que o pagão permaLa Salle - Revista de Educação, Ciência e Cultura | v. 14 | n. 1 | jan./jun. 2009
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NUNES, Inês Helena Madruga
nece no erro por ignorância. Em certo sentido, estar sem Deus no mundo é
leviandade, é a expressão mais adequada para esse tipo de procedimento. A falta
de sentido de Deus traz consigo, a falta de sentido da vida. Não crer em Deus é
viver levianamente, um tipo de mediocridade entre o homem e sua dificuldade de
acreditar para compreender.
O pecado, é desobediência que nega a vida, definindo melhor, é estar em
desconformidade com o eterno. O pecado ganha força na fragilidade e fraqueza.
Depois, desespera-se da fragilidade-fraqueza e se potencializa sempre mais. Na
dualidade da vida humana o pecado é real e nos elos do infinito todas as formas
são agregadas. Crer é transcender na eternidade de Deus. Portanto, o contrário
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de pecado é a fé. Tudo que não provém de fé é pecado. Portanto, o contrário do
pecado não é a desobediência, mas a falta de fé!
A contradição entre pecado e fé domina e transformar os conceitos éticos,
implica o absurdo e o paradoxo. O cristianismo, definido a partir do escândalo,
“pois é o escândalo que defende o cristianismo contra qualquer especulação”.
(KIERKEGAARD, 1979, p. 243). Se os homens se escandalizam com o cristianismo é porque ele é elevado, não é mediação humana. Ao amputar tal escândalo
ao cristianismo, não podemos ignorar que o próprio Cristo adverte contra o escândalo, sua possibilidade e necessidade. Se a possibilidade é necessária, ela deixa
de ser uma parte infinita e essencial, então, segundo Kierkegaard, “Cristo cai no
contra-senso humano” (1979, p. 246).
A fé por si só é uma realidade subjetiva. Ter humildade suficiente e coragem para ousar acreditar, é uma tarefa que conduz o homem a crer no possível.
Sem coragem e humildade não há fé, só escândalo. Por isso, a expressão “crer”
significa escândalo para uns e loucura para outros. O escândalo é o parente
mais próximo da inveja, uma inveja que se volta contra o próprio ser. O cético,
por ex., pela mesquinhez, suprime a imaginação, fé é algo que jamais passa por
sua mente.
Portanto, para falar sobre fé, a origem do escândalo deve ser analisada como
admiração que se dissimula. Para o infeliz, sua admiração firma-se na inveja e
insinua extravagância. Do mesmo modo como a admiração e inveja é uma relação entre os homens, adoração e escândalo é o elo entre homem e Deus. O autor
ao se referir sobre o entendimento humano adverte para “não confundir o ouro
com um metal dourado”. Formas distorcidas de reflexões estragam o conhecimento. Colocar valor no que não há valor é dimensionar a mediocridade ou incorrer aos excessos e a mingua do conhecimento. Quando alguém ousa ultrapassar tal mediocridade, os sábios o declaram-no louco! O cristianismo “com um
passo de gigante para além desse nada a mais”, salta até o absurdo. É desse salto
absurdo que o escândalo se origina:
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BÍBLIA, N.T. Romanos. Português. Bíblia Sagrada: Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. Cap. 14, vers. 23.
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Kierkegaard: O itinerário dialético entre finito e infinito
Vê-se agora que extraordinária tolice se comete defendendo o cristianismo,
como se trai assim o restrito conhecimento do homem, e como essa tática,
ainda que inconsciente, tem, sub-repticiamente, partida ligada ao escândalo,
fazendo do cristianismo uma coisa tão lamentável, que por firme é necessário
advogar a sua causa para o salvar [...] advogar é desacreditar sempre
(KIERKEGAARD, 1979, p. 246).
O escândalo está sempre presente na definição do pecado. Um pagão reconhece a natureza do pecado, mas para o cético, o pecado não existe. Na definição socrática, pecar é ignorar. O defeito de tal definição está em ignorar o
sentido e a origem do pecado, ou de outro modo, ainda que o pecado seja
ignorância, a partir do conhecimento cristão, pecar é necessidade, de certa forma, o sentido é correto, há em seu significado uma ignorância original. Nada se
sabe de verdade sobre a origem do pecado. Se o pecado é uma ignorância, é
uma ignorância adquirida. Então, o pecado é radical, não na ignorância, mas no
mover que há na origem da existência, “no obscurecimento do nosso entendimento”. Admitir esse defeito a partir da definição socrática reaparece a questão
se o homem possui ou não consciência deste obscurecer do conhecimento. Se
não há conhecimento do pecado, a consciência já havia sido obscurecida antes
mesmo do questionamento?
O problema se renova quando se pensa o contrário. Se “na imanência de
obscurecer a sua consciência, fosse consciente” (KIERKEGAARD, 1979,
p. 247), nesse caso, o pecado não tem sua origem no conhecimento, mas na
vontade. Evidencia-se assim, o problema da perspectiva relação sobre o conceito do pecado. Nessas relações, a definição socrática não atinge a raiz do
pecado. Sócrates, considerado um moralista e o inventor da Ética, sua tendência intelectual o orienta para a ignorância, para o nada saber que, eticamente, é
outra coisa. Para Kierkegaard, Sócrates não significa a ignorância, ele parte
dela. Certamente, Sócrates não é um moralista cristão dogmático. Esse é o
motivo pelo qual ele não entra na raiz da questão, na antecedência da explicação do pecado original. Sócrates não avança até a radical natureza do pecado,
significando, de certo modo, defeito de expressão. Entretanto, se o pecado pensado por ele é ignorância, sua existência tende a desaparecer. Se crer é admitilo, como Sócrates imagina fazer injustiça, se conhece o conceito justo? Se a
definição do conceito injusto está correta, o pecado não existe. Conforme a
regra cristã, partindo dos conceitos de justo e injusto, é precisamente o conceito da “doutrina do pecado” que define a radical diferença da natureza do pecado entre cristianismo e paganismo.
O cristão crê que há pecado, mas o pagão ou o homem natural não sabe o
que representa. Há diferença na natureza de ambas as concepções. O que faltou
na concepção socrática do pecado foi a exclusão da vontade e desejo. A intelectualidade grega, extasiada com a felicidade, excessivamente estética e irônica, maliciosamente pecadora para compreender que aquele que sabe o significado do
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NUNES, Inês Helena Madruga
conceito justiça, comete injustiça. Assim, a sabedoria grega dita intelectualidade,
mas desdenha do conhecimento. Por não fazer distinção entre saber e compreender, sua discórdia é grotesca, escapa à possibilidade de compreensão.
A diferença entre as duas formas de compreender passa a ser a salvação da
miséria humana. Para Kierkegaard, a diferença socrática se distancia quando afirma o conceito, mas não entende seu significado. Então, Sócrates tem razão em
dizer que fingir ser justo não é pecado, se não compreende, assim, não pode ser
imputado como pecado, portanto, pecar é ignorar! O defeito socrático evidenciase na ausência da qualidade dialética entre compreensão à ação. O cristianismo
parte da dialética, “embate com o pecado, mostra-o na verdade e atinge o conceito”, vai à raiz e aplica-lhe o dogma através do paradoxo.
A vida do espírito não tem paragem, tudo é atualidade. Se num dado momento, por ex., um homem reconhece o significado justo e não o pratica, o conhecimento estanca, porém, o resíduo de tal conhecimento é absorvido pela vontade. A vontade determina a natureza interior do homem. A vontade do homem
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é a sua fé. Mesmo que a vontade rejeite o conhecimento, o conflito entre vontade e conhecer se renova e o conhecer de uma época se obscurece na outra.
A prática do conhecimento deve ser aplicada à apreensão, para que a passagem
do pensamento se realize.
Os conflitos instintivos tende a estancar a vontade, impedindo-a. Quando o
conhecimento e a vontade está em acordo, o conhecimento se obscurece completamente. O mútuo acordo entre ambos ratifica tudo que a vontade arranja.
Deste modo, muitos vivem insensíveis, obscurecendo seu juízo ético e religioso
que os induz a tomar decisões que até eles mesmos reprovam, desenvolvendo
um conhecimento estético e metafísico, que para o ético é superficialidade.
Compreender é a relação do homem consigo mesmo, mas crer é um exercício de fé, é relação do homem com o eterno. O conceito de pecado, a partir do
cristianismo, é de fácil compreensão, pois explica o significado da salvação humana. Para o cristão, o pecado está na vontade e não no conhecimento, mas a corrupção da vontade transpõe a consciência e deturpa o conhecimento. Com a
deturpação do conhecimento, para compreender a natureza do pecado, se faz
necessário à relação de Deus para instruir o homem sobre suas origens, porque,
o conhecer da filosofia moderna é um conhecer pagão. Para Kierkegaard, o defeito dos modernos foi escamotear o conhecimento socrático ao cristianismo.
Abranger a natureza do pecado, definindo-o a partir da ortodoxia é negação,
fraqueza, ignorância, etc. O conflito acontece entre o crer e o compreender.
A Revelação é um meio para ensinar ao homem decaído. A doutrina do pecado é
um dogma, sendo um dogma passa a ser um paradoxo. Fé e dogma mantêm entre
si um sustentáculo e defesa contra a sabedoria pagã. Quanto à ortodoxia, há um
equívoco dogmático e especulativo de que o pecado é uma afirmação da negação.
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BÍBLIA, N.T. Mateus, Cap. 9, vers. 29.
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Kierkegaard: O itinerário dialético entre finito e infinito
A duplicidade teológica da doutrina do pecado ligado ao arrependimento desvela
a negação da negação, ou seja, de duas negações surge uma afirmação.
De resto, o percurso da dialética entre o finito e infinito é a possibilidade de
ser do eu espiritual, remete ao princípio cristão de que o pecado é uma oposição,
um princípio não racional, um paradoxo no qual é necessário acreditar para compreender. Revelar a contradição no modo de compreender é uma primeira tentativa para decidir crer ou não. Não é difícil compreender algo que está relacionado
com a vontade do homem. Para compreender os paradoxos cristãos, o homem
estará entre os opostos fé e escândalo. Crer para compreender é um ato da vontade. A natureza do pecado se descreve como um desespero que move a vontade
do homem ético ao nível religioso, um processo subjetivo, um ato da consciência
de si.
Referências
BÍBLIA. Estudando a Palavra de Deus. São Paulo FTD; Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.
FREUD, S. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 2002.
KIERKEGAARD, S. A. O desespero humano. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
VALLS, Á. Entre Sócrates e Cristo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.
Recebido em 10/07/2008
Aprovado em 10/09/2008
La Salle - Revista de Educação, Ciência e Cultura | v. 14 | n. 1 | jan./jun. 2009
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