MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE
Secretaria de Extrativismo e Desenvolvimento Rural Sustentável
Diretoria de Extrativismo
CARTEIRA INDÍGENA
ENCONTRO DE INTERCÂMBIO COM POVOS INDIGENAS
MATO GROSSO DO SUL: 20 a 28 de novembro de 2007
RELATÓRIO DAS REUNIÕES REALIZADAS EM
TERRAS GUARANI DO CONE SUL DO MATO GROSSO
DO SUL
2º. Produto
Carteira Indígena/MMA/PNUD
Rubem F. Thomaz de Almjeida
Consultor Antropólogo
FEVEREIRO 2008
1
ÍNDICE
Introdução ........................................................................................................................ 03
Programação ........................................................................................................ 04
Agenda de Encontros: 20 e 28.11.2007 ............................................................... 05
PARTE I
Dourados
I.1.- Os Encontros na Reserva de Dourados ................................................................... 06
I.2.- Dinâmica dos Encontros em Dourados .................................................................... 07
I.3.- Aspectos positivos dos encontros em Dourados ...................................................... 07
I.3.1.- Projetos de piscicultura em Dourados (20 e 21.11) ............................................... 07
I.4.- Dificuldades ...............................................................................................................08
I.4.1.- O trabalho coletivo ................................................................................................. 08
I.4.2.- Assistência Técnica na piscicultura ....................................................................... 09
I.4.3.- Veneno de soja e roubo de peixes: problemas ..................................................... 09
I.5.- Diversificação de atividades ......................................................................................10
Cartela 1º. Dia .......................................................................................................12
I.6.- A ASSIND e as Associações Indígenas ................................................................... 14
I.6.1.- Recursos para articulação ..................................................................................... 14
I.6.2.- Criação de outras associações .............................................................................. 14
I.7.- Projetos da KATEGUÁ, IMAD, COCTEKD E GAPK (22.11.2007) ........................... 15
I.7.1.- Os poucos pontos positivos indicados ................................................................ 15
I.7.2.- Dificuldades ............................................................................................................16
I.7.2.1.- Projeto de Granja (criação de galinhas) ............................................................. 16
I.7.2.2.- Projeto de pomar e viveiro de mudas frutíferas .................................................. 16
I.7.2.3.- Projeto de “corte costura, tricô, crochê e artesanato” ....................................... 18
I.7.2.3.1.- Kyse yvyra: capacitação necessária para desenvolver projetos .......... .......... 18
Cartelas 2º. Dia .....................................................................................................20
PARTE II
Os Kaiowa de Guyra Roka, Paso Piraju, Ñande Ru Marangatu e Caarapó
II.1.- As Áreas de Conflito: Guyra Roka, Paso Piraju, Ñande Ru Marangatu ............... 21
II.1.1.- Aty Guasu: foro de decisões .................................................................................22
II.1.2.- Guyra Roka (23.11.2007) ......................................................................................23
II.1.3.- Paso Piraju ............................................................................................................25
II.1.4.- Ñande Ru Marangatu (dia 26.11.2007) .................................................................26
II.2.- Caarapó (27.11.2007) .............................................................................................. 27
PARTE III
2
Encontros com Proponentes Não Indígenas
III.1.- Proponentes não indígenas (24 e 28.11.2007) .......................................................30
III.2.- APAE – Ñande Ru Marangatu ................................................................................ 30
III.3.- GAPK e COCTEKD: dificuldades com administração ........................................... 31
III.4.- IMAD ....................................................................................................................... 31
III.5.- GAPK (Bororo, Dourados, 28.11.2007) .................................................................. 32
III.6.- UCDB (Campo Grande, 28.11.2007) ...................................................................... 32
Oficina Nacional ............................................................................................................... 33
Desfecho .......................................................................................................................... 33
Glossário das Siglas ........................................................................................................ 34
3
Introdução
Este documento é resultado dos “Encontros de Intercâmbio com Povos Indígenas
no Mato Grosso do Sul” – mais especificamente com os Guarani-Ñandéva e GuaraniKaiowa – realizados em diversas áreas Guarani ( 1) conforme programado nos Encontros
de Intercâmbio com Povos Indígenas no Mato Grosso Do Sul: 20 a 28 de novembro
de 2007, Plano de Trabalho e Metodologia (1º. Produto).
Estes Encontros, como apontado ali, tiveram como objeto uma aproximação com
os realizadores de projetos auspiciados pela Carteira Indígena e, tendo por base suas
experiências, com eles discutir e levantar subsídios para auxiliar as reflexões de
redefinição de suas diretrizes para torná-la mais eficiente e ágil no apoio a comunidades e
localidades indígenas do país.
O relato em mãos, um 2º. Produto da Consultoria Antropológica aos Encontros
de Intercâmbio no MS, procurou fazer uma “Descrição das Reuniões” realizadas na
viagem entre 20 e 28 de novembro de 2007 a diversas aldeias Guarani no MS para
concretização dos encontros programados e da qual o signatário participou
acompanhando a equipe de quatro técnicos do MMA/CI.
O documento faz, assim, breve descrição dessas viagens e comenta, também de
forma sucinta, as discussões e as dinâmicas operadas durante os encontros realizados
com grupos de famílias indígenas que trabalham com a Carteira Indígena (CI), indicando,
de forma panorâmica e em linhas gerais, o que resultou dessas reuniões que possam ser
úteis para se repensar a CI e suas diretrizes – um texto voltado para a análise da
experiência desses encontros será apresentado nos próximos dias como 3º. Produto
(“Análise e Comentários”) da Consultoria Antropológica.
A viagem correu bem e sem contratempos. Em sua avaliação a equipe considerou
ter alcançado os objetivos previamente definidos de realizar os encontros e discutir com
os índios e instituições não indígenas sobre os trabalhos com a Carteira.
Como previsto (v. 1º. Produto) os encontros de fato apresentaram dinâmicas
diferenciadas nas várias localidades onde ocorreram. Para maior eficácia nas discussões
a equipe procurou adequar-se a cada situação social criada nos Encontros entre grupos
de indígenas diferenciados entre si (v. 1º. Produto), e “autoridades de Governo que vieram
de Brasília”.
A orientação metodológica para tanto foi de “ir aos índios” para melhor entender
suas demandas, suas aspirações, expectativas e os problemas de maior relevância
segundo sua própria interpretação. Implícito nisso a expectativa de estabelecer diálogo e
conversações com as famílias locais, procurando ir além das relações estabelecidas com
as chamadas “lideranças”, os indígenas mais visíveis e mais compreensíveis aos
brancos. Buscando minimizar o problema do pouco tempo disponível para entender os
projetos, a equipe da CI procurou romper minimamente com esse obstáculo e, ao invés
1
O termo Guarani quando usado aqui, estará englobando os Guarani-Kaiowa, que se autodenominam ava
Tavyterã, e os Guarani-Ñandéva, que também podem ser conhecidos por ava-guarani (ou apenas guarani),
ava-chiripa ou ava-katu-ete.
4
de levar representantes de grupos familiares a um hotel para reuniões, se deslocou para o
lugar dos índios.
O documento está dividido em três partes de modo que as diferentes situações em
que se processaram as discussões são apresentadas em módulos específicos que
pretenderam facilitar a compreensão. A Parte I descreve e faz breves comentários sobre
as reuniões com os variados grupos na Reserva de Dourados; a Parte II refere-se às
Áreas de Conflito e inclui Caarapó por suas diferenças marcantes com Dourados –
embora seja uma Reserva (1914) também populosa; a última Parte III apresenta os
resultados das conversas com as associações não indígenas proponentes de projetos
junto à Carteira Indígena.
Programação
Embora se tenha estabelecido uma programação antes de realizar a viagem (v. 1º.
Produto), algumas alterações se operaram na agenda da equipe sem prejuízos para o
trabalho e objetivando maior produção. Os primeiros três dias foram dedicados aos
projetos de piscicultura, “corte e costura, crochê e tricô”, criação de galinhas e cabras,
pomares e viveiros, todos em Dourados. Na continuidade, foram feitas visitas e reuniões
com as famílias indígenas de Guyra Roka, Paso Piraju, Ñande Ru Marangatu e Caarapó.
Finalmente os encontros com as proponentes não indígenas – v. agenda a seguir.
*
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Durante todo o trabalho foi bastante ativa a participação dos técnicos da equipe do
Ministério do Maior Ambiente/ Carteira Indígena, proporcionando ao monitor respaldo
eficaz diante de eventuais aspectos desconhecidos do funcionamento da CI.
Encarregaram-se de elaborar e fixar as cartelas que resumiam o discurso dos
participantes, cuidarem da infra-estrutura e da logística das reuniões e tiveram
participação importante no processo de discussão, levantando questões, opinando nos
momentos de reflexão conjunta, informando sobre funcionamento da máquina
administrativa do governo, orientando e respondendo demandas dos participantes. Não
houve qualquer problema no correr dos trabalhos e o grupo funcionou efetivamente como
equipe.
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AGENDA DE ENCONTROS
20 e 28.11.2007
20.11.- ASSIND (piscicultura) – Dourados
21.11.- ASSIND (piscicultura) – Dourados
22.11.- KATEGUÁ, IMAD, COCTEKD, GAPK (artesanato, corte
costura, criação de galinha, criação de cabras, outros) – Dourados
23.11.- Guyra Roka e Paso Piraju (roças de subsistência)
24.11.- Proponentes não-indígenas (sede de uma das instituições
na cidade de Dourados).
26.11.- Ñande Ru Marangatu (projeto emergencial)
27.11.- Caarapo (criação de galinhas com chocadeira elétrica)
28.11.- Visita a projeto de pomar e viveiro de mudas da GAPK em
Dourados e reunião com UCDB em Campo Grande.
6
PARTE I
Dourados
I.1.- Os Encontros na Reserva de Dourados
Os três primeiros dias de reuniões se deram na Reserva de Dourados e tiveram
lugar nas instalações de uma igreja evangélica – uma sala nova, arejada e bem
construída em alvenaria – que emprestara o local para os encontros dos índios com a CI.
Lugar apropriado para receber as aproximadamente trinta pessoas que participaram em
cada dia de conversas.
As reuniões foram organizadas por técnicos do MMA e dois kaiowa membros
regionais da Comissão de Avaliação de Projetos Indígenas – CAPI. Um é professor em
Caarapó e outro trabalha como funcionário da Prefeitura de Dourados, além de ser
dirigente da ASSIND. Coube a eles a indicação e a decisão sobre o local das conversas
em Dourados e Caarapó.
Nesses três primeiros dias de trabalho a dinâmica das reuniões se revestiu de um
caráter “ocidental local formal” tendo em vista composição dos grupos auspiciados pela CI
na Reserva, em sua maioria indígenas terena e, quando kaiowa e ñandéva, com bom
domínio do português e dos códigos dos não índios. A dinâmica adotada esteve referida
às sugestões decorrentes da oficina realizada com grupos indígenas do Nordeste ( 2),
embora sem a divisão das plenárias em grupos já que em Dourados não eram tão
numerosas; o uso de cartelas afixadas na parede para anotar partes importantes das
discussões só foi adotado aqui.
Na primeira parte da manhã o comparecimento dos participantes esperados foi
reduzido, obrigando dirigentes de associações e organizadores do evento a saírem com
alguns veículos em busca de “cabeçantes” (3) e membros de grupos de trabalho, o que
adiou um pouco o início das conversas. Na tarde desse dia e nos dois seguintes,
constatada a concretude das reuniões e de que ali se falaria de recursos e projetos, a
presença dos envolvidos com a CI foi voluntária e agregou número representativo de
pessoas e experiências que permitiram boas discussões.
Este primeiro momento contou com a presença da coordenadora da Carteira
Indígena, quem fez breve apresentação sobre funcionamento, desempenho e área de
abrangência desse ente de Governo; afirmou, como seria reiterado em todo o
procedimento dos encontros futuros, que a Carteira Indígena tinha interesse em conhecer
os problemas enfrentados pelos projetos apoiados por ela para obter subsídios dos índios
do MS na redefinição das diretrizes que norteiam suas ações. As opiniões e
considerações dos participantes dos encontros serão levadas a um foro ampliado onde
representantes indígenas de todo o país, inclusive dos Guarani no MS, discutiriam como
melhorar a atuação da Carteira Indígena. Nesse sentido, os técnicos da CI e o mediador,
informou a coordenadora, estavam promovendo reuniões no MS para escutar os índios.
2
Ver documentos “Proposta Metodológica - Oficinas de Consultas Regionais - Revisão das Diretrizes da Carteira
Indígena” e “Oficina da Carteira Indígena com os Povos do Nordeste e Leste - 16 a 19 de Outubro de 2007, Garanhuns
(PE), Programação e Estratégia de Moderação”, ambos produzidos pelo MMA/CI em 2007.
3
“Cabeçante”: termo utilizado pelos índios da região para indicar aquele que encabeça, que assume a liderança de um
grupo de trabalho; o termo não é usado para líderes políticos a não ser como figura retórica.
7
Esta apresentação foi utilizada como referencial nos outros encontros, mantendose, assim, mesma estrutura de discurso em todos os lugares visitados, com adequações
face às especificidades locais.
I.2.- Dinâmica dos Encontros em Dourados
Após a apresentação pautada nos referenciais acima indicados, procedia-se uma
rodada para que os presentes dissessem nome e projeto ao qual estavam vinculados;
finda essa rodada era iniciada uma segunda na qual cada um comentava sua experiência
com o projeto, mostrando “pontos positivos, “dificuldades” e as “mudanças propostas” –
esta foi a classificação dada às cartelas onde os técnicos do MMA apontavam
resumidamente os aspectos considerados mais relevantes abordados nas discussões.
Em avaliações parciais sobre o andamento dos trabalhos a equipe considerou ter
criado, nas reuniões em Dourados, uma sistemática de conversas que contribuiu para
chegar aos objetivos esperados de se obter informações sobre as experiências de projeto.
Para efeitos do diálogo pretendido nas diferentes localidades e situações Guarani, houve,
como referido, empenho dos agentes em seguir as determinações da população local
para a dinâmica dos encontros buscando, assim, criar situações confortáveis para os
realizadores das experiências (os índios) apresentarem com desenvoltura seus trabalhos
– os Guarani sempre se sentem “apertados” ou “oprimidos ([a]jopy) pelo comportamento
do branco que denominam mbaretepe (arrogante, prepotente, gritão, mandão, autoritário).
I.3.- Aspectos positivos dos encontros em Dourados
I.3.1.- Projetos de piscicultura em Dourados (20 e 21.11)
As reações dos índios diante da Carteira Indígena foram positivas, não só em
Dourados, mas em todos os encontros realizados. Nos primeiros dois dias, quando se
tratou exclusivamente dos projetos de piscicultura propostos pela ASSIND e Prefeitura de
Dourados. , os índios “enalteceram” e “agradeceram a presença, atuação e apoio” da CI e
do “Governo Federal” que, com os projetos, “olhou para os índios”.
Na compreensão de boa parte dos participantes o apoio da Carteira “valorizava o
trabalho dos índios”, assim como o “crédito às associações indígenas” e o estímulo ao
“trabalho coletivo” eram “positivos” por levar os índios a conversar e refletir sobre o
trabalho na aldeia, “agregando pessoas” e promovendo a “integração e a solidariedade
entre as famílias”.
O depoimento de um chefe de família (terena) cujo trabalho alcançou resultados
positivos e que resume aspectos do trabalho tocados por muitos, ponderou ter sido uma
boa experiência para seu grupo familiar (filhos, genros, irmãos, sobrinhos) pois os levou a
intensificar o diálogo e as relações entre a parentela. Foi enfático, por outro lado, ao
referir-se às dificuldades para conseguir “juntar pessoas” para o trabalho uma vez que os
homens necessitam ir à changa (4), e isso os impede de dar maior dedicação ao trabalho
na aldeia.
Os discursos reiteraram freqüentemente a importância da existência da Carteira
Indígena e insistiram na necessidade de que os projetos e a CI sejam ampliados e
4
É o trabalho remunerado fora da aldeia, temporário e não especializado.
8
tenham continuidade, uma vez que, como entendiam alguns, tratava-se de projetos
“pioneiros” que não poderiam ser interrompidos. A expectativa e insistência com que os
índios se referiram à necessidade de continuidade perpassaram o discurso de todos os
projetos; é um aspecto que deve ser considerado com atenção pela CI – disso se falará
no 3º. Produto.
Tendo em vista o que se escutou dos índios e dado o pouco tempo de experiência
que têm com essa “novidade do Governo”, o ponto positivo por excelência da Carteira
Indígena é, a rigor, sua própria existência.
I.4.- Dificuldades
Nos dois primeiros dias foram discutidos, como mencionado, apenas os trabalhos
de criação de peixes. Os grupos organizados para a piscicultura e que alcançaram bons
resultados (5) , confirmam que a iniciativa pode ser proveitosa.
Confirmam-se também teorias e reiteram-se experiências empíricas. Constata-se,
com o bom andamento de algumas experiências que, se todas as variáveis e técnicas de
criação de peixe em açudes conhecidas pela Biologia estiverem sob rígido controle, é
perfeitamente possível de se produzir peixes.
Trata-se, contudo, de produção que, enquanto variável da Economia, implica em
trabalho e, antes de tudo, em força de trabalho (aquela que faz a produção existir, que a
materializa, isto é, o homem). Nesses termos é prudente que qualquer planejador ou
gestor não perca de vista que se trata de uma variável não controlável, motivo que tem
levado muitos projetos a obterem resultados apenas incipientes, quando não o
desperdício total dos recursos aplicados.
Apesar dos inúmeros pontos positivos vividos e comentados pelos índios que
querem ampliar a continuar os projetos, não são poucos, de outro lado, as dificuldades
encontrandas, seja na organização e aceitação das associações indígenas, seja nas
questões administrativas às quais estão sujeitos, nas questões técnicas e, principalmente,
no trabalho coletivo. Aqui serão considerados os aspectos problemáticos que mais
incidiram nos discursos dos índios no correr das discussões.
I.4.1.- O trabalho coletivo
O trabalho coletivo foi tema debatido com entusiasmo nas reuniões em Dourados,
particularmente em relação à criação dos peixes que depende em grande medida, como
planejado em Dourados, do funcionamento do grupo e do envolvimento e dedicação de
seus membros. O problema foi apontado por quase todos os “cabeçantes” de grupos,
salvando-se algumas exceções. "Primeiro”, dizem, “as pessoas se empolgam, depois
deixam o trabalho". A maioria dos “cabeçantes” enfrentou, portanto, inúmeras dificuldades
para aglutinar pessoas em torno das tarefas de criar peixes e obter maior participação dos
companheiros. Foi um dos principais problemas apontados pelos índios em observações
como “nem todos querem trabalhar, mas todos querem usufruir” ou a "maioria não quer
limpar o açude, mas na colheita vem todo mundo", "os companheiros não ajudam"; "de 12
ou 15, foram só 04" para cuidar dos afazeres necessários à manutenção dos tanques;
5
Seria necessário realizar um levantamento mais acurado para se detectar quantos açudes efetivamente apresentaram
produção efetiva e qual o número de pessoas que cada um teria beneficiado.
9
“difícil juntar pessoas” porque “vão para a changa” e o cuidado dos peixes “sobra para o
responsável” pelo grupo. A maioria dos grupos indicou enfrentar esse problema.
É importante salientar, entretanto, que os poucos casos em que o assunto não foi
motivo de queixa referem-se àqueles grupos coesos, com liderança forte e constituída por
membros de uma mesma família e que, tendo terra para plantar, têm economia
equilibrada, o que lhes permite organizar o tempo entre roça, changa, açude – do que foi
possível observar no curto tempo de conversas uma família kaiowa do Bororo preenche
esses requisitos.
I.4.2.- Assistência Técnica na piscicultura
Os projetos de piscicultura para que sejam produtivos e rentáveis exigem controle
de variáveis técnicas importantes, razão pela qual a assistência e a orientação de
especialistas são determinantes. Foram fortes as críticas e reclamos pela carência de
assistência por parte daqueles grupos que não receberam o atendimento que
necessitavam (6). Assim, um número que não foi possível definir recebeu assistência
técnica sistemática ou quando necessitaram e chamaram; outros tantos, contudo,
alegaram não ter recebido uma só visita do técnico apesar dos chamados: “em um ano
compareceu apenas uma vez para ver o meu tanque”, diz um dos que se sentiram
prejudicados com a ausência do técnico. Outros foram atendidos quando necessário.
Mas, segundo boa parte dos depoimentos, faltou orientação técnica.
Foram incisivas e diversas as críticas pela ausência do técnico para orientar os
trabalhos e contornar os problemas tais como erosão e enxurradas que provocam queda
das barreiras que sustentam os tanques; crescimento de fungos; choque térmico;
coloração diferenciada da água; morte inexplicável de peixes (receberam alimentação e
não houve variação aparente da água); dificuldades com a ração; problemas de peixes
que não crescem depois de um ano mesmo recebendo ração diária; água que fica verde
ou marrom e provoca a morte de alguns peixes; tratamento da água; falta de oxigênio e
outras.
Segundo se pôde depreender e que foi, posteriormente, corroborado pelo técnico
em questão, é que este tem um roteiro-cronograma no seu cotidiano de trabalho onde
eram incluídas visitas aos índios; como estes, como era de se esperar, não seguiam a
programação estipulada, não recebiam as visitas. É recomendável que os técnicos se
adéqüem ao programa dos índios e não o contrário se se propõe a ações não
colonizadoras e eficazes em seus resultados (7).
I.4.3.- Veneno de soja e roubo de peixes: problemas
Outros dois problemas foram apontados nos projetos de criação de peixes.
Primeiro, as mortes provocadas pelo veneno aplicado nas plantações de soja que com a
chuva é levado para os açudes contaminando a água. Um segundo problema, tratado de
forma jocosa nas reuniões, é o roubo de peixes. Alguns “cabeçantes” revelaram que
foram vitimas de “pescadores noturnos” que, sorrateiramente, se esgueiravam para o
açude e, com anzol e linha, pescavam e levavam os peixes mais graúdos. Com sua casa
6
Aqui também seria necessário uma investigação ou acompanhamento para saber com algum precisão como se deu essa
atenção técnica e quais os grupos que receberam e os que não receberam.
7
Seria necessário, entretanto, aprofundar o conhecimento sobre a dinâmica dos trabalhos e das relações entre os grupos
para saber se o problema vai além do que apresentou esse técnico.
10
relativamente distante da represa o responsável pelo cuidado do tanque não tinha como
controlar. Critica mais severa, no entanto, foi destinada aos que roubam peixes com
tarrafa, sempre em maior quantidade. Pelos comentários os roubos de peixe são comuns
em Dourados.
I.5.- Diversificação de atividades
No decorrer das discussões surgiram algumas propostas para fomento aos açudes
de peixe na medida em que se constatou a necessidade de estar permanentemente
comprando alevinos e ração para os peixes. Constatou-se a impossibilidade de
sustentabilidade do projeto caso não se realize uma excelente administração para uma
consistente organização da força de trabalho a movimentar o empreendimento.
Entre várias sugestões – todas dependentes exatamente dessas duas
componentes para a criação de peixes –, duas parecem ter sensibilizado os presentes na
discussão e poderão, eventualmente, constituir a continuidade ou o desdobramento dos
tanques de peixe, conforme se discutiu.
A primeira delas, oriunda de um líder kaiowa, foi no sentido de plantar mandioca e
milho que se destinariam a alimentar os peixes, idéia que no decorrer da conversa surgiu
como para “tentar experimentar” elaborar, dentro da aldeia e com orientação técnica, uma
produção de ração para peixes.
Como desdobramento das discussões sobre a sustentabilidade da criação de
peixes, surgiu a proposta de se tentar produzir não só a ração como também os próprios
alevinos. Segundo informações, entretanto, de alguns dos presentes com um pouco mais
de conhecimento no assunto, tal empreitada exigiria, por ser mais sofisticada,
acompanhamento e orientação técnica sistemáticos e cuidadosos, além de exigir recursos
financeiros para criar a infra estrutura; como agravante a dificultar uma eventual iniciativa
nessa linha, não será possível criar o alevino se não se adquirir o estágio anterior do
proto-peixe o que, contudo, exigiria, como dito conhecimento tecnológico sofisticado.
Alguns participantes de projetos revelaram que "Não dá para sobreviver [com os
peixes]". "Só o peixe não dá". Com esse discurso pretenderam apontar para a
diversificação dos projetos; alguns falaram em roça, horta e até mesmo em criação de
vacas.
Foram ilustrativas as discussões afetas aos desdobramentos pretendidos por
alguns indígenas a partir dessa atividade, tais como hortas e roças para produção do
alimento para os peixes; ou até mesmo uma “fábrica de ração” como se comentou; ou
mesmo criar uma estrutura para produção de alevinos. Investimentos volumosos que
exigem administração acurada. Projeto temerário pensando nos problemas de Dourados.
Alguns grupos afirmam que querem fazer outros tanques; outros, mais
sofisticados, cujos componentes têm cuidados especiais com seu trabalho de agricultor e
criador de pequenos animais, afirmam que os tanques devem crescer e diversificar-se
(horta, roças, etc). Outros, ainda, querem criar peixes, “para sua família e para vender”,
utilizando varjão próximo de sua casa. Assim, em alguns segmentos da população de
Dourados a repercussão dos açudes, apesar dos problemas que possa representar, foi
consistente.
11
Muitos participantes vinculados a associações indígenas, pensavam em receber
apoio para construir seu próprio açude no futuro. Por desdobramentos que podem ser
comprometedores e suscitar conflitos por espaços de terra no futuro, o tema deve ser
refletido pela CI.
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Pontos Positivos. Dourados 1º. Dia – só piscicultura.
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Conseguiu agregar porque já estava disperso de novo.
Contemplou diferentes segmentos: professores, saúde...
Organização dos povos indígenas.
Uma coisa puxa a outra: plantio de mandioca.
Boa iniciativa do governo federal.
Participação dos indígenas representantes na CAPI.
Resgatou a cultura (terena): costume de comer peixe.
Capacidade de gerar recursos no modelo do não-índio.
Os projetos da CI auxiliaram no resgate do espírito de coletividade.
Além da produção de alimento, a criançada diverte bastante.
Descoberta de várias potencialidades.
Foi criando uma nova consciência: cuidar da água.
O peixe é bom para as crianças.
Fortalecimento das associações indígenas.
Auto estima voltou.
Integração entre as famílias.
Bom para a sustentação das famílias.
Os filhos passaram a trabalhar junto nos tanques.
Solidariedade entre as famílias (distribuição de peixes).
Dificuldades Dourados 1º. Dia – só piscicultura.
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Os companheiros não ajudam na manutenção do tanque.
Erosão do tanque.
A assistência não foi direta; pouca presença de técnicos.
Os peixes não estão crescendo
Faltou oxigênio e teve enxurrada que trouxe veneno da soja.
Muita gente para pouco peixe
Reclamações por parte das famílias não beneficiadas
Pouca visita técnica: uma em um ano.
Mortandade de peixes (muitos casos).
Tanque feito no lugar errado; já tem um ano e não foi colocado peixe.
Falta das pessoas entenderem o valor da associação e por isso ficam excluídos.
Envolver toda a família no projeto.
Aglutinar pessoas para trabalhar coletivamente.
Muitos homens das famílias não podem ajudar no serviço dos tanques, pois precisam trabalhar
(changa).
Roubo de peixes (muitos casos).
Dificuldade no diálogo com os associados.
Parte da comunidade não está disponível para trabalhar no projeto.
Dificuldade em planejar a sustentabilidade do projeto (continuidade).
Demora na reposição de alevinos após a despesca.
O curimba não cresceu e tem espinho, as crianças não gostam.
Problema de crescimento com o curimba (em mais de um projeto).
Como melhorar (ou Propostas). Dourados 1º. Dia – só piscicultura.
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Os técnicos virem mais vezes.
Treinamento/capacitação em piscicultura.
Capacitação da associação em execução de projetos
Continuidade da Carteira Indígena.
Avaliação permanente dos projetos para tentar superar as dificuldades.
Buscar a integração.
As pessoas terem mais responsabilidades
Organizar a distribuição dos peixes produzidos.
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Ter mais reunião com a associação.
Alguns peixes têm que ser vendidos para continuar o projeto.
Haver um incentivo para o cabeçante de grupo.
Comprar alevinos maiores.
Trocar experiências com produtores locais.
Aumentar o número de tanques
Produção própria de ração.
Prolongar os prazos dos projetos (cinco anos).
Possuir tanques para produção de alevinos.
Erguer terraço para evitar enxurrada.
Colocar tela (ao redor do açude) para evitar roubo.
COMO MUDAR?
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Que tenha maior número de técnicos que possam acompanhar os trabalhos nos tanques de criação
de peixes.
Associações querem ser independentes.
Roubaram os peixes. Foram com tarrafa e roubaram boa parte dos peixes. Falou-se em cercar o
tanque com telas para que ao houvesse roubos.
Colocar luz no tanque para não roubarem.
Contra o roubo de peixes, que é muito comum, falaram em eletrocutar cercas para evitar o roubo.
Galinha caipira. Frango caipira.
Capacitação de indígenas.
Discutir de forma sistemática os projetos; que isto se dê dentro dos grupos, entre os grupos e com
técnicos da CI. Investimentos para aglutina mais as pessoas e ampliar o diálogo entre indivíduos e
famílias. Buscar parceiros.
Sugestão de um incentivo – figura retórica para dizer recurso financeiro, salário, soldo – aos
cabeçantes de grupos. Também para os dirigentes de associações. UM PERIGO ISSO.
14
I.6.- A ASSIND e as Associações Indígenas
Um dos temas mais candentes das discussões em Dourados foi sobre as
associações indígenas, reconhecida por boa parte dos dirigentes presentes como em
processo de constituição, em peleja permanente para superar as dificuldades com que se
deparam. Alguns dirigentes demonstraram ânimo de superar os desafios e “ir adiante”.
Na avaliação dos dirigentes de associações indígenas a Carteira Indígena também
foi considerada como um fator positivo dentro das aldeias. Afora ter possibilitado a
existência de fato das associações, de ter estimulado sua criação e da viabilizar projetos,
a Carteira Indígena permitiu “que se provasse” que as associações podiam administrar
recursos e que eram “capazes dessa organização” e que, a partir dessas experiências,
poderiam se organizar em outras esferas de trabalho – os elogios e discursos não raro
exacerbados e inflamados de apoio aos projetos da CI não impediram, no entanto, que
apresentassem veementes queixas das dificuldades encontradas na administração dos
projetos como comentado abaixo.
Os índios dirigentes de associações indígenas apresentaram também uma série
de dificuldades que enfrentam, a começar para fazer os patrícios entenderem o que é
uma “associação”; há dificuldades para “aglutinar gente, criar solidariedade”, afirmam
dirigentes da ASSIND que têm recebido “apoio administrativo e político da Prefeitura de
Dourados, com assessoria direta e permanente”, e tem conseguido dar avanços, embora
esteja distante de alcançar uma pretendida autonomia. Seus dirigentes consideram que
todos os problemas são desafios que estão sendo superados. Consideram ainda que a
experiência dos açudes é o início, ressalvando que todas as atividades devem estar
voltadas para o coletivo.
I.6.1.- Recursos para articulação
Muitos dos discursos dos dirigentes apontaram para outra dificuldade que
enfrentam que é a articulação dos projetos. Isso significa mobilização, eventuais viagens,
comunicação, etc. Sugeriram que a CI financiasse esse trabalho e alocasse recursos,
além dos 5% de cada projeto liberado para gastos administrativos. A sugestão, a rigor, é
de uma remuneração.
I.6.2.- Criação de outras associações
No processo de discussão se observou que um número significativo de
“cabeçantes” e membros de grupos (8) se mostraram desejosos de "entrar com outros
projetos" junto à CI. Nesse sentido, aproveitaram a presença dos técnicos da Carteira
Indígena para saber como proceder para constituir organização com qualificação para
elaborar e administrar projetos, procurando independência da ASSIND – ou de outra
associação qualquer.
Alguns questionaram a aglutinação de muitos projetos sob a responsabilidade de
uma só associação e demonstraram certa insatisfação com o desempenho da ASSIND.
Indicadores, uns mais sutis, outros mais objetivos, observados no correr das discussões
8
Seria necessário realizar levantamento mais cuidadoso para saber com alguma precisão o número de eventuais
associações que seriam criadas ou, de outro modo, saber quais os grupos não estão “satisfeitos com a ASSIND” e porque
isso ocorre.
15
apontam para as mazelas, dificuldades e problemas implícitos nas relações entre as
associações e os associados, em particular face à administração de recursos; mesmo
entre os terena ou descendentes de terena há o impulso – que é muito forte entre os
Guarani por sua forma de organização social – de criar “associação familiar”, isto é, do
grupo de parentesco ao qual o líder está vinculado.
Os reclamos por independência esbarram, entretanto, em significativa defasagem
entre a ASSIND e outras associações, tema que se procurará analisar no 3º. Produto,
lembrando que A ASSIND vem recebendo assessoria, assistência e orientação
permanente e, em muitos casos como na questão da piscicultura, contam com técnicos
de primeira qualidade que os orientam. Empenhados em formá-la e fortalecê-la, e
apoiando-a na criação de sua estrutura, obter CNPJ, fomentando e orientando os trâmites
administrativo-burocráticos para sua constituição, o que concede a essa Associação
grandes vantagens sobre qualquer outro grupo que pretenda formar sua associação.
Os problemas entre as associações e os associados não são, no entanto,
prerrogativa da ASSIND; o fenômeno foi sentido tangencialmente – seria necessário
ampliar o conhecimento sobre isso, o que exigiria um acompanhamento mais próximo
para se saber efetivamente como operam essas associações – em muitos grupos de
trabalho de piscicultura e outros em Dourados.
I.7.- Projetos da KATEGUÁ, IMAD, COCTEKD E GAPK (22.11.2007)
Após os dois primeiros dias de encontros com os projetos de piscicultura que têm
a ASSIND como proponente, a equipe da Carteira reuniu-se, no mesmo lugar e mantendo
mesma dinâmica dos dias anteriores, com as associações indígenas KATEGUÁ, IMAD,
COCTEKD E GAPK.
I.7.1.- Os poucos pontos positivos indicados
O entusiasmo e a exaltação referentes aos projetos da Carteira Indígena não
foram tão esfuziantes neste terceiro dia de encontros como foram nos dois primeiros.
Apesar do pouco entusiasmo – se comparado com alguns discursos exacerbados dos
piscicultores – houve sérios reconhecimentos de que os projetos da Carteira devem ser
ampliados e ter continuidade.
Uma experiência interessante e digna de nota, refere-se ao projeto de criação de
cabras que se está realizando no Brejinho (Dourados) com resultados positivos, deixando
seus realizadores contentes. Cabe salientar que tendo em vista as dificuldades
enfrentadas pelas famílias que vivem ali (9), trata-se de um fato digno de nota trabalho
que deve ser incentivado e continuado. O projeto consiste na criação de nove cabras e
não teve custeio afora a compra de 17 cabras das quais morreram oito. Os índios que
participam do trabalho estão gostando e querem aumentar o número de cabras e recursos
para cuidar melhor dos animais como, por exemplo, dar vacinas.
9
O Brejinho é o lugar de maior pobreza dentro da reserva de Dourados; as famílias vivem em lotes diminutos onde mal
conseguem construir suas casas; em alguns lugares do Brejinho têm problemas até mesmo em fazer latrinas uma vez que
cavando pouco mais de 20cm já se encontra água – contaminada.
16
Ainda como aspectos positivos da CI e seus projetos, valorizaram atividades
decorrentes dos projetos como, por exemplo, o mutirão para preparo da terra e plantio
das roças de mandioca, bem como o projeto do Brejinho.
I.7.2.- Dificuldades
I.7.2.1.- Projeto de Granja (criação de galinhas)
No decorrer dos diversos encontros realizados pela equipe do MMA apenas um
pequeno entrevero teve ocasião nesse 3º dia de reunião em Dourados. Um líder de grupo
(terena) que recebe apoio para projeto de criação de galinhas, alegou, junto ao dirigente
da Associação (também terena), que tinha em mãos notas fiscais que “provariam” haver
“sido enganado pela associação” repassadora dos recursos e reivindicava, junto aos
técnicos da CI que resolvessem a questão (10). Com notas fiscais em mãos pretendia
demonstrar tudo o que havia sido comprado para seu projeto que não deu certo e alegava
que a associação fizera “duas prestações de conta”, uma para Brasília e outra para os
grupos locais, e que "a prestação de contas aqui", dizia, "não é a mesma que foi enviada
para Brasília". "Perdemos ração e não foi gasto o restante de nossa parte no projeto".
Reclamou bastante do intervalo entre a primeira e a segunda parcela, o que teria
prejudicado seu trabalho. O demandante lamentou-se não poder ter uma associação para
receber recursos sem depender da organização que havia feito isso.
Não foi somente este “cabeçante” que apresentou queixas em relação ao projeto
de granja em Dourados; outros também reclamaram sem, contudo, comentar sobre
eventuais desvios administrativos como neste caso.
I.7.2.2.- Projeto de pomar e viveiro de mudas frutíferas
Este projeto consistiria na abertura de 300 covas para mudas de plantas frutíferas
que formaria um pomar; teria, além disso, um viveiro para criar mudas de plantas
frutíferas. Como adendo, o projeto previa a instalação de um sistema de irrigação do
pomar e do viveiro.
Antes mesmo de ser criado e oferecer soluções, o projeto teve início com
problemas e de imediato criou inúmeras necessidades. Ao exigir água para o sistema de
irrigação, e como não seria possível utilizando a força da natureza, projetou-se uma caixa
d’água para alimentar o sistema.
Observado mais de perto o projeto revela aspectos que devem ser considerados
em qualquer análise de gestão. O trabalho vai se desdobrando e, lentamente, criando
necessidades. Primeiro, a instalação do gigantesco artefato para armazenar água que
exigia estrutura de concreto e um profissional competente no assunto para sua instalação,
a cinco metros de altura, sem que isso representasse perigo (11). Um segundo
desdobramento se manifesta na necessidade de uma bomba para alçar água para a
caixa, exigindo, portanto a instalação de um artefato que consome energia elétrica. Surge,
10
Um dos técnicos do MMA combinou uma hora para reunir-se com o reclamante para análise dos documentos. O
problema, segundo informação desse técnico, só deverá ficar claro com a análise de todo o processo e da averiguação das
notas fiscais, o que seria feito em Brasília.
11
Muito provavelmente esta caixa d’água se transformará em outro “monumento ao nada” que apodrecerá ao tempo como
outros tantos que existem na Reserva de Dourados; obras promovidas por instituições que pensam estar "fazendo o bem"
para os índios.
17
contudo, um novo desdobramento. O padrão de energia elétrica disponível na aldeia não
era compatível com o exigido pela instalação da bomba, obrigando a colocação de
padrões de energia apropriados, o que levou muitas semanas até se concretizar,
atrasando o trabalho e irritando os índios. Mas há, ainda, outro problema: para o
funcionamento da bomba d'água é necessário pagar a conta de luz, diante do que os
índios demonstraram apreensão – com o novo padrão os índios superam a faixa de
consumo comum dentro da aldeia e passarão a pagar mais energia. Cabe considerar
ainda que um sistema de irrigação exige alguma sofisticação tecnológica e que só poderá
ser mantido com acompanhamento de profissional qualificado; a participação dos índios,
por sua vez, dependerá de capacitá-los e remunerá-los para que mantenham o projeto em
funcionamento.
Os índios foram procurados pela proponente para elaborar, enviar e realizar o
projeto. Inicialmente foi oferecido às mulheres um “projeto de flores”, iniciativa que não
vingou e deu lugar ao "projeto do pomar e do viveiro" com os homens. Segundo
informações da proponente o projeto foi elaborado por um agrônomo ligado a ela que não
parece ter experiência ou conhecimento sobre o funcionamento do trabalho com
indígenas.
Os três “cabeçantes” que se envolveram com os projetos de pomar e viveiro se
mostraram indignados com a proponente e idealizadora do projeto no encontro em
Dourados. Fizeram muitas críticas e cobranças pelas dificuldades e problemas para sua
realização, explicitando com veemência sua insatisfação com a longa interrupção das
atividades do projeto – aqui também a demora no envio da 2ª parcela dos recursos
orçados teria dificultado os projetos. Os índios reclamaram também do fato de que o
pomar ou a produção de fruta leva tempo e que não têm como alimentar-se. “Índios não
são pedreiros”. “Desde o começo muitas coisas erradas”. A instituição pediu que os
próprios índios levantassem a pesada caixa d’água, iniciativa temerária, pois, dadas as
dimensões da empreitada, qualquer falha técnica na construção da estrutura poderia
resultar em sérios problemas. Os índios revelaram ainda que os problemas técnicos se
multiplicaram no decorrer do projeto; o material adquirido não serviu para levantar a caixa
d'água, com o que tudo foi interrompido.
Outro aspecto, similar ao reflorestamento, é que os kaiowa não são “produtores de
frutos”. Não é de sua tradição de conhecimento lidar com pomares, embora ogajere, isto
é, ao redor da casa, plantem grande variedade de frutos: laranja, mamão, abacaxi,
amora, banana, tangerina, romã, melancia, melão, etc. São, contudo, alguns poucos
exemplares dessas frutíferas, e não uma produção como se dá em pomares. Para tanto,
necessitarão, de um lado, de tecnologia de manutenção permanente, o que gera
dependência e tende a impedir a continuidade e, de outro, necessitarão de autorização
cosmológica para o plantio de mudas.
Aqui também a discussão com os índios foi falha. A proponente não teve visão
para perceber que os Guarani realizam o que querem; não considerou como
desconhecedores do trabalho com indígenas e nem se sentiram necessitados de
processo de capacitação nesse trabalho.
18
I.7.2.3.- Projeto de “corte costura, tricô, crochê e artesanato”
Essa experiência foi apresentada à CI por uma proponente não indígena e
realizada com mulheres kaiowa funcionárias da FUNASA (agentes de saúde) na Reserva
de Dourados e, ao que parece, relacionadas entre si por vínculos de parentesco (12).
Na plenária onde se discutiu o projeto este foi avaliado como positivo pelas
mulheres que se envolveram com o trabalho e, em certa medida, o dirigiram. Segundo
sua avaliação o projeto deve seguir adiante por ter “apresentado resultados”; não só isso
como entendem que deve ser estendido para número maior de mulheres e diversificado
sua produção, passando também a confeccionar roupas para vender. Diante da pergunta
sobre como diversificar ou desdobrar os trabalhos, consideraram até mesmo a
possibilidade de criar cabras.
Na mesma plenária e quase de modo simultâneo, as participantes-dirigentes do
trabalho apresentaram, no entanto, veementes críticas e reclamações contra a
proponente. Alegaram, demonstrando certa animosidade e hostilidade ritual, que os
agentes da proponente não permitiram que “os índios” acompanhassem o processo de
aplicação dos recursos na compra do material; afirmaram que a proponentes apresentou
notas de compra, mas não o material adquirido ou mesmo o lugar onde foi guardado.
Revelando-se bastante apoquentadas, reclamaram ainda de que poucas aulas teriam sido
ministradas nos cursos programados de tricô, crochê, corte costura e bijuteria (artesanato)
e que a proponente favoreceu o professor branco em detrimento do professor indígena no
transporte para o curso.
Da mesma forma que nos outros projetos, as mulheres kaiowa também
reclamaram da tardança em ser autorizada e chegar à aldeia da 2ª parcela dos recursos
do projeto, o que foi motivo de virulentas críticas porque teria ocasionado sérios
problemas ao trabalho. Essa demora foi interpretada pelas indígenas como a razão de ser
do “sumiço dos agentes” da proponente que, supostamente “teriam desaparecido com o
dinheiro”, raciocínio que se justificava pelo fato desses agentes terem ficado três meses
sem aparecer – ao que parece por falta de experiência e capacitação no trabalho com
indígenas, estes agentes não procuraram as executoras do projeto com quem deveriam
conversar para explicar as dificuldades decorrentes da demora em chegar a 2ª parcela.
I.7.2.3.1.- Kyse yvyra: capacitação necessária para desenvolver projetos
Muito provavelmente os acontecimentos descritos na reunião não se processaram
na dimensão em que aparece no discurso das mulheres kaiowa. Mas seu modo
exacerbado e exasperado de apresentar as críticas ao trabalho indica que as relações
entre proponente e realizadores não são de todo satisfatórias – muito embora deva ser
considerado um tekopoxy (modo de ser “nervoso”) ritualizado que podem levar o discurso
Guarani a assumir formas pouco além da medida – que eles mesmos reconhecem.
A kyse yvyra (literalmente faca de maneira que adquire significado de “política”,
“fofoca”, “oposição”, “posição contrária”) das kaiowa mulheres contra a instituição deve
ser levada em conta como variável de grande relevância do cotidiano das localidades
Guarani. As instituições do kyse yvyra, que se associa ao do ñembotavy (fazer-se de
bobo ou “dar uma de Migué”, como se fala em São Paulo), devem ser levadas em conta e
12
Aqui também seria importante um levantamento mais aprofundado para saber efetivamente como se constitui esse
grupo.
19
com seriedade ao se pensar na realização de qualquer projeto com esse povo; caso
contrário, corre-se o risco de ser “vitimado” por esse jogo como se viu nesse projeto ou
mesmo em outros aqui considerados.
Os agentes tiveram dificuldades em conduzir as relações com os índios e os
problemas se avolumaram; desconsideraram premissa de absoluta relevância no
trabalho com grupos humanos que é o diálogo igualitário e cotidiano com os beneficiários
da intervenção.
20
2º. Dia em Dourados: diversos projetos
Pontos Positivos
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A rama é um alimento maior.
Projeto inédito
Aumentou a auto-estima do povo que vivia desacreditado com projeto.
Incentivou o mutirão das roças.
Agrofloresta deu certo.
O trator da associação está sempre servindo a comunidade.
A gurizada toma leite de cabra.
Os cursos de crochê e tricô foram novidades.
Dificuldades (Dou. 2º. Dia – Variados Projetos)
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Morreram os pintinhos
Primeiro as pessoas se empolgam, depois saem.
Demorou para instalar a caixa d’água.
Demora na liberação da 2ª parcela e os preços subiram.
Vai ter que fazer as covas de novo porque demorou.
Ninguém veio dar atenção para nós.
Assistência técnica inadequada.
Faltou mão-de-obra especializada em construções.
Como solucionar o pagamento das contas de luz.
Não teve dinheiro para ajudante de pedreiro e para continuar.
A proponente não mostrou o lugar onde guarda o material.
As rações e os medicamentos foram comprados com a 1ª parcela e demorou para entrar a
2ª. As galinhas foram compradas com a 2ª parcela e os medicamentos já (tinham) vencido.
Depois que a proponente recebeu a 2ª parcela, sumiu três meses.
Pouco material (pano).
As horas de curso foram poucas.
O professor não índio vinha de carro e o índios não vinha de carro.
A compra dos materiais e carro não foi realizada com a proponente.
Divergência de informação entre proponente e executora.
(No Brejinho) Perderam quase todas as galinhas e a ração.
A ração pegou chuva porque não tinha galpão.
Tecido de péssima qualidade.
Não ficaram sabendo como deveria ser comprado o material.
Falta de respeito com os executores.
Muita gente não entendeu como a Carteira Indígena funciona.
Como melhorar (Dourados. 2º. Dia – Variados Projetos)
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Mais insumos para participar mais gente
Reforço para continuar.
Precisa de mais muda para a agrofloresta.
Demorar no máximo dois meses para liberar o dinheiro.
Produzir confecção de roupa com máquina overlock.
Trocar de professor de costura.
Fiscalizar a proponente.
Dar prioridade para os índios darem curso.
21
Parte II
Os Kaiowa de Guyra Roka, Paso Piraju, Ñande Ru Marangatu e
Caarapó
II.1.- As Áreas de Conflito: Guyra Roka, Paso Piraju, Ñande Ru Marangatu
Essa Parte II do relatório trata exclusivamente de áreas de índios kaiowa que
apresentam diferenças acentuadas no modo de ser, pensar o mundo a nele atuar, se
comparado com os indígenas envolvidos com os trabalhos em Dourados (v. 1º. Produto).
As demandas por viabilizar trabalho que se tornam projetos demarcam aqui outras
premências e outras justificativas, constituindo-se em desafio e exigindo flexibilidade nos
aportes da Carteira Indígena, muito importantes para os Guarani no MS.
Os Guarani-Kaiowa que se autodenominam Tavyterã – os que são do centro da
terra – e todas as áreas aqui incluídas, são espaços territoriais tradicionais desses
indígenas – nas quatro áreas consideradas, só Caarapó acolhe, há décadas, número
relativamente reduzidos de famílias ñandéva (ava-guarani) que vivem em Caarapó.
Os Tavyterã (kaiowa) mantêm sua identidade como grupo humano específico
permanentemente reiterada em todas as atividades de seu cotidiano, seus valores, a
moral, religiosidade e organização para a política, a economia e a vida social. Revelam,
no contato mais próximo, seu rechaço às relações de contato além daqueles aspectos
que lhes possam ser úteis. Falantes do guarani, relativamente poucos kaiowa têm fluidez
e domínio do português até mesmo falado na região – que dizer do português falado em
Brasília, São Paulo ou Rio de Janeiro ou nos jargões especializados. Também têm, de um
modo geral, “dificuldades” e um considerável desinteresse em entender e dominar nossos
códigos, regras e normas às quais estão sujeitos quando se lhes exige associações,
CNPJs e administração de projetos.
As especificidades dos locais visitados pela equipe da CI, dessa forma,
determinaram mudanças na condução das reuniões, bem como na dinâmica dos
trabalhos; como já mencionado, acompanhou aqui se procurou acompanhar a orientação
de cada localidade face à situação criada com a presença das “autoridades de Brasília”.
Coube, assim, aos líderes locais, a responsabilidade de receber a equipe e ordenar e
conduzir as conversas com os representantes das famílias participantes dos projetos.
As Áreas de Conflito – neste caso as de Guyra Roka, Paso Piraju e Ñande Ru
Marangatu (13) – agrupam famílias Guarani que nas três últimas décadas vêem se
organizando para recuperar terras de ocupação tradicional, de onde foram
compulsoriamente retiradas nos últimos cem anos para dar lugar à colonização por
fazendas. De seus tekoha ymãguare (14) as famílias foram obrigadas a se assentarem nas
Reservas Indígenas (criadas no início do sec. XX) mais próximas.
13
Os três casos aqui focados, de outro lado, representam perto de 10% das áreas de conflito ou espaços de tekoha
ymaguare (espaços territoriais ocupados no passado) conhecidos.
14
TEKO: modo de ser, comportamento, ideologia, filosofia de vida, visão de mundo; HÁ: sufixo que indica lugar.
TEKOHA: lugar onde realizamos nosso modo de ser. YMÃGUARE: que ocorreu no passado, antigo.
22
Desde 1978 os kaiowa e os ñandéva no MS têm passado por processos de
enfrentamentos não raro violentos, com fazendeiros com os quais disputam terras.
Das três áreas focadas Ñande Ru Marangatu é a mais próxima de uma “solução
definitiva” (segundo o Decreto No. 1775/96) embora, como Guyra Roka, esteja subjudice.
Foi homologado pelo Presidente da República, o que representa o último passo no
processo de regularização de uma terra indígena. Gestões de fazendeiros junto ao Poder
Judiciário impediram que, embora homologada, se concretizasse a ocupação plena da
área pelas mais de 140 famílias kaiowa que pertencem ao lugar, e que aguardam em
reduzidos espaços ocupados com exclusividade dentro dos tekoha já identificados, os
estágios do moroso processo judicial movido por fazendeiros. Para viver recebem cestas
básicas do governo.
Guyra Roka é uma terra com reconhecimento da FUNAI e do Ministério da Justiça
como indígena, tendo sido obstruído no âmbito da justiça o prosseguimento administrativo
para sua regularização. Paso Piraju, por sua vez, não foi sequer identificado, o que se
espera ocorra agora em 2008.
A condição de “litígio permanente” vivenciada pelas famílias kaiowa desses
lugares define modos peculiares e circunstanciais de ordenar a política local por parte dos
grupos familiares envolvidos nesse mister, e irá definir a aceitação e a disposição em
organizar-se e envolver-se com atividades para a produção de alimentos (15) como no
caso dos projetos auspiciados pela CI.
Não houve nenhum cerimonial “ocidental local formal” como nos encontros de
Dourados e, como será visto, em certa medida em Caarapó; as reuniões foram marcadas
por uma “formalidade cerimonial kaiowa”, com procedimentos prescritos e esperados
dentro de padrões de comportamento kaiowa. Mesmo no Paso Piraju, onde a equipe
conversou apenas com o líder político local, ou no Guyra Roka, onde apenas o líder
manteve a palavra e não houve discussão com o restante dos presentes – muito embora
todas as famílias do lugar estivessem plenamente representadas. O sistema de decisão
político dos kaiowa poderá ser mais bem compreendido com as considerações abaixo.
II.1.1.- Aty Guasu: foro de decisões
A observação, o acompanhamento e as pesquisas antropológicas sobre os
ñandéva e kaiowa nas últimas décadas revelam que as decisões, diante de
acontecimentos que afetem o conjunto de famílias do local, são tomadas no âmbito da
instituição da sua tradição denominada aty guasu. O termo pode ser traduzido como
“reunião ampliada” ou “assembléia geral” e são convocadas para que homens e mulheres
decidam consensualmente sobre aspectos da vida cotidiana ou situações extraordinárias.
No cotidiano das localidades Guarani, os aty guasu desempenham função rituais
ratificadores de decisões políticas previamente discutidas e definidas nas conversas
diárias entre parentes e membros de famílias (extensas) aliadas nesses assuntos
comunitários. Por isso, um encontro breve e pontual como o da visita da equipe do MMA
não poderia chegar a informações e decisões mais das que se chegou no tempo que ali
estivemos, em que se pode detectar, de modo panorâmico, se os trabalhos caminham de
forma satisfatória ou não.
15
As princiais reivindicações dos Guarani no Mato Grosso do Sul na contemporaneidade é a regularização das suas terras
de ocupação tradicional e a produção de alimento, isto é, a realização de seus cultivos.
23
Nessas reuniões, apresentados os assuntos – o que, em geral, é feito pelo
“capitão” ou quem ele indicar – todos podem opinar; quando não se expressam em
discursos, endossam (ou não) com afirmações e expressões padronizadas aqueles que
consideram representar seu modo de entender a questão em pauta – como ocorreu no
Guyra Roka e mais explicitamente no Marangatu. Aparentemente informais,
desorganizados e dispersos aos olhos do branco, esses encontros constituem ocasiões
políticas e morais importantes para as famílias envolvidas na vida comunitária do tekoha.
Constituindo-se em importante foro de discussão, socialização e decisão; é recomendável
que os projetos levem isso em conta.
II.1.2.- Guyra Roka (23.11.2007)
Guyra Roka talvez seja a área com melhor resultado e aproveitamento nos
projetos financiados pela CI. Ao que parece o projeto atendeu a todas as famílias locais e
não se escuta falar, no ambiente guaranítico no MS, de problemas ali; os recursos
recebidos, pelo que se pode apurar, foram bem aplicados.
A reunião aconteceu na casa do líder político do Guyra Roka, e havia perto de 60
pessoas entre homens e mulheres, casados e solteiros, representando as famílias do
lugar. A casa desse mburuvixa, assim como todas as casas do Guyra Roka, é feita com
taquara e sapé e, também como as demais, tem mais de uma construção. Como líder que
recebe com freqüência pessoas para conversas, há uma terceira construção que define
um espaço político onde são realizadas essas conversações. Em geral, como neste caso,
trata-se de uma construção à parte, ampla, coberta de sapé mas sem paredes; é onde se
reúnem em assembléias.
O mediador, falando inicialmente em guarani – para que houvesse entendimento
de todos sobre do que se falaria ali –, explicou aos índios a razão da visita que se
realizava, apresentou um a um dos presentes e solicitou a todos que comentassem sobre
o trabalho das roças e quais as dificuldades que haviam encontrado na sua realização – a
rigor um discurso formal, para explicar aos índios, que já sabiam sobre nossa presença.
O encontro no Guyra Roka foi praticamente uma exposição dos trabalhos que ali
se realizaram feita pelo líder local e reproduziu a estrutura de funcionamento kaiowa em
situações em que está em jogo interesses que cabe ao mburuvixa entender, discutir,
decidir e orientar sua gente. É o que esperam dele.
A situação criada com a chegada de um grupo de desconhecidos, todos juru’a,
agentes do Governo Federal que os visitava exigia uma ordem política estruturada e em
funcionamento, como se viu ali, além da exigência de conhecimento da língua. Desta
forma, a apropriação da tribuna pelo líder local não deve ser entendida como manipulação
ou “descontrole social”; é um líder legítimo e reconhecido local e regionalmente, e que se
constituiu sobre acirrada e duradoura condução de luta por fazer valer seus direitos sobre
a terra do tekoha ymãguare do Guyra Roka.
Em sua fala – que foi longa – o líder apontou os pontos positivos que vieram com o
projeto, constatado pela equipe do MMA que pôde ver muitas roças, cultivos
diversificados, animais, terras preparadas e máquinas e ferramentas para o trabalho
agrícola como resultado do apoio da CI.
24
O primeiro ponto tocado pelo “capitão” foi sobre a continuidade dos trabalhos.
Cabe reiterar que a questão continuidade dos projetos aparece com insistência em
todos os discursos e em todos os grupos. Pelo número de roças distribuídas pelos 60ha
que ocupam – o tekoha foi identificado com aproximadamente 10.000ha – pode-se
conferir o quanto foi útil para aquelas famílias o apoio da CI e a relevância do projeto ter
continuidade.
O líder local insistiu na necessidade de continuidade das roças por considerar que
vão muito bem: os recursos vieram na hora certa, todos trabalharam e todos têm roça e
comida. Querem dar seqüência e “se tiver jeito”, diz o “capitão”, “vamos atrás dos
recursos”. Revelou também que além das roças de subsistência estava pretendendo
encontrar modo de produzir uma roça de 5ha exclusivamente para plantar mandioca para
comercializar e “fazer dinheiro”.
A valorização do trabalho em seu discurso não radicava somente na produção de
alimentos, mas também no fato de se “mostrar o trabalho” para os mais novos: “como
mostrar para os jovens e para as crianças se não há terra; e quando há terra não há apoio
para as roças?” Os cultivos de roçados têm, nestes casos, grande importância, realçando
a relevância do apoio da Carteira Indígena.
Apregoou com firmeza que os planos que faziam tinham por objetivo os netos e
não sua geração, destacando o coletivo em detrimento do individual. Descreveu, ainda, o
processo pelo qual chegou à elaboração e execução do projeto explicando que, meses
atrás, esteve com técnicos da CI que recomendaram que elaborasse um projeto; sem
saber fazer um projeto, solicitou a uma instituição não-indígena que se tornou a
intermediária proponente, e cujos agentes, conhecidos de muitos anos dos índios, que
apoiasse o Guyra Roka na elaboração de um plano de trabalho e repassasse os recursos
em caso de aprovação.
Em seu discurso – entremeado por explanações sobre a boa produção de milho,
arroz, feijão, mandioca, batata doce, abóbora, cana e outras – o “capitão” do Guyra Roka
comentou sobre a organização dos trabalhos em seu tekoha aventando para a situação
de Dourados com “12 mil pessoas que ninguém lidera”, apontando quanto isso dificulta a
organização do trabalho; contrapondo-se a isso, Guyra Roka tinha liderança e união entre
as famílias que discutem e realizam o trabalho.
O “capitão” mostrou-se indignado diante do fato que não há como guardar as
sementes que são oferecidas a eles porque não germinam. Em experiência que realizou
recentemente guardando, como sempre fez em sua tradição de povo agrícola milenar as
sementes de milho oferecidas, mas estas "deram caruncho”, muito embora, como alegou,
tenham sido guardadas “na lua certa” e com todos os cuidados (16).
Era “gancho” para comentar com muita indignação sobre as cestas básicas
afirmando que não adianta “jogar uma tonelada de cesta básica; vai acabar e depois?”;
em seu raciocínio considerou que o Governo Federal terá que oferecer cesta para os
16
Agrônomos que pesquisaram aspectos ambientais da vida Guarani se surpreenderam com o banco de sementes que
encontraram entre esses indígenas; por séculos têm mantido variadas espécies de inúmeras plantas como jety (batata
doce), avati (milho), mandi’o (mandioca) entre outras (v. Spyer, Paulo in T. de Almeida. R.- Terra Indígena GuaraniKaiowa Ñande Ru Marangatu: Relatório de Estudo Antropológico de Identificação, Portaria No. 199/PRES/FUNAI
(09.04.1999), Brasília, 67pp., 2000).
25
índios “até morrer” caso não queira resolver a questão das terras: “terra é importante, não
cesta básica”. Fez ainda severas críticas aos índios que vão à changa nas usinas de cana
de açúcar, dizendo ser lugar de “matança de índios”; o “dinheiro e o alimento vêm da
terra” vaticinou.
Como será mais bem discutido no 3º produto, Guyra Roka espera que a CI dê
continuidade ao apoio a projetos e, “para melhorar”, sugere plantar, além das roças de
subsistência, uma roça de grandes dimensões com plantio de mandioca para
comercialização.
II.1.3.- Paso Piraju
No Paso Piraju não houve propriamente um encontro, mas uma conversa da
equipe da CI com o líder político do lugar que recebeu muito bem o grupo; não convocara,
contudo, os parentes e patrícios para o aty com a presença da Carteira Indígena como
teria sido acertado previamente. Embora conhecendo esta liderança há muitos anos, não
foi possível clarificar o porquê não convocou sua gente, o que poderia ter feito de uma
hora para outra. Ocupando uma área de 40ha e dentro do que consideram ser seu tekoha
ymãguare, há no Paso Piraju entre 20 e 25 famílias nucleares, quase todas ligadas por
laços de parentesco com famílias extensas em Caarapó. Enfrentam problemas sérios na
disputa por terras que consideram terem sido sempre habitadas por seus antepassados,
remotos e contemporâneos.
Em 1º. de abril de 2006 episódio violento marcou a disputa com fazendeiros que
se consideram proprietários da mesma terra, ocasionando a morte de dois policiais da
cidade de Dourados. O fatídico incidente tem marcado intensamente a vida dos te’yi
(famílias extensas kaiowa) desse lugar. Agentes da instituição proponente informaram
que o líder local, e quem dirigia o projeto da CI, foi levado prisioneiro em plena vigência
dos trabalhos, arrefecendo momentaneamente sua dinâmica. Semanas depois as famílias
do lugar decidiram que a esposa do mburuvixa e um sobrinho ficariam no comando
político do tekoha e na condução dos trabalhos da roça; dois ou três meses depois este
sobrinho do “capitão” cometeu suicídio.
O choque causado pelo episódio dos homicídios junto ao grupo de famílias do
Paso Piraju foi impactante e ocasionou fortes turbulências na organização da economia,
diretamente ligada ao projeto da Carteira Indígena. Os trabalhos no Paso Piraju não
tiveram curso e tempo compassados como ocorreu no Guyra Roka que vive situação bem
menos conturbada, apesar de ter havido boa produção de mandioca, milho, batata doce e
feijão nas roças do Paso Piraju (17). Em visitas à área no correr dos últimos tempos, era
visível a satisfação das pessoas com as roças plantadas e que contribuíram para a
permanência no lugar enquanto se decide sobre suas terras.
A necessidade básica do Paso Piraju era, e ainda é comida; produzi-la contribui
para a manutenção das famílias em seu empenho em reconquistar terras tradicionais e
esperar as medidas oficiais para isso. Como nos outros dois casos de Áreas de Conflito, o
apoio da Carteira Indígena teve peso importante no processo que vem sendo enfrentado
pelos índios do lugar.
II.1.4.- Ñande Ru Marangatu (dia 26.11.2007)
17
Quanto à administração dos recursos, houve uma só variação nos elementos de roça adquiridos;
26
O encontro no Marangtatu foi interessante; não tanto pelo trabalho emergencial
que se realizou ali, mas pela possibilidade de clarificar aos índios sobre o que é a CI e
como, no futuro, poderão solicitar financiamentos de projetos.
A reunião aconteceu na casa do “capitão” que, a exemplo do líder do Guyra Roka,
possui um espaço coberto de sapé e sem paredes, também utilizado como “sala de
recepção” e espaço político. Entre 60 e 70 pessoas estiveram presentes, número
representativo das famílias “pioneiras” do Marangatu e que formam a base da ordem
política local. Como no Guyra Roka, uma parte das pessoas esteve sentada nos bancos a
isso destinados e outra parte esteve “espalhada” em torno desse lugar ouvindo as
discussões, criando um ambiente de aparente desinteresse pelo que está sendo falado,
tipificando o aty guasu.
O Projeto no Marangatu financiado pela CI previa a construção de três galpões
para atender situação emergencial vivida por 140 famílias kaiowa que ocupam parte
reduzida (126ha) de seu tekoha ymãguare identificado (com 9.900ha) e homologado pela
Presidência da República. Apesar disso, no final de 2005 (14.12), uma ordem judicial
decorrente de gestões jurídicas protagonizadas por fazendeiros determinou o despejo
daquelas famílias que se assentaram na beira da estrada, em lugar contíguo à área de
onde foram retirados.
Por falta de alternativas e em função do caráter emergencial a proponente do
Projeto foi a APAE - Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de Antonio João
(MS), instituição de alcance nacional que não mantém qualquer vínculo com a questão
indígena.
Como já era do conhecimento da equipe que escutara a representante da
proponente em Dourados, os índios confirmaram que não haviam participado da
elaboração do projeto, mesmo porque não poderia ser de outro modo. Viviam uma
situação muito difícil e os recursos solicitados eram destinados a uma “ação de
assistência social” para combate imediato de falta de alimentos dada a brusca mudança
daquele contingente de famílias.
Os galpões visavam evitar que as 750 pessoas – particularmente as crianças –
passassem fome ou padecessem de desnutrição. A iniciativa do pedido de recursos à CI
partira do Comitê Gestor de Políticas Indígenas no Cone Sul do MS; sugeria criar
estrutura para receber, armazenar, cozinhar e consumir alimentos disponibilizados pelo
Ministério do Desenvolvimento Social.
Os índios viram os galpões serem construídos, mas não participaram nem mesmo
como mão de obra. Afirmaram jocosamente que “os barracos” não eram bons e tinham
sido mal construídos porque dois deles haviam sido derrubados com o vento e que não
valeu a pena sua construção. Dos três galpões construídos dois foram destruídos pelo
vento; o terceiro tornou-se sala de aula. Ficou claro, contudo, nas discussões mantidas
naquela manhã no Marangatu, que na época os galpões foram de grande utilidade e
alcançaram plenamente seus objetivos.
Os índios do Ñande Ru Marangatu também vivem, como todas as Áreas de
Conflito Guarani no Mato Grosso do Sul, em permanente litígio com fazendeiros e
reivindicam, veementemente, afora a regularização definitiva de suas terras, apoio para a
produção de suas lavouras, para a realização de sua economia de subsistência apesar do
27
espaço relativamente reduzido (120ha) que dispõem dentro dos 9.900ha do tekoha
identificado.
Fica claro no Marangatu, assim como no Guyra Roka e no Paso Piraju, que as
expectativas mais prementes dos kaiowa estão voltadas para o plantio de suas roças,
variável determinante de seu cotidiano e no cálculo de sua economia. Vários discursos
foram feitos por homens e mulheres, jovens e idosos, no sentido da necessidade de se
plantar, de se utilizar a terra para produzir alimentos. Nesses discursos as crianças
aparecem como fator de muita relevância.
II.2.- Caarapó (27.11.2007)
O encontro realizado em Caarapó manteve certa similitude com Dourados,
seguindo um modelo de organização do tipo “ocidental formal local”. Foi organizado e
coordenado pelos dois kaiowa já referidos – membros do CAPI. Teve lugar nas
instalações do CRAS/MDS naquela reserva; uma sala ampla que se mostrou adequada
às conversas entre os aproximadamente 30 presentes. Dispostos em roda os
participantes se apresentaram e depois comentaram sobre o trabalho, coordenados pelo
professor mencionado.
Entre os presentes, todos indígenas, estiveram o "capitão" (líder político) da aldeia
e presidente da associação proponente; quatro professores funcionários do município; um
vereador de Caarapó; três indígenas responsáveis pelos cuidados cotidianos do viveiro de
mudas e do trabalho com as galinhas, auspiciados por uma universidade de Campo
Grande. Trata-se do núcleo de poder que administra e coordena articulações e recursos
dirigidos à esta Reserva vindos de instituições oficiais (prefeitura, FUNAI, FUNASA,
Ministérios, outros) ou privadas como a UCDB. Todos são remunerados e mantêm
ligações estreitas com instituições do mundo do branco, com um bom domínio do
português e do seu código.
Dentro de Caarapó, área com 3.600 ha e entre 5.000 e 6.000 habitantes em sua
maioria absoluta kaiowa – há porcentagem reduzida de ava-guarani – este grupo não
parece representar a totalidade da área, mas sim uma rede de relações entre famílias
extensas locais e uma linha de poder político, legítimo, que se instaurou na localidade em
sua história recente (18).
Como nos outros encontros, foi solicitado, desta vez pelo professor kaiowa, que a
plenária apresentasse seu parecer sobre o andamento dos projetos, quais os pontos
positivos e, principalmente, quais as dificuldades encontradas; o objetivo, invariavel, era a
redefinição das diretrizes da CI.
Através de rodadas os índios se apresentaram dando nome e inserção na Reserva
e opinaram, inicialmente, sobre o andamento da associação e as dificuldades para
organizá-la, assim como “lidar com o papel”. "Burocracia é grande". "Seria necessário dar
capacitação administrativa aos índios" para aprenderem. Os índios "precisam aprender
muito é a administração dos recursos" foram opiniões expressas pelos presentes.
O “capitão” indígena lembrou episódio sintomático da relação entre os kaiowa com
o kuatia (papéis; documentos, textos, notas, jornais); contou que havia chegado
18
Uma vez mais cabe indicar a necessidade de uma investigação mais cuidadosa para ampliar o conhecimento sobre essa
situação em Caarapó.
28
correspondência da CI trazendo a aprovação do tão esperado projeto e caberia a ele,
como presidente da associação, assiná-lo e devolvê-lo imediatamente a Brasília para
continuidade do processo de liberação de recursos; mas, diz o líder, “coloquei na gaveta e
esqueci; depois me lembraram e eu fiz o que tinha que fazer".
Procedimentos dessa ordem não são incomuns entre os Guarani. Não possuem
armários, estantes, gavetas, pastas ou arquivos de aço para guardar ou resguardar,
literalmente dos rigores das variações climáticas, os kuatia ou “papéis”. Documentos,
papéis ou livros convivem pela casa do Guarani com ferramentas, talheres, peças de
roupas, remédios do mato, etc., incrustados nos vãos de tetos e paredes de suas casas.
Difícil afirmar que o “papel” tenha sido incorporado ao cotidiano desses indígenas da
forma como o fazemos nós, brancos – ou mesmo os terena que têm outra relação com
papéis e documentos;
No caso particular de Caarapó os índios informaram que uma das dificuldades
administrativas mais sérias que enfrentam é exigência da licitação para aquisição de
produtos. Por ser uma cidade pequena com um comércio restrito, tiveram problemas para
levantar preços e foram obrigados, em alguns casos, a irem a Dourados, o que significa
deslocamentos que exigem dinheiro.
Afora os problemas administrativos consideram como positivos os resultados da
criação de galinhas através de chocadeira com capacidade para gerar 120 ovos pintinhos
que serão “distribuídos para as famílias". O projeto da galinha está funcionando para a
escola que capacita alunos.
Na avaliação dos presentes ao encontro, têm sido satisfatórios os resultados do
projeto que é centrado e desenvolvido pela escola. Muito embora a natureza, como é do
conhecimento e da prática dos índios Guarani desde que entraram em contato com
galinhas, também possa oferecer pintinhos sem necessidade de capacitação de crianças
com artefatos elétricos, o projeto entendeu ser melhor sua produção com a máquina,
focando mais a capacitação dos alunos em lidar com esta produção. Os pintinhos após o
nascimento são distribuídos para as famílias na aldeia.
Embora afirmando que o projeto tem que crescer porque “ajuda a família” –
pretendem diversificar o projeto com criação de vacas – são professores que se envolvem
com o trabalho e os investimentos e as atenções estão voltadas primeiramente para a
escola que é coadjuvada pela família. “A experiência”, dizem os índios, “leva o trabalho na
casa”. Diante da constatação do reforço à escola e a decorrente questão se isso não
prejudicava o fortalecimento dos te’yi (famílias extensas kaiowa), disseram que não, pois
“os alunos levam os ensinamentos para a família”.
A referida UCDB e a Prefeitura de Caarapó dão assistência técnica para tratar os
projetos ali realizados de galinhas e outros – há um funcionário (branco) da prefeitura
cotidianamente na aldeia.
Valorizaram o trabalho auspiciado pela CI e foram insistentes na demanda por sua
continuidade. O trabalho, segundo seu entendimento, fortaleceu a economia local e tem
permitido que os próprios índios administrem recursos com o que aprendem; outro ponto
positivo apontaram para o fato de que os projetos vão “daqui para lá” e não o contrário.
29
PARTE III
Encontros com Proponentes Não Indígenas
III.1.- Proponentes não indígenas (24 e 28.11.2007)
A reunião com as proponentes não indígenas foi realizada na sede do IMAD em
Dourados e seguiu a rotina de rodadas para as pessoas se apresentarem e,
posteriormente, comentarem sobre seus projetos com a CI.
Estiveram presentes as proponentes do projeto emergencial no Marangatu
(APAE); das roças de subsistência no Guyra Roka e Paso Piraju (ITJE); de “corte e
costura, tricô e crochê” em Dourados (IMAD); formação de pomares e viveiros (GAPK e
COCTEKD); compareceram ainda um representante da AGRAER (governo do MS) e o
técnico que dá assistência no cuidado dos açudes. Na tarde do dia 28.11 a equipe da CI
reuniu-se em Campo Grande com técnicos da UCDB que dão assistência a projetos em
Caarapó.
Em seu discurso de apresentação o moderador dos encontros repetiu os pontos
rotineiros, mas enfatizou a questão administrativa ao solicitar que os presentes
comentassem como explicariam as experiências dos índios com esse aspecto
sabidamente problemático e inerente a qualquer projeto.
Pretendia-se situar os principais óbices, gargalos e problemas encontrados pelos
índios e que tivessem sido observados pelas proponentes no correr das experiências.
Embora a questão administrativa tenha sido amplamente comentada pelos índios, estes o
fizeram de forma genérica e panorâmica; esperava-se obter informações não exatamente
sobre os já conhecidos – e fartamente discutidos pela literatura e pelas Ciências Sociais –
problemas de qualquer instituição ou pessoa com a “burocracia de Estado”, mas como era
a compreensão e a vivência dos índios com o assunto da perspectiva daqueles agentes.
Surgiram, no entanto, poucas informações que ilustrassem essa perspectiva de
análise; exceção feita à UCDB (v. adiante) os discursos estiveram voltados mais para as
dificuldades próprias a cada entidade na medida em que ficou constatado, nas discussões
com as proponentes, que as associações indígenas só puderam realizar os trâmites
administrativos com assessoria direta e permanente das proponentes pois, caso contrário,
os índios não as realizariam.
III.2.- APAE – Ñande Ru Marangatu
A representante da APAE em Antonio João apresentou sua experiência com o
projeto emergencial para o Ñande Ru Marangatu, voltado para o combate imediato da
fome das famílias kaiowa precariamente acampadas na beira da estrada que liga Antônio
João a Bela Vista, como descrita acima.
Ressaltou que a APAE se envolvera com o problema como “ação humanitária” já
que os índios, sem lenha, instalados em precários barracos de lona, sem acesso a água e
sem possibilidade de plantar, viviam momentos difíceis e o projeto, elaborado às pressas,
30
era para sanar o perigo da fome e suas conseqüências (o projeto dessa proponente está
descrito no item II.2.3.).
III.3.- GAPK e COCTEKD: dificuldades com administração
As conversas com o assessor da COCTEKD esclareceram dúvidas da equipe da
Carteira sobre o que estava ocorrendo com os projetos de pomar e viveiro de mudas
frutíferas. Foi possível entender que este assessor, que inicialmente atendia os projetos
pela instituição não indígena GAPK, rompera relações de trabalho com esta entidade e a
partir de então passou a assessorar somente a COCKTEKD, uma associação indígena
que segue, assim, com os mesmo problemas que os outros dois grupos, com seu projeto
de pomar e viveiro de mudas. As dificuldades, segundo este profissional, foram muitas,
seja para executar o projeto, seja para administrá-lo.
Foi enfático em criticar a burocracia e administração – talvez aproveitando a
pergunta do mediador – dos projetos afirmando que a COCTEKD não teria condições de
atender, sem assessoramento do branco, as exigências administrativas do projeto.
Licitações, abertura de conta corrente, diálogo e exigências burocráticas do banco,
estruturar-se para a prestação de contas, administrar recursos no banco, produzir um
documento explicativo além de outras tantas iniciativas e afazeres que são exigidos de
uma instituição, os índios teriam muitas dificuldades e necessitariam de assessoramento
permanente até estarem capacitados.
Sugeriu maior flexibilidade da CI nas “exigências burocráticas”, procurando
diminuir o número de papéis exigidos para inclusão, relatórios e prestação de contas de
um projeto. Para este profissional a experiência está mostrando que o excesso de
burocracia prejudica os projetos.
III.4.- IMAD
A exemplo do assessor da COCTEKD os agentes do IMAD também foram
enérgicos em suas críticas à administração exigida pelo projeto da CI bem como na
demora no recebimento da segunda parcela, que provocou a interrupção do projeto. Esta
paralisação, que não foi, como seria recomendável, explicada e discutida com os índios,
levou-os a desconfiar da proponente, criando clima de animosidade manifesto no
insistente reclamo das mulheres indígenas envolvidas com o trabalho de tricô, crochê e
corte e costura como visto.
Em contra partida e em sua defesa, a proponente considera que "os índios
desconhecem nossa sociedade" e as "agentes de saúde", que inicialmente procuraram o
IMAD para a realização do projeto, passaram a representar “sérias dificuldades” com as
outras mulheres envolvidas no projeto. Os agentes do IMAD, entretanto, apresentaram
sua renúncia, depois de muita reflexão, ao trabalho com indígenas. O que “seria normal
para nós, não o é para eles” argumentaram; “não é uma coisa deles, como vamos
trabalhar com isso?” O IMAD tomou a iniciativa de retirar da Carteira Indígena duas
solicitações que haviam apresentado ano que passou.
O IMAD procurou ainda envolver outras agências para consumar o projeto, não
obtendo êxito em sua empreitada de estabelecer parcerias. Nem FUNASA nem
Prefeitura, a primeira para transportar professores e a segunda para comercializar a
produção, colaboraram com a proponente que esperava "apoio de alguma instituição
31
pública" – esquecendo-se que instituições públicas já têm problemas demais com os
índios e dificilmente se envolvem com organismos não oficiais nos termos pretendidos
pelo IMAD.
III.5.- GAPK (Bororo, Dourados, 28.11.2007)
Na reunião com as instituições não indígenas do dia 27.11 no IMAD não houve
representação da GAPK, ONG que tem planejado desenvolver projetos de pomar e
viveiro de mudas em dois lugares em Dourados, com um grupo kaiowa no Bororo e outro
grupo ñandéva (guarani) no Jaguapiru – como vimos, seriam três projetos caso não se
desse a ruptura com a COCTEKD.
No encontro em Dourados os “cabeçantes” desses grupos de trabalho fizeram
queixas severas ao fato do projeto não estar sendo realizado, e pela impossibilidade de
encontrar os agentes da GAPK. A demanda dos índios – raivosa e veemente – mobilizou
a equipe que se prontificou a procurar a instituição e dar-lhes uma resposta sobre o
“sumiço” daqueles agentes. Em contato com a GAPK marcou o encontro na casa do índio
kaiowa do Bororo; compareceu também nesse encontro o indígena ñandéva com mesmo
projeto no Jaguapiru.
Questionada pelos índios a GPKA explicou que “finalmente” haviam sido
superadas as condicionantes técnicas para o plantio das mudas: a caixa d’água fora
erguida; o padrão de energia mudado e os problemáticos desdobramentos disso tudo
haviam sido sanados (v. item 1.7.2.2).
Quanto às mudas, revelou que o fornecedor não as tem para pronta entrega e que
a ONG havia encomendo novas mudas que estariam chegando no “próximo mês”
(12.2007) – conforme “planejado”, as mudas deveriam estar disponíveis e sendo
plantadas em janeiro de 2006.
Com a chegada das mudas os índios se perguntam como preparar e abrir 300
covas sem a ajuda de muitas pessoas. A GPKA informou que oferecerá “puchero” (carne)
para realização de um mutirão.
III.6.- UCDB (Campo Grande, 28.11.2007)
Essa instituição universitária vem atuando em Caarapó há anos, tendo ali investido
em inúmeras atividades e projetos como construção de represas, viveiro de mudas,
questões ambientais e, principalmente, em educação indígena.
Informaram seus agentes naquele encontro, que dão assistência técnica e
contabilista a dois projetos naquela aldeia. Quanto aos aspectos contabilistas,
espontaneamente explicitaram os agentes de UCDB que entendem ser da maior
importância e seriedade os problemas de prestação de contas realizados pelas
associações indígenas para os projetos da vez. Por primeira a equipe da CI escutou falar
o que “não raro há grandes confusões” nas tentativas de fechamentos de contas e “vez ou
outra há por ai um cheque voador”.
Do que “puderam acompanhar” consideraram que “dificilmente as associações
indígenas darão certo”, e que, diante disso, seria importante procurar outros caminhos
para fazer chegar a ajuda aos índios recomendando, ainda, que isso seja “o mais
32
descentralizado possível”. Comentaram que nesse processo se observa a “existência de
muitos vícios” e – consideração importante e que será mais bem comentada no 3º.
Produto – que “as propostas apresentadas à CI são para branco ver". Foram,
no
entanto, enfáticos no sentido de que os recursos vindos da CI são fundamentais e muito
importantes.
Os agentes dessa instituição, alguns com longa experiência de trabalho com os
Guarani, sugeriram – a rigor endossando o que a CI estava realizando –
discutir mais com os índios sobre os projetos e ampliar a troca de experiência entre eles,
procurando, quando possível, “desingessar” os projetos da dificuldade maior que é a da
prestação de contas.
*
*
*
Oficina Nacional
Nas reuniões em Guyra Roka, Marangatu e Dourados a equipe da Carteira
Indígena discutiu e definiu com os presentes quem iria representar os Guarani do Mato
Grosso do Sul na II Oficina Nacional. Previsto para os primeiros meses de 2008 este
evento prevê o encontro de representantes de variados povos indígenas apoiados pela CI
no país, para discutir mudanças das diretrizes orientadoras com vistas na melhoria de seu
desempenho no trabalho com os índios.
O assunto não foi comentado em Caarapó e Paso Piraju; o primeiro, porque já é
deste lugar o kaiowa que participa da CAP; o segundo porque a situação desta localidade
é bastante tensa e não convém que haja deslocamentos de indígenas deste lugar.
Os índios escolhidos foram Teodora Souza (ava-guarani/terena de Dourados),
Ambrósio Villalba (kaiowa de Guyra Roka) e Hamilton Lopés (kaiowa de Ñande Ru
Marangatu).
Conclusão
Este 2º Produto da Consultoria Antropológica à Carteira Indígena pretendeu
apresentar, de modo sucinto e conciso, uma descrição dos Encontros de
Intercâmbio com Povos Indígenas que se realizaram em terras Guarani no Mato
Grosso do Sul, entre 20 e 28 de novembro passado. No 3º Produto seguirá texto
analítico que procurou incorporar as discussões mantidas no Mato Grosso do Sul
e indicar algumas considerações que podem contribuir na construção de novas
diretrizes da Carteira Indígena.
Rio de Janeiro, 03 de Março de 2008
Rubem F. Thomaz de Almeida
Antropólogo
ABA 2.143.769.770
33
GLOSSÁRIO DE SIGLAS
AITK
APAE
ASSIND
CAPI
COCTEKD
GAPK
IMAD
ITJE
KATEGUA
MMA
CRAS
MDS
- Associação Indígena Te’yikue (Caarapó).
- Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Antonio João).
- Associação Indígena Avaete Oñondivepa Guarani, Kaiowa e Terena
(Dourados)
- Comissão de Avaliação de Projetos Indígenas
- Centro Organizacional da Cultura Tradicional da Etnia Kaiowa de
Dourados (Dourados)
- Grupo de Apoio aos Povos Kaiowa-Guarani (Dourados)
- Instituto de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Dourados)
- Instituto Técnico Jurídico Educativo (Campo Grande).
- Associação Indígena Kateguá (Dourados)
- Ministério do Meio Ambiente
- Centro de Referencia de Assistência Social
- Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
34
Download

encontro de intercâmbio com povos indigenas