A TRANSPOSIÇÃO MANUAL DE PEIXES EM BARRAMENTOS DE
USINAS HIDRELÉTRICAS
Pompeu, Paulo, S. - Martinez, Carlos, B.
Universidade Federal de Minas Gerais
Centro de Pesquisas Hidráulicas
Av. Antônio Carlos 6627. CEP 31270.901 E-mail: [email protected]
Belo Horizonte, MG – Brasil
RESUMO
Este trabalho apresenta a avaliação do uso da transposição manual de peixes como ação emergencial para
garantir a migração, e como ferramenta de planejamento para aquelas barragens em que ainda não foram
implantados estes mecanismos. O processo de transposição manual, aqui avaliado, foi implantado junto à
barragem da Usina de Santa Clara durante o período de piracema de 2002/2003. Esse teve como objetivos
atender a legislação vigente e fornecer informações para a melhor operação do elevador para peixes que foi
implantado no ano seguinte. Durante quatro meses, peixes foram capturados por pescadores profissionais a
jusante da barragem e transportados para montante. Além da possibilidade de se transpor um número
considerável de peixes, a transposição manual, através da marcação de peixes, possibilitou a avaliação da
possibilidade de retorno dos peixes para jusante, que se deu principalmente através dos vertedores. .
INTRODUÇÃO
O barramento de rios causa profundas
modificações no ambiente aquático e nas
comunidades aí presentes [Sale 1985]. Entre as
comunidades aquáticas, destacam-se os impactos
sobre os peixes, principalmente por serem
elementos mais facilmente visualizáveis no
ambiente, por apresentarem valor econômico
(pesca) e por serem sensíveis à mudanças ocorridas
em outros componentes do sistema aquático. Para
os peixes migradores as barragens constituem, em
sua maior parte, obstáculos intransponíveis,
alterando, ou mesmo impedindo sua reprodução.
Embora apenas uma pequena fração das espécies
de peixes sul-americanas realize grandes migrações
[Petrere Jr. 1985], devido ao seu maior tamanho
[Lamas 1993] e sua maior abundância [Northcote
1978], estes são os mais importantes para as pescas
profissional [Goulding 1979; Bittencourt & CoxFernandes 1990; Godinho 1993] e amadora.
Muitas alternativas para minimizar os efeitos
adversos dos barramentos sobre a migração dos
peixes têm sido propostas e implementadas.
Entretanto, este é um processo complexo que
exige estratégias integradas entre diversas áreas e
profissionais,
em
especial,
biólogos
e
engenheiros.
Entre as estratégias empregadas para atenuar os
efeitos do bloqueio exercido por barramentos na
migração dos peixes está a construção de
mecanismos de transposição. Estas estruturas
hidráulicas têm como objetivo principal permitir a
subida e/ou descida dos peixes.
A legislação recente de alguns estados brasileiros
tem tornado obrigatória sua construção em
barragens, incluídas aquelas já implantadas. No
entanto, esta é uma tendência mundial que tende a
ser incorporada pela legislação dos diversos
países onde são encontradas espécies de peixes
migradoras.
Este trabalho avaliou a transposição manual de
peixes como alternativa emergencial para garantir
a migração, e como ferramenta de planejamento
para aquelas barragens em que ainda não foram
implantados estes mecanismos.
LOCAL DE ESTUDOS
O rio Mucuri faz parte do conjunto de bacias
independentes que drenam a região leste do Brasil.
Sua área total de drenagem é de 15.100 km2. Seu
regime hidrológico caracteriza-se por duas
estações bem definidas, seca e chuvosa, com
maiores vazões de novembro a abril.
A Usina Hidrelétrica de Santa Clara está localizada
no rio Mucuri a cerca de 80 km de sua foz, no
oceano Atlântico (Figura 1). As obras para a
construção da barragem iniciaram-se em 1999,
sendo que a primeira turbina entrou em operação
em fevereiro de 2002. Sua barragem de concreto
possui 60 metros de altura máxima sobre as
fundações e 240 metros de comprimento.
Pelo menos seis espécies de peixes de água doce
do rio Mucuri podem ser consideradas
potencialmente migradoras, todas elas dos gêneros
Prochilodus, Leporinus e Brycon.
METODOLOGIA
Processo de transposição manual foi implantado
junto à barragem da Usina de Santa Clara durante
o período de piracema de 2002/2003.
Além de atender a legislação vigente, este
procedimento teve como objetivo levantar
informações para a melhor operação de um
elevador para peixes, implantado no ano seguinte.
Durante quatro meses, peixes foram capturados por
pescadores profissionais a jusante da barragem e
transportados para montante.
Cada peixe
capturado foi identificado, medido e marcado antes
de sua liberação no reservatório.
Figura 1. Barragem da Usina de Santa Clara.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Durante o período de estudos foram capturados
mais de 43 mil exemplares de 33 espécies de
peixes, representando a maior parte da fauna do
rio Mucuri encontrada a jusante da barragem da
Usina de Santa Clara.
Dentre as cinco espécies de peixe com o maior
número de indivíduos transpostos, estiveram
incluídas aquelas reconhecidamente migradoras
(Tabela 1), evidenciando o bom direcionamento
dos esforços de captura.
Também foi capturado um grande número de
espécies de origem marinha. A presença destas
espécies no rio Mucuri está ligada ao seu uso
como lar de alimentação, já que sua desova não
ocorre em água doce, mas sim, nas áreas
estuarinas [Vasquez, 1983; Tucker & Campbell,
1998; Bizerril & Costa, 2002].
Tabela 1. Número de indivíduos capturados por
espécie.
Espécie
N
Pogonopoma wertheimeri
18871
Prochilodus vimboides1
17017
Leporinus conirostris1
2948
Leporinus steindachnerii1
1382
Brycon ferox1
1016
Prochilodus costatus1
656
Diapterus rhombeus2
230
Mugil curema2
174
Centropomus paralellus2
148
Cyphocharax gilbert
130
Oreochromis niloticus
129
Leporinus copelandii1
108
Centropomus undecimallis2
67
Hypostomus affinis
65
Pachyurus adspersus
52
Hoplias malabaricus
46
Geophagus brasiliensis
42
Hypostomus luetkeni
33
Megalops atlanticus2
29
Leporinus mormyrops
26
Rhamdia quelen
12
Clarias gariepinnus
10
Charanx latus2
9
Genidens genidens2
9
Cichla monoclus
7
Parauchenipterus striatulus
6
Outras espécies
13
1 = espécies migradoras; 2 = espécies marinhas.
Para as bacias sul-americanas, os movimentos
migratórios podem ser descritos segundo os
modelos apresentados por Petrere [1985] e
Godinho & Pompeu [2003]. Sazonalmente, os
adultos migram dos sítios de alimentação para
locais de reprodução, em processo conhecido
Assim, o uso da captura manual deve ser
ponderado, quando da sua utilização em ambientes
em que estes organismos são encontrados em
grande abundância.
popularmente como piracema. Geralmente, este
processo acontece rio acima. No entanto, embora
a piracema constitua o movimento migratório
mais evidente, os deslocamentos dos peixes
migradores ainda incluem o carreamento de ovos
e larvas, rio abaixo, em direção às várzeas e
lagoas marginais, o movimento de retorno dos
adultos para os sítios de alimentação e
movimentos de indivíduos jovens em direção ao
rio ou a pequenos córregos (Figura 3). No
entanto, não existem estudos disponíveis sobre a
possibilidade de passagem de peixes para jusante
através das estruturas de barragens implantadas na
América do Sul.
Ao longo do período de estudos 29 exemplares que
haviam sido capturados, marcados e liberados a
montante no reservatório foram recapturados a
jusante, indicando sua passagem pelas estruturas
da barragem.
Em um dos indivíduos recapturados a jusante, foi
observado processo de regeneração de escamas ao
longo de uma de suas laterais. Além disto, não
foram observados quaisquer danos externos
aparentes.
Figura 2. Vazão vertida, vazão total do rio Mucuri
e número de indivíduos recapturados a jusante ao
longo do período de estudos
Sítio de
alimentação
(rio)
Ovos e larvas
Sítio de
desenvolvimento
inicial
(planície de inundação)
Jovens
A maioria destas recapturas ocorreu de 30 a 75
dias após a liberação dos indivíduos marcados no
reservatório, sendo a maior parte delas, durante ou
imediatamente após um período com vertimentos
pela barragem (Figura 2). Apenas um único
exemplar, de cascudo-preto (P. wertheimeri), foi
capturado e posteriormente recapturado em um
período durante o qual não foi realizado nenhum
vertimento.
Sítio de
desova
(rio)
Adultos
Dos indivíduos capturados, 15.474, distribuídos
entre 29 espécies, foram selecionados e marcados
antes de sua liberação no reservatório. A maior
parte dos exemplares marcados pertenciam às
espécies migradoras da bacia, como curimatás
(Prochilodus spp.), piaus (Leporinus spp.) e
piabanha (Brycon ferox), além do cascudo preto
(P. wertheimeri).
Adultos (piracema)
Do total de indivíduos capturados, apenas 321
morreram durante a captura e manuseio,
correspondendo a uma taxa de mortalidade de
apenas 0,74 %. No entanto, algumas espécies se
mostraram particularmente sensíveis, como aquelas
de origem marinha e do gênero Brycon.
Jovens
Jovens e adultos
Sítio de
refúgio
(ribeirões)
Figura 3. Modelo geral dos movimentos dos
peixes migradores da bacia dos rios Paraná e São
Francisco [Godinho & Pompeu, 2003].
Nos cursos d’água sob condições naturais, sem
interferências de barreiras artificiais, peixes são
submetidos a valores de pressão próximos à
pressão atmosférica, atingindo um máximo de 2 a
5 atmosferas quando no fundo. No entanto,
empreendimentos hidroelétricos criam condições
ambientais bastante diversas. Dependendo do
arranjo da usina, o grande fluxo de água na
tomada d’água pode atrair os peixes até as
turbinas, onde eles podem sofrer uma série de
danos. Assim, o principal obstáculo à migração
para jusante através de usinas hidrelétricas está
relacionado às taxas de mortalidade que podem
ocorrer quando da passagem pelas turbinas,
embora a passagem pelos vertedores também
possa constituir um problema.
O uso de estruturas para minimizar este problema é
relativamente novo, sendo que os principais relatos
datam de pouco mais de 50 anos [Therrien &
Bourgeois 2000]. No entanto, somente nas últimas
décadas seu uso começou a se popularizar na
América do Norte. Na América do Sul, nenhuma
estrutura com esta finalidade foi instalada até o
momento.
Variação súbita na pressão, choque e atrito contra
as pás, desorientação devido à elevada turbulência
no canal de fuga e conseqüente maior
suscetibilidade a predadores são as principais
causas de morte ou ferimentos de peixes
migradores enquanto passam através das turbinas
[Cada, 2001].
Estudos das taxas de mortalidade quando da
passagem de peixes por turbinas, realizados
principalmente com salmonídeos, indicam que
estas taxas variam de 0% a 100 % em turbinas
Francis [Therrien & Bourgeois 2000], sendo
raramente menor que 10 % [Eicher et al. 1987].
As taxas de mortalidade variam de 0 a 90 % em
turbinas do tipo “hélice”, estando geralmente entre
5 % e 20 %, com o valor médio de 15 % [Therrien
& Bourgeois 2000].
Neste estudo, foram
consideradas do tipo “hélice” as turbinas Kaplan,
Bulbo e as Kaplan horizontais conhecidas como
turbinas tubulares.
Todos os peixes migradores do rio Mucuri
pertencem à ordem dos Characiformes. São
nadadores rápidos e de coluna, tendo sido
comparados aos salmonídeos quando do estudo de
mecanismos de transposição de peixes no Brasil.
No caso da barragem da Usina Hidrelétrica de
Santa Clara, além da grande chance de sofrer
sérios danos através do choque com os
componentes da turbina, peixes são submetidos a
variações bruscas de pressão da ordem de até cinco
atmosferas, valor muito superior àqueles
experimentados em condições naturais. De fato, o
estudo desenvolvido indica que nesta usina a taxa
de mortalidade dos peixes que passam pelas
turbinas deve ser elevada. Apenas 3.5 % dos
peixes recapturados a jusante parecem ter utilizado
com sucesso esta passagem, ao invés dos
vertedores.
Mortalidade durante a passagem pelos vertedores
também pode ocorrer devido ao choque, quando a
altura da barragem é expressiva, ou através da
supersaturação de gases. Este choque pode ocorrer
contra as estruturas da barragem,ou contra o leito e
margens do rio.
Desenho adequado do vertedor pode reduzir
expressivamente este tipo de injúria assim como
as condições hidráulicas da bacia de dissipação e
canal de fuga influenciarão a sobrevivência dos
peixes a jusante [Therrien & Bourgeois 2000]. A
queda máxima para permitir a total sobrevivência
do salmão-do-pacífico foi estimada em 21 a 40 m
para jovens (15-18 cm de comprimento) e de
aproximadamente 13 m para os adultos (maiores
que 60 cm) [Ruggles & Murray 1983]. Acima
desta altura, a mortalidade varia com a espécie,
altura da barragem e localização do vertedouro.
Mesmo assim , estudos indicam que espécies
anádromas possuem 98% de chance de
sobrevivência quando submetida a uma queda
livre de 90 m [Ruggles & Murray 1983].
Supersaturação por nitrogênio está relacionada à
altura da queda e características do escoamento
vertido [Clay 1995].
Considerando que os peixes ultrapassam a
barragem de Santa Clara para jusante através dos
vertedores, eles são submetidos a velocidade da
ordem de 15 m/s junto às comportas. O tipo de
vertedor utilizado, com salto de esqui, tem como
vantagem a redução da abrasão contra a superfície
do vertedouro, devido à lamina d’água liberada, e
redução da probabilidade de choque devido à
bacia de dissipação (colchão d’água) com volume
de água aparentemente satisfatório.
Apesar de constituir uma rota disponível para a
migração dos peixes em direção às áreas de
jusante, um número relativamente pequeno de
exemplares foi capaz de utilizar vertedores da
Usina de Santa Clara para este fim. Esta rota
também apresentou uma importante seletividade
para algumas espécies e classes de tamanho. No
entanto, é importante salientar que as atividades
de recaptura duraram apenas quatro meses. Após
este período, pelo menos outros dez peixes foram
recapturados a jusante por pescadores locais e
através do programa de monitoramento do
elevador para peixes implantado no ano seguinte.
CONCLUSÕES
Além da possibilidade de se transpor um número
considerável de peixes, comparável ao número de
exemplares transpostos por algumas das escadas
para peixes construídas no Brasil, a transposição
manual, através da marcação de peixes,
possibilitou a avaliação da possibilidade de
retorno dos peixes para jusante, que se deu
principalmente através dos vertedores. Os dados
obtidos
também forneceram informações
fundamentais para a operação de um elevador
para peixes, implantado no ano seguinte a este estudo.
Assim, a transposição manual surge como
alternativa emergencial de atendimento à
legislação, seja durante o projeto ou construção de
mecanismos definitivos em barragens de pequenas
centrais hidrelétricas já existentes, ou mesmo
durante períodos de desvio do rio em barragens em
construção, atenuando os efeitos destes
empreendimentos sobre a comunidade de peixes.
Adicionalmente, quando efetuada com rigor
técnico e científico, este procedimento pode
propoorcionar
levantamento de informações
inéditas sobre o comportamento dos peixes sulamericanos
frente
à
Pequenas
Centrais
Hidrelétricas.
AGRADECIMENTOS
À Centrais Elétricas Santa Clara, Limiar
Engenharia e Universidade Federal de Minas
Gerais pelo apoio logístico e financeiro.
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