As imagens de Napoleão Bonaparte
na produção dos impressos e livros luso-brasileiros (1808-1846)1
Lúcia Maria Bastos P. Neves2
Departamento de História
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ
Os exércitos aliados estão de posse de Paris! [...] efetuada está a contra-revolução e os
descendentes da antiga família dos Bourbons se vão sentar, no cabo de um longo exílio,
no trono de seus antepassados. Caiu dele o grande homem, caiu; porém, nem por isso
desceu do lugar eminente, que ocupava e ocupará na história. Perdeu, verdade é, mais de
uma coroa, porém, fica com toda a sua glória, com todo o seu gênio e com toda a sua
grandeza moral. 3
Assim, era descrita a queda do imperador francês, por uma obra, publicada na França, em
1846. Sem dúvida, tratava-se de mais uma biografia, inserida no contexto da produção
historiográfica de meados do oitocentos, imbuída das idéias de que a vontade dos
indivíduos faziam a história e entusiasmada com os fatos gloriosos do passado. Nelas,
Napoleão transformava-se no herói romântico, que fascinava muitos autores. Havia,
contudo, um diferencial: essa História de Napoleão Bonaparte aparecia em português e
fora elaborada por Caetano Lopes de Moura, baiano mestiço, que atuara como cirurgiãomor da Legião Portuguesa a serviço do imperador dos franceses. Sem dúvida, em seu
trabalho, a imagem de Napoleão Bonaparte era bem distinta daquele propagada pelos
panfletos que circularam no mundo luso-brasileiro, no período das invasões francesas.
Pretende-se neste trabalho analisar a produção editorial criada em torno da figura de
Napoleão Bonaparte, nos impressos e livros luso-brasileiros, da primeira metade do
oitocentos. Privilegiaram-se não só os escritos de circunstâncias – folhetos políticos e
jornais – bem como livros que foram publicados tendo como personagem central o
imperador dos franceses. Através da análise desses impressos, relacionando eventos e
representações, que caracterizaram o período, verifica-se que múltiplas imagens foram
projetadas sobre essa personagem histórica, pois ao lado da figura do anti-Napoleão,
1
2
3
Trabalho apresentado ao NP 04 – Produção Editorial, do IV Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom.
Professora Titular de História Moderna do departamento de história da UERJ e do programa de Pós-graduação de
História. Pesquisadora 1D do CNPq e pesquisadora principal do Pronex/CNPq/Faperj: “Nação e cidadania no Império:
novos horizontes”, coordenado por José Murilo de Carvalho. Autora de Corcundas e constitucionais: a cultura
política da Independência do Brasil. Rio de Janeiro, Revam, 2002; O Império do Brasil. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1999 (com Humberto F. Machado); de diversos artigos em revistas e periódicos no Brasil e no exterior
Caetano Lopes de Moura. Historia de Napoleão Bonaparte desde o seu nascimento até a sua morte, seguida da
descripção das ceremonias que tiverão lugar na trasladação de seu corpo da ilha de Santa- Helena para Paris, e do
seu funeral. Paris, J. P. Aillaud, 1846. v. 2, p. 424. Grifos meus.
forjada pela lenda negra, não deixava de coabitar no imaginário de alguns a figura de
Napoleão Bonaparte enquanto o herói do século.
* * *
Na visão de época, a representação sobre o imperador dos franceses foi traduzida
por meio de múltiplas facetas, desde o Ogro, devorador do mundo, até o mártir, aguardando
seu fim em Santa Helena, como Prometeu acorrentado. Tais imagens, construídas muito
mais para glorificar ou denegrir um passado, transformam-se em objeto privilegiado da
historiografia, uma vez que, para além dos símbolos, testemunham a trama que constituiu a
memória desses anos, fronteira entre uma Europa do Antigo Regime e uma Europa liberal.4
De um lado, na origem de tudo, a lenda imperial, ou lenda rosa ou dourada,
forjada, inicialmente, pelo próprio imperador, quando das campanhas de Itália, que acabou
por transformar Bonaparte em uma combinação de herói e semideus, especialmente entre
1800 e 1814. De outro, nessa mesma época, a lenda negra – o anti-Napoleão – construído a
partir de inúmeras caricaturas, panfletos e escritos, que saíram não só na França, como em
toda a Europa. Sem dúvida, o principal instrumento de divulgação de uma imagem antinapoleônica foram os panfletos e folhetos políticos, que a aventura bonapartista fez pulular
na Europa dominada, entre 1798 e 1814. Foi, sobretudo na Inglaterra, onde o regime
parlamentar e a liberdade de imprensa favoreciam a arte da polêmica e do panfleto, que
esse combate simbólico a Bonaparte mais se intensificou. Eram escritos, com temáticas
variadas, como a crueldade do imperador, os erros estratégicos de suas campanhas, a
política autoritária que contrastava com o liberalismo inglês, a corrupção de seus auxiliares
e a vida íntima de Napoleão. Tal propaganda inglesa ganhou o continente, penetrando,
primeiro em Portugal e Espanha, atingindo, em seguida, Alemanha e Rússia, e
influenciando também os panfletários franceses, após 1814, que buscavam em seus
predecessores idéias e anedotas para construir a lenda negra.5
Entre os folhetos ingleses, pode ser destacado o trabalho de Lewis Goldsmith –
História secreta do gabinete de Napoleão Bonaparte e da corte de Saint-Cloud, publicado
em Inglaterra em 1810. Seu autor, um entusiasta da Revolução Francesa, foi o diretor do
4
5
Para uma análise dessas reprersentações em Portugal, ver As representações napoleônicas em Portugal: imaginário e
política (c. 1808-1810). Tese apresentada ao concurso público para Professor Titular de História Moderna no
Departamento de História da UERJ. 2002, 272p. (digitada). Para a visão de representação, cf. Roger Chartier. Au bord
de la falaise. L’Histoire entre certitudes et inquiétude. Paris, Albin Michel, 1998, p. 175-179 e 67-86
Cf. J. Tulard (apres.). L’Anti-Napoléon: la legende noire de l’Empereur. Paris, Julliard, 1965.
jornal Argus, “publicado em língua inglesa, com o desígnio de corromper os vassalos da
Grã-Bretanha”. Expulso da França em 1809, ele retornou à Inglaterra e, para se reabilitar,
escreveu tanto um periódico anti-francês, quanto essa História secreta. Traduzida em
diversas línguas, inclusive para o português em 1810, e para o francês, em 1814, o livro
retratava o imperador desprovido de todo o talento político e administrativo, um verdadeiro
terrorista, que cometeu todas as espécies de crime na Córsega, em Toulon, no Egito e ao
longo de todo o seu reino. Mostrava o caráter violento do soberano e acusava Napoleão dos
piores vícios: “Nunca se viu indivíduo humano que reunisse uma combinação de crueldade,
tirania, petulância, dissolução e avareza como Napoleão Bonaparte. A natureza não
produziu ainda ente mais horrendo”. E, como um artista italiano, que queria exaltar sua
obra, afirmava que “a natureza depois de fazer, quebrara a forma em que o tinha
modelado”, solicitando ainda Goldsmith “aos céus” que não aparecesse “nunca outro
mortal, formado no molde que serviu para fazer Napoleão”. 6
O mundo luso-brasileiro não só conheceu, como também construiu sua lenda em
torno de Bonaparte. Portugal, em função da ausência do soberano e da guerra de ocupação,
em seu próprio território, e o Brasil, novo cenário da Corte portuguesa, do qual deviam
emanar os novos atos administrativos do Império português, vivenciaram momentos
difíceis na ordem política e econômica, que foram traduzidos em atos da Coroa portuguesa,
que visavam à prisão de franceses ou suspeitos de francesia e em inúmeros escritos de
circunstâncias, nos quais se vislumbrava uma repulsa tanto a Napoleão quanto às tropas
invasoras de Portugal.
Em Portugal, centenas de libelos, opúsculos, panfletos, anedotas, páginas de
pequenas histórias e jornais saíram à luz, estimados em cerca de três mil, se incluídas as
proclamações oficiais, embora se ignore, de acordo com os especialistas, quais foram suas
tiragens.7 Mesmo na América Portuguesa, em que a família real tinha procurado refúgio,
essa literatura também circulou. No Rio de Janeiro, os livreiros anunciavam “obras novas”,
que haviam sido impressas em Portugal, ou reimpressas na nova Corte, que se destinavam a
reduzir o herói às dimensões de um usurpador e exterminador de envergadura medíocre,
dono de um caráter feroz e sanguinário, cuja carreira fora mesclada de crimes sórdidos.
6
História secreta do gabinete de Napoleão Bonaparte e da corte de Saint-Cloud. Lisboa, Imp. Régia, 1810. p. 188.
Anunciado na Gazeta do Rio de Janeiro, em seu n.º 40 de 18 de maio de 1811.
De caráter didático e polêmico, os folhetos e panfletos faziam comentários aos fatos
recentes, ou apontavam discussões sobre as grandes questões do momento, mas recorreram
a uma linguagem acessível, porque escorada em temas fundamentais da política e da
situação portuguesa. Por serem escritos em regiões dominadas, regra geral, mantinham-se
anônimos por causa da censura. No mundo luso-brasileiro, pode verificar-se serem de
quatro
tipos:
os
anti-napoleônicos,
os
anti-franceses,
os
anti-afrancesados
e
os
exclusivamente patrióticos.8 Tanto pelo preço, como pelo pequeno número de páginas, os
panfletos constituíam a publicação mais acessível e adquiriam uma circulação mais intensa,
atingindo também as camadas situadas nas fímbrias da sociedade, que, incapazes de ler,
podiam, no entanto, escutar a leitura em voz alta, assimilando, pelo filtro de sua
imaginação, as idéias que deviam ser incutidas.
Alguns panfletos apresentavam a forma de diálogos, seguindo o modelo clássico do
Spectator de Addison e Steele.9 Por exemplo, em O Jacobinismo vencido pelas razões de
hum patriota ou Dialogo entre hum patriota e hum jacobino sobre a retirada de Massena
(1811), o segundo vai visitar o primeiro para convencê-lo a seguir o partido francês, mas,
através de um duelo de palavras, o patriota consegue demonstrar que um “jacobino ou
partidarista de Napoleão é um indivíduo falso à sua Pátria, é um traidor do seu Soberano”;
e, ainda, é “o ódio dos bons Cidadãos, é um Sectário de um homem sem Lei”. Assim, o
partidarista, arrependido, termina por abjurar os franceses, escrevendo uma poesia –
Jacobinos Praguejados – contra a maldita seita dos Partidaristas.10
Outros procuravam explicar certos pontos fundamentais dos acontecimentos da
época, recorrendo, para atingir tal objetivo, ao pequeno catecismo de uso popular, como o
Cathecismo civil ou breve compêndio das obrigações do hespanhol, conhecimento pratico
da sua liberdade e explicação de seu inimigo, publicado quando da sublevação da Espanha,
mas que circulou também em Portugal, procurando demonstrar o ódio a Napoleão.
P: Quem é o inimigo de nossa felicidade?
R: O imperador dos franceses
P: E quem é este homem?
7
8
9
10
Cf. N. Daupiás d’Alcochete, Les pamphlets portugais anti-napoléoniens. Arquivos do Centro Cultural Português.
Paris, 11: 7-16, 1978. J. Tulard (apres.). L’Anti-Napoléon: ..., p. 36.
N. Daupias d’Alcochete. Les pamphlets portugais..., p. 10-11.
P. Gay. The Enlightenment: The Science of Freedom. N. York: Norton, 1977, p. 52-55. Ver também M. Lúcia
Pallares-Burke. The Spectator. O Teatro das Luzes. Diálogo e imprensa no século XVIII. São Paulo: Hucitec, 1995
Lisboa, Offic. de Simão Thaddeo Ferreira, 1809. Citação à p. 19, poema às p. 22-28. Obra vendida na loja do francês
J. Roberto Bourgeois e anunciada na Gazeta do Rio de Janeiro, entre 1810 e 1813.
R: Um novo Senhor, infinitamente mau e cobiçoso, o princípio de todos os males e o fim
de todos os bens, é o compêndio e depósito de todos os vícios e maldades
P: Quantas naturezas tem?
R: Duas: uma diabólica, outra inumana.11
A religião era usada em virtude da preocupação de atingir um público mais amplo,
divulgando-se as críticas ao regime francês, através do antigo costume de parodiarem-se
formas religiosas. Assim, surgiram Pai Nossos, Credos, Ave Marias, que expressavam os
sentimentos de oposição ao domínio napoleônico. Um exemplo pode ser encontrado no
panfleto ABC poético, que trazia, ao final, um Padre Nosso, composto de 26 estrofes, nas
quais a última linha de cada verso, formava o conjunto da oração:
........................................
Por tão Augusto Troféu
Que para Vós alcançamos,
Concedei-nos, vos rogamos,
O Pão Nosso
Derribai Francês Colosso
Origem de nosso dano,
Verdugo, cruel Tirano
De cada dia
Desta Lusa Monarquia
Não vos esqueçais, senhor,
Amparo, graça, favor
Nos dai hoje. 12
........................................
Da mesma forma, encontra-se um Sinal da Cruz, brado de indignação contra os franceses
de autor desconhecido, também circulava pelas ruas de Lisboa e do Rio de Janeiro:
Conheces o Jinó?
Eu nuca cheguei a ver.
Pois é bom de conhecer
Pelo sinal.
Da França é general,
É um impostor, usuário,
11
12
Esse catecismo foi traduzido para o português, em 1808. Cf. Cathecismo civil ou breve compêndio das obrigações do
hespanhol, conhecimento pratico da sua liberdade e explicação de seu inimigo. Lisboa, Tip. Lacerdina, 1808. Citação
à p. 3.
ABC Poético, Doutrinal e Antifrancez ou Veni Mecum. Lisboa, Imp. Régia, 1809 (reimpresso no Rio de Janeiro em
1810), p. 12. Há também, no “Diálogo entre hum Cura e um Freguez”, transcrito no manuscrito de Fr. José Joaquim
de Santa Rosa – Livro da Rzão sobre algumas particularidades pertencentes à Caza de Real e de Covas – um outro
Pai-Nosso, redigido nos mesmos moldes do citado. Cf. A. C. Pires de Lima. As invasões francesas na tradição oral e
escrita. Separata da Revista Lusitana. Porto, v. XXIII, 1922, p. 10-13. Para as paródias das formas religiosas como
um dos gêneros da cultura popular, ver P. Burke. Popular Culture in Early Modern Europe. N. York, Harper & Row,
Publishers, 1978, p. 122-123.
E, também adversário
Da Santa Cruz.
Santo nome de Jesus!
Não há quem dele dê cabo?
De semelhante diabo
Livre-nos Deus.13
.................................................
Eram também comuns as cartas fictícias aos amigos, como a Carta de hum amigo
residente na Hespanha a outro de Lisboa, em que se referem grandes acontecimentos
(1808), a Carta escrita por L. P. A. P a hum patricio da cidade da Bahia (1808) ou A
Grande carta que a mãi do Imperador Napoleão I dirigiu a seu filho (1810), uma paródia
em que a crítica se faz por meio da voz de Letícia, mãe de Napoleão, que se considerava a
“mulher mais desgraçada”, por ter nutrido em suas entranhas um monstro, a que todos
maldizem.14
Das cartas passou-se às farsas, como aquela anunciada pela Gazeta do Rocio – um
drama alegórico sobre o Imperatorio – cujos atores representariam o papel de seu caráter;
assim, por exemplo, Junot, duque de Abrantes, governador de Portugal, em 1808,
representava o erro; Lagarde, intendente geral de polícia de Portugal, na primeira invasão, o
desaforo; e todos os franceses, os larápios.15 Inúmeros foram também os poemas, versos e
odes, retratando, em geral, os acontecimentos e personagens dos principais fatos ocorridos
em Portugal, como a Restauração da cidade do Porto.
Por fim, esses libelos adquiriam a forma de memórias, manifestos ou exposições
circunstanciadas sobre determinados acontecimentos, alguns celebrando a virtude e
sabedoria britânicas, em oposição à brutalidade, liberalidade e rapina dos invasores
franceses. Outros exaltavam o patriotismo e heroísmo português, sobressaindo nessa
perspectiva os escritos de José Acúrsio das Neves, conhecido por seu pensamento
econômico
13
14
15
liberal,
mas
que
defendeu
as
práticas
do
absolutismo
monárquico,
Apud Augusto Cesar Pires de Lima. O Sinal da Cruz de Junot. Coimbra, Coimbra Editora Limitada, 1943, p. 5. Como
informa o autor, Gustavo Barroso, em obra Ao som da Viola (1921) cita um Pelo Sinal da Beata, que é semelhante ao
diálogo acima transcrito, com pequenas mudanças. Nesse sentido, o texto circulou no Brasil, em meio a outros
panfletos, sendo mantido, sobretudo, no seio das tradições nordestinas, onde, segundo Barroso, era regularmente feito,
pelo menos, até o século passado.
A Grande Carta que a mãi do Imperador Napoleão I dirigio a seu filho, que foi interceptada e traduzida do italiano
para hespanhol e deste em vulgar. Lisboa, Imp. Régia, 1810. p. 3.
Gazeta do Rocio. n.º 9. In: Collecção das celebres Gazetas do Rocio que para seu desenfado compoz certo Patusca, o
qual andava à pesca de todas as imposturas, que o intruso ministerio francez fazia imprimir no Diario Portuguez.
Lisboa, Tip. Lacerdina, 1808.
transformando-se em historiador para narrar os primeiros fracassos dos exércitos
napoleônicos frente a uma insurreição nacional, a partir dos finais de 1808.16 Segundo os
relatos deste autor, surgiram ainda atitudes de oposição a Napoleão, no meio dos
acadêmicos da Universidade de Coimbra, que constituíram um batalhão de voluntários para
auxiliar as operações militares dos ingleses. Este corpo foi dividido em duas seções, a dos
estudantes e a dos lentes, fabricando-se na própria instituição pólvora e cartuchames, sob a
direção do lente de Metalurgia e intendente das Minas, o brasileiro José Bonifácio de
Andrada e Silva, fazendo com que “o berço das letras” se tornasse “um arsenal de guerra”.
Um panfleto redigido por um acadêmico, Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva,
posteriormente deputado às Cortes de 1820 pelo Piauí, descreveu o entusiasmo desses
combatentes: “Eis aqui, ó Nação Portuguesa, o brilhante corpo, que te lustra e esmalta, e
que com os livros na esquerda, e, na direita a espada, corre a desafrontar do gravame de
ferro a triste Pátria consternada”. Na linha de muitos outros escritos, considerava Napoleão,
como o “apostata da sociedade humana”, o “verdugo de [sua] nação”, e exaltava a
importância da vitória de Portugal contra o exército invasor, considerando que “esta nação
tem sido guardada pelo Autor do Universo para vingar os grandes Impérios da Europa dos
insultos do corso”, a fim de atribuir a vitória aos “milagres de heroísmo” e a Deus.17
Como já se apontou, na Gazeta do Rio de Janeiro, entre 1810 e 1813, livreiros de
origem francesa, como Paulo Martin, anunciavam estes folhetos, que se destinavam a
combater Bonaparte, como a Verdadeira Vida de Napoleão Bonaparte, a Besta de Sete
Cabeças e Dez Cornos ou Napoleão, Imperador dos franceses e a Receita especial para
fabricar Napoleões. Este último, um soneto escrito por “um amigo de ganhar vinténs”,
ensinava:
Toma um punho de terra corrompida,
Um quintal de mentira refinada,
Um barril de impiedade alambicada,
De audácia uma camada bem medida;
A cauda do Pavão toda estendida,
16
17
Para os textos de Acúrsio das Neves, ver sua obra completa, publicada há alguns anos, Obras compeltas de José
Accursio das Neves. Estudos introdutórios de Antônio Almodovar e Armando de Castro. Porto, Edições
Afrontamento, 1984-1985.
J. Acúrsio das Neves, cf. História geral da invasão dos franceses em Portugal e da restauração deste Reino. Porto,
Edições Afrontamento, s./data. t. 3, p. 115-116. Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva. O Patriotismo acadêmico
consagrado ao Senhor D. João de Almeida de Mello e Castro ... por ... Rio de Janeiro, Impressão Régia, 1812, p. 166
e 3-4, respectivamente.
Com a unha do Tigre ensangüentada,
De Corso o coração, e a refalsada
Cabeça de Raposa envelhecida;
Tudo isto bem cozido em lento fogo
De exterior fagueiro, meigo e brando,
Atrevida ambição lhes lances rogo:
Deixa que se vá tudo incorporando,
E assim mui presto espera; porque logo
Sai um Napoleão dali voando. 18
Os panfletos lograram, sem dúvida, na construção da lenda negra, um papel mais
importante do que aquele dos jornais, já que estes atingiam um público mais restrito; em
geral, os que possuíam assinaturas dos periódicos ou aqueles habituados a comentar, nos
cafés, os artigos elaborados pelos redatores, que, nem sempre, se transformaram em
grandes polemistas. Ainda assim, em Portugal, a Gazeta de Lisboa divulgou artigos
contrários ao domínio napoleônico, até 1º de fevereiro, quando passou a ser um instrumento
do governo de Junot. No Brasil, no único jornal que existia na Corte, a Gazeta do Rio de
Janeiro, encontravam-se ainda críticas contundentes a Bonaparte e aos princípios franceses.
De um lado, havia as notícias transcritas de jornais europeus, em que se divulgavam as
derrotas francesas ou a opinião do público de além-mar contra os desvarios do imperador.
Um artigo, ao comentar as operações dos exércitos franceses na Península Ibérica, louvava
a eficácia dos soldados portugueses, que em breve veriam “reduzido a poeira o malvado
Napoleão, que nos inquieta sem causa”. Incentivava a continuação da luta, pois Napoleão
“não é imortal, ainda que assim se julgue no delírio dos seus planos. Nero também se
julgava imortal, mas a História nos diz dele: “tale monstrum XIV annos perpessus terrarum
orbis tandem destruit”.19
Além disso, ao longo do jornal Correio Braziliense, redigido em Londres, pelo
brasileiro Hipólito da Costa, havia uma preocupação comum: o combate e a crítica ao
tirano Napoleão Bonaparte, descrito como “déspota corso”, “novo Átila”, “aniilador de
todos os direitos dos homens”, um ente “abominável e desprezível”, comparável até mesmo
a Satanás, e considerado como o continuador da Revolução Francesa, cuja ambição levava
18
19
Receita especial para fabricar Napoleões, traduzida de um novo exemplar impresso em espanhol por um amigo de
ganhar vinténs. (É infalível). Reimpresso no Rio de Janeiro, Imp. Régia, 1809, p. 1.
Gazeta do Rio de Janeiro. no 72, 7 de setembro de 1811.
ao estado da mais perfeita barbaridade.20 Em suas observações sobre as causas da deposição
de Bonaparte, Hipólito sintetizava sua opinião sobre o imperador dos franceses:
Bonaparte assumindo as rédeas do governo restabeleceu os negócios, reorganizou o
Exército, lisonjeou a vã glória dos franceses com algumas vitórias e fez-se popular, mas
desde logo formou o plano de acabar de todo com a República, e quando se achou com
seu poder firme, tirou a máscara, usurpou o Poder Soberano; e começou a pôr em prática
todos os estratagemas e valer-se de todos os meios opressivos, porque um usurpador, ou
um tirano se vê sempre obrigado a manter-se no trono. Guerras injustas para dar
empregos às tropas; impostos onerosos; prisões arbitrárias; execuções secretas; alianças
perniciosas à França e vantajosas ao déspota; monopólio das ciências, restrições do
pensar, falar e escrever sobre negócios públicos foram conseqüências necessárias do seu
sistema.21
Enfim, Bonaparte reconstruíra um despotismo semelhante à tirania existente no
Antigo Regime, limitando as liberdades individuais para que seus vassalos ficassem na
ignorância, atacando Estados inocentes e pacíficos e desrespeitando o direito das gentes,
com sua política de bloqueios. Ainda quando chamava a atenção para algum benefício
praticado pelo imperador – abolição da Inquisição, dos direitos feudais, da desigualdade das
imposições e dos tributos – alegava que ele se valia desses meios para oferecer ao povo
alguma tentação, a fim de que consentisse nas mudanças arbitrárias, que desejava
implantar. Também as tropas francesas eram atacadas, por cometer “atrocidades indignas
de homens”, pois “roubam, insultam e matam impunemente os honrados habitantes” e
“ultrajam a religião”, mutilando as imagens sagradas.22
A lenda em torno de Bonaparte propiciou uma notável efervescência mitológica,
característica dos períodos de perturbação política, em que relatos, apelos e anúncios
proféticos ganham corpo e proporções, escapando a qualquer explicação racional dos
acontecimentos. Impregnada por essas imagens, a Corte no Rio de Janeiro também não
deixava de tomar atitudes práticas contra qualquer suspeita de francesia. Ainda em 1808,
por intermédio da Intendência Geral de Polícia, passou-se a acompanhar a entrada de
franceses no Brasil, a fim de evitar-se que, sob a “aparência de amigos, se não introduzam
20
21
22
Para a primeira citação, ver Correio Braziliense ou Armazem Literário. v. 1, nº 3, agosto de 1808, p. 245; para a
segunda, cf. Idem. v. 3, nº 14, julho de 1809, p. 102; para as duas últimas, cf. Idem. v. 2, nº 10, março de 1809, p. 259.
Correio Braziliense ou Armazem Literário. v. 12, nº 71, abril de 1814, p. 613.
Cf. Correio Braziliense ou Armazem Literário. v. 2, nº 8, janeiro de 1809, p. 76. Para a última citação, ver Correio
Braziliense ou Armazem Literário. v. 1, nº 3, setembro de 1808, p. 216.
verdadeiros inimigos”, os quais em todo o lugar em que chegavam, tudo corrompiam, “com
pestífero hálito das suas irrevolucionárias e irreligiosas doutrinas”.23
Apesar de toda essa preocupação e repressão, o fascínio que Napoleão Bonaparte
exerceu sobre sua época contaminou as mentes e os corações de brasileiros. Caetano Lopes
de Moura, baiano mestiço e estudante pobre, partira para Portugal, provavelmente em 1802,
tendo como objetivo determinado “visitar a França” e aí estudar medicina. Sonho quase
inatingível, em função de suas parcas posses, obtidas com algumas aulas de latim, mas que
se transformou em realidade com a ajuda de um mecenas, que lhe concede uma mesada até
1807, quando da falência de seu patrono. Iniciou seus estudos em química, botânica e
anatomia em Ruão, transferindo-se para Paris, em 1807, época de grande prestígio do
império napoleônico. Talvez por faltarem recursos, fazia apenas cursos livres na Faculdade
de Medicina, onde foi colega de estudos de José Antonio Soares de Souza, pai de do futuro
Visconde do Uruguai e que tinha casado com uma francesa, filha de um livreiro, que
morrera guilhotinado, na época do Terror.
Ao romper a guerra entre Portugal e França, segundo informações de Caetano, os
portugueses que estavam estudando em Paris ficaram “reduzidos à dura condição de
prisioneiros, expostos às vexações dos empregados subalternos da polícia” francesa. Nessa
situação embaraçosa, alguns conseguiram evadir-se, como Domingos Borges de Barros,
preso, no entanto, ao desembarcar no Rio de Janeiro, fato já apontado; outros foram
aprisionados, como seu companheiro de estudos José Antonio Soares de Souza, mas que,
em 1809, entrava para o exército de Napoleão, atingindo o posto de cirurgião-mor; e, Lopes
de Moura, que pleiteia uma vaga de ajudante de cirurgião militar na Legião Portuguesa,
formada por oficiais portugueses, que, transpondo a fronteira de seu país, foram incorporarse nas forças militares a serviço do Império francês. Segundo suas memórias, esta seria uma
saída para a incômoda situação em que se encontrava.24 No entanto, em seus escritos
posteriores, não deixou de demonstrar a profunda admiração que sentia por Napoleão
Bonaparte. Assim, em sua História de Napoleão, depois de narrar a batalha de Wagran,
23
24
ANRJ. Códice 370, v. 1. fl. 1. 20 de março de 1808 e Luís Gonçalves dos Santos. Memórias para servir à história do
Reino do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/EDUSP, 1981. v.1. p. 203.
Caetano Lopes de Moura. Biographia de Caetano Lopes de Moura escrita por elle mesmo. Publicada por A. de
Oliveira. Revista da Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro 9: 77, 1902. Cf. ainda Cláudio Veiga. Um
brasileiro soldado de Napoleão. São Paulo/Brasília, Ática/INL, 1979. p. 42-45. Para um estudo da Legião portuguesa,
ver António Pedro Vicente. “A Legião Portuguesa em França – uma abertura à Europa”. In: O tempo de Napoleão em
Portugal. Estudos históricos. Lisboa, Comissão Portuguesa de História Militar, 2000 p. 253-268.
observa em nota: “O autor desta obra se achou presente a esta memorável batalha, na
qualidade de cirurgião mor da Legião Portuguesa”. Ao esboçar a descrição de seu encontro
com Napoleão, em Eberdoff, afirmava com entusiasmo: “tinha nos olhos tal viveza que,
quem neles acertasse de pôr os seus, havia forçosamente de descê-los ao chão, que tal era o
lume que deles dardejava”. 25 Caetano Lopes de Moura nunca mais regressou ao Brasil e
passou o resto de seus dias na França, sendo inclusive pensionista de Pedro II. Fez várias
traduções para editoras francesas no Brasil, sendo considerado o introdutor em português
dos romances de Walter Scott. Morreu em 1860, aos oitenta anos, tendo duas figuras
dominado o horizonte de sua vida – Napoleão Bonaparte e Pedro II.
* * *
No Brasil, por conseguinte, analisando-se a produção de títulos, realizada na
Impressão Régia, entre 1808 e 1815, que totaliza 473 obras, verifica-se que 11,62% destas,
ou seja, 55 títulos, apresentavam como temática sátiras e críticas a Napoleão Bonaparte,
versos em homenagem à restauração de Portugal, narrativas e memórias sobre a invasão
dos franceses, demonstrando que a figura e as ações do imperador dos franceses serviram
de inspiração para inúmeros trabalhos.
O país, como se verificou, não ficou imune ao fascínio pela personagem, como
aponta a obra de Caetano Lopes de Moura. Além disso, procurando estabelecer pontos de
ligação entre Napoleão e o Brasil, outros trabalhos podem ser apontados como o artigo
pioneiro de Ferreira da Costa, escrito no final do século XIX, que revelou uma trama para
libertar Bonaparte de Santa Helena e trazê-lo para Pernambuco em 1817; e de um curioso
livro de Donatello Grieco, que, embora traga em apêndice alguns documentos interessantes,
deixa-se levar pela empolgação, vendo o imperador em seu exílio como o “supremo general
das Américas”. 26
Laudatórios ou panfletários, com propósitos comerciais ou acadêmicos, inúmeros
foram aqueles que se deixaram fascinar pelo herói militar, pelo salvador da pátria, pelo
25
26
Caetano Lopes de Moura. Historia de Napoleão Bonaparte ..., v. 2, p. 301. Idem. Biographia de Caetano ... 9: 85,
1902.
Cf. J.- A. Ferreira da Costa Napoléon Ier au Brésil. Revue du Monde Latin. fevereiro e março de 1886, p. 205-216 e
339-349. Separata. Donatello Grieco. Napoleão e o Brasil. [1939]. Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército Editora,
1995
herdeiro da Revolução Francesa e pelo herói romântico, situando-o na fronteira entre o
indivíduo – o corso que se fez imperador e dominou a Europa – e o mito, emblema da nova
condição humana, capaz de subtrair-se aos destinos divinos para decidir sua própria sorte,
seja pelo viés da lenda negra, seja pelo da lenda rosa, que ele foi o primeiro a forjar. Árdua
foi a tarefa da historiografia, ao procurar fazer de Bonaparte um retrato que levasse em
consideração as circunstâncias políticas, sociais e econômicas de seu tempo e os fatores
culturais e mentais, que permitem esclarecer tanto suas singularidades quanto suas
contradições.27
27
Cf. J. Tulard. Napoléon, le pouvoir, la nation , la légende. Paris, Librairie Géneral de France, 1997. p. 78-103; Natalie
Petiteau. Napoléon, de la mytohlogie à l’Histoire. Paris, Seuil, 1999. p. 195-196.
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Lúcia Maria Bastos P. Neve - Portcom