“Amazônia e o direito de comunicar”
17 a 22 de outubro de 2011 - Belém/PA
Perspectivas de análise microssociológica na observação de fenômenos de comunicação
em seu impacto sobre a cidadania1.
Fábio FONSECA DE CASTRO2
Universidade Federal do Pará, Belém, PA
RESUMO
O artigo discute a necessidade de abrir o campo epistemológico da comunicação para a análise
microssociológica e para o relacionalismo metodológico. Parte-se dos enfrentamentos práticos, do
pesquisador, na tentativa de construir um referencial de análise para o estudo de fenômenos de
comunicação e cultura na Amazônia. Em primeiro plano, indaga-se sobre a possibilidade de verificar o
impacto das estratégias de comunicação sobre a construção da cidadania. Discute-se a presença, na
epistemologia da comunicação, do debate entre individualismo metodológico e holismo metodológico
e, também, as dificuldade colocadas por este último para a pesquisa no campo da comunicação e da
cultura.
PALAVRAS-CHAVE: Microssociologia; comunicação; cidadania; epistemologia; sociologia.
1.
Um problema de natureza metodológica tem-se colocado aos que procuram observar a relação
entre comunicação e cidadania – dentre um corpo variado de fenômenos pertencentes ao
universo das relações entre comunicação e cultura, em geral: Como mensurar o impacto da
mídia na construção da realidade social?
Os instrumentos habitualmente utilizados para descrever esse impacto partem de um
referencial macrossociológico, ou macroeconômico, os quais comportam categorizações da
realidade que, em geral, não observam os espaços de contato e de contágio que se dão no
plano mais estreito das relações sociais pessoais, interpessoais e grupais.
Essa questão adquire relevância quando se observa que os tradicionais vetores da análise
1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho da II Conferência Sul-Americana e VII Conferência Brasileira de Mídia
Cidadã.
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Professor da Faculdade de Comunicação e do Programa de Pó-Graduação Comunicação, Cultura e Amazônia, da UFPA,
email: [email protected].
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macrossociológica, em geral vinculados a uma dimensão sistêmica e a uma perspectiva
hierárquica e verticalizada sobre a posição ocupada pelos sujeitos sociais, não abarcam a
variedade dos fenômenos de poder presentes nas relações sociais cotidianas.
Vi-me confrontado com essa questão, que toma um escopo teórico-metodológico evidente, em
numerosas ocasiões, em minhas pesquisas nos campos da sociologia da comunicação e da
sociologia da cultura, na região amazônica.
No campo da comunicação, por exemplo, investigando a estrutura dos diversos sistemas
midiáticos presentes na região, parti do pressuposto, já consagrado pela pesquisa sobre o
tema, de que as relações entre os veículos locais e os grandes grupos nacionais, com os quais
formam uma estrutura de rede, se conforma como uma relação vertical de poder, na qual os
interesses dos menores se adéqua, estratégica e racionalmente, aos interesses dos mais
poderosos. Porém, observando a prática da dialética entre os grupos locais e as grandes redes,
percebi que esse processo, na verdade, possui uma mão dupla, pois os pequenos agentes da
base das redes de comunicação, por interesse econômico, político ou mesmo ideológico,
muitas vezes, rompem a lógica da própria rede da qual fazem parte, encontrando formas de
resistência a essa verticalização do poder.
Em outra ocasião, ainda no campo da sociologia da comunicação, pude observar como uma
situação micro-regional de acúmulo de riqueza e capital econômico não conforma,
necessariamente, uma correspondente situação de desenvolvimento do setor midiático – o
qual, por conseguinte, pode apresentar um desenvolvimento mais efetivo em situações microregionais com uma conjuntura econômica menos favorável. Mais que isso, percebi como é a
situação de vínculo social empático, baseada na intensificação das redes sociais gregárias, que
leva a um desenvolvimento do setor midiático.
Já no campo da cultura, posso referir minha pesquisa sobre as relações entre a produção
artística amazônica e as relações sociais presentes no campo da cultura, ou seja, as relações
sociais que envolvem artistas, críticos, produtores, patrocinadores e público em geral. Nessa
observação, percebi como o interesse dos agentes sociais não se produz, necessariamente,
como um interesse de maximização do bônus, mas sim enquanto uma ética do coletivo, uma
estética do sentir-com, associadas a experiências geracionais.
Também nesse campo, cito minhas investigações sobre as formas de “denegação social” por
meio das quais sociedades tradicionais amazônicas obliteram a percepção que a sociedade
nacional brasileira, ou a sociedade urbana e culta regional, fazem delas, denominando-as,
classificando-as por meio de categorias impregnadas por forte violência simbólica – como
“caboclos”, “ribeirinhos”, “quilombolas”, “índios”, “fronteira” etc. – e, por outro lado, essas
mesmas sociedades cultas simplesmente ignoram toda e qualquer forma social que fuja a esse
padrão classificatório, como por exemplo as formações sociais associadas a fenômenos de
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etnogênese, que são inúmeras no espaço amazônico contemporâneo.
Recentemente, tenho observado os processos de resistência social contra-hegemônica, no
campo da mídia, desenvolvidos por meio de ações de comunicação empreendidas pela
sociedade civil com o objetivo de fortalecer a cidadania e os direitos sociais. E também nesse
espaço venho me confrontando com as mesmas questões: enquanto alguns atores sociais, mais
vinculados a uma posição social culta, só conseguem compreender a cidadania, ou a ação da
comunicação como instrumento de luta pela cidadania dentro de determinados paradigmas
classificadores, outros – aqueles que, efetivamente, estão na escala menor e final da prática
social – produzem, incessantemente, outros vetores de interpretação, decorrentes de sua
própria experiência social e que, não raro, não se enquadram, ou não se adequam, à escala de
valores interposta.
É dessa observação, precisamente, que surge a pergunta que formulei no começo deste artigo:
Como mensurar o impacto da mídia na construção da realidade social? Certamente não por
meio da escala e da normatividade hegemônica, associada a uma epistemologia sociológica e
comunicativa de matiz economicista.
A questão que me coloquei, nessas investigações, e com a qual venho me confrontando, pode
ser descrita da seguinte maneira: como empreender uma análise sociológica da identidade, da
arte, da cultura e da comunicação se, em todos esses domínios o que encontramos são, do
ponto de vista das epistemologias da sociologia e da comunicação, justamente os valores
contra os quais identidade, arte, cultura e comunicação se insurgem?
Pois, enquanto a sociologia fala em fluxo, sistema, campo, coletividade, exterioridade,
coerência, habitus, tecido e mecanismo social, esses espaços da prática social que são a
identidade, a arte, a cultura e a comunicação falam em sintomas de individualidade,
personalidade, intencionalidade, resistência, re-significação e, até mesmo, incoerência.
A pesquisa sobre cultura e comunicação pode ser vista como um campo de tensão permanente
pela sociologia. Esta se mostra capaz de, a qualquer momento, contradizê-la e desmenti-la.
A questão é que os domínios da arte e da cultura – bem como, suponho, também os domínios
da comunicação – são espaços de insurgência contra os valores de uma determinada
sociologia que poderíamos descrever como uma sociologia economicista, analítica e
atomizante.
2.
Encaminhemos uma tentativa de nos posicionar a respeito dessas questões. Observemos como
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a episteme economicista que antes referi se produz. Façamo-lo para, posteriormente, retomar
e discutir a possibilidade de, sob uma outra episteme, conseguir mensurar o impacto da mídia
na construção da realidade social, especialmente no que diz respeito ao papel da comunicação
para a construção da cidadania.
Observemos que, quando colocamos o confronto sugerido no tópico anterior estamos, na
verdade, falando sobre a questão da individualidade, bem pouco colocada pela pesquisa em
comunicação, mas que ocupa, nas ciências sociais e humanas em geral, um lugar central. Essa
centralidade tem uma forma evidente e aberta na antropologia e na psicologia, mas uma forma
obscura e fechada na sociologia, principal ciência da qual a comunicação, na maioria dos seus
campos paradigmáticos, se vê tributária. Efetivamente, a questão da individualidade, na
sociologia – tal como na comunicação – se coloca quase como um tabu. Tal como um tema
proibido, como se não fosse possível epistemologicamente abarcá-lo; ainda que esteja
presente em questionamentos e observações de alguns dos pais fundadores da disciplina,
como Marx e Durkheim. É como diz Danilo Martucelli:
l’individu a été un probleme à la fois étrangement central et marginal dans la sociologie.
Central: parce que la modernité ne s’est rarement aussi bien déclinée, d’emblée et partout, que
par son avenement. Marginal: parce que des sa constitution en tant que discipline la sociologie
s’est éfforcée, à partir d’une représentation dominante de la vie sociale, de lui ôter toute
centralité analytique, C’est ce double mouvement qui definit le mieux les grands axes des
grammaires proprement sociologiques de l’individu (2002: 11-12).
Uma percepção que também está presente na crítica que Ludwig Wittgenstein faz à disciplina
sociológica que denomina como a sua “enfermidade”: “Cause principale des maladies
philosophiques - un régime unilatéral: On nourrit sa pensée avec une seule classe
d'exemples” (Wittgenstein, 2004, & 593: 221). Segundo Wittgenstein, a sociologia – e nela
incluímos a comunicação – procede como uma conceptualização analógica que tende a
reduzir o real, ou a realidade mesma, a um conjunto específico de fenômenos observáveis,
tendo por base, sempre, uma única classe de exemplos.
Um exemplo dessa situação é a análise do processo social enquanto ação utilitarista de um
grupo de indivíduos: define-se, no escopo metodológico de uma pesquisa em curso, o que
Wittgenstein chama de “classe de exemplos” segundo, não por acaso, os que melhor
exemplificam a “categoria de interesse” em questão. E, isto feito, ignora-se todos os demais
aspectos da realidade envolvidos no mesmo processo, tornando-os invisíveis (Corcuff 2008).
A raiz dessa situação parece decorrer da clássica escala que Durkheim estabeleceu entre as
competências disciplinares para o estudo da sociedade, a qual coloca, num extremo, a
psicologia, encarregando-a de compreender o individual e, no outro extremo, a sociologia,
destinada a se dedicar, exclusivamente, à compreensão do coletivo. Ora, esses limites de
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competências sempre foram questionados e rompidos. A própria psicologia se tornou,
inclusive apoiada na obra de Durkheim, psicologia social. Porém, a sociologia – e com ela,
repetimos, a comunicação – tem hesitado mais em fazer essa abertura.
Não deixa de ser curioso, no entanto, que mesmo em Durkheim tenha havido uma importante
abertura para a detecção das dinâmicas da pessoa, do ser, e, assim, para aquilo que,
posteriormente, será chamado de individualismo metodológico. Essa abertura desponta, em
Durkheim, por meio da compreensão do jogo social como uma tensão entre duas formas de
individualismo: um individualismo egoísta e um individualismo moral, o que produz um
sistema de autoreflexividades que forma o indivíduo como um processo de tensão construtiva
com o social.
Uma dinâmica intersubjetiva, dir-se-ia, que também está presente em Marx, principalmente
em suas primeiras obras, notadamente nos Grundrisse (2011) e em A Ideologia Alemã (1999).
Nessas obras, Marx tende a substituir a noção de subjetividade, característica do holismo
metodológico, pela de intersubjetividade, própria da abertura para o individualismo
metodológico.
Com efeito, a questão que abordamos conforma um problema que, tecnicamente, se coloca
por meio do tradicional debate entre individualismo metodológico e holismo metodológico. O
individualismo metodológico parte dos extremos finais da sociedade – dos indivíduos – ou,
tecnicamente, das partes, para explicar o “todo” social. O holismo metodológico, por sua vez,
faz o movimento contrário: parte do “todo” para explicar o individual.
A análise sociológica – e comunicativa – não ignoram, por certo, o papel dos indivíduos.
Porém, nelas, eles aparecem transfigurados por uma peculiar impessoalidade, estranha à
antropologia e à psicologia e, talvez, excessiva, rebuscada, que parece contribuir mais para
obscurecer o ser, o sujeito social, na sua condição de pessoa, do que para elucidar sua
participação no jogo social. Corcuff (2008) exemplifica esse vocabulário – que, diríamos, é
obscurecedor do ser – rico de termos que advogam um distanciamento radical do
individualismo metodológico: agente, ator, persona, indivíduo. E o mesmo ocorre em relação
à percepção que sociologia e comunicação têm em relação ao processo social. As categorias
criadas para explicar o processo social des-individualizam a ação social: estratégia, habitus,
identidade, competência, disposição, interesse (Corcuff 2008).
Discutindo o debate entre individualismo e holismo metodológico, Corcuff, aliás, observa a
existência de uma terceira via, capaz de sintetizar as duas outras: o relacionalismo
metodológico – bastante presente, como sugere, na sociologia francesa contemporânea.
Tratar-se-ia de compreender as relações sociais como realidades primeiras do fato social. Uma
proposta que ressoa o pensamento de Simmel. Na verdade, essa proposta é tributária de toda
uma corrente de autores da disciplina sociológica que, por privilegiarem o individualismo
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metodológico, acabaram sendo menos utilizados, ou mesmo apartados, da academia. Trata-se
de uma longa e ilustre linha de pensadores, que se funda com a obra de Georg Simmel e que
prossegue com o pensamento de Schutz (1976), Goffman (1975), Berger et Luckmann (1995),
Garfinkel (1967) e de vários outros.
3.
Por que a questão da individualidade é pouco tematizada pela pesquisa em comunicação? A
nosso ver, em função dos ecos de uma episteme que pensa a comunicação, exclusivamente,
como processo massivo e como fenômeno de desindividualização. Uma episteme que se
encontra tanto no funcionalismo da pesquisa norte-americana como na teoria crítica e em
parte dos paradigmas linguísticos que influenciam a disciplina.
Essa tendência se efetiva ainda mais em função do esforço, contemporâneo, presente em
muitos pesquisadores da área, de firmar a comunicação enquanto disciplina científica
individualizada. Todos os artefatos utilizados nesse intento parecem decorrer, justamente, do
fulcro epistemológico que referimos. Particularmente, não consigo perceber a comunicação
como uma ciência, propriamente dita, mas sim como conjunto de fenômenos sociais. E penso
que superar essa tradição epistemológica é condicional para avançarmos na compreensão de
determinados processos comunicativos – precisamente aqueles associados às formas e à
dimensão cultural do vínculo social, tal como sugeri acima.
Para iniciar esse procedimento de reversão epistemológica da comunicação podemos recorrer
ao conjunto de autores que discutem o individualismo metodológico. Mayo (2004), por
exemplo, indica duas hipóteses distintas de conhecimento metodológico dentro dos estudos
dos meios de comunicação: as hipóteses macrossociológicas e microssociológicas, dizendo
que, efetivamente, não vê sentido, apesar dos esforços epistemológicos havidos, na percepção
dos meios de comunicação como instrumentos de construção da realidade social – uma ideia
que decorreria da hipótese macrossociológica.
As categorias usadas por Mayo partem, na verdade, de Vilches (1993), para quem as
pesquisas no campo da comunicação de orientação macrossociológica estudavam as
instituições sociais e as trocas socioculturais decorrentes, a influência das organizações
sociais pelas mídias e as audiências massivas; enquanto que as pesquisas de orientação
microssociológicas se dedicam a observar a organização do trabalho jornalístico e as rotinas
de produção, tendo como marco teórico de referência os estudos etnometodológicos e
fenomenológicos.
Essas categorias foram utilizadas, no campo da comunicação, por Suzana Varjão, em sua
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pesquisa sobre a relação entre imprensa e violência. Essa autora discute a dimensão cultura do
noticiário sobre violências sugerindo que, se um dia ele foi constituído a partir de enunciados
verticalmente emitidos pelos macropoderes, hoje se realiza, no cotidiano das relações, a partir
da esfera dos micropoderes, composta por repórteres e policiais (Varjão 2008: p. 42). Sua
perspectiva não negligencia a participação dos macropoderes na constituição do noticiário,
mas se concentra sobre a ação dos micropoderes, ou seja, das relações entre os jornalistas, das
relações culturais que envolvem os leitores, e assim por diante.
Essas categorias são análogas à dicotomia entre micro-observação e macro-observação,
levantada por Corcuff (2001) e que, como dissemos, tende a converter-se numa espécie de
relacionalismo metodológico.
Esse relacionalismo metodológico tem seu centro teórico principal, pelo que percebemos, na
sociologia fenomenológica criada por Alfred Schutz (1976), para quem o processo social
constitui-se como uma tipificação da experiência social. As categorias científicas, cultas e
eruditas, com as quais certos agentes sociais pretendem compreender o mundo, seriam, na
verdade, formas elaboradas e reificadas da experiência social comum, numa dialética na qual
objetividade e subjetividade confluem, dialeticamente, em direção a um ponto de validação do
sentido que está constantemente sendo negociado.
A partir de Schutz podemos falar em relacionalismo metodológico ou, conforme o caso, na
análise microssociológica propriamente dita. Na verdade, penso que o ponto de vista do
relacionalismo metodológico constitui não uma terceira via, mas uma possibilidade de
abertura, de cada uma das formas de abordagem, para o campo oposto.
A lógica do relacionalismo metodológico, bem como da própria análise microssociológica dos
objetos e processos culturais e comunicativos, compreende o processo de socialização como
uma realidade dialógica, na qual os componentes macroestruturais e microestruturais
tipificam-se mutuamente, fazendo com que os sentidos sociais se formem por, digamos assim,
sedimentação.
Quando transferimos para o plano da pesquisa em comunicação e em cultura a contribuição
de todos esses autores, temos um padrão de construção do objeto que sugere que este não
pode ser algo isolado das construções interpretativas que o envolvem e nomeiam: nem aquelas
produzidas pelo pesquisador, nem as produzidas e reproduzidas pelos informantes, e nem, por
fim, aquelas que decorrem dos muitos conteúdos, todos socialmente produzidos no próprio
jogo dialógico do estar-no-mundo dos sujeitos.
Esse processo de reciprocidade faz com que os objetos culturais, comunicativos ou midiáticos
estudados não sejam alheios à sua própria condição de enunciação. A estrutura midiática
analisada não é mais um corpo estranho que pousa sobre a sociedade, mas algo que é parte
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dessa sociedade. O jornal, a novela, a notícia, a empresa de mídia, deixam de ser
corporificações externas para ser a própria realidade, sendo passíveis de serem compreendidos
não conforme sua lógica de enunciação, mas também conforme a lógica dos sujeitos sociais,
em seu processo intersubjetivo. Da mesma forma a dança, a obra de arte, o patrimônio
imaterial, o gosto: não são elementos externos à lógica do uso que é feito deles.
Na vida social, um “A” enunciado pode se tornar “A2”, ou até mesmo algo descabido, do
ponto de vista de quem enunciou esse “A” – por exemplo, “B”. E esse processo não decorre
da série de fenômenos que, em comunicação, são compreendidos como “ruídos”, mas sim da
própria condição dialógica e intersubjetiva da vida social, feita pela constante sedimentação,
pelo conflito permanente e pelo impulso de re-significação e de corrosão dos sentidos
anteriores.
4.
Retornemos a nossa questão de partida. Indagávamos como seria possível mensurar o impacto
da mídia na construção da realidade social, particularmente no que diz respeito ao papel da
comunicação para a construção da cidadania.
Minha resposta é de que essa questão só pode ser desenvolvida pela via de uma abordagem
microssociológica, ainda que, por uma questão metodológica, seja ela uma abordagem afim à
lógica do relacionalismo metodológico, ou seja, capaz de dialogar com as estruturas sociais
descritas pelas macrossociologias.
Isso se dá porque é impossível compreender as conquistas da cidadania por meio da escala de
realidade criada pelos macropoderes sociais. A cidadania até pode ser apresentada como
índices, resultados e consequências de programas de ação, públicos ou privados; até pode ser
entendida como resultante derivativa de ações de inclusão, acessibilidade e justiça, mas a
própria lógica constitutiva dos processos sociais que se compreendem como “processos de
cidadania” pertence ao campo dos atores finais da escala sociológica mais evidente, a qual
produz, sedimenta, a sua realidade de maneira que não é, simplesmente, derivativa desses
macropoderes.
Da mesma maneira como a lógica de uma macrossociologia pode ajudar a compreender o
mercado de arte, mas não pode compreender a arte enquanto tal, simplesmente; ou da mesma
maneira que uma macrossociologia pode compreender os processos simbólicos sociais da
identidade, mas não a angústia identitária que conforma a identidade em seu uso cotidiano, ou
um processo de etnogênese, simplesmente; ou, ainda, que pode explicar a lógica da rede de
comunicação, mas não a dialética subversiva entre grandes redes e grupos locais, também as
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macrossociologias ajudam a compreender como processos e estratégias comunicativas ajudam
a “produzir” cidadania – mas não explicam a vivência, a prática, a cidadania, como
experiência social.
A questão, em termos práticos, se coloca assim: quais os procedimentos necessários para
proceder uma análise microssociológica na observação de fenômenos de comunicação em seu
impacto sobre a cidadania?
Obviamente essa questão precisa ser colocada diante de cada universo preciso de pesquisa.
Porém, creio que podemos iniciar um protocolo geral que ajude a posicionar o que seria uma
abordagem microssociológica desse processo.
Penso em um procedimento em três passos. O primeiro deles seria apreender como o objeto
investigado – no caso um problema de relacionamento entre comunicação e cidadania - seria,
efetivamente, uma operação semelhante à que, em fenomenologia, se chama epoché, ou seja,
o ato de reduzir o objeto a si mesmo, indagando o quanto de nossa maneira de construí-lo e
até mesmo de interpretá-lo pressupõe uma formação macro – macrossociológica,
macroeconômica, etc. – e o quanto essa formação obscurece a compreensão mais ampla do
processo social.
O segundo passo se daria através de abertura da pesquisa para as vozes dos indivíduos
pesquisados. Numa perspectiva microssociológica é preciso conduzir a reflexão a partir das
narrativas desses indivíduos. Deve-se procurar compreendê-las, encontrando nelas as formas
de sedimentação do processo social em curso. Também se deve procurar relativizá-las,
compreender como elas formam, na prática, uma polifonia – preenchida por sentidos que não
são claros e nem, necessariamente, objetivos; e, muitas vezes, por fragmentos anafóricos e
alegóricos, que são mensagens hesitantes e inseguras dos sujeitos sociais, e não discursos
prontos, fechados e coesos com determinados propósitos e estratégias.
Enfim, o terceiro passo seria dado em relação à observação da própria sistêmica social
envolvida no processo: a percepção das relações de poder interpostas, com seus esquemas de
produção de sentido, com sua pulsão pela reprodução social, com sua complexidade, enfim.
Esses três procedimentos constituem observações gerais, que, obviamente, devem ser
precisadas e especificadas conforme a pesquisa em curso e à luz dos procedimentos
metodológicos e dos referenciais teóricos escolhidos para seu desenvolvimento.
Em conclusão, podemos dizer que é necessário abrir novas fronteiras para a pesquisa em
cultura e comunicação e que essa abertura só é possível se se constituir como efetiva abertura
epistemológica. Compreendendo a sociologia como um referencial de fundo para a pesquisa
em comunicação, particularmente, embora também para a pesquisa sobre cultura – um
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referencial muitas vezes não admitido – considero que um dos caminhos possíveis para fazer
essa abertura epistemológica se dá através dessa ciência social, mas, necessariamente, por
meio de uma evocação do campo das microssociologias.
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