(RE)SIGNIFICAÇÕES DO NATUREZA: religiosidade e ecologia na pajelança maranhense Christiane de Fátima Silva Mota* RESUMO A pajelança ou Cura, é uma prática religiosa que congrega elementos do catolicismo popular, das culturas indígenas, das culturas africanas e da chamada “medicina popular”. Nesse universo religioso, a concepção de cura esta relaciona às noções específicas de saúde e doença, bem como à relação entre religiosidade e meio ambiente. Na pajelança, a natureza além de fornecer as espécies botânicas utilizadas no processo terapêutico, configura-se como espaço “dotado de alma”, pois é “habitado” pelos encantados. O sentido da Cura na pajelança possibilita elencar questionamentos sobre a própria idéia de “medicina popular”, que passa a ser compreendida em diversas situações não apenas como única “saída” ou única “alternativa”, mas sim como uma escolha. Palavras-chave: Religião, Meio Ambiente e Saúde ABSTRACT The pajelança or Cure, is one practical religious one that congregates elements of the popular catolicism, of the indians cultures, the african cultures and the call “popular medicine”. In this religious universe, the conception of cure this relates to the specific slight knowledge of health and disease, as well as the a relation between religious and environment. In the pajelança, the nature besides supplying the used botanicals species in the therapeutical process, is configured as space “endowed with soul”, therefore “it is inhabited” by the magic ones. The direction of the Cure in the pajelança makes possible to selects questionings on the only idea of “popular medicine”, that it not only passes to be understood in diverse situations as only “exit” or only “alternative”, but yet as a choice. Key Words: Religions, Environment and Health 1 INTRODUÇÃO No Maranhão, pajelança, linha de cura, ou brinquedo de cura, são denominações pelas quais se reconhece uma prática religiosa que apresenta como um de seus elementos fundamentais a Cura do corpo e do espírito. Tomando como base empírica a pajelança realizada no município de Bequimão, localizado na Baixada Maranhense, pretendemos apresentar um panorama das (re)significações da natureza nesse universo religioso, já que o ambiente natural é tido nessa concepção como parte da vida e da alma; do corpo e do espírito. Os rituais de Cura podem ser públicos (realizados nos terreiros) ou privados (realizados nos terreiros ou na casa do cliente). O pajé, trajando vestes especiais, de posse * Mestranda em Ciências Sociais - UFMA São Luís – MA, 23 a 26 de agosto 2005 do maracá (instrumento utilizado nos rituais), ao som dos tambores, é orientado pelos encantados1 para curar males de procedências diversas. Os especialistas de cura (pajés), são reconhecidos como portadores do “saber” religioso e dos conhecimentos das ervas terapêuticas, sendo em muitas situações o principal mediador entre o mundo da Terra e o mundo sagrado. Cabe destacar que, antes de qualquer análise sobre a relação “homemnatureza” na pajelança ou ainda em relação a outras significações que o meio ambiente assume, em muitas situações o espaço sagrado é representado nas matas, rios, lagos, nas árvores, etc. Destacamos como elementos norteadores dessa questão algumas idéias relacionadas à noção de Cura, pois esta se encontra no âmbito da compreensão da relação entre religiosidade e meio ambiente. Os procedimentos terapêuticos utilizados na pajelança envolvem o conhecimento das espécies botânicas e o domínio religioso, relação esta, que direciona as práticas que curam o corpo e o espírito. Pode-se entender a utilização de ervas terapêuticas na pajelança como uma vertente da “medicina popular”. Como reflexão inicial, destacamos que o termo “medicina popular” ora aqui apresentado, não tem relação direta com procedimentos terapêuticos utilizados apenas pelas chamadas classes “populares”, nossa intenção é demarcar fronteiras entre a noção curativa da pajelança e as noções utilizadas pelo discurso “oficial” e pelas hierarquias eclesiásticas. 2 A NATUREZA (RE)SIGNIFICADA E AS PRÁTICAS CURATIVAS DA PAJELANÇA Nesse universo religioso encontramos uma variedade de agentes e influências do catolicismo popular (como: rezas e santos), da culturas indígenas (concepções da natureza e algumas práticas terapêuticas) e das culturas africanas (principalmente do Tambor de Mina2). Deus configura-se como entidade principal, pertencente a uma “categoria distinta” (SÁ,1972). Os Santos seriam seres que a partir do sincretismo das religiões africanas com o catolicismo foram incorporados à pajelança, podem ser considerados como “divindades que protegem o indivíduo e a comunidade contra males e infortúnios, devido à sua bondade divina” (GALVÃO, 1976, p.13). Além das entidade incorporadas pelos pajés durante o transe nos rituais de Cura, fazem parte dessa concepção religiosa, seres que “habitam” as matas, os rios, os igarapés, os lagos, as árvores, etc. São seres que não são “deste mundo”, mas fazem parte 1 O termo “encantado” assim como “caboclo”, é utilizado para designar certas entidades incorporadas por médiuns e pajés nos terreiros. Para maiores informações sobre entidades espirituais pertencentes ao universo religioso afro-brasileiro, consultar FERRETTI, M (1994) São Luís – MA, 23 a 26 de agosto 2005 do cotidiano das pessoas que vivenciam esse universo. Tais seres “atuam no domínio do bem e do mal” Sá (1972, p.21); determinados lugares de encantaria que são suas moradas devem ser respeitados e preservados3, caso contrário, esses encantados podem lançar malefícios. Assim como esses seres podem castigar, também podem trazer sorte e felicidade. A crença nesses seres são principalmente relacionadas às religiosidades de influências africanas e indígenas, práticas religiosas que fundamentam-se nos ambientes naturais e nos elementos básicos da Natureza (água, terra, fogo e ar), que não raro constituem o próprio sagrado. Eduardo Galvão pesquisador de importante referência nos estudos da pajelança na região amazônica, em pesquisas na década de cinqüenta tomou como ponto de partida a análise da religiosidade popular como forma de interpretação nos chamados “estudos de comunidade”, apontou que tais seres sobrenaturais estariam ligados a uma concepção mais ampla: a Natureza como “mãe de todos os bichos” e de todos os espaços, noções estas, geralmente atribuídas às influências indígenas. Mas o conceito de mães ou da Natureza como mãe de todas as coisas também poderia ser atribuído às influências dos africanos que trouxeram para o Brasil a crença em entidades femininas, que foram sincretizadas com crenças e histórias trazidas pelos portugueses. Galvão (1972, p.77) destaca: Acreditamos assim, que a crença em “mães” terá sido resultado de um sincretismo cultural, em que pesou a influência do africano, mas, sobretudo do português, sobre as crenças do indígena que já possuía uma versão original de entidades protetoras da natureza. As funções terapêuticas da pajelança possibilitam outras interpretações sobre a relação “homem-natureza”, já que o meio ambiente não significa apenas o lugar de coleta das ervas e demais materiais curativos, mas também o próprio espaço sagrado. Uma forma de direcionar o entendimento dos procedimentos terapêuticos, bem como da Cura, seria a compreensão das noções de saúde e doença que (re)ordenam a idéia de “Cura” nessa prática religiosa Na pajelança, a saúde está ligada ao bem estar físico e espiritual, sendo assim, não existem nesse sistema apenas as doenças “naturais”, mas também as “não-naturais” e as “provocadas por encantados”4. As “naturais” correspondem às enfermidades contraídas “do mundo” ou naturalmente, como: tuberculose, sarampo, pneumonia, distúrbios ginecológicos, viroses, etc.; as “não-naturais” seriam provocadas por agentes humanos e não-humanos, como: quebranto, mau olhado, olho gordo, ou ainda doenças provocadas por 2 3 4 Religião de origem africana, típica do Maranhão. Seres como: Mães D'Água, Curacangas, Animais Encantados e outros. Tomamos como referências para o entendimento das noções de doença na pajelança realizada no município de Bequimão, Maranhão, essas três categorias inicialmente apontadas por Napoleão Figueiredo (1979). São Luís – MA, 23 a 26 de agosto 2005 “serviços encomendados” ou despachos e feitiços; e por fim as doenças “provocadas por encantados”, principalmente quando são desrespeitados em suas moradas. A Mães D'Água, encantado que tem sua morada nas águas doces e/ou nos poços, quando desrespeitada ou provocada, pode castigar alguém com “flechadas” - que de acordo com vários relatos se assemelham a picadas no corpo que correspondem ao momento em que o mal penetra no mesmo, e esse mal se converte em alguma enfermidade, que não raro é acompanhada por visões perturbadoras. Entre os freqüentadores e/ou clientes da pajelança, bem como entre os pajés, são constantes referências à situações em que uma Mãe D'Água ou outro encantado castigou pessoas que invadiram ou poluíram suas moradas, lugares estes, que podem ser árvores, lugares específicos da mata, lagos, entre outros. Cabe acrescentar que, esses tipos de males/doenças somente o pajé pode curar através do tratamento do corpo e do espírito. É importante destacar, aqueles apontados como especialistas de cura (pajés) como legítimos detentores do conhecimento religioso e do saber específico sobre os elementos curativos fornecidos pela natureza. Essa relação não se resume na coleta das ervas certas para fazer remédios, mas envolve o cultivo, a colheita e modos especiais e complexos de fazer. Esses modos rituais são decorrentes da experiência religiosa construída pelo domínio religioso (principalmente o dom) e pelo conhecimento das potencialidades dos materiais naturais (em especial das espécies botânicas). O pajé configura-se como agente dotado de “saber e poder” que envolvem as fronteiras e os segredos da vida e da morte; é apontado como especialistas dos males que atingem o corpo e a alma, são possuidores de um conhecimento garantido pela crença e pela fé em suas práticas mágicas orientadas pelos encantados. Na pajelança, o estudo da relação: saúde-doença-meio ambiente, se constitui em um campo investigativo que possibilita compreender a prática religiosa dos especialistas de cura, assim como elencar questionamentos acerca da Cura enquanto uma categoria que requer ampla discussão no âmbito do que se entende por “medicina popular”5. Desnaturalizar a idéia de medicina popular enquanto uma “única alternativa” ou “única saída” que baseia-se em prodecimentos inferiores e populares (no sentido mais superficial do termo), nos possibilita construir caminhos mais seguros no que se refere à interpretação da Cura direcionada pelo campo religioso, como no caso da pajelança. A aparente “miopia” em relação aos conhecimentos e religiosidades ditos populares, foi também demarcada por diversas correntes de pensamentos (principalmente nos fins do século XIX e primeiras décadas do século XX) que estabeleceram formas de pensar construídas concomitantemente com o discurso oficial, que classificava a Medicina e o discurso médico, como únicas formas legítimas e eficazes do tratamento de doenças, 5 Entendemos que diversos procedimentos da pajelança podem também ser interpretados como práticas da chamada medicina popular. São Luís – MA, 23 a 26 de agosto 2005 tornando os procedimentos terapêuticos populares como marginais e ilegais6. Mas porque insistimos nessa questão? Um resposta seria a de que, debatendo e refletindo essas “velhas oposições”, como o “oficial” x “popular”, poderíamos romper sobre com idéias cristalizadas e superficiais, principalmente no que se refere à relação entre religiosidade e saúde, em especial no caso da pajelança. Da mesma forma que é preciso refletir sobre as “velhas oposições”, é preciso também ir além delas, assim, poderíamos pensar a Cura na pajelança envolvida nos contextos do conhecimento popular e do conhecimento científico, pois a questão fundamental seria perceber que os praticantes ou agentes envolvidos nesse universo religioso não necessariamente vivenciam esse conflito de “saberes”, ou pelo menos entendemos que as fronteiras que demarcam essas formas de tratamento não são tão definidas. O que ordena a busca da Cura não é qual dos tratamentos (do médico ou do pajé) é mais eficaz ou mais seguro, o que direciona a forma de tratamento a ser buscado é a procedência da doença. Se determinada doença for contraída “do mundo”, nada impede que seja curada por um médico, mesmo que também seja tratada por um pajé; e se for contraída por vias “não-naturais”, só o pajé pode curar. Podemos indagar a partir dessa reflexão que, há um movimento contínuo entre essas formas de terapias ou saberes, onde diversos elementos estão envolvidos nesse universo religioso. 3 CONCLUSÃO A postura aqui adotada não se concentra em dar uma “solução” aos problemas aqui apresentados, talvez correríamos o risco de “dar como explicação o que deveria ser explicado” (BOURDIEU, PASSERON, CHAMBOREDON, 2002). Foi possível tecer caminhos que nos aproximam de uma leitura mais cuidadosa sobre a relação: religiosidade e meio ambiente na pajelança maranhense. Nesse universo religioso, as matas, os rios, os lagos, e igarapés, são preservados e devem continuar sendo, principalmente por estarem relacionados ao mundo sagrado, de maneira que se esses ambientes sofrerem variações, consequentemente as práticas religiosas também sofrerão. Cabe reafirmar que na pajelança, a utilização de determinados procedimentos terapêuticos é direcionada pelo domínio religioso, bem como por outras representações dadas ao meio ambiente, situação esta, que apontam outros caminhos para o estudo da 6 De acordo com Philippe Àrie (1989), durante muito tempo o médico não foi tomado enquanto especialista das doenças, ou da cura dos males. Até meados do século XIX, o papel do médico era relacionado à higiene privada e/ou pública ou à possibilidade de aliviar a dor dos moribundos, sua função se restringia a acompanhar o doente à camino da morte. Não era legitimada sua condição de especialista e portador do conhecimento legítimo. São Luís – MA, 23 a 26 de agosto 2005 relação “homem-natureza”, que necessita ser investigada em suas diversas dimensões. É fundamental que a comunidade científica discuta essa questão, apesar de diversos estudos (a exemplo das pesquisas em etnobotânica), têm contribuído para a compreensão da questão, pois priorizar os saberes “tradicionais” constitui-se no ponto de partida para se pensar formas que viabilizem e garantam a preservação desses ambientes. REFERÊNCIAS ÀRIES, Phelippe. Sobre a história da morte no ocidente desde a idade média. Lisboa: Teorema, 1989. BOURDIEU, Pierre, CHAMBOREDON, Jean-Claud, PASSERON, Jean-Claude. A Profissão do Sociólogo: preliminares epístemológicas. Petrópolis: Editora Vozes, 2002 DA SILVA, José Marmo (Org). Religiões Afro-Brasileiras e Saúde. Projeto ATÓ-IRE. São Luís: Centro de Cultura Negra, 2003. DURKHEIM, Émilie. Formas Elementares da Vida Religiosa: o sistema totêmico da Austrália. São Paulo: Ed. Paulinas, 1989. FERRETTI, Mundicarmo Maria Rocha. Desceu na Guma: o caboclo no tambor de Mina em um terreiro de São Luís – a casa Fanti Ashanti. São Luís. 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