Nossa Revista do Memorial da América Latina N°44 - Ano 2012 | 1º trimestre - R$9,00 GUERRA E PAZ Portinari NO memorial InflaÇÃO E DÍVIDA pública BRASIL, uM país dOADOR REELEIÇÃO DE CRISTINA KIRCHNER Faça aqui seu evento! www.memorial.sp.gov.br Informações: 3823-4618 Nossa Revista do Memorial da América Latina N°44 - Ano 2012 | 1º trimestre - R$8,00 Número 44 ISSN 0103-6777 EDITORIAL 04 Antonio Carlos Pannunzio EDUCAÇÃO Helgio Trindade Mãe, 1955. Candido Portinari. Pintura a óleo/madeira compensada. 160 x 110cm ANÁLISE GOVERNADOR GERALDO ALCKIMIN SECRETÁRIO DA CULTURA ANDREA MATARAZZO FUNDAÇÃO MEMORIAL DA AMÉRICA LATINA CONSELHO CURADOR PRESIDENTE ALMINO MONTEIRO ÁLVARES AFFONSO SECRETÁRIO DA CULTURA ANDREA MATARAZZO SECRETÁRIO DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA PAULO ALEXANDRE BARBOSA REITOR DA USP JOãO GRANDINO RODAS REITOR DA UNICAMP FERNANDO FERREIRA COSTA REITOR DA UNESP (em exercício) REVISTA NOSSA AMÉRICA DIRETOR ANTONIO CARLOS PANNUNZIO LEONOR AMARANTE EDITORA ADJUNTA ANA CANDIDA VESPUCCI DIAGRAMAÇÃO (ESTAGIÁRIO) FELIPE DE PAULA LOPES DIAGRAMAÇÃO E ARTE ESTAÇÃO DAS ARTES/SILVIA SATO TRADUÇÃO E REVISÃO FERNANDA LIMA COLABORARAM NESTE NÚMERO REITOR DA FACULDADE ZUMBI DOS PALMARES JOSÉ VICENTE PRESIDENTE DO CIEE RUI ALTENFELDER SILVA DIRETORIA EXECUTIVA DIRETOR PRESIDENTE ANTONIO CARLOS PANNUNZIO DIRETOR DO CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DA AMÉRICA LATINA ADOLPHO JOSÉ MELFI DIRETOR DE ATIVIDADES CULTURAIS FERNANDO CALVOZO Helgio Trindade, Everaldo de Oliveira Andrade, Enrique Amayo Zevallos, Sergio Guerra, Eduardo Rascov, Julia P. Herzberg, Leonor Amarante, Rubens Barbosa, Ibis Hernández Abascal, Maria Lucia Fattorelli, Luis Fernando Ayerbe, Reynaldo Damazio, Bruno Perón Loureiro, Dario Pignotti. CONSELHO EDITORIAL Aníbal Quijano, Carlos Guilherme Mota, Celso Lafer, Davi Arrigucci Jr., Eduardo Galeano, Luis Alberto Romero, Luis Felipe Alencastro, Luis Fernando Ayerbe, Luiz Gonzaga Belluzzo, Oscar Niemeyer, Renée Zicman, Ricardo Medrano, Roberto Retamar, Roberto Romano, Rubens Barbosa, Ulpiano Bezerra de Menezes. IRINEU FERRAZ NOSSA AMÉRICA é uma publicação trimestral da Fundação Memorial da América Latina. Redação: Avenida Auro Soares de Moura Andrade, 664 CEP: 01156-001. São Paulo, Brasil. Tel.: (11) 3823-4669. FAX: (11)3823-4604. Internet: http://www.memorial.sp.gov.br Email: [email protected]. DIRETOR PRESIDENTE Os textos são de inteira responsabilidade dos autores, não refletindo o pensamento da revista. É expressamente proibida a reprodução, por qualquer meio, do conteúdo da revista. DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO (em exercício) ANGELO DE JESUS FERREIRA LOPES CHEFE DE GABINETE MARCOS ANTONIO MONTEIRO DIRETOR INDUSTRIAL Sergio Guerra Eduardo Rascov CRÍTICA Julia P. Herzberg CULTURA Leonor Amarante POLÍTICA Rubens Barbosa REFLEXÃO MARIA FELISA MORENO GALLEGO DIRETOR DE GESTÃO DE NEGÓCIOS JOSÉ ALEXANDRE PEREIRA DE ARAÚJO 32 37 40 43 Ibis Hernández Abascal ECONOMIA 46 Maria Lucia Fattorelli ELEIÇÕES 52 Luis Fernando Ayerbe LIVRO Reynaldo Damazio DEBATE 56 59 Bruno Peron Loureiro COMENTÁRIO Dario Pignotti AGENDA Da Redação TEIJI TOMIOKA DIRETOR FINANCEIRO 24 ARTE ESTAÇÃO DAS ARTES/DEISE ANNE RODRIGUES/ PRESIDENTE DA FAPESP 18 ENSAIO REVISÃO (ESTAGIÁRIO) ELIAS CASTRO 14 Enrique Amayo Zevallos ASSISTENTE DE REDAÇÃO MÁRCIA FERRAZ 10 OPINIÃO EDITORA EXECUTIVA/DIREÇÃO DE ARTE JÚLIO CEZAR DURIGAN CELSO LAFER Everaldo de Oliveira Andrade 06 POESIA Xavier Villarrutia Gonzáles 3 62 65 66 EDITO Neste número inaugural de 2012, a revista Nossa América registra o passo significativo que o Brasil está dando para a integração latino-americana. Trata-se da Unila (Universidade Federal da Integração Latino-Americana), em Foz do Iguaçu, na Tríplice Fronteira. A instituição já está em atividade, em sede provisória, e quem explica os propósitos da iniciativa é seu reitor Helgio Trindade. No outro extremo do Continente corre a seguinte questão: o que o presidente boliviano Evo Morales pode fazer pelas comunidades indígenas. Na opinião do historiador Everaldo de Oliveira Andrade, pode fazer muito, com sua política de promoção de um Estado plurinacional. Por sua vez, Ollanta Humala, presidente do Peru, também ganha avaliação positiva com seu governo de ações 4 conciliadoras, segundo o historiador Enrique Amayo Zevallos. Na esfera das artes plásticas, quatro temas. Um deles, Nossa América foi buscar na Colômbia: convidou a crítica norte-americana Júlia P. Herzberg para escolher quatro talentos do país e registrar sua opinião sobre a importância deles no cenário contemporâneo. Outro é a exposição de obras de Portinari, que o Memorial realiza entre fevereiro e abril, com uma seleção dos mais importantes momentos do autor. Já o ensaio fotográfico desta edição reúne imagens de Sérgio Guerra, “baiano” que mora em Angola, com o intuito de lembrar a relevância dos afrodescendentes, cujo aniversário foi comemorado no ano passado. Por fim, um panorama da Bienal Vento Sul de Curitiba, traçado por Leonor Amarante, editora de Nossa América, ORIAL para quem o evento carrega o mérito da persistência. Um assunto bastante atual: gradualmente o Brasil aumenta sua presença no exterior, ao se tornar um dos maiores doadores de assistência técnica e financeira a países menos desenvolvidos, artigo de Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil em Washington. Também pertinente é a questão da geoestética da visualidade caribenha, que Ibis Hernández Abascal desenvolve a partir do nexo com a área etnocultural. Como a inflação afeta o “sistema da dívida” brasileira? Quem responde é Maria Lucia Fattoreli, colaboradora do Le Monde Diplomatique, que defende a redução das taxas de juros e a adoção de outros mecanismos de controle inflacionário. No país vizinho, a Argentina, a questão é o fenômeno Cristina Kirsh- ner, “provada” e aprovada pelo eleitor com uma quantidade de votos insuspeitada. A análise é do especialista Luís Fernando Ayerbe. Para encerrar, uma resenha do livro Responsabilidade do Estado, de Sônia Sterman, dissertação de mestrado da autora, já em segunda edição. E um artigo do jornalista Bruno Perón Loureiro sobre a reserva de lítio de Uyuni, conhecida como a Pérola dos Andes. Além da agenda, sobre eventos realizados pelo Memorial, e a tradicional poesia que fecha a edição, neste número assinada por Xavier Villarrutia Gonzáles. Boa leitura! Antonio Carlos Pannunzio Presidente do Memorial da América Latina 5 educação UNILA Universidade federal da integração Latino-Americana Helgio Trindade P ara promover a integração, o desenvolvimento e a cooperação solidária entre os países da América Latina, a partir do conhecimento e da formação de recursos humanos de alto nível, o Ministério da Educação do Brasil (MEC) enviou ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em dezembro de 2007, o Projeto de Lei de Criação da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) que foi sancionado por meio da Lei 12.189, de 12 de janeiro de 2010.Trata-se de uma proposta inédita, que pela primeira vez no contexto latino-americano previu a criação de uma universidade nacional dirigida à integração do Continente, com o princípio de trabalhar de forma programada a vocação integracionista das instituições de educação superior. Presidida pelo professor Hélgio Trindade, ex-reitor da Universidade Federal do 6 Rio Grande do Sul (UFRGS), ex-membro do Conselho Nacional de Educação (CNE), a Comissão de Implantação (CI) da Unila, formada e investida pelo MEC, com 13 especialistas em educação superior e integração, trabalhou por dois anos no desenvolvimento e na estruturação do plano político- pedagógico da Universidade. Apesar de a Unila ser uma universidade do sistema federal de educação superior do Brasil, sua especificidade decorre de sua missão própria: a integração latino-americana. Nesta perspectiva está a sua vocação institucional original. Financiada pelo MEC, como as demais universidades federais, seu olhar esta voltado de forma prioritária para a América Latina, com o objetivo de desenvolver uma cooperação solidária com os países na região. O seu campus deverá ser um local de experiência da integração em termos acadêmicos, científicos e culturais, por meio do convívio entre professores e alunos. O Anteprojeto estipula que a metade dos 10.000 alunos previstos e dos 500 professores seja selecionada nos diversos países latino-americanos e a outra metade no Brasil. Para promover esta integração, a Unila será bilíngue (português e espanhol). Alem disso, tem como objetivo a formação de redes de cooperação com universidades de toda a América Latina. A localização da cidade de Foz do Iguaçu, na Tríplice Fronteira, foi fator determinante por dois aspectos. De um lado correspondente à política do atual governo, de expansão superior e interiorização até as regiões de fronteira. Também por ser fronteira trinacional, o que sem dúvida enriquece o projeto e o caráter multiétnico da formação histórica da região. A hidrelétrica de Itaipu Binacional apoiou a criação da Unila, doando uma área de 40 hectares para a construção do futuro campus e cooperou na elaboração do projeto arquitetônico de Oscar Niemayer. Atualmente o PTI abriga a sede provisória da Unila até a conclusão do Campus, que está em fase de construção. O fato de que Niemayer tenha desenhado o projeto do campus foi uma grata surpresa, pois a ideia inicial era ter do arquiteto somente o prédio da biblioteca. Seu projeto para a Unila é majestoso, como são todas as suas obras, e os seus traços simbolizam a integração latino-americana. No total, serão cerca de 150 mil metros quadra- 7 A universidade já funciona em prédio provisório e deve ser transferida para um complexo projetado por Oscar Niemeyer. dos, divididos em seis edifícios: prédio central, biblioteca, anfiteatro, restaurante universitário e dois edifícios para aulas e laboratórios. Foi decidida pela Comissão de Implantação a utilização múltipla dos espaços, e procurou-se adaptar o projeto para uma maior convivência entre alunos e professores. O projeto de uma Biblioteca de referência na América Latina (Biunila) sobre integração regional e comparada prevê um moderno centro de documentação e informação virtual, com capacidade para 300 mil volumes. A biblioteca estará integrada com o Instituto Mercosul de Estudos Avançados (Imea). Este é um centro interdisciplinar de pesquisa e pós-graduação que atualmente atua por meio de Cátedras Latino-Americanas nos diferentes campos do saber. Já com o apoio da Associação de Universidade do Grupo de Montevidéu (AUGM), pretende-se formar uma rede de pesquisas avançadas que se organize a partir da integração do Imea. A proposta da Biunila e do Imea tem o apoio do governo brasileiro por meio do Focem (Fundo para a Convergência Estrutural e Fortalecimento Institucional do Mercosul). A Biunila e o Imea deverão atender a região e ser referência em pesquisa sobre a América Latina. Quanto à seleção de alunos brasileiros e estrangeiros, esta é realizada de forma diferenciada. Os brasileiros são selecionados por meio do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) enquanto os estrangeiros são selecionados em seus países de origem de acordo com critérios definidos pela Unila em acordo com os seus Ministérios da Educação. O corpo docente brasileiro (250 professores) é selecionado por meio de concurso público, como se faz em qualquer outra universidade federal brasileira, mas com banca internacional. Entretanto, foram criadas modalidades 8 distintas de contratação para professores doutores seniores e jovens doutores. Os docentes são contratados por seu perfil como professores visitantes temporários, recrutados de acordo com sua capacidade nos outros países da América Latina. Este formato permite maior flexibilidade na contratação e na permanência dos especialistas estrangeiros, provendo uma maior circulação destes professores, o que cremos ser benéfico para a instituição. Deve-se destacar que haverá um desenvolvimento progressivo do tamanho da Universidade até que alcance a meta de 500 professores e 10 mil alunos. A concretização do projeto deverá ser alcançada até o ano de 2017. A Unila já oferece cursos inter e transdisciplinares, áreas inovadoras, afastando-se das carreiras clássicas. Ini- ciou com uma oferta de 12 cursos de graduação, e está implementando programas de pós-graduação. A ênfase é dada aos cursos considerados estratégicos para a integração, como formação de professores, recursos naturais, relações internacionais, processos culturais e outros. A proposta é dirigida a estabelecer ciclos de formação: o ciclo básico, o ciclo profissional e o ciclo de integração latino-americana. Porém, deve-se destacar que a questão da integração regional deverá permear toda a formação do aluno, constituindo o princípio da instituição. Esta proposta é resultado do trabalho da Comissão de implantação da Unila, que realizou um diagnóstico da oferta de cursos de graduação na América Latina para evitar a reprodução dos mesmos cursos e também se apoiou no resultado de uma consulta internacional realizada com mais de uma centena de especialistas. Há uma grande receptividade do projeto da Unila, em âmbito nacional e internacional. No Congresso Nacional a criação da Unila recebeu aprovação unânime e conta atualmente com alunos de vários países da América Latina (Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Paraguai, Peru e Uruguai). Em 2012, a Unila receberá alunos de toda a América do Sul e de alguns países da América Central e do Caribe. Helgio Trindade é cientista político e atual presidente da Comissão para a Instalação da Universidade Federal da Integração Latino- Americana (Unila). 9 O conjunto terá prédio central, biblioteca, anfiteatro, restaurante e dois edifícios para aulas e laboratórios. ANÁLISE EVO MORALES E AS COMUNIDADES INDÍGENAS Everaldo de Oliveira Andrade H á uma história ancestral no mundo andino que a ascensão de Evo Morales parece ter projetado novamente para a luz. O mundo andino foi marcado pela sobrevivência ao longo de séculos de resistência das comunidades indígenas aymarás e qhéchuas, entre outras, que sobreviveram à colonização espanhola e aos anos conturbados que se seguiram às independências no século XIX. O genial e precoce pensador peruano José Carlos Mariátegui já havia notado uma profunda sociedade indígena remanescente e entranhada na própria terra, um elo de ligação entre a solidariedade comunitária e um futuro libertário para a América Latina com que sonhava. Na Bolívia, nem sempre esse laço de solidariedade previsto por Marátegui entre os de baixo foi claro. Mesmo os proletários 10 mineiros que se enfrentaram nas décadas de 1940 e 1950 com os mineradores, sob as bandeiras socialistas, pouca atenção deram ao mundo indígena. Uma fragilidade que a História não deixou de cobrar seu preço. A revolução de 1952 e sua quase esquecida e pálida reforma agrária buscaram, sob a liderança dos nacionalistas reformistas, desestruturar as comunidades indígenas em nome da cidadania liberal, da propriedade individual e da liberdade. Isso cravou novas feridas na sociedade boliviana, ainda mal curadas. O sociólogo boliviano René Zavaleta Mercado chegou a forjar o conceito de “sociedade abigarrada”, para tentar entender uma nação junta, mas não unida, em que conviviam em um mesmo quadro social setores sociais quase incomunicáveis. Isso está mudando? 11 Os líderes indígenas esperam um diálogo que Evo Morales acena conduzir. Durante os anos 1970, quando vigorava uma ditadura militar no poder desde 1964, um vigoroso movimento indigenista buscou reconstruir, ou trazer para a superfície, uma Bolívia silenciada ou apartada. Era o movimento katarista, que em sua face mais radical beirou o fanatismo racista dos índios contra os brancos. Esse movimento indigenista crescia na esteira do silenciamento do combativo movimento operário pelos militares. De fato, parecia haver um constante ressurgir histórico do mundo andino ancestral, dos laços sociais e econômicos das comunidades indígenas, marcados pela quase impermeabilidade da modernidade ocidental, expressando muitas vezes quase um mundo à parte, ou uma história vivida em outro ritmo paralelo, em outra camada da história silenciosa. Em momentos de grande tensão social e econômica, esses tempos históricos vividos em outro ritmo, essas camadas mais profundas da sociedade parecem se reencontrar para buscar acertar seus ritmos, como se uma história caudalosa e profunda se tornasse repentinamente visível à superfície, como protagonista das conjunturas e dos eventos mais corriqueiros. Evo Morales certamente unificou, ou expressou, um movimento social profundo e unificado de defesa da soberania e autodeterminação da nação boliviana como nunca houve no país. Estamos vivendo um novo ressurgir, um reencontro da nação boliviana? A tão celebrada Nova Constituição Política do Estado Boliviano, aprovada em janeiro de 2009, foi exaustivamente negociada com os setores que defenderam abertamente o separatismo do país. Foi celebrada a formulação de um Estado plurinacional, intercultural, descentralizado e com autonomias regionais. Porém, essa suposta conquista do estado plurinacional, longe de ser um 12 cosmético, pode fortalecer o regionalismo e a fragmentação social dos setores populares e do tradicional e combativo movimento operário do país. E, dessa forma, favorece a antiga Bolívia dividida e submissa à ingerência externa, aquela que sempre foi obstáculo no caminho que levou Evo Morales ao poder. O choque entre etnias e grupos da própria base social de Evo é também parte da dinâmica em desenvolvimento de fragmentação étnica, regionalista e autonomista que ameaça destruir a grande conquista política do seu governo, a unidade política em torno da soberania nacional traduzida nas ações contrárias ao separatismo regional. O mundo das comunidades indígenas só tem sentido e vigor, ganhando uma dimensão política maior na arena de uma nação boliviana plenamente soberana e independente. A fragmentação enfraquece as próprias comunidades. O regionalismo e o autonomismo, expressos recentemente nos choques relacionados à construção da estrada para ligar os departamentos de Pando e Cochabamba, mostram uma dinâmica preocupante, se prevalecer uma dinâmica política isolacionista e não nacional. A posição do governo Evo de dialogar e negociar com as comunidades indígenas da região é positiva, mas está longe de resolver as questões. As cicatrizes que separaram e contiveram a Bolívia durante séculos ainda estão abertas. Everaldo de Oliveira Andrade é historiador, pósdoutorando na Universidade de São Paulo (USP) e professor na Universidade Guarulhos (UNG). Acaba de lançar o livro Bolívia: democracia e revolução – a Comuna de La Paz de 1971. O mundo indígena só tem vigor se ganhar dimensão política dentro da nação. 13 opinião HUMALA E AMÉRICA LATINA Enrique Amayo Zevallos C ontexto: No dia 5 de junho de 2011, Ollanta Humala, no segundo turno, foi eleito Presidente do Peru: obteve 53% dos votos, contra 47% de Keiko Fujimori. Esta, é filha do ex-presidente (1990-2000) Alberto Fujimori, que acabou governando de forma ditatorial. O mentor e braço direito de Fujimori foi Vladimiro Montesinos - chefe do Sistema de Inteligência Nacional (SIN). Ambos estão presos em Lima, submetidos a julgamentos por haverem cometido crimes políticos juntos. Até hoje, Fujimori foi condenado a 25 anos e Montesinos a quase 10. Analistas sérios, como Mario Vargas Llosa (que apoiou Humala por considerar que a vitória de Keiko significaria que seu pai, representante de um novo fascismo, retornaria ao poder), concordam que a “presidente” Keiko libertaria pai e associados. Ações de Fujimori realizadas no ano 2000 levaram 14 o Peru a uma situação caótica: os abusos de Fujimori para reeleger-se pela terceira vez, contra o que a Constituição mandava, desencadearam, apesar da brutal repressão do SIN, protestos massivos que terminaram obrigando-o a fugir para o Japão; o Peru entrou em caos. Algo semelhante teria ocorrido se Keiko libertasse seu pai, já que ela não decide nada sem consultá-lo, além de seu círculo decisório ser constituído pelos membros do governo de Fujimori que não foram presos. A vitória de Keiko significaria, assim, o retorno de Fujimori ao poder com seu corolário: protestos, repressão e caos. Desde que Ollanta Humala assumiu o poder, em 28 de julho de 2011, passou-se pouco tempo. Assim, ainda não é possível julgar seu governo; é possível, sim, descrever algumas de suas decisões tomadas nesse período, o que permitiria perceber tendências. Em 2006, quando Humala foi candidato a Presidente e perdeu para Alan García, era pró-Chávez. Mas nas eleições de 2011, Humala se distanciou do Presidente da Venezuela. Provavelmente, Humala entendeu que Chávez não é um bom exemplo, e que sua proximidade não ajuda. Em treze anos como presidente (desde 1998), Chávez foi incapaz de resolver os principais problemas econômicos e sociais de seu país. Venezuela, gigante petroleiro, com grande renda provinda desse combustível (renda que nos anos de Chávez aumentou enormemente pela alta dos preços do petróleo), deveria ter os mais altos níveis econômicos e sociais da América Latina, mas não os tem; e seu crescimento econômico está entre os mais baixos do continente. A imprensa peruana sugere que foi por realismo que Humala substituiu o chavismo pela aproximação com o Brasil, do Partido dos Trabalhadores (PT). Mas Humala não se limitou ao Brasil: continuou aproximando-se de outros governos, rumo ao Uruguai e a todos os países do Mercosul. Depois, aos países andinos vizinhos do Peru. E também aos Estados Unidos (sendo recebido por Barack Obama e Hillary Clinton), Venezuela (reunindo-se com Chávez), México e Cuba (dialogando com Raul Castro e Fidel). Isso parece ser parte essencial da política exterior do governo de Humala. O Ministro das Relações Exteriores que ele escolheu, Rafael Roncagliogo, continua fiel à declaração que fez ao saber de sua nomeação: a política externa “vai ser uma política de integração com todos os países da região, sem distinção nem preconceitos de tipo ideológico”. O governo de Humala quer manter relações com os países da América do Sul (abrangendo a América Latina e o Mundo), “sem distinções” e com fins de ”igualdade”. A nomeação de Roncagliogo foi um êxito de Humala, evidenciado em seu bom recebimento por quase todas as forças econômicas, sociais e políticas do Peru. Bem recebida porque Roncagliogo desempenhou papéis-chave na história política peruana recente. Miguel Castilla, Ministro da Economia e Finanças, escolhido por Humala, ao contrário de Roncagliogo, gerou discórdia: críticas dos progressistas e esquerdistas que tornaram possíveis seu triunfo e apoio do mundo empresarial e dos mercados. Castilla, com mestrado em Harvard e Ph.D. na Universidade John Hopkins, economista ortodoxo com sólida experiência, até o dia de sua nomeação por Humala, era vice-ministro da Fazenda de Alan García. Igual discórdia gerou a ação de Humala que aceitou manter Julio Velarde no cargo de presidente do Banco Central. Humala aproxima sua administração à do governo PT de Lula: pretende continuar a política econômica de García (assim como Lula fez em seu primeiro mandato, ao assumir, sem admitir, a política econômica de seu antecessor). 15 Mas, simultaneamente, há uma diferença: Humala jamais falou em “herança maldita” e, ao contrário, “pratica abertamente a continuação”, o que se evidencia nas figuras-chave que escolheu para a direção econômica de seu governo (figuras importantes de seu antecessor). Como o Peru inteiro, Humala não quer pôr em risco o alto crescimento econômico de seu país, um dos maiores da América Latina na última década. Isso explicaria a manutenção de Castilla e Velarde como seus gestores econômicos. Mas Humala quer que esse crescimento seja distribuído, sobretudo entre os mais pobres, para diminuir as diferenças sociais. Aqui só é possível mencionar rapidamente algumas decisões tomadas por Humala: Lei da Consulta Prévia: o Acordo n°.169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribaisconcede a esses povos o direito de consulta e aceitação prévias por eles (usando suas formas de consulta tradicionais) sobre qualquer obra que possa causar impacto em seus territórios históricos. Em setembro de 2011, Humala transformou esse acordo em lei, promulgando-a em Bagua. Esta cidade amazônica peruana tem poder simbólico: ali ocorreram, em junho de 2009, violentos confrontos entre a polícia e a população, sobretudo nativa, que causaram a morte de 34 pessoas. Os indígenas protestaram contra o então governo de García, que negava a Consulta Prévia. Humala, ao promulgar essa lei, obteve apoio quase consensual da população indígena nacional e do país inteiro, o qual se refletiu em altas taxas de aprovação de seu governo(hoje cerca de 65%). Também foi muito bem recebido pelos meios internacionais preocupados com a causa indígena e a preservação. Isso porque, uma das consequências imediatas dessa lei foi a paralisação de 16 projetos, especialmente na Amazônia peruana, que estavam sendo realizados sem consulta prévia. Altos Lucros de Minerais: o Peru é um grande produtor e exportador mundial de minerais, dentre os quais, os preciosos. Em função da crise mundial, os preços dos metais aumentaram muito. Por exemplo, o preço da onça troy de ouro, na última década, passou de mais ou menos 300 dólares a quase 2.000 dólares. Os altos lucros não dependem de inovações tecnológicas ou de investimentos maiores, mas simplesmente de inflexões de mercado. Os altos lucros favoreciam os donos das empresas mineradoras, mas não o Estado peruano, porque a maioria dos contratos de exploração foi firmada com o corrupto governo de Fujimori, que lhes deu vantagens, pois a crise, até então, não havia elevado os preços às alturas. Como candidato, Alan García prometeu renegociar esses contratos, mas como presidente disse que era impossível fazê-lo; assim, solicitou a essas empresas uma doação voluntária (óbolo) que foi de 500 milhões de soles (moeda nacional peruana que, pelo câmbio atual de 2.75 por dólar, daria aproximadamente 180 milhões de dólares). Quando Humala assumiu o poder, de imediato, iniciou a renegociação; as empresas, sem muita dificuldade, aceitaram pagar três milhões de soles, ou seja, seis vezes mais. Dinheiro que será utilizado para cumprir promessas de campanha, como o Programa Social Renda 65, que significa: salário mínimo (aproximadamente 100 dólares mensais) para a população com idade mínima de 65 anos, sem renda fixa. Lei contra a Corrupção: o governo de Humala enviou ao Congresso um projeto de lei para declarar imprescritíveis os delitos graves de corrupção de funcionários públicos, impondo sanções aos corruptos; foi aprovada. A lei de Consulta Prévia pode transformar Ollanta Humala em líder das causas indígenas. Concluindo: Humala está tomando decisões conservadoras na economia, progressistas no social, e independentes na política exterior. Políticas de centro-esquerda que têm gerado, até agora, respostas positivas das maiorias peruanas e do exterior, até dos Estados Unidos. E o impacto da lei de Consulta Prévia poderia acabar transformando Humala, por força das circunstâncias, no líder das causas indígenas do continente com bases poderosas em sua população nativa. Enrique Amayo Zevallos é professor de História Econômica e Estudos Internacionais LatinoAmericanos - Universidade Estadual Paulista. 17 ENSAIO RAÍZES DO BRASIL ENSAIO DO FOTÓGRAFO BAIANO SERGIO GUERRA EM TERRAS AFRICANAS O impacto da escravidão não conseguiu conter as manifestações culturais dos escravos trazidos de diversos pontos da África. A simbiose das várias vertentes etnológicas deu origem a novos simbolismos e formatos, enriquecendo substancialmente o modo de ser dos brasileiros. Internacionalmente, o ano de 2011 foi dedicado aos afrodescendentes, e a revista Nossa América estende ainda neste ano as homenagens a esse povo, que tanto adensou a cultura brasileira. O ensaio do fotógrafo pernambucano Sergio Guerra, que se auto-intitula baiano e vive em Luanda, capital de Angola, remete-nos a imagens poéticas, dramáticas, singelas e raras de comunidades distantes da região. A forte presença dos africanos no Brasil pode ser avaliada no censo de 1810, quando eles eram mais de 30% da população do Brasil, porcentagem que decresceu a partir de 1931. A população afrodescendente nos provou que, sem seu universo, o mundo seria monótono, triste e sem a trilha sonora do rock, do jazz, do hip hop, do reaggae e de tantos outros ritmos fundamentais da contemporaneidade. 18 19 20 21 22 23 GUERRA Eduardo Rascov 24 E PAZ 25 Acima, PlantandoBananeira, 1955 - Candido Portinari. Desenho a lápis de cor/ cartolina 9.5 x 8.5cm 26 Após seis anos de guerra total, o mundo descansou. Em 1945, o surgimento da Organização das Nações Unidas enchia de esperança os crédulos. Esqueciam o fracasso da Liga das Nações, anos antes. Surgida dos escombros da Primeira Guerra Mundial, a Liga das Nações havia sido incapaz de impedir outra conflagração planetária. Mas agora a paz precisava ser celebrada. Uma comissão internacional de arquitetos seria formada para construir a sede da ONU, em Nova York. O projeto do mestre franco-suíço Le Corbusier seria o escolhido, com a colaboração de Oscar Niemeyer. O conjunto arquitetônico da ONU foi inaugurado em 1952. Era preciso embelezá-lo com obras de arte de grandes artistas. O Brasil ganha o privilégio de se ocupar do hall de entrada da Assembleia Geral das Nações Unidas. Getúlio Vargas escolhe Cândido Portinari (1903-1962) para a tarefa e este põe mãos à obra. Entre 1952 e 1956, Portinari trabalha sofregamente para atender o pedido do governo brasileiro. Apesar da recomendação médica que evitasse o uso de tinta a óleo, cujo chumbo o intoxicava, o artista encara a encomenda como missão. Com os olhos e as pinceladas voltadas para a eternidade, ele passa a pintar os painéis Guerra e Paz, cuja superfície total de 280 metros quadrados ultrapassa a do Juízo Final (Capela Sistina), de Miguel Ângelo. O resultado é um dos mais belos e impactantes testemunhos da loucura humana e resume como nada o dilema da ONU até hoje: É possível se livrar da guerra? Há guerra justa? A paz tem preço? O que é preciso para conquistá-la? Portinari retrata a guerra não por meio de soldados ou equipamento bélico, mas por meio de suas vítimas, especialmente aquela que sofre a dor maior - a mãe que perde o filho, imolado à (i)racionalidade dos poderosos. Guerra, painel de 14X10m, toma a visão de quem entra na ONU. Paz, do mesmo tamanho, olha e é olhado por quem sai. A mensagem é inequívoca: é possível ao engenho humano resolver seus problemas. Como Di Cavalcanti, Jorge Amado, Mário Schemberg, Carlos Drummond de Andrade, enfim, boa parte da intelectualidade e artistas da sua geração, Portinari era comunista filiado ao PCB, por quem concorreu a deputado constituinte em 1945 e a senador em 1947. Sua insistência em presentear o mundo com a sua arte pungente, como que clamando por um tempo utópico em que não houvesse a explora- 27 Menino com Diabolô, 1955 Candido Portinari Desenho a grafite e lápis de cor/papel 21 x 15.5cm ção do homem pelo homem, custou-lhe caro. Portinari praticamente se auto-emulou , tornando-se, mais que um artista, um herói trágico da humanidade. Guerra e Paz foram os últimos grandes painéis pintados por ele. Depois disso, adoeceu pouco a pouco até morrer em 1962, vítima das tintas que para ele eram arma. Os quadros foram finalmente instalados na ONU, em 1957. Por ser comunista, Portinari não obteve autorização do governo americano para ir à inauguração da sua obra. Niemeyer também já não tinha acesso ao prédio que ajudou a criar. O “Comitê de Atividades Antiamericanas”, criado pelo senador Joseph McCarthy, estava ativíssimo. Nos primeiros anos, o público tinha acesso ao hall da ONU onde estão os painéis Guerra e Paz. Mas, com o tempo, por motivo de segurança, o acesso a ele ficou restrito aos delegados oficiais. Segundo João Cândido Portinari, filho do pintor, 95% da obra de seu pai está fechada em coleções particulares. Por isso, quando soube que as instalações da ONU passariam por reforma entre 2010 e 2013, tanto fez que conseguiu a guarda da obra por esse período. Era a oportunidade dos painéis Guerra e Paz percorrerem o mundo e - finalmente - serem conhecidos pelo povo. Em contrapartida, eles deveriam voltar devidamente restaurados, como previa o contrato entre a ONU e o governo brasileiro dos anos 50. Para essa empreitada, João Candido Portinari obteve o apoio do governo brasileiro, por meio do BNDES, e de outras entidades públicas e privadas. Os painéis foram restaurados no Rio de Janeiro, em ateliê aberto ao público, montado no Palácio Gustavo Capanema, por iniciativa do Projeto Portinari, no início de 2011. Antes disso, eles tinham ficado expostos por alguns dias no palco do Teatro Municipal carioca. Mais de 40 mil pessoas foram visitá-lo. A mostra no Memorial inclui cerca de cem esboços originais de Guerra e 28 Desmontagem dos painéis Guerra e Paz de Portinari, na ONU, em Nova York. 29 Estudos para Guerra e Paz. Mãos Entrelaçadas, 1955. Desenho a grafite e crayon colorido/papel 10 x 10cm. Cabeça de Mulher, 1955. Desenho a grafite e crayon colorido/papel. 16 x 16cm. Paz, que nunca foram expostos conjuntamente e audiovisuais contando a aventura de remover obras de arte gigantescas, transportá-las para o Brasil e restaurálas, bem como documentários sobre a vida e a obra do pintor. Para o Memorial, é significativo ter os famosos painéis, que há 54 anos estão em Nova York, compartilhando temporariamente o espaço com outra obra de Portinari não menos importante, o painel Tiradentes que, conforme explica João Candido, “foi pintado 30 por meu pai um pouco antes, em 1949, com quem Guerra e Paz dialogam muito bem.” E, complementa o filho que faz da sua vida uma espécie de sacerdócio pela memória, preservação e divulgação da obra de seu pai, “o Memorial é o lugar ideal para o público ver as cores intensas dessas pinturas de meu pai, pois ambos têm um significado irmanado. O que é o painel Tiradentes, já instalado no Salão de Atos, senão um grito de repúdio à violência similar aos painéis Guerra e Paz?” Meninos no Balanço, 1955. Desenho a grafite e lápis de cor papel. 25 x 24.5cm. Fotos de Portinari no ateliê e com o filho João Candido. Visionário, sonhador, maluco (algo a ver com seu pai?), João Candido Portinari afirma que, depois de São Paulo, Guerra e Paz devem percorrer o mundo. Com o esperado apoio do Itamaraty, os painéis de Candido Portinari, espera o filho, vão levar sua mensagem dramática e de esperança a cidades emblemáticas, como Hiroshima e Oslo, por ocasião da entrega do Prêmio Nobel da Paz em dezembro de 2012. E, por que não, às potências emergentes do Brics, Rússia, China, Índia e África do Sul. Até agosto de 2013, quando eles voltam para o hall da ONU, imantados pelo olhar compreensivo de milhões de pessoas. Exposição Guerra e Paz, de Portinari. A partir de fevereiro no Memorial da América Latina. Para mais informações, consulte nosso site: www. memorial.sp.gov.br Tel.: (11) 3823 4600 Eduardo Rascov é jornalista e editor do site do Memorial da América Latina 31 CRÍTICA QUATRO ARTISTAS COLOMBIANOS: UMA INTRODUÇÃO Julia Hertzberg 32 Antes de partir para Bogotá, Colômbia, para ver a Feira ArtBo e as atividades de arte estendidas ao redor do evento, pediram-me para escrever sobre quatro artistas colombianos emergentes. Contemplando a arte e refletindo sobre ela, conversando com artistas em museus de exposições e nos estúdios do Espacios Las Nieves, ficou claro para mim que três dos quatro artistas que escolhi não eram emergentes, mas sim maduros talentos, cujos trabalhos extremamente convincentes mereciam ser mais conhecidos para além da Colômbia. A seleção inclui: Juan Manuel Echavarría, cujo trabalho eu tenho acompanhado e escrito a respeito, Miler Lagos, Miguel Ángel Rojas e Catalina Mejía, cuja obra é nova para mim. Em linguagens diversas, seus trabalhos abordam questões comuns e pessoais, o político e o poético. Por mais de quinze anos, Juan Manuel Echavarría viajou por aldeias rurais (veredas) e cidades da Colômbia, fotografando os traços da guerra civil em andamento, travada por narco-traficantes, paramilitares de direita e guerrilheiros de esquerda. Em 11 de março de 2010, o artista foi convidado para ir à cidade rural Mampujan, na região montanhosa de Montes de Maria, para a comemoração do décimo aniversário do dia em que os moradores foram forçados a deixar suas casas e terra pelas forças paramilitares, “Heroes de los Montes de Maria”. Tal aldeia nunca foi reocupada. No decorrer do dia, Echavarría encontrou uma escola deteriorada na qual as vogais a, e, i e u estavam escritas em uma parede ao lado do quadro-negro. O tempo havia gasto o o, a letra que se tornaria o título da série La O. Echavarría voltaria quinze vezes às cidades e às aldeias abandonadas em Montes de María, em suas contínuas jornadas antropológicas. Uma descoberta surpreendente levou a outra. Uma série de quadros-negros silenciosos, como me refiro a eles, inclui Silencio con frutas e Silencio 1,2,3,4. Silencio con frutas foi filmado através de uma abertura para uma janela na parede externa, em consequência emoldurando a lousa (a qual é verde agora) ao mesmo tempo capturando o apagamento de duas paredes em pé 33 À esquerda, Juan Manuel Echavarría, Silencio con frutas (série La O). C-print, 40 x 60 in. Cortesia do artista e da Galeria Sextante, Bogotá. Nesta página, Miler Lagos, Red-Blue, (série Inukshuk), 2011. Giclée print, 55 x 81 cm (21 ¾ x 32 in.). Cortesia do artista e da AB Projects, Toronto. Miguel Ángel Rojas, Economía intervenida, 2011. Pó de folha de coca, camada de ouro e alumínio, 110 x 163 cm (43 5/16 x 62 in.); vídeo e som, 15 min. 30 seg. Cortesia do artista e da Sicardi Gallery, Houston. (ilustração). Os cinco quadros-negros silenciosos compartilham características pictóricas e temáticas. Formalmente, eles recordam pinturas abstratas, telas gestuais nas quais diferentes camaradas de pigmentos foram sobrepostas. Clima e tempo alteraram as suas cores e materiais originais, transmitindo uma espécie de pertubadora beleza romantizada. Precisamos nos lembrar, todavia, que esses quadros-negros, com ou sem letras e números, não são usados para educar crianças. As crianças, juntamente com seus pais, foram deslocadas à força de cidade a cidade; enquanto algumas fugiram e se salvaram, outras encontraram seu silêncio final. A questão do artista é: essas fotografias de lousas vão avivar a memória acerca da violência prolongada que vitimou tantas pessoas por tanto tempo? Miler Lagos fez uma pequena série de belas fotografias e vídeos com som, durante uma viagem ao Red Rock Lake (65.31 graus de latitude N 34 e 114.13 graus de longitude), nos territórios do Nordeste do Canadá. A jornada era na verdade uma residência orgznizada por Astrid Bastin, uma colombiana que dirige a AB Projects em Toronto. Durante a primeira residência de Lagos, no AB Projects (2010), seu trabalho foi baseado na exploração ambiental. Considerando seu interesse pela natureza e pelas relações da humanidade para com ela, Bastin propôs a Lagos que fosse a uma área remota do Ártico canadense, onde exploradores polares navegaram no século XIX. Lagos e Bastin voaram para Yellow Knife, onde o pequeno hidroplano os levou a Red Rock Lake, perto de Coppermine River, lugar da expedição de Sir John Franklin (1819-1822). Por 12 dias, durante o final de julho e o início de agosto de 2011, Lagos fotografou e filmou entre 11:30 pm e 2h30 am, as horas entre o pôr e o nascer do sol. As fotografias entituladas Red, Blue, and Red- Blue e o vídeo Lat 65.31 N Long 114.13 W são da série Inukshuk, uma palavra inuíta que se refere a um marco de pedra, construído por mãos humanas, que funciona como um ponto de referência para rotas de viagem, lugares de veneração e de caça, dentre outros usos. Na linha de árvore em um cenário de marcos de pedra (assemelhando-se a esculturas), Lagos colocou chifres de veado em uma das pedras e depois suspendeu pequenas pedras nos chifres (ilustração). O artista fotografou e filmou apenas a luz solar e as condições climáticas do lugar. A beleza desolada de uma paisagem do Ártico, com seus dias de 24 horas e ventos que variam, fez com que Lagos se lembrasse das pinturas românticas de paisagem do século XIX, que registravam o sublime. Seus trabalhos são como meditações na cor, luz, e tranquilidade antes do frio do Ártico transformar a região em gelo branco, escuridão e vento. Miguel Ángel se aproxima da economia, da política, e das realidades sociais de seu país, de uma perspectiva diferente em relação à de Juan Manuel Echavarría. Economía intervenida, de Roja, é uma configuação da tempestade de padrões, visualmente definidos por pequenos quadrados dourados, cercados por um campo de quadrados levemente maiores de folhas de coca. O efeito geral é um padrão de superfície abstrata de linhas douradas ondulantes, aparecendo em pequeno relevo contra o chão cinzento em uma superfície 35 Catalina Mejía, You you you you, 2010. Grafite no papel, 38 x 56 cm (12 x 14 in). Cortesia do artista. Fotógrafo: Oscar Monsalve. retilínea. O vídeo, inserido na montagem, destaca folhas de coca voando fora das páginas de listas telefônicas. Rojas fala da realidade da Colômbia, que por anos tem enriquecido com o dinheiro do narcotráfico e mais recentemente com a mineração ilegal de ouro, ambos produzindo “uma economia mediada”. Para a montagem, o artista empregou tanto altas quanto baixas tecnologias, uma total maestria de vocabulários figurativos e abstratos, um apelo visual e significativo de dois produtos para o discurso econômico e social de seu país. O processo artístico, trabalho intenso e repetitivo, exigiu grande destreza em colocar centenas de pequenos quadrados de folhas de coca cortados a laser, e ouro em um apoio acrílico. O artista primeiro secou as folhas de coca, triturou-as até obter uma consistência de pó, misturou-as com um agente de serigrafia à base de água , e usou o pó (folha de coca) como se fosse tinta em serigrafia. O satélite da tempestade de padrões, baixado da Internet, foi impresso em papel do tamanho do trabalho final. Rojas usou o impresso como uma referência para a montagem final, que ele fez desenhando uma grade sobre o acrílico, colocando pontos para indicar a tempestade de padrões, e finalmente aplicando as folhas de coca e os quadrados de ouro, um por um, em um padrão de mosaico. A riqueza esmagadora da cocaína e da mineração ilegal de ouro está causando uma preocupação renovada na sociedade colombiana. De forma hábil, Rojas fez alusão a essas complexas realidades nas quais os materiais têm contribuído para uma economia mediadora. Desastres del Corazón, de Catalina Mejía, elucida a dor sentida em um relacionamento amoroso que deu errado. Mejía referiu-se ao título de Goya, Disasters of War, assim como uso do Espanhol 36 em textos para inscrever suas pinturas e desenhos com palavras que empregam a primeira e a segunda pessoas (“eu” e “você”) para transmitir tristeza, desilusão e raiva. As superfícies de pintura das telas, juntamente com os desenhos magistralmente compostos de grafite revelam os estados emocionais da artista por meio de palavras, a maioria delas apagada. A escrita gestual expressionista anima as superfícies desses trabalhos abstratos em sua maioria, ao declarar a especificidade dos estados emocionais da artista. A pintura Carta de Amor, declara obsessivamente momentos, atos, e sentimentos íntimos por meio de palavras como queimar, ligar, chorar, negar, apreciar, excitar, sentir, esquecer, perdoar, foder, beijar. Outra tela inclui lamber, perder, possuir, prometer, lembrar, tocar, confiar, desejar. You you you you é configurada como um esboço no qual a maior parte da prosa está apagada (ilustração). No queda nada é uma das poucas pinturas nas quais elementos da natureza estão esquematicamente definidos em uma superfície ricamente colorida. “N a d a” é o que está escrito na parte inferior direita, evocando o vazio, a solidão, o nada. O apreço de Mejia por Cy Twombly e por Jean Michel Basquiat é evidente na qualidade gráfica das linhas pintadas e desenhadas, na organização pictórica do espaço e na fusão das fronteiras entre a pintura e o desenho. Olhando para trás, para dois importantes artistas e professores, ela se lembra que Miguel Ángel Rojas lhe ensinou a importância de expressar a catarse, enquanto Luís Camnitzer lhe ensinou a importância de ordenar a emoção. Julia P. Herzberg, Ph.D, é curadora, especialista sênior da Fulbright, e também ministra palestras e publica constantemente sobre artistas contemporâneos nos Estados Unidos e no exterior. aRTE CURITIBA FIRMA SUA BIENAL Adonis Flores, Incubación, 2009. Impressão 80x120 cm Leonor Amarante 37 O crítico argentino Jorge Glusberg costuma dizer que, se uma bienal tem pelo menos duas obras inesquecíveis, ela já é um sucesso. A Bienal Vento Sul de Curitiba tem o mérito da persistência, da tentativa de superar-se e de conseguir desenvolver um discurso crítico consistente. O tema Além da Crise foi oportuno e Tício Escolar, que divide a curadoria com Alfons Hughs, trabalha o conceito de que a arte contemporânea tem suas próprias crises e, uma delas é a da representação. Quem pode exemplificar o discurso é o cubano Adonis Flores, artista convocado para a “comissão de frente” que nos recebe no Museu Oscar Niemeyer com sua série de Caveiras. Com crítica e hu- Angelo Luz, intervenção urbana na praça tiradentes, 2011. mor ele nos reporta aos desequilíbrios de nossa realidade permanente. E lembra do período em que combateu em Angola, como soldado internacionalista, cobaia da complexidade humana. Normalmente as bienais são salas de espetáculos para encenar grandes obras, grande parte com caráter cênico. Um dos trunfos dessa edição é mostrar que obras sutis como as de Lilian Porter podem ter alta potencialidade, capaz de dialogar com instalações potentes como as de Nelson Felix. A sexta edição segue as conquistas de outras edições, potencializa seu espaço expositivo com a ocupação do Museu de Arte Oscar Niemeyer MON. Os paradigmas estéticos emanados dos centros hegemônicos Europa e Estados Unidos parecem ter perdido a força. Os desenhos eróticos e sensuais do uruguaio Ricardo Lanzarini nos dão a sensação de que os artistas estão atentos na desconstrução de estereótipos sobre produção dos países latino-americanos. Interessante é que o encontro de críticos de formações tão diferentes chegou ao denominador comum de que a arte tem sua autonomia, mas sofre com as crises que atingem muitos países. A atualidade do tema, mais do que além da crise, se reforça em muitas obras na percepção crítica de Hughs, para quem há hoje uma mudança estética de paradigmas “Obras difíceis e invendáveis, feitas de material precário, que se esquivam à lógica do mercado, ganham cada vez mais terreno.” Esse é um dos vieses dessa mostra, que no conjunto reforça como um dos polos de reverberação da produção brasileira. Mesmo sem uma vitrina internacional, que deveria ser colocada como meta para as próximas edições, a Bienal Vento Sul é uma realidade. Leonor Amarante é editora da Revista Nossa América. 38 ada como meta para as próximas edições, a Bienal Vento Sul é uma realidade. Sem título, 2010. Instalação. Ferro, resina, Em um edifício acrílico,arrojado, 150x150x60 cm é a a marca I Cortesia internacionalização. Boers Li Gallery, Pequim marca é a internacionalização. 39 POLÍTICA BRASIL um dos maiores doadores e prestadores de assistência técnica e financeira A Rubens Barbosa assistência técnica e financeira prestada pelo Brasil a dezenas de países, especialmente da África e da América Latina, é um dos aspectos da política externa que pouco tem merecido a atenção de analistas e estudiosos. Trata-se de um dos desdobramentos da política Sul-Sul, desenvolvida nos últimos oito anos pelo governo brasileiro. 40 Sem chamar muito a atenção, e gradualmente aumentando sua presença no exterior, o Brasil está se tornando um dos maiores doadores e prestadores de assistência técnica e financeira para os países com menor desenvolvimento relativo. Por meio de diversas formas de ajuda, o Brasil, somente em 2010, teria se comprometido com mais de US$4,5 bilhões. Quais as motivações dessa ação governamental no exterior, o volume e as fontes dos recursos transferidos aos países mais pobres? Reforçar a solidariedade com gestos políticos do Brasil no mundo é a explicação oferecida pelo Itamaraty. Na realidade, algumas das motivações que explicam a diplomacia da generosidade na América Latina e na África durante o governo passado foram: a busca de prestígio para o Brasil e para o presidente Lula; o esforço a fim de obter apoio para a nossa pretensão de um assento permanente no conselho de segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) e interesses comerciais de abertura de mercado para serviços de empresas brasileiras na competição com o governo e companhias, sobretudo da China. Como ocorre com a China, o Brasil não impõe condições aos países que recebem a ajuda, mas também não leva em consideração valores que defendemos internamente, como democracia e 41 direitos humanos, deixando prevalecer a ideia de que “negócios são negócios”. Segundo informações coligidas em 2011 pelo The Economist, os recursos utilizados nessa ação externa sobem a US$1,2 bilhões, superando o Canadá e a Suécia, tradicionais doadores e prestadores de ajudas aos países em desenvolvimento. Os recursos são oriundos da Agência Brasileira de Cooperação do Itamaraty, com cerca de US$52 milhões em 2010. De outras instituições de cooperação técnica, como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), e a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), saem US$440 milhões; para ajuda humanitária a países afetados por desastres naturais, US$30 milhões; recursos para a United Nations Development Programme (UNDP) das Nações Unidas, US$25 milhões; para o programa de alimentação da Food and Agriculture Organization (FAO), US$300 milhões; de ajuda para a faixa de Gaza, US$10 milhões e para o Haiti, US$350 milhões. Implantamos escritório de pesquisas agrícolas em Gana; fazenda-modelo de algodão no Mali; fábrica de medicamentos antirretrovirais em Moçambique e centros de formação profissional em cinco países africanos Os empréstimos do Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES) e agora do Banco do Brasil para os países em desenvolvimento, de 2008 ao primeiro trimestre de 2010, subiram para mais de US$3,5 bilhões, em projetos na América do Sul, no Haiti, em GuinéBissau, em Cabo Verde, na Palestina, no Camboja, em Burundi, no Laos e em Serra Leoa. De 2003 a 2010, o BNDES concedeu US$5,3 bilhões para projetos de infraestrutura na América Latina. O Tesouro Nacional, por outro lado, aumentou sua exposição com o incremento da contribuição do Brasil na Corporação Andina de Fomento para US$300 milhões e no Fundo para 42 a Convergência Estrutural do Mercosul, que sobe hoje a US$470 milhões, acrescido de US$100 milhões por ano, 70% representados por contribuições do Brasil. Por outro lado, além de créditos de difícil recuperação concedidos a alguns países africanos, a Cuba e a Venezuela, o governo brasileiro, nos últimos anos, perdoou dívidas do Congo, de Angola, de Moçambique, da Bolívia, do Equador, do Paraguai, de Suriname e agora da Tanzânia. Até dezembro de 2010, coincidindo com o final do governo anterior, segundo se noticiou, o governo brasileiro vai doar US$300 milhões em alimentos (milho, feijão, arroz, leite em pó) para, entre outros, Sudão, Somália, Níger e nações africanas de língua portuguesa. Serão igualmente beneficiados a faixa de Gaza, El Salvador, Haiti e Cuba. Segundo a Coordenação Geral de Ações Internacionais de Combate à Fome do governo federal, também receberam ajuda brasileira, África do Sul, Jamaica, Armênia, Mali, El Salvador, Quirguistão, Saara Ocidental, Mongólia, Iraque e Sri Lanka. No tocante à assistência técnica e à abertura de créditos para obras públicas em países africanos e sul-americanos, a exemplo do que ocorre com os países desenvolvidos, as empresas brasileiras poderão vir a se beneficiar, ganhando concorrências para a prestação de serviços e exportando produtos brasileiros. Essa vertente da política externa reforça o soft power do Brasil, a principal característica da crescente projeção externa do país. Rubens Barbosa, diplomata de longa trajetória, foi embaixador do Brasil nos Estados Unidos e na Inglaterra, é considerado um dos maiores especialistas em comércio internacional do Itamaraty e é autor de América Latina e perspectiva: a integração regional da retórica à realidade, entre outros livros. REFLEXÃO GEOESTÉTICA COMPLEXIDADE EM DISCUSSÃO Ibis Hernandez Q uando, há algum tempo, fui convidada a participar do segundo seminário Geoestéticas do Caribe, tive a preocupação que interpretei, no início, como uma sorte de causalidade geográfica operando no terreno da arte. Tendo em conta o nível de complexidade e caráter multifacetado dos fenômenos que incidem no comportamento das práticas artísticas no Caribe, imaginei que seria difícil abordar essa produção desde que acreditei ser uma perspectiva reducionista. Mas quando recebi uma cópia dos textos apresentados na primeira edição desse seminário, vislumbrei a possibilidade de focar o tema manejando uma noção múltipla do território que, além do cenário que provê a geografia do Caribe, permitisse compreender, desde a perspectiva da arte, à apropriação do território caribenho, que empreenderam indivíduo 43 e sociedade durante os últimos quinhentos anos. Seria esta uma noção de território que ultrapassa os limites impostos pela Geografia e adiciona um bem fenomenológico que compreende as inscrições deixadas pelo sujeito que o ocupa e faz história. De igual modo, acreditei ser pertinente mencionar a existência de vários critérios, tanto no referente à delimitação geográfica desta região, como a sua delimitação cultural. São diversos os autores que têm se referido a esta questão, mas a multiplicidade de argumentos termina apontando, definitivamente, até o Caribe (lugar), e/ou Caribe como uma construção sócio-histórica e cultural que muda segundo o lugar de enunciação, o período histórico e a posição ideológica deste se define, dentre outros aspectos. Dada a superposição de cartografias existentes em relação com o Caribe, decidi circunscrever a análise da obra de artistas que vivem e/ou trabalham nos territórios do arco insular e do resto daquela região, considerando também os países que integram a Extensão CentroAmericana, de acordo com o padrão inclusivo aplicado já por alguns eventos que têm versado sobre a arte na zona. Em termos temporais, o recorte abarcaria as duas últimas décadas, recordando que, justo nos anos de 1990, emergiu no Caribe uma vanguarda que, imersa na batalha pela conquista de uma identidade artística contemporânea, explorou novos caminhos formais e conceituais de tendência, ao modificar os clichês advindos dos emblemas regionais, ativando, de um modo inédito, a cena artística de um bom número de países. Dentro deste panorama, foi possível detectar algumas orientações que se conectam ao tema da geoestética. Digamos, por exemplo, que o mar, associado ao tema da paisagem, como motivo de pesquisa plástica ou em qualidade de metáfora, atravessa parte do imaginário visual da Região. Seu poten- 44 cial metafórico tem se convertido em recurso eficaz para adentrar-se aos domínios da psicogeografia especial e explorar as sensações e estados de ânimo que provoca “a maldita circunstância da água por todas as partes”, a que se referia o escritor cubano Virgilio Piñera em seu poema La isla en peso . Insularidade, fronteira e migração são temas que se transpassam e podem compartilhar um repertório comum de significantes. O mar, a embarcação e a cartografia têm sido três dos ícones mais recorrentes e é, na realidade, a ideia de que a viagem está indissoluvelmente ligada às condições geográficas e à história da região. Um exemplo são os passeios de canoa nos bairros nativos, as viagens de Colombo, o trânsito dos navios negreiros - de onde teve origem a aventura do “abismo”, a que se refere Glissant -; os movimentos de corsários e piratas, dentre outros. Agora no terreno da arte, a imagem da embarcação não só reproduz as viagens históricas, como abordam também migrações e traslados mais recentes, pois não se pode esquecer que navegam nessas águas azuis, luxuosos cruzeiros e precárias balsas. De igual modo, os remos, pontes e portos têm revelado o desejo de buscar novos horizontes, a sensação de medo ou a insegurança experimentada na travessia. A arte edifica, assim, um território de constantes deslocamentos, de margens imprecisas e flutuantes que, não por renegar a norma imposta pelo mapa geográfico, consegue desmarcarse das circunstâncias e a paisagem real na qual irremediavelmente se inscreve. Em sua densidade metafórica, o mapa geográfico tem tido também uma presença destacada nas artes visuais do Caribe. Em Cuba, chegou a converterse em um dos ícones mais versáteis da plástica dos anos 1990, dentre as poéticas que deram continuidade ao debate crítico iniciado na década anterior, agora, desde um hedonismo simulador que encontrou nesta metáfora geográfica um código eficaz para prolongar, de forma astuta, a discussão sobre tópicos cadentes da realidade social. No solitário, multiplicado, desdesenhado ou sobredimensionado; transformando em balsa, cesta, jaula, rabisco, homem ou animal; ocupando seu lugar no mapa-múndi ou transladado a uma oficina de reparações, o mapa da ilha estendeu seu enorme potencial semântico ao se descobrir como território de aspirações, frustrações, utopias, memórias, migrações, batalhas, vicissitudes e identidades, em um dos momentos mais difíceis da história de Cuba. Muitas outras linhas de trabalho dão conta da relação arte-território na zona geocultural do Caribe; não menos importantes seriam aquelas que contemplam o nexo com o etnocultural, ou as práticas de inserção social nas comunidades fixas transterritoriais, no espaço das urbes modernas, e nas zonas de assentamento ilegal e dos bares. Experiências desse porte se estendem com alcance desigual por vários países da área e merecem igual atenção, ainda que tenhamos pretendido visualizar apenas um pequeno recorte de tudo quanto poderia abarcar o tema. Ibis Hernández Abascal é pesquisadora e curadora do Centro de Arte Contemporáneo Wifredo Lam, de Cuba. 45 Na página anterior, Mapas (detalhe) de Ibrahim Miranda (Cuba). Acima, Cinco Carosas para la Historia, 1991, instalación (técnica mixta), de Marcos Lora Read (República Dominicana). Foto David Damoison. ECONOMIA O SISTEMA DA DÍVIDA E A INFLAÇÃO NO BRASIL Maria Lucia Fattorelli A atual crise financeira mundial teve início em 2008, localizada nas maiores instituições financeiras do mundo que corriam risco de quebra devido à utilização desenfreada de diversos produtos financeiros sem lastro, especialmente os derivativos. Apesar de numerosas denúncias de fraudes, as nações mais ricas do mundo decidiram “salvar” tais instituições com a emissão de grandes volumes de dívida pública. Tal procedimento escancarou a utilização do endividamento público às avessas, ou seja, a dívida pública deveria servir para aportar recursos ao Estado e não o contrário. Dessa forma, a crise atual expôs as entranhas do que batizamos de “Sistema da Dívida”, isto é, a utilização do instrumento do endividamento público como um sistema de desvio de recursos públicos em direção so sistema financeiro. 46 Para operar, esse sistema conta com arcabouço de privilégios de ordem legal, política, financeira e econômica, que visam a garantir prioridade absoluta aos pagamentos financeiros, em detrimento de direitos humanos e sociais de toda a Nação. No Brasil, apesar de a Constituição Federal prever a realização da auditoria da dívida, tal dispositivo nunca foi cumprido. As recentes investigações da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Dívida Pública revelaram a absoluta necessidade da realização da auditoria da dívida, tendo em vista a comprovação de numerosos indícios e evidências de ilegalidades, ilegitimidades e, especialmente, a utilização do endividamento público como instrumento de transferência de recursos públicos ao setor financeiro. Os trabalhos da CPI e da Auditoria Cidadã da Dívida têm comprovado que também em nosso país o “Sistema da Dívida” conta com privilégios de toda ordem, especialmente com uma superestrutura legal que parte da Constituição Federal: reafirma-se na Lei de Diretrizes Orçamentárias, na Lei de Responsabilidade Fiscal e na legislação que rege o chamado “Regime de Metas de Inflação”, dentre outras normas, afetando diretamente a vida de toda a sociedade. No presente artigo menciono de forma resumida como um conjunto de normas legais nacionais tem garantido prioridade absoluta à remuneração dos detentores de títulos da dívida brasilei- 47 ra por meio de elevadas taxas de juros, favorecendo ainda o crescimento contínuo do estoque da própria dívida pública, com a emissão continuada e até inconstitucional de dívida para pagar esses elevados juros. O mais grave é que todo esse aparato “legal” que favorece o setor financeiro surgiu no campo jurídico de forma tortuosa e demanda aprofundamento de estudos e investigações. Paira sob o art. 166, § 3º., II “b” da Constituição Federal, robusta denúncia de que tal dispositivo jamais chegou a ser votado pelos parlamentares constituintes, tendo sido incluído no texto final como um contrabando, segundo especialistas do Congresso Nacional à época – Anatomia de uma Fraude à Constituição. Tal dispositivo excetua os gastos com a dívida pública da regra geral aplicada aos demais gastos, isto é, qualquer proposta de gasto ou investimento que 48 represente ônus financeiro ao orçamento da União terá, obrigatoriamente, que indicar a fonte de recursos suficiente para tal gasto, exceto os gastos com a dívida pública. Dessa forma, se o Banco Central eleva as taxas de juros sob a justificativa de conter a inflação, por exemplo, e gera a necessidade de mais recursos para pagar tais juros, não ocorre a necessidade de indicar de onde sairão os recursos para tanto: o remédio aplicado tem sido emitir dívida para pagar dívida. O referido remédio conflita com outro dispositivo constitucional – art. 167, III - que estabelece a proibição de emissão de dívida para pagar despesas correntes, rubrica que compreende os juros da dívida. As investigações realizadas durante a CPI da Dívida Pública revelaram a contabilização irregular de grande parte dos juros como se fossem amortizações, o que representa mais uma flagrante evidência de burla à Constituição e ilegalidade no tratamento dos gastos da dívida. Além do indício de desobediência ao dispositivo constitucional, tal fato revela o encobrimento do efetivo custo dos juros da dívida, aliviando seu peso quando comparado, por exemplo, com as despesas de Pessoal, Previdência e outras, que acabam sendo traduzidas em grandezas distintas. Enquanto os dispêndios com Pessoal ou Previdência englobam a variação de preço neles embutidos (por exemplo, reajustes salariais decorrentes de inflação, atualização de tabelas dos serviços de saúde, atualização de benefícios previdenciários, reajuste do salário mínimo decorrente da inflação, dentre outros), o valor dos “Juros e Encargos da Dívida” considera somente a parcela dos juros que supera a inflação. Tal fato decorre da metodologia utilizada no Balanço Orçamentário da União, que tem considerado como “Juros” somente a parcela que supera a inflação indicada por índices (IGP-M), e computa a atualização monetária da dívida pública juntamente com a rubrica “Amortização”. Evidencia-se, portanto, que a mesma “inflação” que serve de argumento terrorista para coibir e proibir reajustes automáticos para os salários, aposentadorias e outros direitos sociais com base em sua variação, não vale para os juros da dívida, que têm a parcela da inflação expurgada de seu custo e sequer computada nos juros, mas erradamente como amortização. Desde 1999, com a edição do Decreto 3.088, foi instituído no Brasil o regime de “Metas de Inflação”, que elegeu a Política Monetária - taxas de juros - como o principal instrumento de combate à inflação, dado que o art. 2º. do Decreto delegou ao Banco Central do Brasil a execução das “políticas necessárias para cumprimento das metas fixadas”. Cabe observar mais uma desordem legal, pois o citado decreto conflitua com a Lei 4.595 (art. 3º., II), da qual decorre, já que a utilização preponderante das taxas de juros no controle da inflação significa o descarte das demais medidas mencionadas na referida lei, necessárias para o controle da inflação, tais como a prevenção ou a correção de depressões econômicas e outros desequilíbrios conjunturais. Além desse indício de ilegalidade, a eleição das taxas de juros como praticamente o único instrumento de combate à inflação contém uma série de inconsistências que provocam repercussões econômicas e sociais. O Brasil já apresenta preocupantes índices de desindustrialização e dados 49 oficiais comprovam que mais de 70% da inflação decorre dos grandes aumentos nos preços administrados (tarifas de energia, telefone, combustível, transportes, entre outros) que influenciam fortemente na formação dos preços. As distorções que favorecem o Sistema da Dívida prosseguem nas chamadas “Operações de Mercado Aberto”, realizadas em grande volume pelo Banco Central sob a justificativa de combate à inflação e na prática representam dívida feita sem autorização legislativa, em flagrante conflito com a Lei Complementar 101/2000, que proibiu a emissão de títulos pelo Banco Central. Tais operações estão servindo para trocar dólares especulativos que ingressam no país, sem controle, por títulos da dívida pública que pagam os juros mais elevados do mundo, sob a justificativa de controle da inflação mediante o enxugamento da base monetária. 50 Esse mecanismo tem provocado megaprejuízos operacionais ao Banco Central - R$ 147,7 bilhões em 2009 (http:// www.bcb.gov.br/htms/inffina/be200912/ dezembro2009.pdf) e R$ 48,5 bilhões em 2010 (http://www.bcb.gov.br/htms/inffina/be201012/dezembro2010.pdf) - o que representa significativo dano ao patrimônio público, pois tal prejuízo é, por lei (11.803/2008, art. 6º.), coberto pelo Tesouro Nacional, ou seja, por todos nós. A justificativa reiteradamente apresentada pelo governo para a acumulação de reservas internacionais (proteção do país de fugas de capital em crises financeiras globais) não se sustenta, dado que tal proteção seria feita de forma bem mais eficiente por meio do controle sobre o fluxo de capitais financeiros, adotado com sucesso por vários países. O resultado tem sido o crescimento explosivo da dívida pública, cujo montan- te supera R$ 2,5 trilhões, e o pagamento de juros e amortizações consumiu 45% dos recursos do orçamento federal em 2010, conforme mostra o gráfico a seguir. Neste ano de 2011 a taxa de juros Selic já subiu 5 vezes, saindo de 10,75% e alcançando 12,5%. Recentemente ocorreram duas reduções de apenas 0,5% e a Selic está situada no elevado patamar de 11,5% ao ano, enquanto mais de 40 países praticam taxas de juros inferiores a zero. A prática de elevadas taxas de juros não tem servido para combater o tipo de inflação que temos. Adicionalmente, perpetua a concentração de renda no Brasil , 7ª. economia mundial, que ocupa a vergonhosa posição de 8º. país mais injusto do mundo, segundo o Índice de Gini, e é o 73º. no ranking de respeito aos direitos humanos. Alternativas para o efetivo combate à inflação existem e são muito mais eficientes: redução da taxa de juros; controle e redução dos preços administrados; reforma agrária para garantir a produção de alimentos não sujeitos à variação internacional dos preços de commodities; controle de capitais para evitar o ingresso de “capitais abutres”, meramente especulativos, e as fugas nocivas à economia real; adoção de medidas tributárias apropriadas ao controle de preços. Para tanto, é necessário desarmar o Sistema da Dívida e corrigir os rumos da política econômica. Maria Lucia Fattorelli é coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida desde 2001 e colaboradora do Le Monde Diplomatique. 51 eLEIÇÕES NÉSTOR E CRISTINA KIRCHNER AFIRMAÇÃO DO PERONISMO Luis Fernando Ayerbe A Argentina sai de um conflito interno de amplas proporções a partir do colapso financeiro de 2001, que levou à renúncia do presidente Fernando de la Rúa, da Unión Cívica Radical (UCR). Sob a presidência de Eduardo Duhalde, nomeado pelo congresso, cristalizando um processo de normalização institucional. Com Néstor e Cristina Kirchner com três mandatos sucessivos, a partir de 2003, consolida-se a supremacia do peronismo na política nacional, sob um quadro de forte crescimento da economia e melhoria dos indicadores sociais. O governo de Néstor Kirchner opera em um clima de relativa estabilidade econômica, com uma recuperação favorecida pela suspensão dos pagamentos da dívida e sua posterior reestruturação, ampliação do consumo pela expansão dos gastos de uma população 52 desconfiada com o sistema bancário, e a desvalorização cambial, que impulsiona as exportações e a indústria dirigida ao mercado interno. Com essa situação favorável, o grande desafio era desarmar o radicalismo que o conflito social havia alcançado entre dezembro de 2001 e julho de 2002, o processo de mobilizações chegou a levar à rua 4 milhões de pessoas, em uma população economicamente ativa de 30 milhões. A principal resposta será a expansão das políticas de assistência para os setores mais afetados. Com a presidência de Duhalde, estabelece-se o Plan de Jefes y Jefas de Familias (PJJF), que outorga 150 pesos mensais (50 dólares aproximadamente, na época) para desempregados que são chefes de A quantidade de votos obtida por Cristina (na foto com Néstor Kirchner falecido em 2010) foi uma surpresa para todos. 53 família. De 1.300,000, em outubro de 2002, a oferta de PJJF se amplia para 2.100,000, a partir de 2004. Outra área de atuação que aproxima as administrações dos Kirchner das reivindicações dos movimentos sociais é a política de direitos humanos, que obtém o apoio de organizações como Madres y Abuelas de la Plaza de Mayo. Em março de 2006, quando se cumprem 30 anos do golpe militar, o Poder Executivo coloca publicamente em discussão a anulação dos indultos concedidos por Carlos Menem, em 1990, aos principais dirigentes da Ditadura. No mês de abril de 2007, o Tribunal Penal e Federal considera inconstitucionais os decretos de anistia com base na tese da não prescrição dos crimes contra a humanidade. A ampliação das políticas sociais, a retomada da ofensiva contra a impunidade na violação dos direitos humanos e a interlocução com os movimentos populares fazem parte do esforço de Néstor e Cristina Kirchner para construir marcos de governo, apostando em uma nova correlação de forças de centro-esquerda. Partindo desta perspectiva, criam a Frente Para la Victoria (FPV), sigla que abrigará as candidaturas presidenciais de Cristina em outubro de 2007 e 2011, em que vence no primeiro turno com, respectivamente, 46% e 54% dos votos. Apesar da diferença favorável obtida na reeleição, o caminho não esteve livre de obstáculos. Em 2007, a vitória se antecipava como consequência inevitável da recuperação do país sob a presidência de seu marido, que termina o mandato com índice de imagem positiva, próximo aos 60%. Em 2011, ainda que as entrevistas mostrassem uma tendência de maior apoio à Cristina, em parte influenciadas pela solidariedade gerada em boa parte da população pelo falecimento 54 de Néstor, em outubro de 2010, o número de votos obtidos nas eleições prévias de agosto, ampliados em outubro, foi uma surpresa para a oposição e boa parte dos analistas. A explicação está em diversos problemas que afetaram desde o início a gestão de Cristina. A poucos dias de assumir, enfrenta a acusação de usos irregulares de recursos em sua campanha, que seriam originários do governo da Venezuela, denúncia que envolveu a setores próximos à Administração de George W. Bush, complicando a relação com os Estados Unidos. O ano de 2008 está marcado por forte polarização, com o campo envolvendo o volume de retenções, por parte do Estado de recursos provenientes de recursos agrícolas, levando a uma derrota da lei enviada ao parlamento, em que a atuação do vice-presidente Julio Cobos, originário da UCR, foi decisiva na votação, levando a uma ruptura irreversível na cabeça do Poder Executivo. Nas eleições de 2009, a oposição avança substancialmente, obtendo maioria no Congresso, com a simbologia expressa na vitória do dissidente peronista Francisco de Narváez sobre Néstor Kirchner na contenda de deputados pela província de Buenos Aires. A visibilidade da oposição se faz mais explícita na crítica à oposição da economia, especialmente no tema da inflação, com o questionamento da credibilidade das medições do Índice Nacional de Estadísticas y Censos (Indec). As dificuldades enfrentadas pela administração de Cristina contribuíram para criar uma percepção na oposição e setores da opinião pública de que a experiência dos Kirchner na presidência se encerra em 2011. No entanto, três temas se opõem na hora de compreender a discrepância entre essas percepções e a realidade: 1- Independente das diferenças partidárias da maioria da população, é palpável o contraste entre a crise de 2001-2002 e o período posterior, em termos de qualidade de vida. De acordo com a Comissão Econômica para a América Latina, depois da queda do PIB, de 10,9%, em 2002, entre 2003 e 2010, o crescimento médio anual será de 7,5%, incluindo nesse cálculo o índice de 0,9%, de 2009, influenciado pela crise financeira internacional. Paralelamente, entre 2002 e 2010, o desempenho urbano diminui de 19,7% para 7,8%, e aumenta de 79,6% para 170,3% a média do salário real. 2- A oposição se mostra fragmentada e sem um projeto alternativo capaz de influenciar uma oposição por mudanças de condução. Contrariamen- te ao período da Ditadura, a coesão em um bloco antagônico não se justifica pelo questionamento de um regime, as diferenças com o governo se expressam em um espectro ideológico, cuja polarização impossibilita a convergência em uma candidatura. 3- A memória dos governos não peronistas prévios aos Kirchner, com a hiperinflação que levou à saída antecipada de Raúl Alfonsín, em 1989, e a renúncia de De La Rúa, em 2001. Por que arriscar mudar? Luís Fernando Ayerbe é coordenador do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais da Universidade Estadual Paulista (IEEI-Unesp). 55 Vários fatores explicam a reeleição de Cristina com esmagadora maioria de votos. LIVRO RESPONSABILIDADE DO ESTADO Reynaldo Damazio A presentado como dissertação de mestrado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em 1989, o estudo de Sonia Sterman ganha agora uma segunda edição, revista, atualizada e ampliada (Editora Revista dos Tribunais). A autora se apoiou em rigorosa pesquisa e farta documentação para realizar uma reflexão profunda e detalhada sobre o complexo tema da responsabilidade do Estado diante dos movimentos sociais, especialmente quando há danos materiais ou prejuízos a terceiros. Tema atual e controverso, pois envolve conflitos entre estruturas políticas, interesses e grupos sociais, conjuntura econômica, legislação e atuação estatal, tanto na esfera pública interna de cada país como internacional, principalmente depois dos atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos. A questão dramática que se coloca para governantes, 56 Democratização e globalização são apenas dois dos pontos que, segundo a autora, transformaram a realidade do planeta. juízes e cidadãos comuns é que cada movimento social, seja pacífico ou violento, tem suas pautas e peculiaridades e não pode ser tratado de forma generalizada a partir de princípios jurídicos enrijecidos e indiscutíveis. Esse fato, apenas um detalhe entre muitos implicados na discussão, demonstra que o contexto histórico é sempre movediço, instável e exige uma compreensão também histórica de suas implicações, que pode refletir uma demanda legítima da sociedade, um anseio de mudança, ou uma crítica aguda a determinada situação que se tornou insustentável, como ocorreu recentemente nas manifestações da chamada “Primavera Árabe”, no Egito, na Líbia e na Tunísia. Segundo Sterman, “nas últimas décadas, o aparecimento de inúmeros movimentos sociais, alguns trazidos pela globalização ou antiglobalização, pela democratização de regimes políticos, por novas ideologias no campo social, pela ruptura de padrões culturais tradicionais, pelo desenvolvimento econômico e tecnológico, pelo aumento da consciência sobre os direitos fundamentais previstos nas Constituições, inclusive sobre a cidadania, transformou a realidade social do planeta e trouxe consequências ao direito”. Em sua análise, a autora inclui, além da legislação brasileira, referências ao direito italiano, português e norteamericano, este último tendo sido acrescido à presente edição, com destaque para a lei de combate ao terrorismo – o USA Patriot Act, de 2001, cuja vigência foi ratificada pelo presidente Barack Obama até 2015. Faz uma comparação ponderada, levando em conta as particularidades culturais e históricas de que país, para entender como os movimentos sociais se tornam um elemento cotidiano fundamental na consolidação da democracia. Para fundamentar a reflexão sobre como o direito se adapta ao contexto das 57 O livro oferece uma reflexão sobre como o direito se adapta ao contexto de movimentos sociais. lutas sociais, a autora apresenta a trajetória dos movimentos multitudinários ao longo da História, desde a Antiguidade ao mundo contemporâneo, em suas formas variadas, que pode ser a de um protesto localizado, ou uma revolução. Nos capítulos dedicados ao Brasil, Sterman aborda movimentos relevantes da política atual, como os dos sem-terra e dos sem-teto, mas também o dilema das torcidas organizadas de futebol, diferenciando a atuação criminosa da reivindicação coletiva. Reynaldo Damazio é sociólogo e jornalista, autor de Horas perplexas, entre outros livros. 58 DEBATE A GEOPOLÍTICA DO LÍTIO Bruno Peron É cada vez maior a atenção internacional depositada no reservatório de Uyuni, de 10 mil km², 180 km de comprimento e 80 km de largura, que é uma das regiões com maior riqueza mineral no planeta. A “Pérola dos Andes”, que está a 3.670 metros acima do nível do mar, contém as reservas de lítio mais importantes do mundo, e ainda possui jazidas de boro, chumbo, magnésio, potássio, prata, zinco, bismuto e resguarda os maiores projetos de mineração da América do Sul. A reserva de Uyuni estima-se em 9 milhões de toneladas de lítio, um metal branco-prateado, macio, leve, pouco tóxico, que se encontra disperso em rochas. Argentina (6 milhões) e Chile (7,5 milhões) também possuem reservas consideráveis de lítio, embora em quantidade menor que Bolívia. Alguns chamam-no de “petróleo do novo século” em refe59 rência ao papel deste recurso energético na centúria passada. Não é à toa que virou moda prognosticar o uso massivo de carros elétricos, que supostamente provocam menor agressão ao meio ambiente, e cresceu o uso de lítio em baterias de produtos eletrônicos com os quais estamos habituados. O lítio é bastante empregado em computadores pessoais, laptops, ipods, tablets, aparelhos celulares e de MP3, equipamentos elétricos de higiene pessoal, indústria aeronáutica e aeroespacial, e até como agente terapêutico em psiquiatria. Alemanha e Estados Unidos preveem uma frota de um milhão de veículos elétricos em cada um destes dois países até 2015. Baterias de íons de lítio são mais avançadas que as de chumboácido e níquel-cádmio, que haviam sido utilizadas até então, apesar do grau elevado de toxicidade. É o insumo do futuro em tecnologia. Um dos desafios é o de como aumentar a capacidade de armazenamento de energia nesse metal. 60 E como o lítio participa de um tabuleiro de geopolítica? A conhecida divisão internacional do trabalho entra em jogo novamente. Conquanto os bolivianos resistam à exploração nacional das jazidas de Uyuni, empresas privadas asiáticas e europeias (algumas das quais dominam o setor mineiro neste país andino) estão de olho em um potencial que poucos são capazes de transformar em um produto de alto valor agregado. Em três anos, a tonelada de lítio valorizou-se de trezentos para três mil dólares estadunidenses. A nacionalização do setor de petróleo e gás natural indispôs os investidores, mas não saciou seu apetite. Restam à Bolívia poucas saídas entre vender o lítio ou deixá-lo soterrado sem rendimento algum sob a tutela das turísticas “momias” cavernícolas das ermas salinas. Porções territoriais de Argentina, Bolívia e Chile na região andina possuem 70% das reservas mundiais de lítio, o que não é nada dispensável em face do aumento do preço desta matéria-prima estes últimos anos. Por que o Japão, um país tão pequeno, formado praticamente por quatro ilhas maiores (Hokkaido, Honshu, Shikoku e Kyushu) no continente asiático, e dependente da importação de recursos naturais para suas indústrias de ponta está tão à frente das nossas “dádivas”, “pérolas” e “preciosidades” latino-americanas? O Japão, embora não disponha de riquezas minerais, é um dos países mais poderosos do mundo, enquanto a Bolívia é rica em recursos naturais, mas um país desigual, explorado, mal compreendido e pobre. Não urge discutir se é mais um exemplo de ironia da natureza ou de má administração das benesses com que se pretendem alguns rincões do planeta, porém, são incapazes de recompensar as mesmas terras de onde surgem. A experiência da América Latina em mineração, com raras exceções, é de uma troca iníqua ou incapaz de materializar-se em retorno na forma de políticas públicas à população, ainda que não só os Estados sejam responsáveis por recompensar as gotas do suor dos nossos povos. Os mineiros têm expectativa de vida abaixo da média na Bolívia devido às condições insalubres de trabalho, que culminam muitas vezes na “silicose” (petrificação dos pulmões) ou morte por soterramento (efeito das explosões por dinamite). No entanto, não há motivo para ceticismo exacerbado diante da exploração do lítio por empresas estrangeiras – a sinalização do interesse provém sobretudo das automobilísticas – ou receio de perda de soberania, desde que se realize o desejo do presidente Evo Morales Ayma de formar parcerias com as mesmas, visando a transferir tecnologia à defasada matriz científica do país andino, acompanhar as fases de prospecção, extração e distribuição, e injetar os recursos financeiros em políticas sociais para o desenvolvimento do povo boliviano. Qual seria a vantagem boliviana de manter a reserva de lítio embaixo da salina? E se um dia alguma invenção científica descartar o uso do lítio em prol de outro elemento mais útil no armazenamento de energia para equipamentos eletrônicos? O dilema é menos econômico que geopolítico. A Bolívia solicita algo mais que simplesmente prover aquilo que sempre lhes arrebataram com o fito de mudar a posição das peças no circuito capitalista internacional. Bruno Peron Loureiro é mestre em Estudos Latinoamericanos pela Facultad de Filosofía y Letras da Universidad Nacional Autónoma de México (FFyL/ UNAM). 61 O reservatório de Uyuni é uma das regiões com maior riqueza mineral do planeta. COMENTÁRIo LIBERDADE DE EXPRESSÃO Darío Pignotti N em o direito à informação, nem a reforma da legislação sobre os meios eletrônicos de comunicação foram temas relevantes na campanha eleitoral de 2003, quando Néstor Kirchner chegou à presidência com apenas 22% dos votos. Tampouco a agenda midiática mereceu destaque no 1º. ano de gestão do líder peronista, que havia firmado um pacto de convivência entre os bastidores com o grupo Clarín. Paralelamente, além dos acordos cortesãos, no âmbito da sociedade civil, já estava em curso, um cada vez mais ativo movimento encabeçado por intelectuais e jornalistas impulsores de uma nova lei de meios, inspirada na limitação da propriedade cruzada dos oligopólios, sendo que o maior deles era, e continua sendo, precisamente o Clarín. Eis aqui um dado substancial 62 para compreender porque a problemática argentina sobre comunicação de massas adquiriu uma envergadura extraordinária, e é o que podemos chamar de sociologia do conhecimento dos profissionais da imprensa. Ocorre que a maioria dos jornalistas que se empenham no mercado e na imprensa alternativa são egressos das grandes universidades públicas, como são as de Buenos Aires, La Plata, Córdoba e Rosário, em cujos planos de estudos se debatem as políticas de informação dos sistemas de meios, e as legislações comparadas, dentro de uma esfera teórico-epistemológica na qual prevalecem as correntes críticas, defensoras de reformas. Autores como o venezuelano Antonio Pasquali, o belga Armand Mattelart, o brasileiro Renato Ortiz e os argentinos Margarita Grazziano e, mais recentemente, Guillermo Mastrini, estudaram nas faculdades. Fora do âmbito profissionalacadêmico, passando ao plano da recepção, observamos também outro fator importante no momento de ensaiar uma explicação aos processos observados na Argentina, e consiste no rompimento do contrato de verossimilhança entre os meios predominantes e a audiência, resultado da memória comunicacional do grande público. Sobressaem-se, neste recorte analítico, três grandes relatos fraudulentos dos meios massivos, como se fossem a falsa história de que as tropas argentinas estavam em uma situação vitoriosa durante a Guerra das Malvinas, o que se revelou falso na pronta rendição das tropas argentinas, a ocultação e o desvio de toda notícia sobre violações dos direitos humanos em um país onde, precisamente, registrou-se o genocídio mais atroz da América do Sul no século XX. Mais recentemente, o público melhor informado, assim como partes crescentes do grande público, expressou seu desengano frente ao discurso midiático relativo à crise de 2001, que derivou na bancarrota econômica e uma crise política sem precedentes. Assim, em dezembro de 2011, quando vários presidentes interinos assumiam e renunciavam dias mais tarde, as paredes portenhas mostravam grafites que repudiavam tanto a classe política, reclamando “que se vão todos” como questionavam as “mentiras de Clarín”. 63 Questão complexa em um país em que o povo repudiou tanto a classe política quanto a imprensa. OITO ANOS DEPOIS A presidente Cristina Fernández foi reeleita em outubro de 2011, com 54% dos votos, oito anos depois da ascensão de seu marido, falecido em 2010. Ainda que ela seja herdeira do legado de Kirchner (que em 2009 lançou uma declaração virtual de guerra contra o Clarín), o caráter de sua campanha eleitoral foi marcadamente diferente à de 2003 e a diferença substancial consistia em que, agora, o centro do debate foi ocupado, junto a outros assuntos tradicionais, como as políticas sociais e a economia, a defesa do direito à informação por meio da reivindicação da lei nº. 26.522, de Meios Audiovisuais (sancionada em 2009), e o enfrentamento aberto com o conglomerado Clarín. Constitui um fato inédito na história republicana argentina que o debate sobre conteúdos, propriedade e participação social na esfera pública informativa, conquiste o interesse das grandes maiorias em um processo selado pela radicalização dos antagonismos. E os dois polos que tencionaram esse confronto foram de um lado a presidente e candidata à reeleição, Cristina Fernández de Kirchner, e do outro os diversos veículos do conglomerado Clarín, transformado em pouco menos que um explícito partido opositor, ocupando o vazio deixado pelas inexpressivas forças que se opõem ao governo e obtiveram pouco respaldo nas urnas. Nesse contexto de tensões políticas, eleitorais e midiáticas é que deveria ser abordado o fato de que o presidente venezuelano Hugo Chávez tenha sido premiado pela Faculdade de Jornalismo e Comunicação Social de La Plata, com o prêmio denominado Rodolfo Walsh, em memória de um dos mais de 100 jornalistas assassinados pela ditadura militar (1976-1983). Segundo explicaram as autoridades dessa Casa de Estudos, uma das 64 AG AGEND mais identificadas com a gestão de Fernández de Kirchner, o prêmio foi o reconhecimento à proliferação de meios comunitários na Venezuela, antes de Chávez. Possivelmente, mereceria outro artigo a análise das relações suscitadas por esse prêmio, entregue há somente sete meses dos comícios presidenciais. De um lado, os principais canais e jornais privados dedicaram amplo espaço ao prêmio, questionando os méritos do líder venezuelano, o que definiram como um ameaça à liberdade de expressão. Do outro, os meios estatais, as principais organizações defensoras dos direitos humanos do país e uma multidão de estudantes, não só de comunicação, ovacionou o governante na sede da faculdade de comunicação platense. O antagonismo frente à personalidade de Chávez é a tradução das controvérsias existentes na sociedade e, especialmente no âmbito profissional, sobre o não modelo midiático que tem dado lugar à aparição de duas tribos jornalísticas: os autoproclamados “independentes”, defensores dos veículos privados e questionadores da “soberba, intolerância e intimidações” do governo, e os assim denominados “militantes”, identificados com a comunicação “popular”, em geral, simpatizantes da gestão Cristina e questionadores da “liberdade de imprensa empresarial e os monopólios privados que concentram o controle dos fluxos de informação”. Darío Pignotti é doutor em Comunicação, especialista em Relações Internacionais e correspondente no Brasil da agência internacional italiana Ansa e do Le monde Diplomatique. GENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDAAGENDA AGENDA AGENDA A DA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGEN O gesto E as cores de Juan muzzi Além de pinturas e esculturas, Juan Muzzi também cria máquinas e brinquedos. Acaba, por exemplo, de inventar uma bicicleta produzida com garrafas PET. É desse artista construtivista multifacetado que o Memorial reuniu uma série de trabalhos em retrospectiva para comemorar os 20 anos do Mercosul. Desenhos, gravuras, pinturas e esculturas ilustraram um longo período da carreira desse uruguaio radicado no Brasil há cerca de 40 anos, que teve como “mestre” Torres Garcia e trabalhou intensamente ao lado de Rubens Gerchman, grande nome da arte brasileira. recursos hídricos para América Latina, tema da cátedra Os recursos hídricos figuram como um dos grandes temas da atualidade. Distribuição, contaminação e desabastecimento são algumas das questões que podem ameaçar a vida no planeta. Dada a relevância do problema, será a área de interesse da próxima Cátedra Unesco Memorial da América Latina. O programa do curso que será realizado no primeiro semestre deste ano envolve inclusive os avanços tecnológicos, conceituais e institucionais e as diferenças entre os países da América Latina. Integram também a pauta, o panorama internacional e seus impactos nos continentes americanos. Paralelamente, serão realizadas visitas técnicas a várias represas da região metropolitana de São Paulo e do interior do Estado. Gerenciamento Integrado de Recursos Hídricos para a Amé- rica Latina será ministrado pelo professor doutor José Galizia Tundisi e contará ainda com a participação de especialistas convidados. Informações adicionais podem ser obtidas com Rosângela Moraes pelo email [email protected] ou pelo telefone (55 11) 3823-4602/03. 65 POESIA POESÍA Eres la compañía con quien hablo de pronto, a solas. Te forman las palabras que salen del silencio y del tanque de sueño en que me ahogo libre hasta despertar. Tu mano metálica endurece la prisa de mi mano y conduce la pluma que traza en el papel su litoral. Tu voz, hoz de eco es el rebote de mi voz en el muro, y en tu piel de espejo me estoy mirando mirarme por mil Argos, por mí largos segundos. Pero el menor ruido te ahuyenta y te veo salir por la puerta del libro o por el atlas del techo, por el tablero del piso, o la página del espejo, y me dejas sin más pulso ni voz y sin más cara, sin máscara como un hombre desnudo en medio de una calle de miradas. Xavier Villarrutia Gonzáles (1903-1950), escritor, poeta, dramaturgo e crítico literário mexicano, publicou Nocturnos(1933) e Nostalgia de la muerte (1938), entre outras obras. 66