O Processo Criativo de Zoo Lógico
A ideia deste texto é a de dar a conhecer a forma como trabalhámos para construir o
Zoo Lógico. A forma como “escrevemos na folha em branco”.
A ideia de Laboratório
À semelhança do que tem sucedido noutros projectos artísticos (por exemplo
Bach2Cage, MNF ou FQM) a criação de Zoo Lógico assentou numa prática experimental a que
chamamos: Laboratório. Uma análise mais detalhada daquilo que é um Laboratório no campo
das artes performativas, e nomeadamente alguma reflexão sobre o papel da Arte Digital neste
contexto, podem ser encontradas nas publicações que fizemos sobre Bach2Cage (Bach2Cage:
Laboratório ou Espectáculo, na revista Comunicarte, e Integrating Interactive Multimédia in
Theatrical Musical: the case of Bach2Cage, nos proceedings da ARTECH 2005). A ideia principal
de Laboratório é a de que existe um aspecto de acção-reacção, de experimentação, muito forte
no desenvolvimento das ideias. Ao contrário daquilo que acontece normalmente na Música (falo
da música dita erudita) não existe uma separação entre a ideia e a sua concretização, entre o
criador e o intérprete. As ideias são permanentemente experimentadas e existe um processo
iterativo constante. A improvisação, o “manuseamento” de ideias, a experimentação, a
discussão e partilha com todos os elementos da equipa está na base do trabalho.
“Anatomia” do Processo Criativo
Numa primeira fase trata-se de coleccionar uma quantidade de informação muito
variada acerca do assunto. De que forma a matemática se relaciona com a Música, com a
Dança, com a Arte em Geral? A Matemática sempre esteve relacionada com a Música (desde
Pitágoras até Xenakis) e essa influência também existe nas artes visuais, na arquitectura e na
dança. O que é a Matemática no ensino? Quais são os conceitos, de que forma são
trabalhados? Estudámos um conjunto de manuais de matemática desde ao ensino básico ao
secundário. Que experiências existem de abordar a Matemática (numa perspectiva educativa) a
partir do Jogo, da Música ou da Dança? Esta informação existe sobretudo em sites na Internet,
mas também um conjunto de livros onde a matemática é abordada de forma lúdica. Um pouco
por todo lado vêm-se relatos de projectos artísticos com esta filosofia. Este processo inicial gera
muito material e contribui grandemente para ficarmos com dúvidas, algumas de natureza
matemática. Aquilo que aprendêramos na escola necessitou de ser revisto e consolidado, e
existe uma variedade muito grande de publicações a que recorremos nesse sentido. Talvez faça
sentido revisitarmos algumas ideias importantes sobre aprendizagem da música e considerar
que esta primeira fase é uma fase de “aculturação”. Também aqui, a aculturação nunca para.
Continua a ocorrer mesmo durante as fases seguintes, que têm um carácter muito mais prático.
Numa segunda fase criam-se experiências que geram ideias susceptíveis de virem a
evoluir no sentido de algo interessante sob o ponto de vista performativo. Estas experiências
são frequentemente baseadas em métodos gerais de improvisação e em jogos. Por outro lado
existe também uma componente de discussão de ideias, de leitura de textos, de partilha de
informação, mas distinta da primeira fase porque nesta já se passam muitas coisas ao nível da
utilização do corpo, da voz, etc. Alguns destes processos de improvisação são exercícios
clássicos de desenvolvimento de pequenas ideias a partir de palavras, a partir de notícias de
jornais, por exemplo. Ou exercícios de improvisação a partir de textos matemáticos ou teatrais
com conteúdo matemático. São também frequentemente processos de descoberta de
vocabulário físico (movimentos), de vocabulário teatral (adereços, personagens) e musical.
Todo este processo é complexo e muito interactivo: uma ideia pode começar por ser uma
história, a história leva à construção de um personagem, o personagem a uma música. Mas
depois pode perder-se a história, ou o personagem e ficar só a música, que por sua vez pode
dar origem a outra história ou personagem diferente. É uma fase que poderíamos chamar de
divergente: criam-se coisas díspares, trabalha-se em diferentes direcções sem a preocupação
da coerência. O objectivo é gerar material performativo. Trata-se de uma fase em que é muito
importante uma resposta rápida de cada uma das áreas do espectáculo. A música emerge ao
mesmo tempo que o movimento ou o drama, não pode ficar para depois. Para depois fica todo
o processo de articulação das diferentes ideias e o aperfeiçoamento de cada uma delas. Nesta
fase é muito importante agir e reagir. É muito importante ser capaz de criar as pequenas
condições práticas que fazem com que a ideia possa prosseguir no sentido de algo que todos
sintam que tem potencial. Muitas vezes é a existência de materiais disponíveis que faz a ligação
entre uma ideia e a sua experimentação. Um ou dois exemplos práticos. O primeiro quadro,
com os elásticos, surgiu a partir de uma ideia que encontrámos sobre “string figures” numa
coluna de matemática recreativa que o Scientific American costumava editar. As string figures”
são pequenos jogos que todas as crianças fazem com fios e com os dedos de forma a que
determinados padrões se transformem noutros. Era uma ideia que achámos interessante.
Acontece que tínhamos ao nosso dispor uma quantidade grande de elástico. Tinha sobrado de
um outro projecto. Resolvemos fazer um teste, pensar as “string figures” a uma escala maior, a
da sala, e usar o corpo todo para estabelecer os padrões e transformá-los. A primeira
experiência resultou e rapidamente criámos um fundo musical que fornecesse a energia e
ambiente adequados para este tipo de trabalho. Tinha que ter força, batida. Rapidamente a
música influenciou o tipo de movimentos e começou a ficar clara a direcção em que a ideia ia.
Outro exemplo, a BidodaTerapia e também a Oferta Pública Para Aquisição de Ãngulos. Talvez
menos evidente. Tínhamos passado algum tempo a explorar a matemática que está presente
nos jornais. Procurámos tudo o que pudesse ter relação com a Matemática. Uma das formas
mais evidentes era procurar números, desde temperaturas até cotações de mercados ou feridos
em atentados de terrorismo.
Normalmente esses números estão associados a lugares ou pessoas. (Anotávamos tudo nas
paredes. Por uma feliz coincidência as paredes eram pretas, sugeriam as ardósias onde todos
tínhamos dado os primeiros passos na matemática, na escola. Começámos a escrever a giz
tudo o que nos vinha à cabeça. Era uma forma de rapidamente acedermos a todo o material
que ia sendo gerado, e de estabelecer ligações entre ideias completamente díspares. Isso veio a
ser também o nosso cenário. É mais do que um cenário, é o registo real do processo criativo.
Não foi feito de propósito, é o retrato da evolução das ideias). Estas pessoas ou lugares podiam
ser associados uns com os outros e geravam histórias, a maior parte sem sentido. Esses
números geravam também padrões que podiam ser convertidos em texto (por exemplo palavras
com esse número de letras ou sílabas, frases com esse número de palavras, etc.). O mesmo
efeito podia ser conseguido associando palavras a sequências de números primos, ou da série
de Fibonacci (não sei se o chegámos a fazer mas um exercício possível seria construir uma
história a partir das palavras que tinham sido seleccionadas aplicando a série de Fibonacci a um
texto, ou palavras recortadas de um jornal). Depois de várias experiências com resultados
interessantes acabámos por optar por ideias muito mais simples: no caso de BidodaTerapia
estabelecemos uma forma muito simples de relacionar números e palavras e resolvemos
trabalhar à volta da ideia de quadrado mágico (ver texto), no caso da OPV de Ângulos foi uma
questão de juntar uma notícia principal de vários jornais com um tópico que tínhamos decidido
trabalhar e que ainda não sabíamos como.
Ainda dentro desta “fase” deve ser realçada a forma como os sistemas interactivos
forma desenvolvido e de que maneira condicionaram o desenvolvimento das ideias. Para que o
espectáculo fosse “portátil” e “resiliente” (pouco susceptível a erros) decidimos basear os
sistemas interactivos numa ideia básica, a da detecção de contraste por uma câmara de vídeo
(ver texto sobre sistemas interactivos). Essa mesma ideia (no fundo uma técnica) poderia ter
sido explorada de muitas formas diferentes. Ao explorarmos conceitos como formas
geométricas decidimos começar pelo mais básico: formas quadradas, formas redondas. No
processo de “brincar” com o sistema (ainda numa fase rudimentar) rapidamente surgiam ideias
sobre possíveis quadros a experimentar. E rapidamente se reconfigurava o sistema de forma a
poder responder a essas experiências. Os sistemas interactivos têm um papel importante nesta
fase “divergente” porque funcionam como um ponto de partida para improvisações e jogos
criativos. Permitem criar ideias. Por outro lado são também influenciados pelas ideias que
surgem noutras áreas, e acabam por evoluir, não de forma autónoma, mas de forma integrada
com as restantes ideias do espectáculo.
Uma terceira fase tem como característica principal a “convergência”. Da fase
anterior emergem muito mais ideias do que aquelas que um espectáculo normal (com a
duração normal e com um número normal de intervenientes) pode ter. Podemos pensar que
existe um processo semelhante ao que se passa em sistemas biológicos (ou em algoritmos
baseados em vida artificial), e que tem a ver com a capacidade de sobrevivência dos indivíduos,
neste caso das ideias. Algumas não sobrevivem porque não estão adaptadas ao meio (entendase por meio o conjunto de circunstâncias em que o espectáculo foi desenvolvido, quer o público
a que se destina, quer as dimensões da sala, quer os recursos técnicos ou financeiros, e outras
condicionantes). Outras tornam-se os “indivíduos” mais fortes e aquilo que é o resultado final (a
“população” de ideias que fica) reflecte esse processo de selecção. O processo de convergência
ou selecção envolve um misto entre um conjunto de “driving forces” externas, critérios racionais
ou planeamento (decisões estéticas, procura de coerência, existência ou não de pontos de
articulação entre várias cenas, possibilidade prática de realizar determinada acção, implicações
que pode ter sobre a mobilidade do espectáculo, um prazo para a apresentação do espectáculo)
e um conjunto de “driving forces” que são de natureza muito mais quotidiana, caóticas e
imprevisíveis (por exemplo, a existência, numa determinada altura, de um recurso ou a falta de
outro, a presença ou não de uma pessoa num determinado ensaio). Esse conjunto de forças
evolutivas exerce uma selecção sobre as ideias e começam a surgir articulações naturais entre
várias. Começa então a esboçar-se um “esqueleto” do espectáculo (uma sequência articulada
de quadros performativos) e pode-se começar a trabalhar em detalhe e profundidade em cada
uma das cenas. Começa-se progressivamente a ensaiar várias cenas seguidas e procura-se
encontrar a forma mais interessante de articular várias cenas. Na fase final faz-se uma série de
ensaios corridos (a totalidade dos quadros) e avaliam-se as implicações reais sobre o ritmo do
espectáculo, a energia dos actores, a disponibilidade de adereços, etc. se necessário
reformulam-se aspectos de várias cenas ou da ligação entre cenas.
Reiteor a ideia expressa atrás de que este processo criativo (ao contrário de outros
mais clássicos) é não-linear e iterativo. As fases que descrevi podem ocorrer simultaneamente
em determinadas alturas e é frequente voltar atrás no processo e redefinir algo que já parecia
estabelecido.
Conclusão
O processo criativo de Zoo Lógico veio sedimentar algumas ideias e metodologias de
criação que temos vindo a desenvolver nos últimos anos. Trata-se de uma combinação de
planeamento e imprevisto, de discussão e decisão, de inspiração e de trabalho, de ideias e
experiências.
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