MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS MESTRADO EM ÉTICA E EPISTEMOLOGIA Campus Universitário Ministro Petrônio Portela – Bairro Ininga CEP 64.049-550 – Teresina, PI Fone/Fax: (86) 3237 1134 – E-mail: [email protected] CARLOS ALBERTO MEDINO DA ROCHA A FORMAÇÃO DO HOMEM MORAL: UM ESTUDO SOBRE O ESTOICISMO E O “CUIDADO DE SI” EM SÊNECA TERESINA 2013 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS MESTRADO EM ÉTICA E EPISTEMOLOGIA Campus Universitário Ministro Petrônio Portela – Bairro Ininga CEP 64.049-550 – Teresina, PI Fone/Fax: (86) 3237 1134 – E-mail: [email protected] CARLOS ALBERTO MEDINO DA ROCHA A FORMAÇÃO DO HOMEM MORAL: UM ESTUDO SOBRE O ESTOICISMO E O “CUIDADO DE SI” EM SÊNECA Dissertação apresentada ao Mestrado em Ética e Epistemologia da Universidade Federal do Piauí, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia, sob orientação do prof. Dr. Luizir de Oliveira. TERESINA 2013 FICHA CATALOGRÁFICA Universidade Federal do Piauí Biblioteca Comunitária Jornalista Carlos Castello Branco Serviço de Processamento Técnico R672f Rocha, Carlos Alberto Medino. A formação do homem moral: um estudo sobre o estoicismo o “cuidado de si” em sêneca. / Carlos Alberto Medino Rocha. – 2013. 144 f.: il. Dissertação (Mestrado em Ética e Espitemologia da Universidade Federal do Piauí) – Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2013. Orientação: Prof. Dr. Luizir de Oliveira. 1. Estoicismo 2. Sêneca. 3. Educação do caráter. 4. Cuidado de si. I. Título. CDD: 184 O prêmio da boa obra é tê-la realizado. Sêneca AGRADECIMENTOS A Deus, em primeiro lugar, por me sustentar em todos os momentos da vida, principalmente naqueles em que me deparei com os abismos quase intransponíveis, mas Ele me segurou. Agradeço também, de modo especial, ao meu orientador, Luizir de Oliveira, pelo apoio, compreensão e amizade, elementos que foram imprescindíveis à elaboração desta dissertação. À minha mãe, Francisca Astrogilda, por todos os cuidados com minha saúde. À minha irmã Janaini, à minha sobrinha Talita por todo apoio e carinho. Aos amigos e professores do curso, pelo conhecimento e experiências compartilhadas. Agradeço igualmente ao Francisco Weudes (Maninho), à Cida (a portadora), ao Luís Silva, ao Geovane, à Anézia, à Cineide, à Débora, à Simone (minha enfermeira) e a todos aqueles que, de uma forma ou de outra, me incentivaram e me apoiaram nesta jornada. Finalmente, deixo aqui registrado o meu sentimento de gratidão e carinho à minha avó Casula (in memoriam), a quem dedico este trabalho. RESUMO Esta dissertação é fundamentada no pensamento de Lúcio Aneu Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.), cujos escritos estão voltados para a reflexão sobre a vida marcada por conflitos, vícios, incertezas e para uma série de inquietações que envolvem a vida humana como um todo. Sêneca foi filósofo, orador, educador da corte e preceptor de Nero. A proposta de estudo é compreender como se dá, a partir do estoicismo de Sêneca, a formação do homem moral, aquele que se tornou “um homem de bem”, que alcançou o domínio das inquietações e se lançou de forma virtuosa em busca do viver bem, ou seja, como Sêneca elabora, ao seu modo, a noção de “cuidado de si”. Para esse pensador, o processo de formação do homem dá-se pela via da razão em detrimento dos instintos, tendo como condição o conhecimento de si mesmo. Assim, a partir de uma educação do caráter mediada pelo mestre, a qual permite ao homem elaborar a si próprio, é possível alcançar uma vida ética. O homem, pelo “cuidado de si”, adquire de maneira mais clara o entendimento das coisas que dependem de si, e quais não estão ao seu alcance, a fim de assegurar um viver bem e contribuir para um processo de autoconhecimento e construção da sua existência como um homem moral. Palavras-chave: Estoicismo. Sêneca. Educação do caráter. Cuidado de si. ABSTRACT This thesis is based on the thought of Lucius Anaeus Seneca (4 a.C. - 65 d.C.), whose writings are meant to be a reflection on life marked by its conflicts, addictions, uncertainties and a number of concerns involving human life as a whole. Seneca was philosopher, politician, orator, educator and tutor of Nero. Our enquiry seeks to understand the relations between the stoicism of Seneca and the formation of the moral man, who is on the path to becoming "a good man", and who reached the control of life‟s uneasiness and follows virtuously in search of the good life, i.e., as Seneca elaborates, on his own, the notion of the "care of the self". He states that the process of formation of man involves choosing the path of reason instead that of the instincts, bearing in the horizon the motto “know thyself”. Thus, from a character education standpoint mediated by a master, who allows the man to prepare himself, it is possible to achieve an ethical life. Man, by means of the "care of the self", gets a clearer understanding of what depends on him and that that is not within his reach. This is a way for ensuring how to live well. Keeping track of that way of being is a means to a process of self-discovery as well as for the construction of human existence which could guarantee the formation of a moral man. Key words: Stoicism. Seneca. Character education. Care of the self. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 8 1 O ESTOICISMO ANTIGO: BREVES APORTES ................................................ 12 1.1 O Estoicismo Antigo .................................................................................. 15 1.1.1 A física ................................................................................................... 18 1.1.2 A lógica .................................................................................................. 23 1.1.3 A ética .................................................................................................... 26 1.2 O Estoicismo Médio ................................................................................... 36 1.3 O Estoicismo Imperial ............................................................................... 37 1.4 Sêneca e a constituição do seu pensamento filosófico ..................... 40 2 1.4.1 O pensamento filósofico senequiano no contexto da Consolação a Márcia ............................................................................................................. 47 O CUIDADO DE SI E SUAS RESSONÂNCIAS EM SÊNECA ........................... 55 2.1 O princípio do cuidado de si entre os antigos ..................................... 55 2.2 O cuidado de si e seus desdobramentos para além de Alcibíades ......................................................................................................... 70 2.3 O cuidado de si em Sêneca ..................................................................... 74 2.4 Os exercícios espirituais em Sêneca..................................................... 90 3 O CARÁTER FORMATIVO DA FILOSOFIA SENEQUIANA ........................... 102 3.1 A função do mestre na educação do caráter ................................... 111 3.2 O exemplo e a vontade: contribuições para a formação do caráter ............................................................................................ 116 3.3 Sêneca: guia e educador de Nero ....................................................... 121 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................... 135 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................ 140 8 INTRODUÇÃO Esta dissertação é fundamentada no pensamento de Lúcio Aneu Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.), filósofo, político, orador, educador da corte romana e preceptor de Nero. Os escritos de Sêneca estão voltados para a reflexão sobre a vida marcada por conflitos, vícios, incertezas e uma série de inquietações que a envolvem como um todo. Sua produção filosófica abrange os mais variados estilos, que vão desde consolações, cartas, tragédias até diálogos filosóficos, a partir dos quais empreendeu a divulgação do estoicismo. Sêneca é um filósofo que propõe viver uma vida pautada em convicções filosóficas elaboradas a partir da sua experiência, alcançadas ao longo da vida. Além disso, mostra-se consciente das suas obrigações enquanto cidadão romano. As reflexões de Sêneca emergem de um patamar de preocupações ligadas aos “valores morais, com o aperfeiçoamento da alma, mediante um constante e equilibrado exercício de consciência, aliado à necessidade de preparação para uma vida virtuosa [...] como convém a um estoico”.1 Dentre as diversas atividades de Sêneca, pode-se destacar a de orador, pela qual desenvolveu grande habilidade de persuadir, a partir de seus discursos, os seus ouvintes. Paralelamente aos estudos de retórica, teve contato com a filosofia. Dentre os pensadores que mais diretamente influenciaram seu pensamento, podemos destacar Sócion de Alexandria, que tinha em seus ensinamentos uma forte inspiração pitagórica. Desde seu primeiro contato com a filosofia, Sêneca manteve-se fiel a ela por toda a vida, pois acreditava ter encontrado o remédio para as perturbações humanas. Pode-se acrescentar, ainda, a sua formação filosófica outros três mestres: o cínico Demétrio e os estoicos Papírio Fabiano e Átalo, que apresentaram a Sêneca as bases da filosofia estoica, que se ajustou perfeitamente aos seus intentos. Assim, para se pensar Sêneca, é necessário compreendê-lo a partir dessa tradição filosófica. Sêneca pode ser considerado uma das figuras de maior expressividade do estoicismo romano. Atestou sua marca possibilitando vivenciar, em sua filosofia, a experiência de sua própria vida, “que, teorizando e vivenciando os 1 OLIVEIRA, Luizir de. Sêneca: uma vida dedicada à filosofia. São Paulo: Paulus, 2010, p. 55. 9 princípios da Stoa, por vezes modifica-os em função exatamente de sua própria experiência de vida”.2 Portanto, sua filosofia assume o caráter de responder às questões ligadas a sua própria existência e ao mundo. Podemos afirmar que o pensamento filosófico de Sêneca empreende uma filosofia prática, como bem se pode observar nas Cartas a Lucílio (uma espécie de guia de moral), em que o filósofo toma para si a tarefa de educar o discípulo Lucílio nos preceitos do estoicismo, incentivando-o, por meio de exemplos extraídos tanto das histórias grega e romana quanto do cotidiano vivenciado por ambos, incentivando-o a refletir sobre os problemas morais. Eis o que torna seu pensamento fecundo, bem como o fato de Sêneca direcionar, especificamente, sua filosofia prática para responder as inquietudes e incertezas comuns a todos nós. Convém aqui destacar que, para esse pensador, o processo de formação do homem dá-se pela via da razão em detrimento dos instintos, tendo como condição o conhecimento de si mesmo. Esse processo se estabelece a partir de certos princípios fundamentais erigidos pela moral: a virtude, a sabedoria, resultantes de uma vida voltada à filosofia. Sua preocupação está perfeitamente alinhada às questões prementes no seu cenário social. E, desse modo, buscou responder às inquietudes do homem romano. Destarte, para Sêneca, a reorganização da sociedade só seria possível mediante um processo educativo que resultasse na constituição de um homem capaz de desenvolver a racionalidade e a virtude em busca do agir bem e da vida feliz, ajustando-se, dessa maneira, ao preceito cunhado por Zenão, arquiteto das questões centrais do Estoicismo: o homem deve “viver de acordo com a natureza”, isto é, de acordo com a razão.3 Além disso, ancorados pela discussão sobre a construção da “subjetividade”,4 do próprio existir, pensamos ser possível propor uma reflexão sobre os aspectos da formação do homem moral e da noção do cuidado de si, tendo como subsídio uma educação do caráter fundamentada no pensamento filosófico de Sêneca, como explicação para a ascensão dos homens em suas esferas mais 2 GAZOLLA, Rachel. O ofício do filósofo estoico: o duplo registro do discurso da Stoa. São Paulo: Ed. Loyola, 1999, p. 18. 3 S.V.F. [A] 179 [1]. 4 O termo está sendo utilizado por nós segundo a compreensão de que se trata de uma reflexão acerca da interioridade, contudo sem o peso que a modernidade o concebe. 10 sensuais, por isso, mais apegadas à exterioridade; àquelas mais desenvolvidas, que possibilitariam alcançar uma vida autêntica na plenitude possível aos homens. Desse modo, aquilo que poderíamos chamar de uma “educação do caráter” supõe em primeira instância a figura do mestre, aquele que intervém, como mediador, na formação do indivíduo. Trata-se de um processo de educação do caráter que carece da presença do outro, uma vez que, para os estoicos, a figura do mestre se inscreve como essencial para a formação do discípulo, aliás, em linha com a proposta socrática encontrada no Alcibíades: ascender à prática de si só é possível mediante a intervenção incondicional do mestre. Decerto que em Sêneca a busca por uma vida reta e de acordo com a natureza só pode ser alcançada a partir da negação das coisas fúteis, do apego aos bens materiais, da libertação do espírito, em razão de buscar-se a sabedoria. Contudo, atingir esse estado requer uma profunda conversão, para a qual o mestre, o guia de consciência, contribui fundamentalmente. Na busca desse entendimento, articulamos nossa proposta de trabalho, propondo uma leitura cuidadosa da obra Cartas a Lucílio como principal fonte para a pesquisa. Trata-se do grande testamento filosófico de Sêneca no qual ele se propõe a educar o discípulo com base na reflexão revestida de um caráter extremamente prático e ético acerca dos mais variados problemas. Como fonte complementar, embora não única, utiliza-se também Da vida feliz, texto em que o autor procura responder as questões sobre o alcance da vida feliz, justificando que a verdadeira felicidade se encontra em nós mesmos. Recorremos, ainda, dentre os textos de Sêneca, às obras Consolação a Márcia e Da clemência, que servirão de apoio para o desdobramento e para a construção desse pensar com o filósofo, além de outros textos que serão utilizados para complementar a fundamentação desse trabalho. Assim, fundamentados a partir do diálogo com as fontes aqui pesquisadas, desenvolvemos o estudo em três momentos. No primeiro capítulo, que tem como título “O estoicismo antigo: breves aportes”, apresentamos um breve contexto histórico no qual surge o estoicismo antigo, fundamento do pensamento senequiano. Procuramos passar também, mesmo que de modo muito pontual, pelas duas outras fases do Pórtico, o Médio e o Imperial em que a voz de Sêneca alcançou grande relevo. Isso nos permite elencar as teses estoicas que estão na base do pensamento senequiano. 11 No segundo capítulo, intitulado “O cuidado de si e suas ressonâncias em Sêneca”, abordamos o conceito do cuidado de si formulado a partir do pensamento socrático-platônico no diálogo conhecido como Primeiro Alcibíades, para em seguida mostrar como Sêneca, ao seu modo, elabora a concepção do cuidado de si. Por fim, no terceiro capítulo, “O caráter formativo da filosofia senequiana”, tem por objetivo refletir sobre os aspectos da formação moral com base no pensamento de Sêneca, como já aponta o título dessa dissertação. Para tanto, consideramos o papel do mestre como guia e condutor de consciência e os aspectos dos exempla como aportes didáticos da filosofia senequiana. Atentamos ainda para a ênfase na noção de vontade expressa como orientação da nossa vida moral. 12 1 O ESTOICISMO ANTIGO: BREVES APORTES Sêneca é um seguidor da filosofia estoica. Isso se torna evidente ao vislumbrarmos, em muitas de suas obras, passagens que demarcam temas originários do estoicismo. Por isso, um dos caminhos possíveis para compreender o pensamento senequiano é percorrer o sistema estoico descortinando os seus variados temas. Dessa forma, tendo no horizonte o objetivo de compreender o contexto da filosofia estoica senequiana, definimos, como proposta inicial, discutir alguns dos temas mais relevantes do cenário estoico, que vão desde o nascimento dessa escola filosófica à teoria do conhecimento, às concepções sobre a physis, a alma, as paixões, dentre outros, como veremos a seguir. O estoicismo nasce na época helenística, na cidade de Atenas, tornando-se a mais famosa das escolas desse período. O seu nome é originário da palavra grega stoa que significa pórtico, pois seu fundador, Zenão de Cício5, ensinava próximo ao Pórtico Poecílio ou Pórtico pintado. O estoicismo foi constituído em tempos de grande turbulência social e política no mundo grego. A pólis grega estava em processo de franca decadência, o que impulsionou uma série de transformações no mundo grego, explicitamente dentro dos contextos social, político e religioso. Atenas perdia seu fulgor no mundo econômico e político, mas permanecia firme no âmbito cultural. Esse palco de transformações foi propício à filosofia estoica, uma vez que esse pensamento se voltava justamente para refletir essa nova condição de vida. Nesse horizonte, é importante compreender que o grego dos séculos VI e V a.C. era um habitante da pólis, pois estava ligado intimamente à cidade, vivia nela, para ela e por ela, uma vez que usava o espaço da cidade para se realizar. Com efeito, a pólis continha todos os imperativos para impor ao cidadão sua disciplina e o sentido da sua vida. A partir do século IV a.C., contudo, com o advento do império de Alexandre Magno (359-323 a.C.), a pólis grega chega a seu fim e uma nova ordem geopolítica se constitui, fundada numa nova “roupagem”, cujo fundamento traduz uma realidade socioeconômica bem diversificada. 5 Por volta dos 42 anos, Zenão inicia seus ensinamentos e funda uma escola. A princípio, seus alunos foram chamados de zenonianos, num outro momento deu-se nova denominação para esse grupo, tomando como referência o lugar onde os ensinamentos eram empreendidos, daí chamou-lhes de estoicos. 13 A esse período da história grega, de grande relevância cultural, denomina-se de época helenística, a fim de marcar a diferença que existe entre esse período e a Grécia do período helênico clássico. O antigo ideal da cidade é rompido com o novo contexto do império. A pólis deixa de ser a grande pátria, elegendo-se o mundo como tal, assim a cidade “não é mais a categoria fundamental, a norma suprema do pensamento e da cultura”.6 No entanto, a partir dessa nova configuração, o cidadão grego passa a ser concebido como um súdito e perde o direito de interferir diretamente nos destinos da cidade. Ademais, assume uma perspectiva que visa a preocupar-se não mais com o coletivo (a cidade), mas direciona seus interesses aos aspectos individuais, como, nos explica Marrou: [...] o homem helenístico em vão procura, face a um mundo ilimitado e a um céu vazio, alguma coisa a que prender-se, com relação à qual orientar-se: não acha ele outra solução senão recolher-se em si mesmo e procurar, em 7 si próprio, o princípio de sua ação. Assim, em face dessas modificações em que se priorizam as preocupações individuais, a felicidade individual passa a assumir, nesse contexto, uma das grandes conquistas do homem. Por conseguinte, mesmo inserido numa comunidade social, sua tarefa se concretiza nas preocupações de cunho individual, concomitantemente à busca individual pela felicidade. Partindo desse princípio, como afirma Bréhier, revelam-se os dois grandes traços fundamentais evidenciados no estoicismo antigo como forma de expor a distinção em relação ao período anterior, a saber: [...] Primeiramente, acentua a crença de que é impossível para o homem encontrar regras de conduta ou alcançar a felicidade sem se apoiar em uma concepção do universo determinada pela razão ou lógos. Em segundo lugar, enfatiza a necessidade da utilização da própria razão, e seus arrazoamentos, com o intuito de consolidar no filósofo os dogmas da escola, 8 bem como dar-lhe uma segurança inquebrantável. Outro aspecto relevante da escola estoica é que esta se torna a primeira escola helenística a sistematizar sua doutrina: a doutrina estoica mostra-se ela 6 MARROU, Henri Irénée. História da educação na antiguidade. Trad. Mário Leônidas Casanova. São Paulo: E.P.U, 1990, p. 157. 7 Ibidem, pp. 352-353. 8 BRÉHIER apud OLIVEIRA, Luizir de. Sêneca: uma vida dedicada à filosofia. São Paulo: Paulus, 2010, p. 25. 14 mesma como uma totalidade orgânica, contínua, na qual todos os elementos são solidários: se uma só letra for movida, como observou Cícero, todo o edifício desaba.9 Por esse motivo, o estoicismo leva a compreender que em sua essência há uma expressão de continuidade. Nesse sentido, os homens, os deuses, o mundo e suas partes compreendem um sistema que se encontra de forma coerente e unificado. Nas palavras de Pierre Hadot, tanto o estoicismo quanto o epicurismo10 assumem um caráter popular e missionário, pois “as discussões técnicas e teóricas, sendo ofício de especialistas, podem ser resumidas para os iniciantes e os que progridem em um pequeno número de fórmulas fortemente encadeadas, que são essencialmente regras para a vida prática”.11 Desse modo, essas escolas terminam por reencontrar o espírito “popular” e “missionário” da figura de Sócrates, pois em sua prática, se voltam para todos indistintamente sejam eles homens, mulheres, pessoas pobres, ricas ou até mesmo escravas. Nesse contexto, quem busca seguir uma dessas escolas, a princípio, está adotando o modo de vida peculiar referente a cada uma delas, tomando para si a denominação de filósofo, ou seja, “quem adota o modo de vida epicurista ou estoico, quem o põe em prática, será considerado um filósofo, mesmo que não desenvolva, por escrito ou oralmente, um discurso filosófico”.12 O estoicismo apresenta-se sob uma divisão que vislumbra três momentos históricos dessa escola: o estoicismo antigo, que concentra suas atividades especificamente em Atenas no século III a.C., período no qual destacam-se Zenão de Cício, fundador da escola (336-264 a.C.), Cleanto (331-232 a.C.) e Crisipo (280210 a.C.), terceiro diretor da escola, o qual conseguiu estabelecer de maneira sistemática a doutrina estoica nessa primeira fase. A segunda fase, denominada de Estoicismo Médio, desenvolve-se na virada do século III a.C., para o II a.C. Nesse período, o estoicismo começa a se tornar latinizado. Destacam-se os filósofos Diógenes (séculos III e II a. C.), Antípatro de Tarso (séculos II e III a. C.), Panécio de Rodes (185-112 a.C.) e Possidônio de Apaméia (135-51 a.C.). Notadamente, nesse período após Crisipo, o Pórtico 9 De finibus, III, XXII, 74. Escola filosófica fundada em 306 por Epicuro que nasceu em Samos por volta de 341 a.C. Epicuro instala sua escola numa casa que possuía um grande jardim, daí a denominação às vezes dada aos epicuristas de filósofos do Jardim. 11 HADOT, Pierre. O que é a filosofia antiga? 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2004, p. 161. 12 Ibidem, p. 161. 10 15 procurou fundamentalmente manter e defender os dogmas da escola. Mas é Panécio quem lhe devolve o brilho e o vigor de antes. O terceiro e último período da escola do Pórtico compreende sua fase Romana ou Imperial, situa-se entre os séculos I e II d.C. A doutrina converge especificamente para a reflexão ética. Além do mais, os filósofos, por enfatizarem o tom ético nesse período, renovam a doutrina da escola em constantes aconselhamentos e por isso são denominados de “diretores de consciência”.13 São exemplos desses mestres Sêneca (4 a.C. a 65 d.C.), da cidade de Córdoba, Epicteto (50 -130 d.C.) de Hierápolis, e Marco Aurélio (121-180 d.C.), de Roma. 1.1 O Estoicismo Antigo Como já anunciamos, a filosofia estoica ou filosofia do Pórtico tem como fundador Zenão, provavelmente de origem fenício-semita, filho de mercador, nascido em Cício, na Ilha de Chipre. Não se sabe ao certo como Zenão chegou à condição de filósofo. Muitas histórias foram contadas como justificativa do seu primeiro contato com a filosofia.14 No entanto, o que importa compreender é que Zenão foi discípulo de Crates15, o cínico, com o qual iniciou seus estudos filosóficos. Dos ensinamentos herdados, Zenão toma para si a máxima compartilhada por Crates: o sábio é aquele que vive de acordo com a natureza. Dessa forma, o estoicismo propõe ao homem regras de conduta para a vida, de ações que busquem harmonizar a relação do homem com a natureza. Decerto, um dos acontecimentos que marcaram a trajetória de Zenão foi o surgimento da escola epicurista, pois um misto de sentimentos o arrebatou em relação à nova escola: por um lado, sentiu-se atraído/tomado de admiração, mas, 13 Cf. GAZOLLA, Rachel. O ofício do filósofo estoico: o duplo registro do discurso da Stoa. São Paulo: Ed. Loyola, 1999, p. 23. 14 Numa dessas tradições, Zenão, filho de um mercador, estaria transportando púrpura, mas o seu navio veio a naufragar, obrigando-o a desembarcar em Atenas. No seu percurso, deparou-se na casa de um livreiro com as Memoráveis de Xenofonte. Vislumbrado com o texto, sua intenção foi de encontrar homens tão notáveis como os que foram lidos na obra. O primeiro a encontrar foi Crates. Numa outra tradição, diz-se que Zenão, ao procurar o oráculo, e indagando-lhe sobre o melhor modo de vida, teve como resposta que buscasse os mortos, então passou Zenão a ler os antigos. Cf. BRUN, Jean. O estoicismo. Trad. João Amado. Lisboa: Edições 70, 1986, p. 16. 15 Ao desembarcar em Atenas Zenão é acolhido não pelas escolas de grande porte como, por exemplo, da Academia de Platão, mas recebe orientação das escolas socráticas menores, em que Crates é um dos representantes e discípulo de Diógenes, o Cínico. Cf. REALE, G. História da Filosofia Antiga III. Os sistemas da era helenística. Trad. Marcelo Perine. São Paulo: Ed. Loyola, 1991, p. 262. 16 por outro, demonstrava pura discordância. Epicuro acenava para as mesmas necessidades que o fundador da escola do Pórtico experimentava, pois vislumbrava a filosofia a partir de um cenário regido sob o aspecto de uma “arte de viver”, empreendimento ainda pouco explorado pelas outras escolas. A postura de Zenão, por fim, resultou em uma ordem de negação e confronto com as teses epicúreas, pois embora compreendesse o estilo com o qual Epicuro esboçava as questões de cunho filosófico, não nutriu o mesmo consenso em relação à postura apontada em suas respostas. Com efeito, Zenão criticou especificamente as bases do pensamento da escola epicurista a qual compreende que a composição do universo e do homem é dada por átomos. Como reforça Brun, “uma das afirmações fundamentais da física de Epicuro é que o universo é composto de átomos [...]”.16 Ademais, afirma o epicurismo que o prazer incorre numa identificação com o bem moral, “visto que o prazer é compreendido como princípio e o fim da vida feliz [...]”.17 Decerto, a definição dada por Epicuro para o prazer diz respeito ao prazer do ventre, da própria carne. Daí, a regra a ser seguida pelo homem deve ser de evitar a dor física e a perturbação da alma. Certamente, na filosofia epicurista, a mola propulsora é a busca do homem pelo prazer. Desse modo, o papel da filosofia será encontrar o prazer verdadeiro para o homem, visando torná-lo feliz. Em contraponto, a infelicidade humana está fincada justamente na busca daquele prazer que não é verdadeiro. Por isso, distinguir os prazeres é crucial para Epicuro, tanto que em sua filosofia os desejos se apresentam de forma hierarquizada, “[...] alguns são naturais e necessários, outros naturais e não necessários; outros, ainda, nem naturais nem necessários, devido à imaginação ilusória”.18 Cabe ao homem buscar impreterivelmente os prazeres da ordem dos naturais e necessários, como forma de harmonizar a relação do homem com a natureza. Não obstante, Zenão apresentava um pensamento que expressava um mundo compreendido pelo lógos e não por átomos, pois o lógos é sinônimo de união e não de divisão. Com feito, “Zenão sentia-se, enfim, pronto para indicar um ideal de felicidade que não degradasse no prazer [...], um ideal de paz espiritual alcançada pela superação do peso e da adversidade das coisas [...], justamente no lógos e 16 BRUN, Jean. O epicurismo. Trad. Rui Pacheco. Lisboa: Edições 70, 1959, p. 39. Cf. D.L., X, 128-129. 18 D.L., X, 149. 17 17 mediante o lógos”.19 Isso nos faz compreender que a racionalidade, assim como nas demais escolas filosóficas, é o princípio base da escola do Pórtico fundada por Zenão.20 Zenão, que não era cidadão ateniense, recebeu daquele povo toda honra e respeito pela sua conduta de vida modesta, atitude que lhe rendeu uma coroa de ouro e uma estátua de bronze. Zenão morreu em Atenas por volta do ano 262 a. C.21 Seu sucessor foi seu aluno Cleanto22 que figurou como um dos discípulos que, com maior precisão e fidelidade, endossou os ensinamentos do seu mestre. Talvez por essa habilidade tenha sido escolhido para suceder Zenão. Da sua produção só restou o Hino a Zeus como legado do antigo estoicismo. Quem assume a escola do Pórtico após a morte de Cleanto é seu ouvinte Crisipo23, homem de personalidade forte, cujas ideias, na maior parte das vezes, divergiam do pensamento dos seus antecessores. É com esse aspecto de forte personalidade e convicção que Crisipo foi alcunhado como o sistematizador das ideias do estoicismo nessa primeira fase. A filosofia do Pórtico, como elaborada por Zenão, está dividida em três partes: a lógica, a física e a ética. Para ilustrar com maior clareza a relação entre as três partes da filosofia, recorria à imagem da comparação com o animal: “os ossos e os nervos são a lógica, a carne é a moral e a alma é a física. Ou então a comparam a um ovo: a casca é a lógica, a clara é a moral e o que se encontra no centro é a física [...]”.24 A filosofia estoica ainda pode ser comparada a partir da seguinte ilustração: “a filosofia é um campo em plena produção – a lógica é a cerca, a ética os frutos e a física a terra e as árvores”.25 Contudo, mesmo propondo a divisão da 19 REALE, G. História da Filosofia Antiga III. Os sistemas da era helenística. Trad. Marcelo Perine. São Paulo: Ed. Loyola, 1991, p. 269. 20 Cf. também S.V.F.[A] 179[2]. 21 Zenão, ao sair da sua escola, tropeçou e caiu, percebendo que esse seria um aviso, limpou a terra das mãos e disse: cheguei, porque me chamas? Logo após, se enforcou. 22 Atleta de grande porte físico que desembarcou em Atenas possuindo apenas quatro dracmas, por volta de 282, e logo começou a seguir os ensinamentos de Zenão. 23 Diz-se dele que certa vez ao ser questionado sobre a quem poderia confiar os cuidados do seu filho, orgulhosamente respondeu: “a mim, pois se eu conhecer alguém que me ultrapasse, ir-lhe-ei pedir lições de filosofia”. BRUN, Jean. O estoicismo. Trad. João Amado. Lisboa: Edições 70, 1986, p. 19. E, além de ser dotado de grande orgulho também expressava confiança e forte convicção em relação ao seu poder de argumentação: “que precisava apenas que lhe ensinassem as doutrinas, ele mesmo descobriria as demonstrações”. D.L., VII, 176. 24 Cf.D. L. VII, 40; S.V.F., II, [B] 38[1]. Para a tripartição da filosofia cf., também S.V.F.I[A] 45 [1].[2]; [A] 46; II, [B] 37 25 ILDEFONSE, Frédérique. Os estoicos. Trad. Mauro Pinheiro. São Paulo: Estação Liberdade, 2007 (Figuras do Saber, 17), p. 24. 18 filosofia em três partes distintas, cada uma deve ser compreendida de forma unitária e com igual valor, ressaltando que a compreensão de uma depende da outra de igual modo. Em todo caso, os estoicos, diferenciando-se das outras escolas filosóficas que também admitiram a divisão da filosofia em três partes (a exemplo dos epicuristas que, apesar de comungar da ideia da tripartição da filosofia, admitiam a subordinação do seu modelo), indicaram com originalidade o princípio do lógos como fundamento de ligação entre ambas as partes. “O lógos é princípio de verdade na lógica, é princípio criador do cosmo na física, é princípio normativo na ética”.26 1.1.1. A física Dentre os temas de grande abrangência na filosofia estoica, estão aqueles que dizem respeito ao campo da física os quais se referem à unidade do cosmos e ao gerenciamento do mundo por uma Providência de natureza racional. Com efeito, a física é a parte da filosofia capaz de constituir o conhecimento da realidade, indicando os princípios e as regras que sustentam e corroboram o seu fundamento. Nesse contexto, os estoicos compreendem o mundo como unidade que corresponde a um ser vivo dotado de racionalidade e são de sua natureza as características da perfeição, divindade e autocriação, regido por leis e uma razão que é providencial, do qual nossa alma é um fragmento. Crisipo afirma na sua obra Sobre a Providência que o mundo é caracterizado pelos seguintes aspectos: “o cosmos é um ser vivo, racional, animado e inteligente”.27 Com efeito, as características concernentes ao mundo enquanto ser vivo qualificam-no como um ser superior, de sorte que o ser animado está acima do inanimado. Assim, o mundo é um ser vivo que se sobrepõe a tudo aquilo que não tem vida, ou seja, “[...] o ser vivo é superior ao ser sem vida; nada é superior aos cosmos; logo, o cosmo é um ser vivo”.28 Além disso, o mundo, que é um ser vivo racional, também é deus e deus pode corresponder a Zeus, Providência, Natureza, Lógos 29 – mesmo dotada dessas 26 REALE, G. História da Filosofia Antiga III. Os sistemas da era helenística. Trad. Marcelo Perine. São Paulo: Ed. Loyola, 1991, p. 273. 27 D.L., VII, 142. 28 Ibidem, 143. 29 Para os estoicos, Natureza, Deus e fogo são sinônimos. Divinizando a Natureza, eles procedem, ao mesmo tempo, a uma naturalização do divino, sem que haja uma separação entre ambos. O divino estoico vive em comunidade com os homens, com todos os seres racionais, pois ele também é 19 várias concepções, a unidade reinante não se desarticula. É o que podemos perceber nas palavras de Diógenes Laércio: Deus é um ser vivo imortal, racional, perfeito ou então (um ser) inteligente vivendo na beatitude, não podendo acolher em si nada de mal, exercendo uma providência sobre o mundo e sobre os seres que estão no mundo. Ele não possui, contudo, uma forma humana. É demiurgo do universo e, por assim dizer, o pai da todas as coisas, ao mesmo tempo de modo geral e na parte de si mesmo que penetra através de todas as coisas e que recebe 30 múltiplas denominações segundo as potências que (nelas) aplica [...]. De igual modo, é o que também nos afirma Cleanto em seu Hino a Zeus: Ó glorioso, mais que todos os outros, Ó suma potência eterna. Deus dos muitos nomes, Ó Zeus, guia e senhor da Natureza, Que governas com Lei o universo, Salve! Todos os mortais devem louvar-te, Pois somos da tua estirpe, e possuímos a palavra Como reflexo da tua mente, Únicos entre todos os viventes Que sobre a nossa terra têm vida e movimento. A Ti se eleve dos meus lábios o hino, E que eu cante sempre o teu poder! A Ti todo o admirável universo. Girando sempre em torno dessa terra. Obedece, deixando-se guiar por Ti, Fazendo do Teu comando o seu querer: Como instrumento, nas invencíveis mãos, Tens em teu poder o raio de duplo fio, Ígneo, sempre aceso e vivo, Sob cujos golpes toda a Natureza Cumpre todas as suas obras. Com ele diriges a Razão comum, Que tudo penetra, tocando igualmente Os grandes e os pequenos luzeiros; Por isso. Tu, ó grande Senhor, Dominas tudo em todo tempo. Sem ti, nada se cumpre sobre a terra, O espírito divino; nem na sagrada esfera celeste, Nem entre os abismos marinhos; Salvo o que fazem os espíritos perversos Seguindo estultos conselhos. Mas até os excessos tu sabes nivelar, 31 E dar ordem à desordem [...]. expressão da racionalidade; ele é lógos. OLIVEIRA, Luizir de. Sêneca: uma vida dedicada à filosofia. São Paulo: Paulus, 2010, p. 29. 30 D.L., VII, 147. 31 Cleanto apud REALE, G. História da Filosofia Antiga III. Os sistemas da era helenística. Trad. Marcelo Perine. São Paulo: Ed. Loyola, 1991, p. 311. 20 Desde a origem da escola estoica, a física esboça um sentido de dinamicidade e continuidade da natureza que é racional. Com efeito, a natureza é que mantém a unificação do mundo, tornando-o solidário e coeso, pois tudo no mundo está ligado e em perfeita comunicação. O mundo é um corpo que permite se agregar a outros corpos; assim, a união desses corpos com o mundo se dá pela determinação da natureza, ao mesmo tempo em que também a tudo faz nascer no mundo. Nesse sentido, como bem marca Diógenes Laércio, “[...] A natureza é uma força se movendo por si própria, produzindo e mantendo em coesão, conforme as razões seminais, os seres que vêm dela em momentos determinados, e realizando seres iguais àqueles dos quais saíram”.32 A natureza (fogo artífice), enquanto instância universal que a tudo se aplica,33 toma como princípio o gerenciamento dos outros seres aos quais devem corresponder à ordem racional. Em razão disso, não é permitido nenhum movimento contrário à natureza – assim, a natureza se constitui como organizadora do universo. Por sua vez, os homens também compartilham da razão divina que rege o mundo. Uma vez que o mundo é regido de maneira racional e providencial, esse mesmo intelecto está contemplado em todos os outros seres, correspondendo ao compartilhamento harmonioso dessa razão que é governante, a qual também está presente em nós. O lógos é comum a todos, “uma vez que ele é cósmico e pertinente a todos os seres, portanto também à própria natureza humana”.34 A física estoica é uma física que se estende aos corpos. Mas corpo é tão somente aquilo que se encontra vulnerável de agir ou sofrer uma ação. Assim, são elementos corpóreos: a alma, o lógos filosófico, as qualidades, vícios e virtudes. Com efeito, da estrutura divisória entre agir e sofrer uma ação se constitui a lei da causalidade; é o que indica a teoria dos princípios universais. 32 D.L., VII, 148-149. Assim também, como destaca Ildefonse, na doutrina estoica, o mundo e todas as outras coisas têm sua origem a partir das “razões seminais”, ou seja, é a partir do lógos que é uno, mas que concomitantemente se diferencia a partir das coisas que ao seu tempo faz nascer. Esse lógos, como destacamos, se apresenta, portanto como o sêmen de todas as outras coisas. Os estoicos. Trad. Mauro Pinheiro. São Paulo: Estação Liberdade, 2007 (Figuras do Saber, 17), p. 34. 33 S.V.F., I, [A]97[1]-[2]. Contudo, perceber nessa concepção o sentido de um panteísmo estoico seria enveredar num equívoco. De fato, se reconhece que o divino estoico ou pneuma divino, encontra-se em todas as partes, mas isso não corresponde ao panteísmo. Como bem nota Duhot: o panteísmo consiste em deificar as forças da natureza, e o estoicismo vai da harmonia do universo à ideia de que tal harmonia implica um ordenador, que, pelas razões físicas que vimos, só pode ser onipresente. O panteísmo é incompatível com a ideia de uma vontade divina única se exercendo em todas as coisas. DUHOT, J-J. Epicteto e a sabedoria estoica. São Paulo: Ed. Loyola, 2006, pp. 61-62. 34 GAZOLLA, Rachel. O ofício do filósofo estoico: o duplo registro do discurso da Stoa. São Paulo: Ed. Loyola, 1999, p. 41. 21 Segundo os estoicos, existem dois princípios do universo, o lógos que é o princípio da atividade, e um segundo que é passivo (to paskhón) - a matéria -, ambos estão intimamente ligados e fazem referência à mesma realidade.35 O lógos, é deus, o princípio que age na matéria modelando-a a sua maneira, dando-lhe forma, movimento e qualidade. Da incidência da razão diretamente na matéria sem qualidade resultam quatro elementos. Dois ativos - o fogo e o ar e; e dois passivos – a terra e a água. Desse diálogo harmonioso entre lógos e matéria, são produzidas todas as coisas. “Consequentemente, todas as coisas múltiplas e singulares referem-se aos dois princípios que coexistem ontologicamente”.36 Além disso, cada elemento constituído dessa realidade corpórea apresenta uma peculiaridade própria (idiôs poion), uma identidade que marca sua essência de forma aguda e singular. Mas, caso se pense ter encontrado uma desarmonização no escopo da teoria física estoica, é preciso considerar que a realidade corpórea é constituída de elementos dessemelhantes, o que fatalmente induz a pensar numa possível contradição entre ambos. Antes de tudo, é preciso recorrer à máxima estoica que afirma a coesão do mundo e seu aspecto de total comunicabilidade entre suas partes, a fim de suspender tal consideração, “o mundo é uma total coesão e compenetração orgânica de suas partes, e a mistura total garante a possibilidade de ação dos corpos uns sobre os outros dentro de um universo homogêneo, contínuo e ativo”.37 Vejamos o que também afirma Reale sobre a míxis universalis: A penetração de Deus (que é corpóreo) através da matéria e de toda realidade (que também é corpórea) é possível no estoicismo, em virtude do dogma da “comistão total dos corpos” (krásis di holon). Recusando a teoria dos átomos dos epicuristas, os estoicos admitiram a divisibilidade ao infinito dos corpos e, portanto, a possibilidade de que as partes dos corpos possam, entre si, unir-se intimamente, de modo que dois corpos possam 38 fundir-se em um. Contudo, na teoria estoica nem tudo é corpo. Os estoicos assinalam que quatro são os desprovidos de corpo: o lugar, o tempo, o vazio e o lékton (os 35 S.V.F., I, [A]85[1]. REALE, G. História da Filosofia Antiga III. Os sistemas da era helenística. Trad. Marcelo Perine. São Paulo: Ed. Loyola, 1991, p. 303. 37 ILDEFONSE, Frédérique. Os estoicos. Trad. Mauro Pinheiro. São Paulo: Estação Liberdade, 2007 (Figuras do Saber, 17), p. 40. 38 REALE, G. op.cit., p. 302. Sobre a comistão cf. também S.V.F., II, [B]463-481. 36 22 exprimíveis). Dada a definição do corpo, como já mencionamos, os incorpóreos se encontram numa condição que não permite agir ou sofrer qualquer ação. São de natureza inativa e impassível. Essa condição também incide diretamente na lei da causalidade, tendo em vista que todo aquele que é corpo é decisivamente uma causa. Assim explica Sexto Empírico: Os estoicos dizem que toda causa é um corpo que se torna causa, para um outro corpo, de algo incorpóreo. Por exemplo, o escalpelo, que é um corpo, é causa para o corpo que é a carne de um incorpóreo, o predicado „ser cortado‟. Ainda: o fogo, que é um corpo, é causa para a madeira, que é um 39 corpo, do predicado „ser queimado‟. Podemos perceber que os estoicos definem todos os acontecimentos como incorpóreos. Tendo em vista que eles estão desprovidos de manifestar qualquer ação ou recebê-la, também são incapazes de prover qualquer modificação no corpo. É o que demonstra quando um corpo age sobre o outro: o resultado se dá apenas pela adição de um atributo ao corpo, mas não de uma qualidade que o modifique, ou seja, o incorpóreo apenas registra um modo de ser do corpo, jamais acrescenta uma nova característica a sua essência. O incorpóreo faz tudo permanecer tal e qual. Eis a função do incorpóreo: conservar o universo na sua harmoniosa e solidificada coesão segundo a doutrina estoica, pois o seu alcance não chega ao menos a riscar de leve a superfície da essência de um corpo. Contudo, esse contexto traduzido pelos incorpóreos não descreve uma inércia. A mudança que dialoga nos corpos apenas não adere e nem fere sua distinta qualidade (idiôs poion), mas permite, por outro lado, o acontecimento que, ao ser registrado, não se dilui numa mudança fatal no objeto, “[...] o incorpóreo permite inteirar-se da mudança sem atentar contra a permanência dos corpos e sem alcançar uma posição de essência [...]”.40 Em outras palavras, nada é acrescentado ou modificado no universo; ainda assim, algo acontece, “mas aquilo que acontece, e que pode sozinho fazer sentido, não marca”.41 Com efeito, aqueles que são desprovidos de ser, têm sua existência marcada a partir do contato de um corpo com outro. Impossibilitados de existirem fora dessa relação, sua subsistência só é permitida a partir de uma dada situação entre os corpos, a qual 39 Adv. Math., IX, 211. (L.S. 55B). ILDEFONSE, op.cit. p. 52. 41 Ibidem, p. 51. 40 23 define o local e a ocasião para que se possa usufruir dos seus predicados, que são os incorpóreos. Seguindo a divisão denunciada pelo estoicismo da sua filosofia em três partes, apresentamos a seguir o papel e o contexto da lógica estoica. A lógica estoica se assenta sobre uma teoria do conhecimento que está embasada sob o aspecto da representação (phantasía) e da sensação. Logo, é a partir dessa estrutura que a lógica estoica é capaz de prover o seu critério de verdade. 1.1.2. A lógica A escola do Pórtico reconhece nesse contexto a dualidade explícita em sua teoria que se inscreve a partir da relação entre sujeito e objeto. Portanto, é por consequência dessa relação que se mescla o conhecimento: o objeto é impresso no sujeito por meio de uma sensação, que dá acesso à representação, corroborando nesse sentido o processo de conhecimento constituído na própria alma. Assim, o alicerce de sustentação para o reconhecimento “é a sensação (aísthesis), que é uma impressão provocada pelos objetos sobre os nossos órgãos sensoriais. Essa impressão se transmite à alma através dos sentidos e nela se exprime, gerando assim a representação (phantasía)”.42 Decerto, a representação, que se inscreve na alma, está direcionada especificamente para a principal parte que a compõe, a parte diretora (hegemônikon), na qual são produzidos os impulsos e as representações. Ao final desse processo, a linguagem é produzida como meio de descrever as sensações que foram inseridas na alma. Diferentemente da phantasía aristotélica, que reduz seu significado à imaginação e que por isso é capaz de produzir imagens, os estoicos sustentaram sua definição de phantasía num escopo de maior precisão. Aristóteles, no capítulo III do tratado Da alma, assinala que a phantasía assume uma propriedade intermediária, que se situa entre a sensação e o pensamento, mas sua atividade só tem início quando o objeto dessa sensação se dissipa, o que abre espaço para julgá-la como verdadeira ou falsa, ao contrário dos estoicos que apontam para uma phantasía capaz de inferir a verdade.43 42 REALE, G. História da Filosofia Antiga III. Os sistemas da era helenística. Trad. Marcelo Perine. São Paulo: Ed. Loyola, 1991, p. 278. 43 Cf. ILDEFONSE, Frédérique. Os estoicos. Trad. Mauro Pinheiro. São Paulo: Estação Liberdade, 2007 (Figuras do Saber, 17), p. 70. 24 Vale acrescer que, para esse conhecimento ser justificado como verdadeiro, é necessário que ele seja imediato, ou seja, que não perca a sua referência com a sensação: “a certeza deve ser apresentada imediatamente dentro dos conteúdos de consciência que poderíamos, em seguida, dividir em sensíveis e intelectuais”.44 Assim, somente por esse viés o conhecimento sustentar-se-ia como certeza, o que não seria possível se atestasse pelo uso que Aristóteles faz da phantasía, o qual abre espaço para a dúvida: “Todo o lado „imaginário‟ e, também, arbitrário da phantasía, segundo Aristóteles, passa inteiramente no „fantasma‟, objeto aparente apreendido pela „imaginatividade‟”.45 Por outro lado, os estoicos diferenciam a representação (phantasía) que é uma afecção na alma, a qual reproduz o objeto da sua causa; o objeto daquilo que é por ela representado (phantastón); o campo da imaginatividade (phantastikón) também definida como uma afecção na alma. Porém, sua origem está ligada ao vazio, sem a intervenção de qualquer objeto e, por fim o fantasma (phántasma) que corresponde a um objeto aparente, definido a partir de uma atração violenta em direção ao vazio. Dessa forma, podemos discernir o caminho que os estoicos percorreram perfazendo um sentido contrário ao de Aristóteles em relação à phantasía, de modo que o sentido dado ao fantasma diverge complemente daquele atribuído pelos estoicos à representação – o fantasma corresponde apenas a uma aparição realizada através do pensamento, enquanto que a representação marca e imprime uma alteração na alma.46 Para os estoicos, a denominação de phantasía é uma representação que diz respeito aos conteúdos da consciência, meio pelo qual o conhecimento se origina. No entanto, por complemento à tese que justifica o conhecimento como verdadeiro, exige-se que a representação seja dita compreensiva. Esse seria o fundamento como forma de assegurar a certeza imediata do conhecimento. A representação compreensiva (phantasía kataleptiké), que também serve como critério de ciência segundo os estoicos, e traz consigo a capacidade de apreender os objetos de forma ativa, atingindo o máximo de precisão, afetando a alma de forma visceral, é um tipo de representação capaz de reproduzir na alma o 44 GOLDSCHMIDT, V. Le système stoïcien e l’idée de temps. Paris: VRIN, 1977, p. 111. ILDEFONSE, op.cit. p. 71. 46 Cf. Aécio, S.V.F. II, p. 21, [B.1] 54. 45 25 objeto em questão de forma simplificada. Porém, ao mesmo tempo, impele com tamanha veemência o sujeito do conhecimento ao assentimento, ou seja, a alma é afetada de forma tão precisa que o assentimento se torna indiscutível. Com isso, entendemos que a verdadeira representação, segundo a escola do Pórtico, implica prioritariamente um assentimento. A representação não depende da nossa vontade, ela é articulada a partir da ação exercida pelo objeto sobre os órgãos dos sentidos. Todavia, é de nossa responsabilidade habilitar a representação encaminhando-a para o grau de compreensiva, dando o nosso assentimento ou não, de forma a reforçá-la ou negá-la. Conforme Reale: [...] Todavia nós somos, em certa medida, livres para tomar posição diante das impressões e representações que se formam em nós, dando-lhes o assenso do nosso lógos, ou recusando-lhe esse assenso. Só quando damos o nosso assentimento acontece a apreensão, e a representação que recebeu o nosso assentimento torna-se representação compreensiva ou 47 cataléptica, e só esta é critério e garantia de verdade. Os estoicos ainda afirmam que a representação só é possível mediante uma dada situação, nunca é proveniente de um corpo ou somente de uma ação, mas a representação imediata ocorre sobre um corpo que foi afetado e se encontra num determinado modo de ser. Ou seja, o trabalho da representação parte da articulação entre um corpo e uma ação em conjunto. Assim, o estoicismo assinala a impossibilidade de se conhecer os corpos em si mesmos, aventando a possibilidade para o conhecimento que se dá apenas na posse desse corpo dentro de uma dada situação. Desse modo, se a representação tem acesso apenas aos corpos em determinadas situações, isso significa que a representação estoica está ligada distintamente aos aspectos verbais que versam sobre as maneiras de ser de cada corpo. Nesse sentindo, pode-se afirmar que a representação é rica em conteúdo e pressupõe todas as ferramentas necessárias ao campo discursivo. Destarte, antes mesmo de constituirmos o pensamento, o que efetivamente chega até nós é a imagem do objeto em um algum estado de ser ou numa dada situação, por conseguinte é que poderemos afirmar que vimos algo. Daí podermos concluir que a 47 REALE, G. História da Filosofia Antiga III. Os sistemas da era helenística. Trad. Marcelo Perine. São Paulo: Ed. Loyola, 1991, pp. 279-280. 26 representação no homem é discursivamente elaborada e que, portanto, o pensamento também é uma forma de representação. Contudo, os estoicos denunciam que o que difere os homens dos animais não-lógicos não seria a simples representação ou articulação de um discurso proferido, mas notadamente a capacidade de produzir um discurso interior. Afirmam sobre a representação que se diz transitiva, a qual inscreve o homem dentro de um contexto capaz de articular as diversas representações e informações perceptivas, chegando à elaboração do discurso interno. Com feito, o papel da lógica está definido na seguinte função: “a lógica permite articular os dois pedaços do symbolon, a partir do “presente mutilado” da percepção”.48 E, assim, pode-se concluir sobre a lógica estoica que, se por um lado, a representação capta as partes da realidade, cabe ao homem a partir da representação transitiva compor a conjunção dessa realidade na sua totalidade. 1.1.3. A ética Passemos agora para a última parte da divisão do lógos filosófico da escola estoica antiga, que versa sobre a ética. Afirma-se que a parte mais significativa do Pórtico é especificamente a ética: os estoicos empreenderam por séculos uma mensagem de consolo das aflições e dos males que afligiam a humanidade, libertando-a das desilusões. O fim último do homem, segundo o Pórtico, é a busca pela felicidade, cabendo, portanto, à ética pautar a definição e os meios de se atingir a plena felicidade. E, como já assinalamos, esse fim último também se expressa pela máxima o “viver em acordo com a natureza”, pois da ligação com a natureza os estoicos destacam a fonte da felicidade que é a virtude, ou seja, partem de uma identificação entre a virtude, o soberano bem e a felicidade. Há em Zenão a ratificação desse pensamento, sendo ele o primeiro a ter afirmado em sua obra Da natureza do homem que o fim supremo seria viver de acordo com a natureza, o que corresponde ao viver sob os ditames da virtude, pois o caminho que nos leva à natureza só pode compreender a virtude.49 Ainda, pode-se destacar que o viver, segundo a virtude de Zenão, corresponde em Crisipo a um viver marcado pela influência dos eventos da natureza, ao mesmo tempo em que a 48 49 ILDEFONSE, op. cit., p. 96. Cf. D.L., VII, 87. 27 natureza individual de cada um de nós corresponde à natureza Universal, como atesta Diógenes Laércio: Por isso o fim supremo pode ser definido como viver segundo a natureza, ou, em outras palavras, de acordo com nossa própria natureza e com a natureza do universo, uma vida em que nos abstemos de todas as ações proibidas pela lei comum a todos, idêntica à reta razão difundida por todo o universo e idêntica ao próprio Zeus, guia e comandante de tudo que existe. E nisso consiste a excelência do homem feliz, e consiste o curso suave da vida, quando todas as ações praticadas promovem a harmonia entre o espírito existente em cada um de nós e a vontade do ordenador do universo 50 [...]. É importante ressaltar que o viver em conformidade com a natureza não remete a uma exigência que pretende unir partes separadas entre si. A natureza não impõe uma ordem na qual a conduta precisa e deve se adequar, mas pelo contrário, existe nessa fórmula uma espécie de acordo, o agente livre tende a se conformar à natureza, entendida aqui como razão. Esse “pacto” pode ser compreendido como um consentimento do homem livre à sua própria razão, bem como à razão Universal de forma a harmonizar o viver em relação a essa mesma razão. Para melhor encaminhar os seres vivos em direção à conduta de acordo com a natureza, ela própria acrescentou aos seres vivos o impulso (hormé) – um primeiro instinto que auxiliasse no comportamento rumo ao viver de acordo com tudo aquilo que lhe fosse útil e necessário. Desta feita, nos animais o impulso é o regulador do comportamento que corresponde à sua vivência em concordância com a natureza. Por outro lado, foi dada ao homem, além do impulso, a razão, uma forma mais sutil e elaborada que lhe permite guiar-se desse modo mais “conforme”. O trabalho da razão é moldar, ajustar de forma mais precisa o impulso, no homem viver de acordo com a natureza identifica-se com um viver aos moldes da razão, que é a artesão da própria natureza.51 Dessa forma, a ética constrói sua morada especificamente a partir da teoria do impulso, de modo que em cada ser vivo habita primeiramente o impulso ou a tendência de sua própria conservação. Conservar-se a si mesmo tem o sentido de apropriação de seu ser e das coisas que podem concorrer em favor da sua própria conservação, repelindo o que lhe é contrário e buscando aquilo que for conforme sua essência. De suma importância para a concepção ética estoica, a característica 50 51 D.L., VII, 88. CÍCERO, De finibus. IV, 30. 28 fundamental de conservar a si mesmo é denominada pelos estoicos de oikeíosis52 – significando aprovação ou mesmo atração e no latim foi traduzida por conciliatio. Então viver segundo a razão é viver a partir da dinâmica da oikeíosis, apropriandose plenamente de tudo aquilo que lhe possa assegurar a sua conservação. Contudo, dado que o homem é um ser racional e não um mero vivente, viver de acordo com a razão implica tornar sua vivência um conciliar-se com os princípios da razão de forma a conservar-se. Afirma Diógenes Laércio sobre o impulso: Os estoicos dizem que o primeiro impulso do ser vivo é o da sobrevivência, que lhe foi dado desde o início pela natureza. No primeiro livro de sua obra Dos Fins, Crisipo afirma que o primeiro bem possuído por cada ser vivo é a sua própria constituição física e a consciência da mesma. [...] Somos então compelidos a dizer que a natureza constituindo o ser vivo, fê-lo caro a si mesmo, pois assim ele repele tudo que lhe é prejudicial, e acolhe tudo que 53 lhe é útil e afim [...]. Contudo, recai sobre a escolha do que for preferível (proegménon) ou prejudicial (apoproegménon) um valor (axía) que se relaciona às nossas preferências. O valor de determinada coisa está diretamente conectado à sua conformidade ou não à natureza. Nesse sentido, tendo o homem compreendido a noção de escolher ou rejeitar, o procedimento seguinte é tornar essa atitude um hábito rigoroso em toda sua conduta como forma de buscar a harmonia com a natureza. É a harmonia com a natureza que irá culminar a origem daquilo que os estoicos denominaram de Summum Bonum (o soberano bem). Trata-se de aprender a viver em harmonia com a natureza, visando ao pleno alcance da felicidade que tem como objetivo a virtude, de fato “a virtude é o bem supremo, aliás, é o único bem [...]”.54 De um modo geral, o bem pela via estoica pode ser denominado como aquilo que é útil, ou aquilo por meio do qual se possa extrair alguma valia, por exemplo, uma ação nobre – “[...] o bem é aquilo de que advém alguma utilidade, e com maior propriedade pode-se dizer que é idêntico ao útil ou não se distingue dele 52 O termo deriva de oíkos, casa ou moradia. O significado metafórico pontuado pelos estoicos procurar ressaltar o caráter daquilo que nos é próprio, nossa morada mais íntima, nosso lugar no mundo e que se refere a primeira e primariamente ao nosso corpo. Daí o sentido mais extenso, que enfatiza uma predisposição natural que todos os seres vivos têm em relação à sua existência, à manutenção da vida [...]. OLIVEIRA, Luizir de. A arte de cuidar de si. In: CARVALHO, Helder B. A de, CARVALHO, M. C. M. (Org.). Temas de Ética e Epistemologia. Teresina: EDUFPI, 2011, p. 47. 53 D.L., VII, 85. 54 LARA, Tiago Adão. A filosofia nas suas origens gregas. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1989, p. 183. 29 [...]”.55 Nesse contexto, o útil não recorre a um sentido de valor técnico, mas se relaciona com um ideal do decurso da vida em solidariedade à physis estoica. De igual modo a Stoa preconiza os aspectos que devem reger sua moral: as ações corretas, chamadas de katôrthomata56, pois o modo como a vida deve ser conduzida não pode ser de uma forma qualquer, mas deve ser regulada de uma forma equilibrada e harmoniosa. Nesse sentido, as ações do sábio devem ser niveladas em comparação à arte do ator e da dança, sendo que a arte de atuar deve ser desenvolvida dentro de um roteiro. Do mesmo modo, o desempenho do dançarino também se inscreve dentro de uma coreografia, delimitando quais ações e movimentos devem ser executados. Da mesma forma, a vida do sábio deve ser pautada por ações corretas. Contudo, diferentemente da arte de atuar e dançar, o katôrthoma tem em si todos os elementos que coadunam com a virtude, pois por mais precisa que seja a atuação do ator e do bailarino ainda assim não correspondem a uma excelência da arte a qual se destinam. Dessa forma, a moral estoica se lança no âmbito da ação correta, do katôrthoma, de modo que ela não reconhece níveis ou degraus de proximidade da moral – nesse caso, somos ou não somos virtuosos, pois não há qualquer possibilidade da hipótese de um meio termo. Conforme atesta Plutarco: Assim, como aquele que, no mar, encontrando-se um palmo abaixo da superfície não se sufoca menos do que aquele que mergulha quinhentas braças, da mesma forma aqueles que se aproximam da virtude estão no 57 vício tanto quanto aqueles que dela se encontram distantes [...]. Por esse viés é possível compreender que não existe um acesso à moral de forma nivelada, ou seja, não é possível desenvolver uma moral por etapas, em que o alcance de cada etapa possa ser classificado como um grau menos ou mais virtuoso. Ao contrário, estando próximo ou distante da virtude, todos serão considerados num estado de completo vício, posto afastados da virtude. Certamente, aquele que está na virtude age de forma a vivenciar todas as virtudes, pois não há um meio termo, como já enfatizamos antes. Como ressalta Diógenes Laércio, “os estoicos dizem ainda que as formas de excelência se relacionam estreitamente umas com as outras, e que o possuidor de 55 D.L., VII, 94. Cf. CÍCERO, De finibus. III, 7; 18; De officiis III, 3. 57 De comm. not. X. 56 30 uma delas possui todas [...]”.58 Mas não devemos nos ater apenas à ideia de que, possuindo uma virtude, teremos a companhia de todas as outras. O que garante essa relação é o fato de uma virtude ser consequência da outra, o que abre espaço para aquele que, agindo segundo uma determinada virtude, seja contemplado com as demais. E esse homem virtuoso certamente é o sábio (spoûdaios, sóphos, sapiens), pois é o único capaz de atingir a moralidade perfeita e se assentar no soberano bem. Tendo em vista que a virtude e o soberano bem são uma e a mesma coisa, atingindo uma concomitantemente estará sob a guarda da outra. Como uma consequência necessária dessa concepção de virtude, os estoicos estabelecem os princípios para avaliar os bens e os males, definindo nessa seara aqueles que são considerados os bens morais. Assim é que definem o bem como aquilo que serve para conservar e melhorar o ser, e, pelo contrário, o mal está na ordem daquilo que pode prejudicá-lo e subtraí-lo. Como já destacamos anteriormente, ao explicarmos o princípio do primeiro impulso de conservação do ser, temos então a base para a avaliação dos bens e dos males. Partindo do pressuposto de que todas as coisas serão pautadas a partir do primeiro impulso, temos: tudo aquilo que se manifestar em favor dele será considerado bem; ao seu contrário, será considerado mal. Além disso, sendo o homem regido pelo lógos que habita nele, diferenciando-o das demais coisas, podemos considerar que o verdadeiro bem é certamente aquele que incrementa o lógos. Por conseguinte, o mal é necessariamente o que o prejudica. Assim, temos a definição que os estoicos abraçam como sendo o bem moral, aquele bem que tende a conduzir o homem a realizar tudo que lhe convém, por conseguinte, tornando-o virtuoso e feliz. Aquele que se opuser a esse bem será considerado mau como já anunciamos antes; portanto, o verdadeiro mal conduz o homem ao que não lhe concerne, ou seja, aos maus hábitos e ao vício. Em suma, a escola do Pórtico marca como sendo o bem somente a virtude e o mal somente o vício. Esses bens e males são considerados pela doutrina estoica como os autênticos bens e males morais e assumem respectivamente os valores e desvalores num sentido totalmente absoluto. Apesar de o Pórtico considerar que o único bem seja a virtude e o único mal o vício, identifica-se ainda uma terceira ordem situada entre a virtude e o vício, a 58 D.L., VII, 125. 31 qual agrupa as coisas que podem ou não prejudicar a vida, a saber: os indiferentes 59 (tà adiáphora).60 Decerto, a doutrina estoica se recusa a qualificar os indiferentes em bens e males, uma vez que ambos estão reservados apenas ao que favorece ou prejudica o lógos. Assim, os estoicos separam bem e mal de um lado e os indiferentes de outro, explicitando um dos pontos mais marcantes da sua ética. A esse respeito, vejamos o que diz Diógenes Laércio: [...] Indiferentes são todas as coisas que não beneficiam nem prejudicam – por exemplo: a vida, a saúde, o prazer, a beleza, a força, a riqueza, a boa reputação, a nobreza de nascimento, e seus contrários: a morte, a doença, o sofrimento, a feiura, a debilidade, a pobreza, a mediocridade, o nascimento humilde e similares [...]. Estes, então, não constituem bens, sendo coisas indiferentes e dignas de serem desejadas em sentido relativo, 61 não em sentindo absoluto. Assim, podemos compreender que o valor dado aos indiferentes, depende do julgamento realizado sobre as coisas que se assentam num sentido relativo. Pensar dessa forma é entender que ser rico ou ser pobre, feio ou bonito, não expressa uma condição para a felicidade ou infelicidade, mas está em jogo o julgamento diante daquilo que é indiferente. Por esse viés, o Estoicismo levanta a possibilidade de levar o homem comum a encontrar a felicidade, anunciando que, apesar das crises sociais e políticas, a felicidade é algo suscetível de ser encontrada. Cabe, portanto, que esteja bem demarcada em nós a compreensão de que algumas coisas dependem da nossa vontade e outras não, como bem marca Epicteto: “Das coisas existentes, algumas são encargos nossos; outras não”. 62 Além disso, os estoicos, com vistas a se resguardarem de uma teoria que se enrijecesse num estado de inação, uma vez que, segundo eles, nada além de virtude e vício tem um valor por si mesmo, terminam por constituir uma teoria de valor moral que tem por princípio os valores positivos e negativos em relação aos indiferentes, e que se encontra exposta ao homem comum. 59 Cf. AUBENQUE, Pierre. As filosofias helenísticas: estoicismo, epicurismo e ceticismo. In: CHÂTELET, François. História da filosofia – ideias e doutrinas. A filosofia pagã. Vol. 1. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 177. 60 Cf. D.L. VII, 103; PLUTARCO, De stoic. repug., 31; SEXTO EMPÍRICO, Adv. Math., XI, 59=S.V.F. III, 122). 61 D.L. VII, 102. 62 Encheirídion, 1, 1. Todas as referências ao Manual de Epicteto ao longo do nosso trabalho são desta tradução: DINUCCI, A.; JULIEN; A. Encheirídion de Epicteto. Edição Bilíngue. São Cristóvão: EdiUFS, 2012. 32 Em sentido positivo, estão todas as coisas que figuram em favor da natureza, de modo a garantir, conservar e incrementar a vida, algo como, por exemplo, a saúde, o vigor do corpo e dos membros etc. Os estoicos, assim, denominaram esse positivo segundo a natureza de valor ou estima (axía), e ao seu oposto negativo denominaram de falta de valor ou estima (apaxía).63 Assim, os indiferentes ou mais precisamente os intermediários, pois estão situados entre os bens e os males, passam a corresponder aos valores e desvalores segundo o julgamento realizado. Essa atitude faz esboçar um novo olhar sobre os indiferentes que deixam de ser totalmente indiferentes convergindo para o campo dos valores e desvalores. Então os primeiros serão objetos de preferência ou objetos comuns à natureza e, por conseguinte, os segundos o seu oposto, serão objetos de repulsa ou objetos distintos da natureza. Com isso, formula-se uma segunda distinção, que está ligada precisamente à primeira, entre indiferentes a preferir (proegména64) e os que se devem recusar e não preferir (apoproegména). É por via dos indiferentes que o espaço do campo ético institui-se, ao permitir ao homem a possibilidade da escolha, uma vez que escolher entre bens e males não configura uma ação ética, visto que ninguém seria capaz de preferir os males aos bens. A busca pelas coisas preferíveis revela o âmbito das ações convenientes (kathêkonta65), aquilo que convém, as quais são ações acessíveis ao homem comum. Assim, os estoicos acenam para a possibilidade de uma virtude humana ao lado da virtude inatingível do sábio. Dessa forma, compreender que ao sábio são reservadas as ações realizadas de forma perfeita, correta, na qual preenchem todos os requisitos da virtude (katôrthomata), pois somente ele é capaz de possuir a virtude absoluta e o saber absoluto. Ao homem comum, dada a sua limitação, cabe agir conforme a prudência (phrônesis) e a reflexão racional diante das circunstâncias que se apresentarem em seu cotidiano. O homem comum, guiado pela prudência, é aquele capaz de fazer 63 Cf. ESTOBEU, anthol., II, 83, 10 e 84, 4; D.L., VII, 105 (=S.V.F., III, 124-126). A tradução de proegména por preferível não contempla totalmente o sentido do verbo que indica: estar à frente, presidir. Preferível, portanto, não expressa com exatidão o sentido do poder de escolha, de decisão que os estoicos atribuem àquele que escolhe. Decerto, o peso não está nas coisas a serem escolhidas, mas no agente que decide escolher segundo uma vontade atenta. Cf. GAZOLLA, Rachel. O ofício do filósofo estoico: o duplo registro do discurso da Stoa. São Paulo: Ed. Loyola, 1999, p. 101. 65 Os romanos a traduziram pelo termo officium, dever. 64 33 todo o possível para alcançar o fim conforme a natureza ao qual se propõe. Como poeticamente enfatiza Sêneca “quem aprende a lançar o dardo, compenetra-se bem do alvo a atingir, exercita o braço para lançar com pontaria [...]”.66 O seu mérito não reside em atingir o próprio alvo, mas está na ação que parte da intenção de fazer todo o possível para consegui-lo. Com efeito, a ação do sábio sempre será um katôrthoma, visto que a do homem comum nunca poderá estar acima do kathêkon67. Contudo, depõe contra a virtude estoica aquilo que eles denominaram de doença da alma e que se inscreve fundamentalmente como a fonte de toda a infelicidade, contrária e ameaçadora da virtude: a paixão. Para os estoicos, a paixão é algo que perturba e desorienta o homem, disseminando de igual modo a instabilidade da alma. Os estoicos reduzem os sentimentos e os afetos à paixão, sendo que a mesma não é algo natural, mas como afirma Zenão, a paixão pode ser definida como “[...] um movimento da alma, irracional e contrário à natureza, ou um impulso excessivo”.68 Além disso, testemunha Cícero que a fonte de toda paixão está no excesso: [...] um desfalecimento do espírito inteiro e da razão direita, tão afastada de seus preceitos que não se pode mais governá-la nem reter os pendores da alma. Da mesma forma então que a justa medida acalma os pendores, os faz obedecer à razão direita e conserva os julgamentos refletidos do espírito, do mesmo modo o excesso, que lhe é hostil, suprime toda a sensibilidade da alma ao enervá-la, perturbá-la e excitá-la; e é por isso que 69 ele engendra os sofrimentos, os temores e todas as demais paixões. A felicidade do homem reside efetivamente numa alma sem paixão, uma vez que a alma, estando no estado de agitação, é jogada para longe da razão direita e segura (órthos lógos; recta ratio), perde a harmonia de si próprio e a sua saúde. Segundo o Estoicismo, o nosso corpo está vulnerável às doenças tanto quanto nossa alma. As doenças do corpo e da alma são simplesmente fraquezas. Com efeito, podemos usar o mesmo termo, doenças, tanto para os distúrbios do corpo quanto os da alma. Assim, atesta Diógenes Laércio sobre tais doenças: “da mesma 66 Carta 94, 3. Assim, percebemos que as ações perfeitamente corretas (katorthómata) referem-se especialmente ao sábio, enquanto que as ações “apropriadas” ou razoáveis (kathékonta) dizem respeito e podem ser realizadas pelas pessoas imperfeitas, as quais não são sábias. Cf. GILL, Christopher. A Escola no período imperial romano. In: INWOOD, Brad. Os Estóicos. Tradução Raul Fiker; preparação e revisão técnica Paulo Fernando Tadeu Ferreria. São Paulo: Ed. Odysseus, 2006, pp. 43-44. 68 D.L., VII, 110. 69 CÍCERO, Tusc. disp. IV, 22. 67 34 forma que se fala de algumas enfermidades do corpo, como a gota e o artritismo, também existem enfermidades da alma, como o amor à glória, a busca do prazer e similares”.70 Portanto, tanto o corpo pode sofrer com as enfermidades, como, de igual modo, a alma torna-se vulnerável e pode padecer com as paixões. Uma vez perturbada, a alma se debilita e diminui suas expectativas em relação ao seu serviço, ou seja, perde a capacidade de administrar bem a razão. Por outro lado, as paixões também podem comprometer nosso organismo, pois uma vez tomado pelas paixões, delas surgem as doenças: aborrecimentos, vícios e demais perturbações. A definição que os estoicos aplicam às paixões diverge daquela herdada pela tradição para a qual a paixão era uma espécie de perturbação que os deuses inculcavam no coração dos homens. A tradição concebia a paixão como uma força superior ao homem que lhe toma as forças e o submete, tornando-o vítima e fazendo-o sofrer sem a mínima condição de lutar contra essa força transcendente. Para os estoicos, a paixão é loucura, insensatez, um erro de julgamento, uma opinião irrefletida e falsa realizada pelo homem. Portanto, são os nossos falsos juízos sobre as coisas que nos perturbam. Como bem nota Epicteto: As coisas não inquietam os homens, mas as opiniões sobre as coisas. Por exemplo: a morte nada tem de terrível, ou também a Sócrates teria se afigurado assim, mas é a opinião a respeito da morte – de que ela é terrível – que é terrível! Então, quando se nos apresentarem entraves, ou nos inquietarmos, ou nos afligirmos, jamais consideremos outra coisa a causa, 71 senão nós mesmos – isto é: as nossas próprias opiniões. Destarte, ao constatar que estamos presos, doentes, por conta dos equívocos que cometemos ao assentir irrefletidamente às nossas representações, embasadas no erro e na falsidade dos nossos julgamentos, inclinamo-nos para a ideia de que está ao nosso alcance eliminar as paixões, pois não é mais uma obra dos deuses sobre os homens, mas especificamente uma ação do próprio homem: para os estoicos, reforçamos novamente, todas as paixões têm origem a partir do “juízo e da opinião. Por isso eles as definem mais precisamente, a fim de que se 70 71 D.L., VII, 207. Encheirídion, 5a. 35 compreenda não só quanto elas são viciosas, mas também quanto elas estão em nosso poder”.72 O homem, nesse caso, assume total responsabilidade sobre as paixões – elas dependem da nossa vontade, estão sobre o nosso poder, visto que é dos nossos maus julgamentos que elas procedem. Mostra-se importante compreender que o uso adequado da razão é uma atividade de nossa responsabilidade também. Vale ressaltar que o tema sobre a vontade é de suma importância no pensamento senequiano, o qual assume importância capital no processo da educação do caráter.73 O sábio, caso existisse, viveria num estado de perfeita sintonia com o uso da razão, pois o seu julgamento é feito com sabedoria. Ele é apáthes, insensível, pois não se deixa arrastar pela paixão. De fato, a sabedoria do sábio é viver segundo os pilares da razão e da insensibilidade, “o sábio é quem vive segundo a natureza, isto é, segundo a razão; por consequência, é isento de paixão [...]”.74 Ela é, portanto, a ataraxía estoica: viver longe das paixões, impassível, imune, regado pela felicidade numa verdadeira serenidade intelectual. Contudo, se essa apatia a princípio se apresenta de “fácil” acesso ao sábio, segundo a caracterização que lhe é atribuída, ao homem comum vislumbra-se uma difícil escalada rumo à ascese. A lição é retomada por Epicteto a partir de Crisipo: “para que tu reconheças que não é falsa (pseudé) essa doutrina que propicia o bemestar e a impassibilidade (apátheia) toma todos os meus livros e compreenderás que são verdadeiros e úteis esses princípios que me tornam impassível em acordo com a natureza”.75 O homem comum se deixa levar pela imaginação, perde o controle da situação e não atenta para o verdadeiro perigo. Apaixonado, age como uma criança cujo juízo não se desenvolveu. Os estoicos prescrevem o remédio para corrigir esse erro: a destruição da criança que está no homem, como forma de atingir a razão e evitar os falsos julgamentos. Em suma, a ética estoica é estritamente racional e, por conseguinte, o ideal perseguido pelo sábio é extirpar totalmente as paixões e alcançar a apatia e a autarquia. O sábio deve bastar-se a si mesmo. 72 CÍCERO, Tusc. 4, 7. O tema sobre a vontade será mais bem discutido no capítulo III desta dissertação, que aponta para o aspecto formativo da filosofia senequiana. 74 BRUN, Jean. O estoicismo. Trad. João Amado. Lisboa: Edições 70, 1986, p. 85. 75 ARRIANO, S.V.F., III, [C.e.]144. 73 36 2.2 O Estoicismo Médio Convencionou-se chamar de Estoicismo Médio o período em que figuras como Panécio76 de Rodes (180 – 110 a.C.) e o seu discípulo Possidônio de Apameia (130 – 51 a.C.) deram uma nova direção à escola do Pórtico. Após Crisipo, o objetivo apontado pela escola era a defesa de seus dogmas, fato que levou a uma diminuição do seu prestígio e vigor. Panécio foi o filósofo que renovou a escola e lhe restituiu a admiração e a vitalidade supostamente sucumbida. Para atender a tal renovação, lançou mão de certo ecletismo ao reconduzir o Pórtico ao seu lugar de prestígio. Além disso, propôs-se às releituras de Platão e Aristóteles, acenando para a ideia de que as escolas advindas desses pensadores admitem, igualmente ao Pórtico, a mesma raiz que é Sócrates. Desse modo, modificou certos pontos concernentes aos aspectos da psicologia do antigo Pórtico. No tocante à física, abandonou a ideia da conflagração do universo, uma vez que, para Panécio, não se podia conceber o mundo como um grande ser vivente que nasce, desenvolve-se e depois morre.77 Trata-se de uma modificação necessária à doutrina estoica antiga na visão de Panécio, que defendia a ideia da eternidade do mundo. Outro ponto importante de suas contribuições é o que concerne à ética. Panécio também abrandou alguns pontos que soavam como ásperos aos seus ouvintes. Por isso apontou para uma releitura dos indiferentes afirmando que, para se atingir a felicidade, a virtude apenas não é suficiente, mas é necessário ter a posse de uma boa saúde, dos meios de vida e força. Uma lição que Cícero também manterá, por outra via.78 Em outras palavras, o intento de Panécio não era, contudo, alterar a máxima erigida pela Stoa que afirma que o autêntico bem é a virtude, ou seja, o bem moral. Na verdade, ele pretendia explicitar que, uma vez de posse daquelas coisas, o caminho para a virtude seria mais fácil de ser alcançado. Do contrário, esse caminho 76 Nasceu em Rodes pelo ano de 185 a.C. e de família nobre. Panécio se transfere para Atenas onde passou a ouvir as lições de Antipater e depois se dirigiu a Roma em que conheceu e se tornou amigo de Cipião, juntos viajaram ao Oriente. Decididamente sua ida ao Oriente bem como sua estadia em Roma inclinaram para a sua formação espiritual. Por fim, retornando à cidade de Atenas com a morte de Antipater, Panécio assume a direção do Pórtico em 129 a.C. Cf. REALE, G. História da Filosofia Antiga III. Os sistemas da era helenística. Trad. Marcelo Perine. São Paulo: Ed. Loyola, 1991, p. 365. 77 Essa objeção também é apontada por Boeto de Sídon. Cf. S.V.F., III, [BS]7. 78 Cf. Tusculanas 3.41-2. A adesão de Cícero é à proposta de Epicuro, mas não ficaria muito distante da proposta paneciana. 37 seria obstruído, dificultando o acesso. Nessa esteira, os indiferentes deixam de ser totalmente indiferentes e passam a assumir valores que dizem respeito ao campo dos valores negativos e positivos como já anunciamos neste capítulo. Panécio também direcionou seu total interesse ao estudo dos deveres, mas no âmbito das ações possíveis ao homem comum (kathêkonta) e não necessariamente às ações corretas (katôrthomata) direcionadas ao sábio. Daí compreender o título da sua principal obra, Sobre os deveres, a qual serviu de influência para Cícero ao escrever o De officiis. Por seu turno, criticou a apatia defendida pelos antigos estoicos ao ponto de repudiá-la, consagrando por contrário à alegria de viver e o seu contentamento. Por sua vez, Possidônio79 é quem imprime a continuidade do pensamento de Panécio à escola do Pórtico, mas, ao contrário, não assumiu a liderança com a morte de seu mestre, preferindo ele mesmo abrir sua própria escola em Rodes. Assim, seguindo os passos do seu mestre, corroborou a ideia de que a verdade não se limitava apenas aos dogmas do Pórtico. Todavia, era necessário crer na possibilidade de interação e contribuição dos ensinamentos das outras escolas aos princípios do estoicismo. E, de igual modo reforçou as críticas à psicologia de Crisipo, que, dentre outras coisas, negava haver na alma a existência de um componente que fosse irracional. Nesse caso, a paixão seria apenas um desvio do juízo da razão. 2.3 O Estoicismo Imperial A terceira e última fase do estoicismo é denominada de Estoicismo Imperial e compreende os séculos I e II d. C. De caráter essencialmente romano, essa terceira fase demonstra pouco interesse pela física e pela lógica do antigo estoicismo para, então, se dedicar quase que exclusivamente às reflexões acerca da moral.80 Importante destacar que o estoicismo imperial foi a escola filosófica que mais conquistou adeptos, um maior número tanto de seguidores como de admiradores tanto no período republicano, quanto no período imperial. Do mesmo modo, foi uma escola que se difundiu entre as mais variadas esferas sociais. A exemplo disso, 79 Nascido em Apameia na Síria entre os anos de 130 e 140 a.C. Iniciou seus estudos em Atenas a partir da voz de seu mestre Panécio. 80 Cf. PADOVANI, A. Umberto e CASTAGNOLA, Luís. História da filosofia, 11 ed., São Paulo: Melhoramentos, 1977, p. 159. 38 podemos citar três de seus representantes: Sêneca que foi educador da corte romana e preceptor de Nero, o antigo escravo alforriado Epicteto da cidade de Épiros e, numa outra esfera social, o imperador Marco Aurélio. Certamente, foi por intermédio dos esforços de Panécio81 e Possidônio que o estoicismo foi introduzido em Roma, haja vista que os romanos eram homens de ação e buscavam encontrar uma doutrina que fosse capaz de atender às suas aspirações e solidária ao seu espírito utilitário. Esse vínculo foi possível devido a certas características do estoicismo as quais se relacionaram aos preceitos romanos. Como reforça Pereira Melo, “o apreço do estoicismo pelo dever, autodisciplina e sujeição à ordem natural das coisas vinha ao encontro das antigas virtudes romanas e dos seus hábitos conservadores, bem como da sua insistência nas obrigações cívicas”.82 Ademais, em decorrência da decadência da República, o cidadão romano viu-se despido da sua liberdade e com ela todas as suas atividades públicas foram se extinguindo. Por consequência, aqueles que se sentiam mais sensíveis às mudanças foram impulsionados a buscar os estudos em geral e a filosofia estoica de modo particular. De fato, Roma foi obrigada a reestruturar o seu cenário político com a queda da República e a implantação do Império. Assim, boa parte das instituições foi destituída e o poder ficou centralizado sob a coroa do imperador. Contudo, a estabilidade do Império romano viveu momentos de desequilíbrio após passar por um período de grande esplendor. Os sintomas de decadência eram visíveis nas esferas “socioeconômica e política, com a resultante perda de sentido existencial”.83 O cenário que se apresentava no Império refletia, de maneira contundente, a fragilidade exposta no campo existencial, esvaziada de valores e sem um norte que pudesse orientar a conduta da sociedade romana. Assim atestam as palavras de Campos a respeito desse quadro: 81 Acolhido em Roma no círculo dos Cipiões, frequentando assiduamente os romanos mais poderosos, influentes e esclarecidos do momento, ele compreendeu a novidade e a grandeza da romanidade, foi fascinado e, em certa medida, também, positivamente condicionado por ela. Os seus predecessores viram na Grécia, prioritariamente, o que no âmbito do Estado e da política estava se destruindo e se perdendo; Panécio viu em Roma, ao contrário, o que nesse âmbito se estava construindo e se afirmava sempre mais. E assim ele recuperou o forte sentido político, que já fora o traço distintivo dos gregos da era clássica, embebeu-se do forte sentido prático que constituía a cifra característica da romanidade [...]. REALE, G. História da Filosofia Antiga III. Os sistemas da era helenística. Trad. Marcelo Perine. São Paulo: Ed. Loyola, 1991, p. 366. 82 PEREIRA MELO, José Joaquim. O sábio senequiano: um educador atemporal. 247 f. tese (Pós-doutorado em História – UNESP- campus Assis). Assis, 2007a, p. 30. 83 LARA, Tiago Adão. A filosofia nas suas origens gregas. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1989, p. 188. 39 [...] uma enorme crise de valores morais, de que os espetáculos do circo são um dos sintomas [...]. A ausência de objetivos superiores para a existência, a ânsia desmedida dos bens materiais, os excessos de toda a natureza (por exemplo, gastronómicos), a obediência exclusiva às paixões de toda a ordem [...] tudo isso fazia da sociedade romana uma sociedade doente, à deriva, presa fácil de charlatões e adivinhos (como os astrólogos) aberta a toda espécie de cultos religiosos que pudessem aos seus 84 aderentes qualquer espécie de salvação. Em face disso, a doutrina estoica se mostrava como um bálsamo para os males da sociedade, uma vez que oferecia orientação à conduta das pessoas, as quais se encontravam sem rumo, à deriva de valores. 85 A filosofia, nesse aspecto, pretende levar o homem a encontrar a solução para os seus problemas práticos, libertando-o das amarras das paixões de forma a conduzi-lo a um estado superior de felicidade. Assim afirma Reale: [...] as características gerais do espírito romano, o qual sentia como verdadeiramente essenciais apenas os problemas práticos e não os puramente teoréticos, junto com as características particulares do momento histórico do qual falamos, permitem-nos facilmente explicara particular 86 inflexão que a problemática de última fase do Pórtico sofreu. Doravante, os filósofos em Roma assumiram a condição de diretores de consciência e extraíram das outras duas fases (Antigo e Médio) do Estoicismo os seus aspectos práticos, uma vez que “o que realmente importava era a adesão voluntária e verdadeira do espírito que buscava o aperfeiçoamento moral”.87 De fato, ser filósofo para os estoicos remete a um viver e morrer segundo os ditames da sua própria doutrina. A tarefa desses filósofos visava fortalecer o homem, com vistas a alcançar a própria autonomia, por conseguinte, preencher o vazio existencial e alcançar afinal a tranquilidade da alma que sozinho não seria capaz, uma vez que as tendências da sociedade o distanciavam desse objetivo. Com efeito, a filosofia cumpria o papel de uma pedagogia e também de uma terapia, tendo como principal função não somente definir os males da alma, mas por 84 CAMPOS, J. A. Segurado e. Introdução. In: SÉNECA, Lúcio Aneu. Cartas a Lucílio. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009, pp. XXVIII-XXIX. Esta será a edição utilizada por nós para as Epístolas de Sêneca. 85 Essa sensação de “estar à deriva” será bem explorada por Sêneca, que utiliza metáforas náuticas que parecem captar muito bem essa sensação de instabilidade, a mesma que se sente ao fazer uma travessia por mares revoltos. Cf. De tranquillitate animi. 86 REALE, G. História da Filosofia Antiga. As escolas da Era Imperial. Trad. Marcelo Perine, Henrique C. de Lima Vaz. São Paulo: Ed. Loyola, 1994, volume IV, p. 65. 87 OLIVEIRA, Luizir de. Sêneca: uma vida dedicada à filosofia. São Paulo: Paulus, 2010, p. 27. 40 outro lado, prover a cura para esses males.88 A filosofia torna-se sinônimo, para o homem romano, de conforto e orientação moral. A rigor, a filosofia balizava nesse homem os caminhos para a sua paz e felicidade, determinando ao mesmo tempo a isenção das atribulações vividas no seu contexto social. No âmbito do estoicismo romano, Sêneca é uma das vozes de maior expressividade, mas não podemos deixar de enfatizar a importância de pensadores como Musônio Rufo, Epicteto e o imperador Marco Aurélio. Notadamente, nesses quatro pensadores se observa a marca registrada de uma moral prática, sem descuidar, no entanto, da preocupação com outras questões filosóficas. Contudo, neste trabalho abordaremos apenas o pensamento do filósofo romano Sêneca, dada a dimensão do nosso tema e para não fugir do escopo de nossa pesquisa, a qual versa sobre o pensamento filosófico senequiano. 2.4 Sêneca e a constituição do seu pensamento filosófico Sêneca é, portanto, um seguidor da Stoa. Contudo, análogo aos filósofos do Estoicismo Médio, foi herdeiro de várias influências filosóficas. Além do próprio Estoicismo, o seu pensamento recebeu contribuições do epicurismo, dos pitagóricos, cínicos e até mesmo de algumas ideias de Platão, o que lhe rendeu, segundo alguns comentadores, a denominação de um filósofo eclético. Contudo, talvez devêssemos tomar essas asserções com certa reserva. Esse “ecletismo” aparentemente pelo próprio Sêneca deve ser entendido, pensamos, como uma liberdade de diálogo com outras vozes: “Quando digo nossa, não me atenho a nenhum princípio estoico: também tenho o direito de dar opinião”.89 Do mesmo modo, segue reafirmando que “assim seguirei o parecer de um, a outro mandarei explicitar sua opinião, e talvez após ouvir todas, sem desaprovar nenhuma, direi: Ainda sou dessa opinião”.90 Contudo, Sêneca não é simplesmente um filósofo eclético, embora esteja aberto a escutar diferentes vozes oriundas de outras fontes, essas influências certamente irão se alinhar aos fundamentos e as bases estoicas. 88 Cf. CAMPOS, J. A. Segurado e. Introdução. In: SÉNECA, Lúcio Aneu. Cartas a Lucílio. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009, p.XXX. 89 SÊNECA. Da vida feliz, III. 90 Ibidem, III. 41 Lúcio Aneu Sêneca91 tem como berço a cidade de Córdoba, na Espanha, contudo é considerado romano por adoção. Há contradições sobre seu ano de nascimento, mas é provável que tenha nascido no ano de 4 d.C. Em Roma ele estudou gramática, retórica e filosofia. Porém, o seu maior interesse ficou a cargo dos estudos em filosofia, a qual julgava necessária e indispensável para direcionar a vida interior, uma vez que demonstrava com total ardor o interesse pela vida moral. O filósofo cordovês pode ser denominado como um homem ativo, pois sempre se deteve a participar avidamente dos negócios da Roma de seu tempo, o que lhe permitiu alçar os mais altos postos da administração romana, chegando à magistratura e ao Senado. Ao retornar do Egito,92 tornar-se questor e nesse mesmo período suas qualidades como orador são apontadas como marcantes. Posteriormente alcança o Senado. Sêneca também foi vítima de várias intrigas palacianas e numa delas quase foi sentenciado à morte por Calígula. Contudo, em decorrência dessas mesmas intrigas, em 41 d.C., foi condenado ao exílio na ilha de Córsega por Cláudio em consequência das manobras de sua esposa, Messalina. Seu retorno é marcado no ano de 49 d.C., a convite de Agripina, mãe do futuro Imperador Nero.93 Sêneca é também herdeiro de uma sólida formação, tendo como mestre, Sócion de Alexandria, que lhe apresentou o pitagorismo. Desses ensinamentos o filósofo passou a viver de maneira frugal, abstendo-se também da carne e praticando o jejum. Os ensinamentos de Sócion, que têm como característica uma espiritualidade muito marcante, permaneceram presentes durante toda a sua vida. Ademais, como já assinalamos, outros três mestres conduziram Sêneca em sua formação: Papírio Fabiano, o cínico Demétrio e o estoico Átalo. Este último recebeu maior admiração por parte de Sêneca em relação aos seus ensinamentos. É o que deixa transparecer o texto da Carta 108, 13, obra que é direcionada ao seu discípulo Lucílio: “[...] quando ouvia Átalo a discursar contra os vícios, os erros e os males da vida, muitas vezes me senti compadecido do gênero humano; a pessoa de 91 Sua mãe chamava-se Hélvia e Sêneca ainda criança foi levado para Roma, juntamente com seus dois irmãos Novato e Mela, pelo seu pai, o Retórico. 92 De saúde frágil Sêneca em 25 d.C. busca tratar-se, assim viaja para o Egito, retornando para Roma em aproximadamente 31 d.C. 93 Lúcio Domicio Enobarbo (37 a.C. - 68 a.C.), imperador romano no período de 54 a.C. a 68 a.C. Foi declarado pelo Senado como inimigo público em virtude de seus desmandos, crueldades e assassinatos, além de incendiar Roma. Notando não ter mais sustentação para governar, cometeu suicídio. 42 Átalo considerava-a sublime, superior ao que de mais alto o homem pode atingir”. Assim, para arrematar as considerações louváveis ao mestre, Sêneca afirma que: [...] nos tempos em que frequentava a sua escola (onde era sempre o primeiro a chegar e o último a sair); até mesmo durante os passeios do mestre eu o aliciava à discussão de um ou outro problema, aproveitando-me do facto de ele estar sempre pronto a ir ao encontro dos interesses dos 94 seus discípulos. Do mestre Átalo, o filósofo cordovês aprendeu o quão desnecessários são o acúmulo de riquezas e a vida pautada no luxo. Por isso, o seu viver desapegado de todas as coisas materiais, mesmo tendo no seu entorno fortunas e outros bens materiais. Assim, discorre Sêneca sobre a fortuna, anunciando que o homem virtuoso é aquele que não se deixa seduzir pelos bens materiais. Dessa forma, Sêneca diferencia o homem virtuoso daquele apegado às riquezas: [...] Se as riquezas me abandonarem, nada me tirarão a não ser elas mesmas; tu porém, se elas forem afastadas de ti, ficarás espantado e te parecerá que ficaste abandonado por ti mesmo; para mim elas têm algum valor, para ti são de máxima importância; para terminar, as riquezas são 95 minhas e tu és das riquezas. As ideias de Platão chegaram ao filósofo romano por intermédio de Papírio Fabiano. Contudo, os ensinamentos que levaram Sêneca a se converter à filosofia são de responsabilidade de Sócion e Átalo. E, como supracitado, na Carta 108, Sêneca expõe a sua fase de aprendizagem, descrevendo sobre os ensinamentos estoicos, os quais eram absorvidos com todo ânimo. Com eles aprendemos que para galgar os degraus em direção à própria formação e assim atingir a reputação de mestre, antes de tudo deve-se recorrer a um mestre assumindo o seu estágio discipular: “Não poderá ser mestre na escrita e leitura sem ter sido antes aluno. Quanto menos na vida!”. 96 A produção filosófica de Sêneca se estende por uma vasta obra 97: consolações, cartas, tragédias e diálogos filosóficos nos quais empreendeu a 94 Carta 108, 3. SÊNECA. Da vida feliz, XXII. 96 MARCO AURÉLIO. Meditações, XI, 29. 97 Dentre as inúmeras obras de Sêneca, temos: As consolações - a sua mãe Helvia (Ad Helvia matrem de consolatione); a Márcia (Ad Marciam de consolatione) e a terceira é endereçada a Políbio (Ad Polybium de consolatione). Temos ainda os tratados - Sobrea providência (De prouidentia), a brevidade da vida (De breuitate uitae), Sobre a clemência (De clementia), Sobre a vida feliz (De uita 95 43 divulgação do estoicismo. Dentre suas obras, as Cartas a Lucílio98 (Epistulae Morales ad Lucilium) escritas entre os anos de 62 a 65 d.C., são consideradas uma de suas mais importantes produções filosóficas. Nesse sentido, são inúmeras as justificativas que levam a crer tal importância. Dentre elas, podemos citar, por exemplo, o fato de as cartas se situarem no rol das suas últimas produções e notadamente expor o pensamento de um Sêneca na sua fase mais madura. As reflexões encontradas nas Cartas a Lucílio emergem dos mais variados problemas, todos tipicamente de caráter ético e prático, “isto é, de constituírem uma análise de situações concretas e de apreciações de grande agudeza sobre a natureza e o comportamento humano”.99 Além disso, deve-se ressaltar que as Cartas100 referem-se a um tipo de correspondência entre dois amigos em cujo bojo desenvolve-se uma gama de questões de cunho filosófico. Evidentemente, não se pode destacar como incomum que nelas se encontrem os mais variados exemplos, casos da vida pessoal dos dois amigos, ou mesmo, ainda, da vida em Roma. Contudo, o desafio de Sêneca é poder converter o amigo Lucílio às verdades estoicas para que em seguida o discípulo assuma em sua vida os princípios da Stoa. Nomeadamente, as Cartas são textos que assumem para Lucílio e para as demais pessoas, inclusive para Sêneca, uma espécie de direcionamento espiritual, uma vez que o filósofo “assume o papel de diretor de consciência de Lucílio, mas beata), Sobre o ócio (De otio), Sobre a tranquilidade do espírito (De animi), Sobre a firmeza do sábio (De costantia sapientis), Sobre o ócio (De oito), Sobre a prática do bem (De beneficiis), que possivelmente foram escritas entre os anos de 40 a 63 e, o tratado compreendido de sete livros as Questões naturais (Naturales quaestionis), dentre outras. 98 As 124 cartas são dirigidas ao seu amigo Gaio Lucílio Júnior, natural de Pompeios na Campânia. Lucílio fazia parte da classe dos cavaleiros, título que lhe foi concedido graças ao zelo prestado em suas atividades e, dado ao seu talento tornou-se destaque na sociedade romana. Por seu turno, Sêneca aconselha o discípulo a seguir seu exemplo: se afastar dos compromissos sociais e políticos para se dedicar de tempo integral à filosofia e, mesmo opondo-se à exortação do mestre, Lucílio termina por se render aos conselhos do mestre. As cartas escritas e dirigidas a Lucílio permeiam cronologicamente ao período em que o discípulo desempenhava o cargo de procurador na Sicília. As virtudes morais de Lucílio sempre foram motivos de elogio do seu mestre, uma vez que o momento histórico entre o principado de Calígula e de Cláudio eram tempos suscetíveis de corrupção e baixeza moral. Com efeito, Sêneca sempre foi exigente na escolha de seus discípulos, aceitando apenas aqueles em que reconhecesse uma vocação filosófica inata. Cf. CAMPOS, J. A. Segurado e. Introdução. In: SÉNECA, Lúcio Aneu. Cartas a Lucílio. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009, pp. VI-VIII. 99 Ibidem, p. V. 100 De fato, outras cartas também foram escritas por Sêneca a diversos outros destinatários, infelizmente todas se perderam. Há indícios de uma coleção de cartas trocadas entre Sêneca e o apóstolo Paulo. Contudo, há que se afirmar que a crítica aponta como apócrifas tais cartas. Cf. CAMPOS, J. A. Segurado . Introdução. In: SÉNECA, Lúcio Aneu. Cartas a Lucílio. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009, p. XI. Também Cf. ULLMANN, Reinholdo Aloysio. O estoicismo romano. Sêneca, Epicteto, Marco Aurélio. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996, p. 14. 44 aparece também como guia de sua própria consciência”.101 Desse modo, as Cartas ultrapassam o objetivo meramente teórico, alcançando o aspecto mesmo de uma forma de exercício de meditação proposto por Sêneca, bem como se traduzem, do mesmo modo, numa função moralizante, “[...] cada carta é uma exortação a que o destinatário adote como sua esta ou aquela ideia, este ou aquele princípio, se comporte em determinada situação concreta deste ou daquele modo”.102 É hábito de o filósofo romano tomar como exemplo um fato da natureza para em seguida elaborar o seu contexto teórico, como bem explica no início da Carta 91 em que relata o terrível incêndio ocorrido na terra natal de um amigo que o afligira sobremaneira. Dessa feita, partindo, primeiramente, de um fato concreto, Sêneca expõe em seguida o seu argumento teórico, aderindo à tese estoica sobre o bem e o mal, por exemplo, “as calamidades naturais não são em si mesmas males nem bens, pois o único mal e o único bem são o mal e bem morais, e tudo o mais é indiferente”.103 Assim, didaticamente partindo de um caso concreto, Sêneca conduz o seu discípulo aos ensinamentos sobre o bem e o mal, de forma que a partir de então saiba agir adequadamente diante das circunstâncias. Isso confirma que, em Sêneca, “a teoria lhe interessou apenas na medida em que era suscetível de aplicação, em que podia ser interiorizada e moldar de forma indelével a conduta humana”.104 O ensino de Sêneca não é dado a um corpus de conteúdo sistematicamente elaborado, isto é, determinado por um currículo fechado. Ao contrário, os temas são reflexos das sugestões do discípulo ou de algum outro motivo que leve ao tema proposto e, como já afirmamos, os temas estão ligados à realidade. Por conseguinte, a avaliação sobre o discípulo torna-se mais significativa, uma vez que Sêneca lança os temas e as questões de forma dinâmica, carta por carta, e desse modo, o progresso de Lucílio pode ser mais facilmente acompanhado: “[...] fazendo o ponto da situação, insistindo nos tópicos em que aquele revela maiores dificuldades, criticando-o quando fraqueja nas suas convicções ou se deixa 101 OLIVEIRA, Luizir de. Sêneca: uma vida dedicada à filosofia. São Paulo: Paulus, 2010, p. 92. CAMPOS, J. A. Segurado e. Introdução. In: SÉNECA, Lúcio Aneu. Cartas a Lucílio. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009, p. XV. 103 Ibidem, p. XIV. 104 Ibidem, p. XIII. 102 45 momentaneamente seduzir por falsas opiniões”,105 como ainda reconhece quando o discípulo dá-lhe demonstrações do seu avanço de modo a progredir. Diante desse processo, os novos temas surgirão conforme o progresso do discípulo, de forma que, a teoria será sempre balizada a partir dos mais variados eventos vivenciados pelo filósofo e seu discípulo. Nesses termos, tem-se a configuração de um esquema que notadamente se constitui da passagem de um contexto concreto para o campo das reflexões. Certamente, o contexto prático que aflora em todo pensamento senequiano é fruto de sua filosofia. Sêneca via na filosofia a arte de viver e pela qual também se deveria morrer. Portanto, sua filosofia compreende o homem inserido no dia a dia, concreto, e para tanto deve “[...] determinar-lhe a conduta prática, reger a atividade interior e exterior do ser humano, conformando-o com a verdade”.106 A filosofia senequiana não é fruto de reflexões abstratas, mas tem como base um contexto real,107 e pode ser entendida como produto de uma série de acontecimentos vivenciados pelo filósofo, de uma luta praticada diariamente contra os infortúnios e as adversidades da vida, bem como contra o seu maior inimigo, arquirrival – suas fraquezas. A batalha do filósofo contra o mundo e contra si mesmo era uma constante, tão intensa que Sêneca passa a compreender a filosofia “como uma militia e o filósofo como um soldado sempre em pé de guerra”.108 O filósofo também admite que a vida de todos os outros homens seja palco de lutas e batalhas constantes, mas, a maioria se deixa vencer pelas ideias concebidas erroneamente e pelos vícios, entregando-se antes mesmo de iniciar o confronto. Assim, Sêneca elege como arma nessa luta diária a filosofia, a qual toma como escudo e que também oferece ao seu discípulo: “Acima de tudo, porém refugia-te na filosofia: ela te protegerá no seu seio, neste templo sagrado viverás seguro ou, pelo menos, mais seguro”.109 105 Ibidem, p. XIV. ULLMANN, Reinholdo Aloysio. O estoicismo romano. Sêneca, Epicteto, Marco Aurélio. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996, p. 10. 107 Com a experiência adquirida, dada a diversificada e acidentada vida que levara, Sêneca encontra razões e argumentos para questionar, analisar e compreender a debilidade, a insegurança, as misérias, a potencialidades e as grandezas da condição humana. Daí sua produção filosófica não fundamentar-se em abstrações, mas ser um trabalho consciente de interpretação sensível da história do homem – centro de sua obra. RAIJ, C. F. M. van. As cartas Consolatórias de Sêneca. In: Cartas Consolatórias. Apresentação de Joaquim Brasil Fontes. Campinas-SP: Pontes, 1992, 17. 108 CAMPOS, J. A. Segurado e, op. cit., p. XXII. 109 Carta 103, 4. 106 46 Sendo assim, o filósofo romano ascena para um projeto que tem como ponto basilar a vivência da filosofia, uma vez que de nada serviria obter conhecimento sobre o bem supremo, a partir dos diversos filósofos, por exemplo, sem, no entanto, praticarmos exteriorizando pelas nossas ações o conhecimento que fora adquirido. Do contrário, se procedermos de modo diferente, esse conhecimento não terá nenhuma validade e se tornará notadamente um saber estéril, totalmente improdutivo. Em face disso, a filosofia pode ser compreendida como uma prática exaustiva, austera que pode conduzir o homem, se não para a felicidade no seu sentido vulgar, de uma vida arraigada nos valores materiais, ao menos, em outros termos, para a segurança de uma forma superior de felicidade: “talvez devêssemos antes dizer beatitude (uita beata), que se aproxima do ideal perseguido pelos místicos orientais ou mesmo por certos pensadores critãos menos ortodoxos”.110 A filosofia proposta por Sêneca jamais se furta de compreender o homem, numa dada situação concreta, inserido nas suas múltiplas relações sociais e políticas. Logo, sua filosofia assegura ao homem um aporte concreto que serve de orientação para guiá-lo por todos os momentos da vida. Ela é uma espécie de apoio que está à mão, uma “técnica” útil para enfrentar todas as intempéries da existência. Todavia, trata-se de uma prática que se deve buscar de forma pungente e exaustiva, com a máxima urgência. É assim que se expressa Campos em relação à filosofia expressa nas Cartas: “[...] a filosofia contida nas Epistulae tem um cunho de urgência vital [...], se apresenta como uma tarefa ingente e extremamente séria, como uma acto de que depende todo o sentido da sua existência”.111 Desse modo, passados em revista alguns dos aspectos do pensamento senequiano, ilustrados, sobretudo, nas Cartas a Lucílio, nosso intento agora é o de aprofundar essa investigação no pensamento do filósofo romano no que diz respeito ao exercício da sua filosofia, marcado nomeadamente na Consolação a Márcia. É o que discurtiremos a seguir. 110 CAMPOS, J. A. Segurado e. Introdução. In: SÉNECA, Lúcio Aneu. Cartas a Lucílio. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009, p. XXIII. 111 Ibidem, pp. XXII-XXIII. 47 2.4.1 O pensamento filósofico senequiano no contexto da Consolação a Márcia Sêneca escreveu três consolações, a primeira delas intitulada Consolação a Márcia (Ad Marciam de consolatione) inscreve-se como uma de suas primeiras obras e teria sido escrita entre os anos de 37 a 41 d.C. Por certo, as outras duas consolações foram escritas durante os anos de exílio. A primeira é dirigida a sua mãe Hélvia (Ad Helvia matrem de consolatione) no intuito de consolá-la pela perda momentânea do filho - o próprio Sêneca; a segunda é endereçada a Políbio (Ad Polybium de consolatione), liberto e auxiliar de Cláudio. Todas essas consolações estão imbuídas de um profundo contexto filósofico-moralista e demonstram um panorama sobre a vivência da filosofia senequiana. A Consolação a Márcia, como indica o título, é endereçada a Márcia, uma senhora da aristocracia romana que fora acometida por diversos reveses, tal como as tantas desventuras com a morte do pai, um importante historiador, Aulo Cremúcio Cordo, e, em seguida, a dor da perda de seu filho Metílio, um jovem que, segundo Sêneca, foi coroado de um caráter exemplar.112 Em síntese, a Consolação a Márcia traz as marcas dos vários ensinamentos que Sêneca recebeu no campo filosófico, em especial do seu mestre Átalo. No decurso do texto, podem ser encontrados aspectos importantes da doutrina estoica como a distinção entre as coisas que são verdadeiras e as ilusórias, sobre os valores autênticos, sobre a instabilidade da sorte e sobre a necessidade que o homem tem de capacitar sua alma com fins ao seu fortalecimento.113 Assim, o propósito de Sêneca ao dirigir o seu consolo a Márcia, é combater a sua dor, levando alívio para o seu sofrimento, convicto de que a sua alma carece de fortalecimento. O filósofo empreende uma ação que vai ao encontro da dor de Márcia, na tentativa de que ela reconheça que quanto mais se aprofundar nesse sentimento, maior será o seu sofrimento, visto que seu coração encontra-se dilacerado, infligindo-lhe uma dor que já abriga o lugar do seu próprio filho. Contudo, mesmo diante dos acontecimentos que assolam o coração de Márcia, Sêneca reconhece o quão forte é o seu espírito, pois já demonstrara, ao 112 A índole de Mitílio pode ser medida pelas palavras de Sêneca: jovem prudente, piedoso, excelente marido, pai e solicito de todos os seus deveres. Cf. SÊNECA. Consolação a Márcia, XII, 3. 113 Cf. OLIVEIRA, Luizir de. Sêneca: uma vida dedicada à filosofia. São Paulo: Paulus, 2010, p. 62. 48 lutar em favor da vida de seu pai, Aulo Cremúcio Cordo, e mesmo após este sucumbir, foi capaz de trazer à tona sua memória pela divulgação dos seus escritos. Desse modo, Sêneca consegue esboçar duas imagens refletidas em Márcia: a primeira corresponde a uma mulher forte que atinge o estágio de superação pela dor da perda do pai, inclusive publicando os seus escritos; a segunda demonstra uma mulher que sofre de maneira aguda, frágil e que resvala nos descuidos diante da sua dor. Assim, o caminho escolhido por Sêneca para sua consolação abriga, primeiramente, a alusão à morte do pai, Cremúcio, fazendo valer-se desse procedimento como um desvio ao tema da morte de Metílio em primeiro plano. O filósofo procede como que abrindo uma ferida antiga já cicatrizada e curada para então confrontar à sua nova chaga, a morte do seu filho: “trago-te à lembrança os antigos sofrimentos e, para que saibas que também esta tua ferida igualmente pode ser curada, mostro-te a cicatriz de uma ferida igualmente grande”.114 Essa dor que parece incurável diante dos olhos de Márcia já perdura por longos três anos, a qual nada ainda pode conter, pois toda as tentativas fracassaram: do diálogo com os amigos ao consolo dos parentes, tudo fora inútil. E, nem mesmo o tempo que, com sua força é capaz de tragar as maiores das aflições, foi capaz de arrebatar a dor, a qual continuou pulsante. Nesse sentido, Sêneca propõe a necessidade de extinguir todos os sentimentos de tristeza vividos por Márcia, tarefa que seria mais sutil caso tivesse acontecido no início de suas dores: Assim como todos os vícios se radicam profundamente, a não ser que sejam sufocados enquanto brotam, assim também estes sentimentos infelizes e miseráveis e que se enfurecem contra si mesmos se alimentam da última amargura e a dor de um espírito infeliz torna-se prazer vicioso. Daí eu ter desejado empreender esta tua cura nos primeiros momentos: o mal ainda nascente teria sido dominado com um remédio mais suave; dever-se115 á lutar mais energicamente contra males inveterados. O filósofo ainda afirma que a cura será empreendida na mesma voracidade em que se encontra a dor, ou seja, de maneira violenta: Pois também é fácil a cura das feridas enquanto estão frescas de sangue; então são cauterizadas e reduzidas profundamente e recebem os dedos dos que as examinam, quando contaminadas e transformadas em chagas. 114 115 SÊNECA. Consolação a Márcia, I, 5. I, 7. 49 Não posso, agora, tratar com complacência nem suavemente tão cruel dor: 116 é preciso violentá-la. A consolação exprime sobremaneira uma variedade de exemplos que ressaltam a conduta de homens e mulheres que foram lançados em situação semelhante, e que, no entanto, souberam suportar suas agruras com vigor, demonstrando uma inspiração de extrema fortaleza de espírito. Nesse contexto de sofrimento, Sêneca, numa atitude que lhe será cara ao longo de toda sua obra, sai em busca de exemplos inspiradores, e traz à lembrança, de Márcia e de todos os seus leitores, duas ilustrações, duas mulheres que Sêneca apresenta à Márcia, e que, de igual maneira, foram subtraídas de seus filhos e lançadas ao sofrimento. A primeira delas é Otávia, irmã do imperador Augusto, que perdera o seu filho Marcelo e se encontra enlutada chorando a morte do seu ente querido, entregue a uma dor vertiginosa, pois jamais encontrou forças para se libertar da tristeza. Esse exemplo faz referência ao símbolo da revolta. A segunda é Lívia, esposa de Augusto, que mesmo com a perda do filho Druso, um jovem líder que tinha todos os atributos para ser um grande imperador, soube administrar sua dor e não desprezou os vivos, pois sempre foi assídua em todas as homenagens realizadas em prol da memória de seu filho. Com isso, Júlia representa a aceitação. Assim, como que explicitando possíveis modos de vida diante das mesmas circustâncias de dor e sofrimento vivenciados por Márcia, cabe-lhe escolher a melhor experiência de vida para romper e livrar-se do seu fardo. Percebe-se, então, que o filósofo busca mostrar também que a dor e a angústia podem ser sentidas por qualquer pessoa. Até os espíritos mais fortes podem ser acometidos por esse sentimento. Contudo, isso tudo é muito natural, adverte o pensador romano, ou seja, que se chore movido pela saudade e a perda dos seus, inclusive até mesmo nos animais podemos perceber essa tristeza. No entanto, o que não pode ser concebido como natural é que esse momento de dor se estenda além da sua normalidade, como no caso de Márcia. Nesse sentido, não se trata mais de algo constituído pela natureza, mas se configura 116 I, 8. 50 como algo do imaginário no homem, que foge aos padrões da natureza, portanto [...] “aquilo que a imaginação acrescenta é mais do que aquilo que a natureza impõe”.117 A finalidade aqui diz respeito ao controle das paixões, uma vez que deixarse subtrair por dores inúteis equivale a se desviar do percurso da natureza. Ademais, o filósofo compreende que a maneira como é feita a avaliação daquilo que acomete o homem é o que lhe prejudica, uma vez que a dimensão do sofrimento que lhe sobrevém está de acordo com o julgamento que dele é feito. Não obstante, a própria natureza já depositou uma força igual em todos os seres, de tal modo que possam suportar aquilo que por ela é imposto. Além disso, os momentos difíceis e de adversidades nos sobrevêm com o intuito mesmo de por à prova a nossa força de espírito, como justifica Sêneca: Considera, ao mesmo tempo, que não é grande coisa mostrar-se forte na prosperidade, quando a vida corre um curso tranquilo, nem é por certo um mar tranquilo e um favorável que revelam a habilidade, para que se ponha à prova o espírito... Portanto, não te abatas; pelo contrário, opõe-te com passo firme e, seja qual for o peso que tenha caído sobre ti, apenas refeita 118 do primeiro susto, resiste [...]. Então, por que se consumir diante dos acontecimentos que são dados por ordem da própria natureza? Se ao menos mediante o pranto, a dor, o sofrimento, as fatalidades pudessem ser vencidos e até mesmo os mortos à vida retornassem! Mas, pelo contrário, tudo se mantém fixo, o destino transcorre impetuosamente imutável e seguindo seus passos, a morte também não se altera. Portanto cabe cessar o pranto e a dor, desvencilhando-se daquilo que é inútil. Com efeito, há um remédio para tudo isso, basta que estejamos sempre vigilantes, assim não seremos atingidos por nada de surpresa, pois se bem recordarmos, temos à nossa volta os inúmeros exemplos que a natureza dispõe incessantemente todos os dias perante os nossos olhos. Do contrário, seremos presas fáceis a toda sorte de angústias e sofrimentos se não estivermos atentos aos males: “É inevitável, pois, que nos abalemos mais, já que somos feridos de surpresa; as desgraças que são previstas bem antes sobrevêm mais fracas”.119 Decerto, os males são comuns a todos, o que se deve ter em mente é a clareza que qualquer um pode ser abatido por eles. Encontramos nas Cartas a 117 VII, 1. V, 5. 119 IX, 2. 118 51 mesma reflexão: “Por isso nós, estoicos, nunca nos devemos deixar apanhar de improviso. O nosso espírito deve prever todas as circunstâncias, deve pensar não no que sucede habitualmente, mas em tudo quando pode vir a suceder”.120 E ainda acrescenta que “no meio da paz nasce a guerra [...] O homem mais moderado não está imune à doença, o mais robusto pode apanhar uma tuberculose [...] o acaso escolhe sempre um atalho inesperado para mostrar toda a sua força aos homens que fazem por esquecer-se dele”.121 Assim nos alerta Sêneca: “Convence-te, pois, de que encontras à mercê de todos os golpes e de que aqueles dardos que feriram os outros se agitaram ao redor de ti”.122 É possível observar que o filósofo prossegue ao longo do texto elencando argumentos ligados diretamente à realidade imediata dos homens com o intuito de fortalecer, por meio dos seus recursos, o espírito abatido de Márcia. O percurso traçado compreende em fazê-la reconhecer o quão frágil é o homem e efêmera123 a vida. Assim, sem se descuidar, o filósofo arremata argumentando sobre a fragilidade que rodeia o homem e suas consequências. Vejamos o que diz Sêneca: O que é o homem? Um vaso que pode quebrar ao menor abalo, ao menor movimento. Não é necessária uma grande tempestade para que se destrua; bata onde bater, se dissolverá. O que é o homem? Um corpo débil e frágil, desnudo, indefeso por sua própria natureza, que tem necessidade de auxílio alheio, exposto a todos os danos do destino; um corpo que quando exerceu bem os músculos, é pasto de qualquer fera, é vítima de qualquer uma [...] incapaz de suportar o frio, o calor, a fadiga [...] um corpo preocupado com seus alimentos, por cuja carência ora se enfraquece, por cujo excesso ora se rompe; um corpo angustiado e inquieto por sua conservação, provido de uma respiração precária e pouco firme, a qual um forte ruído repentino perturba; um corpo que é fonte doentia e inútil, de contínuo perigo para si 124 mesmo [...]. E dado um corpo tão débil a morte é uma certeza, então por que se admirar diante dela? Em vão o homem constrói seus sonhos sobre o futuro como se fosse eterno; desconhece que é sobre castelos de areia que estão seus planos. O filósofo esclarece: 120 Carta 91, 4. Carta 91, 4-5. 122 Consolação a Márcia, IX, 3. 123 Sêneca irá desenvolver de forma mais aprofundada o tema sobre a brevidade da vida na obra De Breuitate Vitae (Sobre a brevidade da vida). 124 Consolação a Márcia, XI, 2. 121 52 Admiramo-nos da morte neste corpo, a qual não precisa senão de um suspiro? Acaso é necessário muito esforço para que venha sucumbir? Um odor, um sabor, um cansaço, uma vigília, um humor, um alimento e aquelas coisas sem as quais não pode viver, lhe são mortais; para onde quer que se mova, tem imediatamente consciência de sua fraqueza; incapaz de suportar qualquer clima, torna-se doente pela troca das águas, pelo sopro de ar não familiar e por incidentes e danos de mínima importância. Um ser precário, doente, tendo começado a vida pelo choro. Não obstante, quantos tumultos provoca esse tão desprezível animal, a quão altos pensamentos aspira, esquecido de sua condição! Revolve no espírito coisas imortais, coisas eternas e faz planos para os seus netos e bisnetos, enquanto planeja 125 projetos duradouros, a morte o pressiona [...]. De fato, diante de tamanha fragilidade humana, é mais que provável um total insucesso em querer manter uma relação duradoura com as demais coisas. O que se deve buscar é o desapego pelos bens materiais, uma vez que todas as coisas de que se usufrui na vida são um empréstimo. Cada um será cobrado a devolver aquilo que recebeu emprestado sem se lamentar, ou seja, nada foi dado como presente: a função que se exerce na vida sobre as demais coisas esta associada à função de um mordomo, o qual deve administrar os bens como se fossem dele, mas isso apenas por um determinado período concomitante ao prazo estipulado pelo dono. Doravante, sentencia Sêneca que o espírito deve ser aconselhado constamente sobre o modo como se deve amar e usufruir as coisas, como se elas já estivessem nos deixando ou mesmo como se nós já estivéssemos partindo, pois de nada adianta fixar-se nas coisas, uma vez que não há garantia de usufruto permanente. A vida, como a descreve Sêneca, é breve e passageira consumindo apenas uma parte mínima se comparada à vastidão do tempo, ao passo que tudo aquilo que é do homem está sujeito a perecer. Nesses termos, qual o proveito em querer prolongar algo que fatalmente está indo em direção ao nada? Portanto, é com mais esse artifício que Sêneca pretende consolar Márcia, fazendo-a entender que a morte em si é simplesmente um nada: “A morte não é um bem nem um mal. Pois só pode ser um bem ou mal aquilo que é alguma coisa, porém, o que é o próprio nada e ao nada tudo reduz, não influi em nossa sorte”.126 As concepções sobre o tema da morte sempre foram uma constante em Sêneca e estão diluídas por entre as suas obras. O filósofo sempre esteve seguro diante da atitude a ser tomada frente à morte, e essa postura pode ser comprovada 125 126 XI, 4-5. XIX, 5. Em que ouvimos ecos de Epicuro. 53 diante do enfrentamento da sua própria morte, na qual manteve uma postura de profunda firmeza e equilíbrio, assumindo para si o sentido da morte não como suplício, mas como um artifício que possa ser lançado mão caso algo venha a corromper o seu espírito. Por isso a morte torna-se oportuna quando já não é mais possível viver de maneira digna. Ademais, Sêneca expõe na Consolação que, embora a morte seja um nada, por outro lado transcorre como um meio de livrar o homem de todos os males e aflições, pois, uma vez de posse dela, não poderá ser tocado por mais nada, “[...] pois se nenhum sentido resta ao morto, meu irmão livrou-se de todos os incômodos da vida e retornou para aquele lugar no qual estivera antes de nascer e, livre de todo mal, nada teme, nada deseja, nada sofre [...]”.127 Do mesmo modo, pode ser vista ainda como uma maneira de igualar a todos, pois tanto o homem de muitas posses e que tem o domínio sobre o outro, bem como aquele que recebeu de forma desigual os bens será visitado por ela: “quando a sorte repartiu mal os bens comuns e deu um domínio sobre o outro, embora nascidos com igual direito, a morte iguala a todos as coisas”.128 Em razão disso, Márcia não tem pelo que chorar ou temer, a morte de Metílio veio no tempo certo, ele cumpriu seu destino, uma vez que todos têm o seu momento exato de partir, pois a cada um foi concedida uma determinada parcela de tempo para viver, portanto não há o que fazer, muito menos queixar-se. Ademais é um erro comum pensar que a morte se inclina apenas para os velhos e doentes, pois já na infância e nas demais fases da vida ela nos acena. E apesar de Metílio ter sido prematuramente arrebatado pela morte, esta não lhe causou nenhum mal, insensato é pensar assim, “[...] pois na realidade é um porto, que por vezes somos forçados a abordar, mas que em caso algum deveremos recursar; e mesmo que lá aportemos na juventude [...]”.129 Ainda acrescenta o filósofo sobre o descanso e apaziguamento como consequência da morte: Se quiseres crer naqueles que observam mais profundamente a verdade, toda vida é um tormento. Lançados neste mar profundo e agitado, alternado nos seus fluxos e refluxos e que ora nos levanta com repentinos progressos, ora nos derruba com maiores danos e, frequentemente, nos abala, nunca nos deteremos num lugar estável; andamos perplexos e flutuando, somos lançados um contra o outro e, 127 SÊNECA. Consolação a Políbio, IX, 2. Consolação a Márcia, XX, 2. 129 Carta 70, 3-4. 128 54 algumas vezes, naufragamos. Sempre tememos! Nenhum outro porto há, a não ser a morte, para aqueles que navegam neste tão agitado mar e 130 exposto a todas as tempestades. Assim, visto que Metílio viveu aquilo que lhe estava proposto, doravante o melhor para Márcia seria liberta-se da consagração dos anos de vida de seu filho e volta-se a admirar as suas virtudes, posto isso teria mais um ponto de apoio para se consolar. Com efeito, por vezes, a beleza da vida termina por esconder a morte, contudo a vida é frágil e perece ante o tempo. Então, qual a saída para o homem diante da sua fragilidade e efemeridade da vida? Como vimos de nada adianta tentar prolongar os dias, visto que a única maneira de se potencializar a vida é vivê-la de modo intenso. Além disso, Sêneca ensina-nos que o que realmente importa não é a duração da vida, mas a qualidade dela, daí compreender que o percurso a ser tomado deve incorrer sempre na busca de quais as ações devem ser praticadas e como elas devem ser empreendidas, de modo que a única possibilidade que resta ao homem é reconhecer a sua efemeridade diante do mundo, e, com base nessa condição, buscar viver de forma virtuosa assegurando o controle dos males que possam abater-se sobre ele sem, no entanto, afastá-lo do seu percurso natural, “portanto, governemo-nos para que esta violência não nos afaste do curso”.131 Porém, não se deve perder de vista que a honra é dada somente àquele que se mantém firme na luta e mesmo caindo, seja encontrado numa posição de combate, eis o seu mérito. Convém destacar que essa Consolação, como entre as muitas obras de Sêneca, esboça seu esforço em alcançar uma vida na qual a felicidade é possível, por meio dos conhecimentos que adiquiriu com seus mestres, compreendidos por uma ordem prática, uma vez que o filósofo entende que a filosofia não deve se restringir a um arcabouço teórico sem aplicação, mas por outro lado, deve ser vivida e praticada de modo profundo. 130 131 Consolação a Políbio, IX, 6. Consolação a Márcia, VI, 3. 55 2 O CUIDADO DE SI E SUAS RESSONÂNCIAS EM SÊNECA 2.1 O princípio do cuidado de si entre os antigos Pode se afirmar primeiramente que a noção do “cuidado de si” tem como seu primeiro expoente o filósofo grego Sócrates, cujas ideias acerca dessa proposta filosófica são desenvolvidas mais precisamente no diálogo platônico Alcibíades. Contudo, a discussão acerca dessa temática não ficou restrita ao mundo antigo. Perpassou por toda a história do pensamento ocidental até alcançar a contemporaneidade, onde recebeu um novo alento por meio das propostas de Michel Foucault, e que podem ser encontradas a partir do itinerário traçado nas obras Hermenêutica do sujeito e no terceiro volume da História da Sexualidade. Lembra-nos Foucault que a utilização do termo “cuidado de si” é uma tentativa de traduzir, bem ou mal, a noção grega de cunho bastante complexa e rica, que perdurou amplamente em toda a cultura grega: a epiméleia heautôu que já fora apropriada pelos latinos, que também a traduziram por cura sui132. Por tanto, epiméleia heautôu pode ser entendida como “o cuidado de si mesmo, o fato de ocupar-se consigo, de preocupar-se consigo, etc”.133 Essa noção do cuidado de si entre os gregos se apresentava como uma das grandes regras de conduta, atribuída à vida social e pessoal. Decerto, a noção grega epiméleia heautôu pode ser considerada como um solo fecundo para a modelagem de outra regra, a saber, o preceito délfico gnôthi seautón (conhece-te a ti mesmo) que surge no pensamento filosófico a partir de Sócrates. Seu aparecimento está associado à noção grega do cuidado de si. Notadamente o preceito délfico constitui-se, portanto, como uma forma de concretização, até mesmo como consequência da epiméleia heautôu. Nesse sentido, é importante recordar que já no texto platônico A apologia de Sócrates, o filósofo ateniense é consagrado com a explícita incumbência de incitar as pessoas a cuidarem de si mesmas, a não se perderem de vista. Assim nos explica Sócrates: [...] Como se dá, caro amigo, que, na qualidade de cidadão de Atenas, a maior e mais famosa cidade, por seu poder e sabedoria, não te 132 Cf. FOUCAULT, M. História da Sexualidade, 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985, pp. 50. 133 FOUCAULT, M. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p.4. 56 envergonhas de só te preocupares com dinheiro e de como ganhar o mais possível, e quanto à honra e à fama, à prudência e à verdade, e à maneira 134 de aperfeiçoar a alma, disso não cuidas nem cogitas? Sócrates tem por função o encargo de se ocupar das pessoas de modo tal que elas venham a cuidar de si mesmas. Segundo Pierre Hadot, Sócrates interpela seus ouvintes com o único e exclusivo objetivo de levá-los ao cuidado de si: [...] Como "um tavão", fustiga seus interlocutores com questões que os põem em questão, que os obrigam a prestar atenção a si mesmos, a tomar cuidado consigo mesmos''.135 Todavia, Sócrates também direciona para si mesmo o preceito do cuidado, da possibilidade de examinar-se, de prestar atenção em si próprio. É o que faz perceber a atitude do filósofo ateniense logo no início do Banquete quando, ao se dirigir para a casa do poeta Agatão, vencedor do concurso de tragédia, acompanhado por Aristodemo, deixa-se atrasar: “Em caminho, todo a ensimesmarse, Sócrates ficou para trás, e como Aristodemo se detivesse com a intenção de esperá-lo, mandou que fosse na frente”.136 Assim, seguindo em frente, Aristodemo chega ao banquete sozinho e explica a ausência de Sócrates. No mesmo instante Agatão pede a um servo que procure por Sócrates, mas Aristodemo justifica concluindo que: “[...] É costume dele; às vezes para em qualquer ponto e não se mexe. Penso que virá logo. Deixai-o; não o perturbeis”.137 Por esse viés, entendemos que o cuidado de si, tão incessante em Sócrates, ao mesmo tempo constitui-se como sua missão para com seus ouvintes: “continuo até hoje a andar por toda a parte, obediente à intimação divina, a examinar e questionar o estrangeiro ou concidadão que se me afigura sábio [...]”.138 Também se faz necessário ao filósofo, visto que era um hábito, como afirma Aristodemo, Sócrates parar e como se se voltasse para si pusesse-se a meditar, ocupando-se de si mesmo. Contudo, na Apologia, 36b-c, Sócrates afirma que descurou do seu próprio cuidado para se dedicar à tarefa de incitar os outros ao cuidado de si, bem como negligenciou também várias outras atividades, como 134 PLATÃO. O Banquete / Apologia de Sócrates. Belém: EDUFPA, 2001, 29d-e. HADOT, Pierre. O que é a filosofia antiga? 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2004, p. 55. 136 PLATÃO. op.cit., 174d. 137 Ibidem,175b. 138 Ibidem, 23a. 135 57 fortuna, certas vantagens cívicas, carreira política e etc., pois ele se coloca como aquele que veio para despertar os outros. Notadamente, ao longo da cultura grega, seja em sua fase mais antiga, seja no período helenístico, bem como na apropriação que os romanos dela fizeram, a epiméleia heautôu, em associação com o mandamento do conhece-te a ti mesmo, esboçou-se incessantemente como um fundamento da atitude filosófica. Todavia, o princípio do cuidado enquanto regra e como imperativo não esteve desde a sua origem e por todo o seu legado na cultura grega atrelado ao escopo de uma tradição filosófica como descrita em Sócrates. Como bem marca Foucault “não foi uma atitude de intelectual, nem um conselho dado por velhos sábios a alguns jovens demasiado apressados”,139 muito pelo contrário, tratava-se de referenciar uma espécie de sentença lacedemônia que vigorava entre os gregos e, por conseguinte, não correspondia a nenhuma reflexão filosófica. É o que nos aponta Foucault, citando um texto de Plutarco140 em que ele resgata a expressão de um espartano chamado Alexândrides: ele teria sido indagado sobre o porquê de os espartanos não cultivarem eles próprios as suas terras, já que eram imensas, mas ao contrário essa atividade era delegada aos hilotas. Eis que Alexândrides teria respondido que era pelo fato de eles poderem ocupar-se consigo mesmos. Isso faz crer que a intenção de „cuidar de nós mesmos‟ não correspondia a nenhuma atitude filosófica, mas o sentido que lhe era atribuído correspondia a uma forma de existência em consonância com um tipo de privilégio político: “temos que nos ocupar com nós mesmos e é para podermos fazê-lo que confiamos a outros nossos trabalhos”.141 Os espartanos aristocratas cercados de privilégios políticos, sociais e econômicos, escolheram confiar a outros a tarefa de cuidar das suas atividades, para então gozarem da oportunidade de ocuparem-se de si em relação ao exercício militar, expressando dessa forma outra dinâmica relacionada ao preceito do cuidado de si, que difere do sentido utilizado no Alcibíades, em que Sócrates adverte-o afirmando que para governar a cidade é necessário anteriormente ter cuidado consigo mesmo. 139 FOUCAULT, M. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p.30. Cf. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade, 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985, p. 49. 141 FOUCAULT, M. op.cit., pp. 30-31. 140 58 Certamente, é Sócrates quem acena para a noção do cuidado de si aventando uma perspectiva filosófica a partir do diálogo socrático-platônico Alcibíades. A noção do cuidado de si reverbera por quase todo o diálogo, mas o coroamento dessa prescrição filosófica se assenta precisamente a partir da passagem 127e, desenvolvendo-se até as últimas linhas do diálogo. A perspectiva desse diálogo é a condição para o exercício do cuidado de si em que Sócrates recebe a incumbência divina de se aproximar e cuidar de Alcibíades142. Já no início do diálogo (103a), o filósofo adverte sobre o distanciamento que sempre manteve do rapaz, perfazendo um caminho contrário dos seus outros enamorados que, seduzidos por sua beleza, sentiam-se atraídos e, por vezes, rejeitados pelo jovem orgulhoso. Sócrates, que não se deixou arrebatar pelas paixões, agora contrariando sua antiga postura, vai ao encontro de Alcibíades no intuito de cumprir sua missão. E explica-se: Ó filho de Clínias, deves estar admirado de que, tendo sido eu o primeiro a te amar, seja o único que não te abandonasse, quando todos se afastaram, apesar de não te haver dirigido a palavra durante tantos anos [...] E hoje, 143 que tal impedimento cessou, aproximo-me de ti [...]. Seguindo o curso do texto, Sócrates expõe os aspectos que fundamentam o comportamento e a maneira de agir de Alcibíades. Envaidecido por sua beleza e cheio de orgulho de si, está mais preocupado com o corpo do que com a alma, e Sócrates sabe muito bem o motivo de tanto orgulho e vaidade, como bem justifica: Vou explicar-te a razão de ser de teu orgulho. Estás convencido de que não necessitas de ninguém para nada, pois tendo tudo com larga margem de sobra, de nada virás a precisar, a começar pelo corpo e a acabar pela alma. Em primeiro lugar, julgas-te o mais belo e o mais alto dos cidadãos, com o que há de concordar quem tiver olhos de ver; a seguir, pertences a uma das mais esforçadas famílias de tua própria cidade [...]. Envaidecido por todas essas vantagens, sobrepuseste-te aos teus admiradores, que aos poucos 142 Vale lembrar que, de acordo com o diálogo platônico O Banquete, 212d-e, temos uma demonstração do insucesso da educação de Alcibíades por parte de Sócrates. Ademais, é interessante notar uma possível “ponte” com Sêneca, uma vez que seu projeto com Nero também não logrou sucesso. Contudo, essa discussão não será estendida, tendo em vista que foge do escopo da nossa análise. Mas vale ressaltar que o nosso objetivo é mais amplo e pretende entender omodus faciendi dessa educação do caráter; ainda, por se tratar de uma investigação teórica, o nosso intuito é poder testar os limites desse processo de educação, pois se com Alcibíades e com Nero ela flagrantemente falhou, isso não significa um fracasso do projeto em si, mas na própria falha de caráter dos discípulos. 143 PLATÃO. O primeiro Alcibíades. 2ª ed. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Coordenação de Benedito Nunes. Belém: EDUFPA, 2007,103a. 59 se afastaram de ti, o que não te passou despercebido. Sei, portanto, muito bem, que te perguntas em que posso fundar minhas esperanças para 144 persistir no meu intento, quando todos os outros já se retiraram. Mas a princípio qual seria o motivo da aproximação de Sócrates? Decerto, Sócrates se aproxima porque entende que Alcibíades tinha algum objetivo em mente. Então, o que pretendia o jovem rapaz? Possuidor de grande beleza, fortuna, amigos, uma família de grande prestígio e poder, do que mais precisaria? Todavia, Alcibíades deixou de ser desejado e foi abandonado pelos seus admiradores, restando somente Sócrates para lhe dar atenção. Assim, nesse contexto o filósofo ateniense explicita os reais objetivos que Alcibíades carrega consigo, “estás convencido de que logo que te apresentares para falar na assembleia dos atenienses [...] demonstrarás a todos que és merecedor de consideração [...] demonstração que te granjeará a autoridade suprema da cidade [...]”.145 Contudo, para além de seu status quo, dos privilégios, das riquezas e agora desprovido da sua beleza natural e dos seus amantes, Alcibíades pretende governar o povo, quer cuidar da pólis. É a partir desse constructo que surge a missão de Sócrates, isto é, “é alguém que tem uma tarefa: transformar o privilégio de status, a primazia estatuária em governo dos outros”.146 Esse, portanto, é o ponto de partida para a condição do cuidado de si, é aqui que se funda a nascente dessa noção, na missão de Sócrates em prol do cuidado com a tarefa política de Alcibíades em governar a pólis. Essa tônica sobre o cuidado de si também pode ser encontrada em outro texto distinto do diálogo socrático-platônico. De modo semelhante encontramos no texto de Xenofonte, mais precisamente no livro III das Memoráveis, o diálogo entre Sócrates e Cármides, homem de grande honra que se encontra no início de uma carreira política, um cidadão capaz de gerir sua pátria e levá-la à glória. Porém, sem querer reconhecer tais aptidões, deixa-se levar por sua timidez e não se faz ouvir perante os outros em público. A hesitação de Cármides em participar da vida política em sua cidade contribui para a intervenção e, por conseguinte, os cuidados de Sócrates. Nesse sentido, exorta o filósofo ateniense, “não te ignores a ti mesmo, meu caro. [...] Concentra todos os teus esforços sobre ti mesmo e, se puderes ser144 Ibidem, 104a Ibidem, 105a-b 146 Cf. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade, 3: O cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985, p. 32. 145 60 lhe útil, não esqueças o Estado”.147 Como se pode observar, a missão de Sócrates se mostra semelhante à tarefa com Alcibíades, mesmo que de modo distinto. Uma vez que em Alcibíades o interesse pela vida política é um desejo explícito, em Cármides, pelo contrário, a repulsa pelo cenário político é expressa por sua hesitação e medo de se expor em público. Com feito, a empreitada de Sócrates tem por objetivo incitar o jovem Cármides à vida política – uma vez que, inserido na vida pública, Cármides tem a oportunidade e a capacidade de fazer lograr os negócios do seu Estado, engrandecer a sua pátria. Além disso, como cidadão, deve compartilhar com os seus concidadãos todas as suas qualidades meritórias. Desse modo, descreve Sócrates algumas das qualidades de Cármides: “Em tuas palestras com nossos políticos, se te comunicam um negócio, vejo que lhes dás bons conselhos. Se cometem erros, tu os repreendes justamente”.148 Negar essa condição, afirma Sócrates, é um exemplo de covardia. Portanto, a partir desses argumentos é que Sócrates incita o jovem Cármides a ingressar na vida pública com o intuito de o jovem lograr sucesso tanto para a sua pátria, como para si mesmo. Em outras palavras, o empenho de Sócrates em relação a Cármides no que tange a vida pública, enfatiza bem o argumento do cuidado de si recorrente em Alcibíades, pois em ambos os textos a relação de Sócrates é sempre com a preocupação de promover o cuidado de si e o cuidado com a cidade, visto que ambos não se opõem. Naturalmente, ainda que ressaltando nuances entres os dois diálogos, supomos ser possível encontrar em ambos os textos a necessidade e a carência do cuidado consigo em face ao governo de si e dos outros. O que há de singular em ambos é a necessidade do cuidado de si, pelo viés socrático, como articulador de uma conduta de vida que alcance melhorias para o outro e para si mesmo. Desse modo, insistimos em acreditar que a noção do cuidado de si em Sócrates era tão persistente que a vemos se esboçar para além do diálogo platônico, como indicado acima no texto de Xenofonte. Nesse sentido, retomando a tarefa de Sócrates em Alcibíades, o filósofo ateniense expõe mais um desafio para o jovem aspirante ao governo da cidade. A empreitada dessa vez corresponde às reais condições nas quais Alcibíades se encontra em relação aos seus sucessivos adversários, explicitando que, caso venha 147 XENOFONTE. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates, VII, 9. Ibidem, VII, 3. 148 61 a governar, o jovem deverá confrontar-se com dois tipos de rivais: o primeiro tipo corresponde aos seus concidadãos, que também pretendem alcançar o governo; o segundo, quando estiver já no poder, se constituirá dos inimigos que deverá atacar para defender a sua cidade, “logo, se formas o projeto de tornar-te chefe da nossa gente, deves admitir como certo que terás de disputar o primado contra o Rei dos lacedemônios e o dos persas”.149 Certamente, o que Sócrates almeja a princípio nessa fase do diálogo com Alcibíades é fazê-lo entender que ele precisa aprender aquilo que é necessário antes de assumir a tarefa de lutar pelo seu povo ou mesmo de iniciar a gerência dos negócios da vida pública. Alcibíades encontra-se numa situação difícil, uma vez que seus rivais estão em posição superior a ele e à própria cidade de Atenas. Primeiramente, no que tange às riquezas e, por conseguinte à educação, “[...] examina bem, se além de inferiores quanto ao berço, não o somos também no que diz respeito à educação”.150 Mesmo Alcibíades sendo rico e de família influente não superará as riquezas do rei da Pérsia. No que diz respeito à educação, tanto os lacedemônios quanto os persas se distanciam em qualidade da educação de Alcibíades; é o que atestam as características desses modelos de educação. Esparta mostra-se, entre os séculos VIII-VI a.C., como um Estado puramente guerreiro, o que faz com que o caráter da educação do jovem daquela época situese exclusivamente numa tradição militar. Contudo, vale ressaltar que essa educação, de forma concomitante, teve um avanço, uma “evolução, técnica e ética [...] a educação do cidadão espartano não é mais a de um cavalheiro, mas a de um soldado; insere-se numa atmosfera „política‟, e não mais senhorial”.151 Assim, um novo ideal de educação espartana propaga-se, ressaltando-se que agora ela “não terá mais por fim selecionar heróis, mas formar uma cidade inteira de heróis – soldados prontos a se devotarem à pátria”.152 Mas seria ingenuidade acreditar que a cultura espartana estava fundamentada somente no ideal da cultura das armas. De forma alguma despreza as artes, a música, a dança e com esta se desloca para a ginástica; para o canto e a poesia. Portanto, é a partir do contexto de 149 Alcibíades, 120a. Ibidem, 121b. 151 MARROU, Henri Irénée. História da educação na antiguidade. Trad. Mário Leônidas Casanova. São Paulo: E.P.U, 1990, p. 35. 152 Ibidem, p. 36. 150 62 uma educação voltada para os princípios da magnanimidade da alma, da coragem e da força que é assegurado ao jovem o prazer pelas vitórias e pelas honras. No que tange à educação persa, suas vantagens são enumeradas a partir da educação dada ao rei. Desde a mais tenra idade, o príncipe recebe os melhores cuidados dispendidos pela melhor estirpe palaciana. Aos sete anos entram em cena os preceptores reais, homens escolhidos dentre os mais sábios e justos que ensinarão ao príncipe os modelos da sabedoria, da justiça, da temperança e da coragem. O objetivo é que se possa perceber o rigor da educação dos persas para uma formação que se queira virtuosa e digna de honras. Tendo estes dois modos no horizonte, Sócrates acena para a necessidade de rever a educação de Alcibíades, reforçando o contraste com os modelos descritos acima. Por seu turno, o modelo de educação destinado a Alcibíades fez-se pela incumbência de seu tutor, Péricles, que lhe designou um escravo chamado Zópiro da Trácia para cuidar da sua educação, mas que já se encontrava numa idade muito avançada para a tarefa a qual fora designado. Com efeito, a educação de Alcibíades não recebeu a dedicação que merecia, principalmente porque foi deixada sob a incumbência de um escravo que nada sabia e, por conseguinte nada podia ensinar ao jovem. E para arrematar as diferenças explícitas entre Alcibíades e seus adversários, Sócrates expõe: Quanto ao teu nascimento, Alcibíades, e tua educação, bem como a de qualquer outro ateniense, ninguém dá a menor importância, por assim dizer, com exceção de algum dos teus apaixonados. Mas se quiseres considerar a riqueza, os divertimentos, as vestes luxuosamente enfeitadas, o uso de unguentos perfumados, o séquito numeroso de servidores e todos os demais requintes da vida opulenta dos persas, ficarias envergonhado de ti 153 mesmo, por perceberes quão longe te encontras de alcançá-los. Nesses termos, como assegurar o governo da pólis a alguém que, diante dos seus rivais, não possui o mesmo arsenal de riquezas, e no tocante à educação deixa a desejar? A resposta surge concomitante com a exortação de Sócrates, “deixa-te convencer por mim e pela inscrição de Delfos: “Conhece-te a ti mesmo”.154 É importante ressaltar que pela primeira vez a noção gnôthi seautón (conhece-te a ti mesmo) aparece no diálogo, mas o seu sentindo é fraco, esboçando apenas um conselho de prudência. É preciso, portanto, que Alcibíades reflita um pouco sobre si 153 154 Alcibíades, 122b-c. Ibidem, 124b. 63 mesmo e, como consequência, reconheça sua inferioridade diante dos seus adversários. Logo, a única maneira de obter triunfo sobre seus adversários será pela via do conhecimento, o que trará, como consequência, seu autoaperfeiçoamento. Daí compreender que o reconhecimento dessa inferioridade não diz respeito somente à falta de riquezas e à baixa qualidade da educação de Alcibíades, mas remete-se ao fato de percebermos que lhe falta uma tékhne, um saber que lhe serviria para compensar as demais inferioridades. Apenas de posse desse saber é que Alcibíades seria capaz de governar bem a cidade e se postar de igual para igual frente aos seus concorrentes. Nesse instante, o diálogo chega a um ponto de tensão em que Sócrates faz Alcibíades reconhecer que lhe falta um saber útil (tékhne) para gerir a cidade. Então, após uma longa bateria de questões referentes à prática do bom governo da cidade, temos o reconhecimento de Alcibíades sobre sua ignorância. O passo é longo, mas julgamos necessário citá-lo integralmente: Sócrates – E com relação à cidade? Que é o que, presente ou ausente, a deixa em melhores condições e mais bem administrada? Alcibíades – Sou de parecer, Sócrates, que é quando reina amizade entre os cidadãos e se acham ausentes o ódio e as sedições. Sócrates – O que entendes por amizade: concórdia ou desavença? Alcibíades – Concórdia. [...] Sócrates - O que vêm a ser, então, essa amizade e essa concórdia a que te referiste, que terão de deixar-nos sábios e discretos, para que nos tornemos homens bons? Não consigo saber em que consistem nem com quem se encontram [...]. XXIII – Alcibíades – Pelos deuses, Sócrates, já não sei o que falo. É bem possível que eu esteja há muito tempo nesse estado de ignorância, sem aperceber-me disso. Sócrates – É preciso ter confiança. Se aos cinquenta anos tivesses percebido essa deficiência, difícil te seria tomar qualquer medida para remediá-la. Mas estás agora precisamente na idade em que cumpre 155 percebê-la. Contudo, afirma Sócrates que não há necessidade de Alcibíades desesperarse diante do seu estado de ignorância, pois se encontra na idade certa para reconhecê-lo. No entanto, se estivesse numa idade mais avançada, aos cinquenta anos, por exemplo, seria bem mais difícil remediar esta situação. Então, a idade em que está é a oportunidade que o jovem tem de ocupar-se de si mesmo, ter cuidado consigo, uma vez que, desejando governar bem a cidade, não sabe ao certo o 155 Ibidem, 126b-d; 127d-e. 64 objeto desse bom governo, portanto, deve lançar mão de ocupar-se de si mesmo como via de alcançar esse saber. Nessa esteira, se instalam duas questões que surgem ao longo do diálogo. A primeira versa sobre quem é o eu, esse “si mesmo”, do qual se deve cuidar. A segunda diz respeito à prática desse cuidado, isto é, como se define esse cuidado. O que é cuidar de si? Analisemos, pois, a trajetória feita por Sócrates e Alcibíades em busca das respostas a tais questões. No que concerne à primeira questão, Sócrates acena mais uma vez para o preceito délfico, enfatizando que é preciso conhecer a si mesmo como aporte para o cuidado: “quer seja coisa fácil, quer difícil, Alcibíades, o que é certo é que, conhecendo-nos, ficaremos em condições de saber como cuidar de nós mesmos, o que não podemos saber se nos desconhecermos”.156 Portanto, divergindo do sentindo da sua primeira exposição no diálogo, que aponta apenas para um conselho de prudência, um pedido de forma fraca, aqui a ênfase dada ao preceito assume um significado totalmente diverso, pois deixa marcada a necessidade de um cuidado, fazendo-nos compreender que é preciso cuidar de nós mesmos. Por conseguinte, o próprio Sócrates indaga sobre a relevância do eu do qual se deve cuidar: “Então, dize-me: de que modo será possível descobrir a essência íntima do ser? Com esse conhecimento saberíamos o que somos, o que sem ele não nos será possível”.157 A partir desse movimento sucederão outros diversos questionamentos, só então teremos a resposta dada por Sócrates ao jovem Alcibíades: “Sendo assim, uma vez que o homem não é nem corpo, nem o conjunto dos dois, só resta, quero crer, ou aceitar que o homem é nada, ou, no caso de ser alguma coisa, terá de ser forçosamente alma”.158 Com isso, podemos afirmar que o si mesmo que figura no cuidado ao qual Sócrates faz menção é prioritariamente a alma; por sua vez, quem direciona o cuidado ao corpo como instância principal, engana-se se pensa que está cuidando de si mesmo, posto estar cuidando apenas de algo que lhe pertence. Sócrates é enfático quanto a isso e busca esclarecer esta concepção tomando como base o exemplo daqueles que amam Alcibíades: “Logo, se alguém se mostra apaixonado do corpo de Alcibíades, não é Alcibíades que ele ama, porém algo que pertence a 156 Ibidem, 129a. Ibidem, 129b. 158 Ibidem, 130c. 157 65 Alcibíades [...]. Só te ama quem amar tua alma”.159 A alma por esse viés se constitui como a principal parte do homem: o sujeito da ação, governante de todos os atos, o elemento que se serve de todas as outras coisas, inclusive do corpo. A alma é, portanto, a dimensão para a qual o princípio do cuidado se direciona; assim, cuidar de si é irremediavelmente cuidar da própria alma. A segunda questão que se estabelece no diálogo diz respeito ao que seja esse cuidado. Em que ele consiste? Decerto, já sinalizamos que é da alma que se deve cuidar. Para tanto, o cuidado que se deve ter com a alma é supostamente um conhecer-se a si mesmo, como endossa Sócrates em suas palavras: “Porém de que modo alcançaremos o conhecimento perfeito da alma? Sabido isso, ao que parece, conhecer-nos-emos a nós mesmos [...]”.160 De fato, Sócrates evidencia a importância e a necessidade de se conhecer a alma da qual se deve cuidar. Contudo, observase no diálogo que, pela terceira vez, o filósofo faz referência ao preceito de Delfos evidenciando uma nova significação. A conotação dada a essa terceira aparição do preceito exprime um sentido muito mais rico e de maior amplitude em relação às duas primeiras ocorrências. Observe-se que, na sua primeira referência, o sentido do preceito délfico demonstra apenas um conselho, um chamado ao cuidado de si para que Alcibíades venha a conhecer melhor suas fraquezas e limitações; já na segunda situação seu sentido se direciona mais para uma questão sobre quem é o eu de que é preciso cuidar, diferindo de maneira bem distinta desse terceiro momento de evocação do preceito no qual cuidar de si significa também num conhecimento de si. Dito isto, a compreensão que Alcibíades deve ter ao se lançar na atividade do “cuidado de si mesmo” deve partir do entendimento que ao cuidar de si estará irremediavelmente conhecendo de forma plena sua alma. Assim, chegamos à chave do problema: para que se possa cuidar de si é necessário conhecer a si mesmo, uma vez que esse si mesmo é a própria alma. Esse é o caminho proposto a Alcibíades: examinar a sua alma e fazê-la alcançar a sabedoria. O presente itinerário alude ao seguinte processo: a alma, que é um elemento divino, em vias de apreender-se, deve voltar seu olhar para um mesmo elemento de sua natureza, isto é, a alma deve volver o seu olhar para o elemento que por princípio faz referência a sua mesma constituição: o pensamento e o saber, 159 160 Ibidem, 131c. Ibidem, 132c. 66 só assim, a alma será capaz de apreender-se. De posse desse movimento em direção ao elemento divino é que se poderá conhecer a si mesmo e, assim, a alma se proverá de sabedoria. Então, somente se alma “estiver em contato com o divino, se o tiver apreendido, se tiver podido pensar e conhecer esse princípio de pensamento e de conhecimento que é o divino [...] será dotada de sabedoria”.161 Sob essa perspectiva, a alma imersa no princípio do cuidado poderá trilhar o percurso em direção ao saber (tékhne), tão necessário a Alcibíades, possibilitandolhe a capacidade de fazer escolhas e de tomar decisões, de modo a governar bem a cidade. Segundo nos afirma Foucault, o texto de Platão assinala pelo menos quatro características que estão vinculadas à preocupação sobre o cuidado de si. A princípio, a necessidade do cuidado de si está relacionada ao poder cercado de privilégios, conforme já mencionado em Plutarco, como marcamos anteriormente, em que ocupar-se de si mesmo apresenta-se como consequência de uma excelência estatutária, ou seja, cuidar de si só é possível aos que detém poder político, social e econômico. Em Alcibíades, a noção do cuidado estende-se de forma contrária, para além da condição de poder, uma vez que converge para uma ação bem mais definida, isto é, Alcibíades salta do privilégio do poder, uma vez que pertence a uma família importante e também rica, para a garantia do saber governar, a partir da noção do cuidado de si. A importância extensa dessa primeira consideração leva a crer que o cuidado de si em Alcibíades se inscreve como uma preocupação direcionada ao ocupar-se consigo e concomitantemente com os outros; remete, portanto, a uma atividade definida por ocasião do cumprimento do exercício do poder político sobre a cidade, ao contrário de um “ocupar-se consigo” instituído meramente por uma força legítima de poder. Com efeito, não se pode governar bem aos outros sem antes estar ocupado consigo mesmo. Vemos, assim, o cuidado de si se modificar de uma condição de privilégio para uma atividade política em Alcibíades. A segunda característica que se refere à noção do “cuidado de si” e à debilitada educação de Alcibíades, a qual se inscreve sobre dois aspectos. Em primeiro lugar, o pedagógico. Por ter sido educado por um escravo da família, que nada tinha a lhe oferecer em termos de educação, Alcibíades fracassou em seu 161 FOUCAULT, M. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p.66. 67 aspecto educativo. Nesses termos, é importante indagar se o modelo de educação no qual Alcibíades foi assistido é relevante para um jovem que almeja a vida política. Não seria demasiada a falta de preparo, ser educado por um escravo doméstico uma vez que a educação se inscreve como algo de suma importância para a atividade social? Não obstante, Sócrates aponta para a perspectiva de um saber que fundamente a prática daquele que deseja aconselhar sobre os assuntos deliberados na cidade: “Pouco importa que ele seja de grande ou pequena estatura, bonito ou feio, de nobre ou de vil ascendência. [...] Para ser um bom conselheiro, o que importa não é a riqueza, porém o saber”.162 A crítica sobre o aspecto pedagógico recai sobre a própria educação ateniense e sua fragilidade quando comparada à educação espartana, que imprime o rigor e a disciplina e, também com relação ao modelo educativo dos persas que se esforçam ao nomear para seus príncipes ao menos quatro professores, mestres nas virtudes fundamentais na formação do indivíduo. O segundo aspecto versa sobre a função do éros sobre o jovem. A crítica ressalta a falha recorrente na pederastia como modelo formador e educativo em Atenas. Para os gregos, a função do amor entre homens e rapazes principia uma prática que se queira acrescentar à formação dos jovens, a partir de atividades no âmbito social e político. Como bem justifica Marrou: A ligação amorosa acompanha-se, pois, de um trabalho de formação, de um lado, e de maturação, do outro [...] é exercido livremente, pelo convívio cotidiano, o contato e o exemplo, a conversação, a vida comum, a iniciação progressiva do mais jovem nas atividades sociais do mais velho: o clube, o ginásio, o banquete. [...] Para o homem grego, a educação (παιδεία) residia essencialmente nas relações profundas e estreitas que uniam, pessoalmente, um espírito jovem a um mais velho – que era, ao mesmo 163 tempo, seu modelo, seu guia e o seu iniciador [...]. Como ilustrado acima no processo de educação amorosa, a relação entre os amantes prevê que o mais velho repasse os atributos necessários para dar continuidade à formação, que este se apresente para o mais jovem como mestre e guia. O aspecto característico dessa prática converge para uma verdadeira emulação: “o mais velho é o herói, o tipo superior pelo qual é preciso modelar-se, a 162 Ibidem, 107b. MARROU, Henri Irénée. História da educação na antiguidade. Trad. Mário Leônidas Casanova. São Paulo: E.P.U, 1990, pp. 58-59. 163 68 cuja altura procurará o outro, pouco a pouco, alçar-se”.164 Com efeito, a inclusão do jovem na rotina do mais velho, durante as conversas e as demais atividades sociais, complementa o aspecto pedagógico da pederastia. É a prática do amor grego reivindicando sua atribuição educativa - “o amor grego fornecerá, à pedagogia clássica, seu campo e o seu método: este amor é, para um antigo, essencialmente educativo [...]”.165 O fundamento da pederastia não reside propriamente na relação sexual; ele é antes de tudo, uma ligação constituída de sensibilidade e sentimentos que na antiguidade irremediavelmente assumia a conduta de uma prática educativa. O tema sobre a prática educativa é de grande importância para a nossa reflexão, pois será discutido quando formos tratar sobre o cuidado de si e a educação do caráter. Não obstante, em Atenas, o modelo de educação da pederastia não chega a alcançar sua função formadora, uma vez que os homens mais velhos, ao seduzirem os jovens no auge da sua mocidade, estão interessados apenas em satisfazer seus apetites sexuais, para depois abandoná-los quando se tornam mais velhos e menos atraentes, exatamente no momento mais crítico da necessidade de um guia para dar continuidade ao aspecto educativo e consequentemente iniciá-los na atividade política. Em Alcibíades é recorrente essa falha. É o que justifica a atitude dos seus enamorados ou amantes, pois só se interessavam por ele em virtude da beleza altiva do seu corpo. Todavia, uma vez amado e desejado, o jovem deveria ser incitado pelos seus enamorados ao cuidado consigo mesmo. Os próprios amantes deveriam cuidar de Alcibíades, mas, o que lhe ocorreu foi exatamente o contrário, posto ter sido sempre, à exceção de Sócrates, assediado apenas pelo seu corpo e isso durante sua juventude. Contudo, Sócrates retoma o diálogo afirmando que foi o único que não o abandonou, pois a dimensão do seu amor transcende aos aspectos físicos e toda a dimensão da vaidade. Sócrates foi o único que se ocupou de Alcibíades, pois verteu o seu amor em direção à alma e não ao corpo ou à sua beleza física. Com efeito, se preferirmos essa terceira característica sobre o cuidado de si, podemos, ainda, mostrar que ela se justifica dada sua inscrição numa relação entre os jovens e o seu mestre e amante. 164 165 Ibidem, p. 57. Ibidem, p. 56. 69 A partir do exposto compreendemos que a necessidade do cuidado de si que se instaura nesse momento em Alcibíades não diz respeito somente a uma lacuna que precisa ser preenchida no contexto político, mas, ao contrário, tem como relevância complementar e corrigir uma educação defeituosa que se caracteriza a partir de dois pontos: primeiro a educação recebida pelo seu escravo; segundo pela falta de complementação do ciclo da pederastia. Em terceiro lugar, temos a relação entre o “cuidado de si” e a necessidade da formação do jovem num determinado momento do curso de sua vida. Pelo que foi visto anteriormente, o processo educativo se dá necessariamente dentro de um período muito específico. A juventude é o ápice para que o mancebo se atualize em relação às atividades políticas. Destarte, com vistas ao cuidado de si, Sócrates adverte Alcibíades sobre as possibilidades da sua formação tendo em vista a sua juventude. Se já tivesse cinquenta anos, isso não seria possível, o que nos leva a entender que essa idade não é propícia ao “ocupar-se consigo”, pois se está velho para tal. O momento oportuno, como afirma Foucault, é aquela “idade crítica, quando se sai das mãos dos pedagogos e se está para entrar no período da atividade política”.166 O cuidado de si nessa conjuntura se aplica dentro de uma paisagem cunhada pela necessidade de um contexto cronológico. É na juventude que se deve “ocupar-se consigo”. Por esse ângulo, a epiméleia heautôu instaura-se numa estrutura que tem como base corroborar, de forma eminente, para a formação e o aprimoramento dos “jovens aristocratas destinados a exercer o poder”,167 como em Alcibíades. Emerge, nesse discurso, um dos pontos de grande relevância para a epiméleia heautôu. Em Alcibíades, como se observa, manifesta-se prioritariamente durante a juventude; contudo, nas filosofias posteriores, a exemplo do epicurismo e do estoicismo, o cuidado de si se deslocará para outro contexto totalmente diverso: sua aplicação se tornará uma necessidade durante todo o percurso existencial do indivíduo, como veremos posteriormente. Enfim, a quarta condição diz respeito à necessidade e à condição do cuidado de si em Alcibíades. Existe nele o desejo de se ocupar com os outros, com a cidade, no entanto, não sabe como o fazê-lo, pois ignora as atribuições de um bom 166 167 FOUCAULT, M. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p.35. Ibidem, p. 75. 70 governo, em outras palavras, ignora a própria natureza do seu objeto de desejo: como assegurar a satisfação dos cidadãos – a concórdia. Ainda, ignora a si mesmo ao desconsiderar que ignorava aquilo que não sabia. Alcibíades, ao tomar consciência da ignorância que lhe cerceava, reconhece que poderia estar nesse estado de deficiência há bastante tempo, entretanto Sócrates o acalma e conforta ao afirmar que ele ainda é jovem, pois não está naquela idade em que o tempo marcou como sendo desqualificada para cuidar de si, a saber, os cinquenta anos. Em síntese, o jovem Alcibíades sabe que quer cuidar da cidade, contudo não basta ter status, fama ou riquezas para governar, ele precisa acima de tudo sanar aquilo que ignora e ter acesso à noção de um bom governo; para tanto, necessita primeiramente cuidar de si mesmo para lograr sucesso em seus projetos. Portanto, a ênfase que emerge nessa discussão está marcada por uma questão bem peculiar nos diálogos socráticos, “a ignorância que se ignora”:168 Alcibíades precisa superar a própria ignorância, ocupando-se de si e por consequência saber/aprender a governar bem a cidade. Decerto, a leitura que Foucault oferece desses quatro elementos em Alcibíades muito tem a acrescentar em nossa discussão e servirá, portanto, como base de sustentação para o debate no entorno do deslocamento e a generalização do cuidado de si, como veremos a seguir. 2.2 O cuidado de si e seus desdobramentos para além de Alcibíades Durante os períodos helenístico e romano, a noção platônica do cuidado de si vai aos poucos se dilatando, atingindo outros aspectos, ampliando seus significados, reservando para si uma perfeita generalização do termo: primeiramente na vida do indivíduo ao se tornar coextensivo a ela, no segundo momento ao se estender a todos os indivíduos. Contudo, como aludido em nossa discussão, o texto de Alcibíades percorre nitidamente algumas especificações que foram destacadas no texto acima e que determinam como que o limite do cuidado. Como atestam as seguintes considerações: o texto apresenta por princípio que aquele que deve cuidar de si é o jovem de família abastada e socialmente influente tal como Alcibíades. Assim, por 168 Ibidem, p. 43. 71 uma ordem social, o jovem aristocrata é quem deve se dedicar às atividades políticas e, por conseguinte, administrar a cidade. Num segundo momento, fica prescrito que o jovem aristocrata tem como propósito cuidar de si com ênfase no governo dos outros de forma vigilante e virtuosa. E, por último, o diálogo expressa, nas suas linhas finais, 129a, a culminância de que cuidar de si refere-se expressamente a conhecer a si mesmo. Por sua vez, essas três especificações encontradas no Alcibíades tendem a submergir no decurso da história à medida que a epiméleia heautôu vai se constituindo de novos significados. Segundo Foucault, essa ruptura não é dada de forma abrupta, mas tende a seguir um longo processo até se instaurar nos séculos I e II de nosso tempo, revestida com novas roupagens.169 Dessa forma, rompendo com as determinações acima apontadas em Alcibíades, o cuidado de si passará a se apresentar de forma mais aberta e menos individualista, afirmando-se num âmbito mais social, direcionado a todos os indivíduos, sem prescrição cronológica ou configuração estatuária, isto é, em todos os momentos da vida é possível e necessário cuidar de si, independentemente da classe social a que se pertença. Além do mais, a finalidade para a qual se direciona o cuidado de si, explicitamente apontada no diálogo, diz respeito à cidade e ao governo dos outros; assim, “o cuidado de si é, portanto, indissoluvelmente cuidado da cidade e cuidado dos outros”.170 Na verdade, o aspecto característico sobre a finalidade do cuidado de si em Alcibíades afirma que o objeto do cuidado diz respeito ao eu, mas a finalidade aponta para a cidade. A cidade é constituída como um elemento de acesso ao cuidado de si mesmo, pois somente sob a mediação da cidade o eu pode ser atingido. Sob esse prisma, o eu se configura tanto como objeto quanto finalidade, pressupondo de antemão que o eu enquanto finalidade só será alcançada exclusivamente por meio da cidade. Não obstante, a epiméleia heautôu especialmente na era Imperial, séculos I e II, o eu termina por assumir a propriedade tanto de objeto como também aparece sob o escopo da finalidade do cuidado de si, daí compreender que aquele que cuida de si, cuida exclusivamente por si mesmo. Certamente nesse novo modelo a tarefa do cuidado de si aponta para outra estrutura. Agora, ocupar-se de si tem por 169 170 Cf. Ibidem, p. 76. HADOT, Pierre. O que é a filosofia antiga? 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2004, p. 67. 72 propósito cuidar de si mesmo. Seu deslocamento recai sobre o eu, destituindo a cidade como finalidade a ser atingida. A partir desta noção não é mais a cidade bem demarcada como em Sócrates que se torna a finalidade do cuidado de si, na verdade o caminho é atingir todos os outros indivíduos, um verdadeiro cosmopolitismo – o homem agora é um cidadão do mundo, em que a prática desse cuidado se reverte em uma atitude ética de alcance geral. O tema sobre o cuidado que se consagrou em Sócrates, termina por dissipar todas as suas concepções primeiras e progressivamente vai se alargando e ao se desprender da sua gênese esboça um sentido no qual Foucault, denomina de cultura de si. Sobre essa nova abordagem do cuidado de si, vejamos o que nos afirma Foucault: [...] o preceito segundo o qual convém ocupar-se consigo mesmo é em todo caso um imperativo que circula entre numerosas doutrinas diferentes; ele também tomou a forma de uma atitude, de uma maneira de se comportar, impregnou formas de viver; desenvolveu-se em procedimentos, em práticas e em receitas que eram refletidas, desenvolvidas, aperfeiçoadas e ensinadas; ele constituiu assim uma prática social, dando lugar a relações interindividuais, a trocas e comunicações e até mesmo a instituições; ele proporcionou, enfim, um certo modo de conhecimento e a elaboração de um 171 saber. Por consequência dessa generalização, na qual incorre a epiméleia heautôu, temos ainda uma terceira e importante análise que se coaduna sob a perspectiva da negação de que cuidar de si refere-se única e necessariamente ao conhecimento de si. Embora não se possa afirmar que essa fórmula tenha sido excluída, o que se pode evocar é que ela se eclipsou em diversas outras estruturas de forma mais dinâmica, esboçando novos contextos e novas expressões, como discutiremos adiante. Desta feita, o conteúdo pelo qual se expressa o fundamento do cuidado de si agora versa para além do diálogo de Alcibíades e seu núcleo entorno da atividade do conhecimento de si. Contudo, é preciso recordar que a expressão pimélesthai heautoû (ocupar-se consigo mesmo, preocupar-se consigo, cuidar de si) 172 desde o Alcibíades ocupa um significado que é importante perceber: epimélesthai não designa meramente um estado de espírito, tendo em vista que sua etimologia apresenta vínculo com a palavra meléte que se refere a exercícios. Por sua vez, 171 172 FOUCAULT, M. História da Sexualidade, 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985, p. 50. FOUCAULT, M. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p.77. 73 epimélesthai diz respeito não somente a uma atitude de espírito, mas por outro lado, oferece um leque de sentidos que remetem a um tipo de atividade que se consagre vigilante, ostentando o rigor e a aplicação contínua dessa tarefa. Contudo, é comum a partir da literatura filosófica e demais textos o acesso a inúmeros vocábulos e expressões que designam o sentido da palavra epimélesthai apenas no que se refere à atividade de conhecimento. Todavia, podem ser elencados até quatro grupos de palavras que indicam as demais expressões: em primeiro lugar encontramos ainda um grupo que versa sobre a atividade de conhecimento que diz respeito à atenção, ou mesmo ao olhar em torno de si mesmo: estar atento a si (prosékhein tòn noûn);173 ou mesmo sobre a necessidade de voltar o olhar para si, como aponta Foucault, “[...] há, por exemplo, toda uma análise de Plutarco sobre a necessidade de fechar as janelas, as persianas do lado do pátio exterior e voltar o olhar para o interior da sua casa e de si mesmo”.174 Ainda, incluímos nessa categoria a necessidade do exame de si mesmo (skeptéon sautón). Em segundo lugar, é possível destacar um vocabulário que se distancia da conversão do olhar, da vigilância sobre si mesmo, mas que por outro lado, acena para um movimento de maior alcance no entorno da existência que convida, clama pelo voltar-se para si. Voltar-se para si é o mesmo que convertere. Desse modo, temos a reunião de várias expressões que moldam esse segundo grupo no entorno da conversão: “retirar-se em si, recolher-se em si, ou ainda descer ao mais profundo de si mesmo”.175 Outras formas se apresentam com o sentido de expressar uma atividade, como refletir sobre si mesmo, procurar a si como um refúgio ou como um lugar fortificado para se proteger, daí afirma Sêneca que “[...] A filosofia deverá circundar-nos, como uma muralha inexpugnável que a fortuna, embora a assalte com inúmeros engenhos, nunca poderá transpor”.176 Num terceiro momento, se encontram as expressões cunhadas como atividades particulares ou mesmo como condutas em relação a si mesmo. Algumas se referem ao vocabulário médico, tais como: “tratar-se, curar-se, amputar-se”.177 Outras assumem um valor do tipo de jurídico e pressupõe uma atividade que implica 173 Ibidem, p. 78. Ibidem, p. 78. 175 Ibidem, p. 78. 176 Carta 82, 5. 177 FOUCAULT, M. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p.78. 174 74 na autoridade e direito sobre si mesmo, ou seja, é preciso reivindicar os seus direitos, para libertar-se do jugo daquilo ao qual se está escravizado. É o que nos afirma Sêneca em sua primeira carta, “procede desse modo, caro Lucílio: reclama o direito de dispores de ti (vindica te tibi), concentra e aproveita todo o tempo que até agora te era roubado, te era subtraído, que fugia das mãos”.178 Nesse grupo, agregam-se também as expressões de cunho religioso que direcionam a atividade para o culto de si, à honra de si mesmo e ao respeito de si. Por fim, o quarto e último grupo assentam as expressões que designam a relação permanente de si para consigo mesmo e que revelam o domínio de si, em que o homem se torne mestre de si e senhor das suas sensações, aquele que deve buscar a verdadeira alegria, a real satisfação.179 Certamente, o relevo que se delineia a partir das várias expressões sobre o cuidado de si, infere sobre a mudança de foco e o distanciamento que se deu em relação ao conhecimento de si. Por esse campo de atuação, vislumbramos mais nitidamente o caminho percorrido pela epiméleia heautôu na atividade da prática de si. 2.3 O cuidado de si em Sêneca De início, encontramos em Sócrates como que o primeiro enunciado sobre o cuidado de si, no texto platônico o Alcibíades, em que o filósofo assume o preceito de que cuidar de si é necessariamente conhecer a si mesmo. Esse princípio imprime, portanto, o primeiro passo no longo processo que constitui o cuidado de si. Vimos, então, que a noção se ampliou abandonando a ideia de uma prática como privilégio para alguns na sua formação ética e política e ascendeu como forma acessível para toda a esfera social, isto é, para todos aqueles que desejam uma vida ética. Ou seja, o sentido do preceito do cuidado de si transbordou chegando a alcançar o estoicismo romano em que encontramos a figura de Sêneca e a sua cura sui. Nesses termos, a compreensão do sentido da epiméleia heautôu em Sêneca pode ser marcada de início a partir das palavras registradas na Carta 121: 178 Carta 1, 1. Sobre a verdadeira alegria destituída de valores externos a qual deve nascer dentro de nós mesmos, ver notas 228 e 229. 179 75 [...] se eu busco o prazer, é para mim que o busco. Daí o cuidado com a minha pessoa. Se eu evito a dor, é em meu proveito que o faço. E se eu faço tudo em atenção à minha pessoa é porque o cuidado com a minha 180 pessoa sobreleva a tudo o mais. O tema do cuidado de si emerge em Sêneca como vimos, considerando o valor à sua pessoa em primeiro plano. Além disso, notadamente à atenção que deve recair sobre si mesmo necessita percorrer toda a extensão da vida, então, o filósofo promulga um cuidado extensivo não somente a uma determinada etapa da vida, mas que se exerça o cuidado consigo mesmo independente de qual etapa da vida o homem se encontre: “[...] A natureza incumbe-me de cuidar de mim, e não de uma criança, de um jovem ou de um velho [...]”.181 Isso nos faz lembrar as palavras de Epicuro ao determinar que uma prática como esta deva perscrutar todas as fases da nossa vida, visto que nunca é demasiadamente cedo ou tarde para reter cuidados com a alma.182 Com isso, quando se cuida da alma a alegria que se instaura no homem é de um sentido mais nobre, remontando a um estado de harmonia e perfeição, na qual a alma estará resguardada dos desejos e o corpo de qualquer sofrimento. Eis como Sêneca descreve esse momento: O céu, quando está sereno, quando está perfeitamente transparente não é susceptível de tornar-se mais claro ainda; do mesmo modo um homem que vele pelo seu corpo e pela sua alma e que faça depender de ambos o seu bem supremo, atingirá o total equilíbrio, alcançará a plenitude dos seus 183 desejos se encontrar ao abrigo da agitação na alma e da dor no corpo. O ideal a seguir, segundo Sêneca, é que o homem venha a requerer o direito sobre si mesmo sob uma forma de reivindicação, como já nos referimos anteriormente e no qual a ideia aqui também se aplica.184 Portanto, é necessário que invista tempo e disponibilidade para cuidar de si, “façamos com que todo o nosso 180 Sobre o uso do vocábulo “prazer” Sêneca explica-nos que está ciente de que seu uso não esteja muito adequado no contexto estoico. Isto é explicado na Carta 59 em que o filósofo justifica o uso do vocábulo ao seu discípulo: “A tua carta deu-me enorme prazer. Consente que eu use o vocabulário de toda a gente, sem entenderes as minhas palavras em sentido estoico. É crença nossa que todo o prazer é um vício. Seja; nem por isso deixamos de empregar o termo “prazer” para denotar uma alegria interior. Sei muito bem, repito, que, de acordo com os nossos dogmas, “prazer” é uma coisa indigna e que apenas o sábio conhecer a verdadeira alegria, essa exaltação da alma na plena posse dos seus bens autênticos.” 181 Carta 121, 16. 182 Cf. Carta a Meneceu, Fr. 122, 1 (Usener) (=L.S. 25A). 183 Carta66, 45. 184 Carta 1, 1. 76 tempo nos pertença, o que só será possível se começarmos por nos tornarmos donos de nós próprios”.185 Por outro lado, o pensador romano discrimina aquele que por qualquer motivo gaste seu tempo com atividades inúteis, as quais possam corroborar prejudicialmente para com a prática do cuidado. Segundo o filósofo, o tempo é algo que o homem deixa escapar pelos dedos, se esvai sem perceber, isso acontece pelo fato de se está sempre ocupado com atividades de pouca ou nenhuma relevância, o mau uso do tempo, o agir de forma inútil, é o pior de todos os descasos: “Mas o pior de tudo é o tempo desperdiçado por negligência. Se bem reparares, durante grande parte da vida agimos mal, durante a maior parte não agimos nada, durante toda a vida agimos inutilmente”.186 Se dedicar a tarefas que pouco ou nada produza em nós um efeito benéfico é a rigor condenável aos olhos de Sêneca, a princípio deve-se reger o tempo ao seu favor, com aquilo que lhe traga êxito. Com isso, declara o filósofo: Eu sou um homem livre, Lucílio, inteiramente livre, e, onde quer que esteja, tenho todo o tempo à minha disposição. Não me entrego aos afazeres, presto-me a eles, quando muito, e não me ponho à procura de ocasiões para perder tempo. Onde quer que me encontre passo em revista os meus 187 pensamentos e medito em qualquer coisa que me seja profícua. Nesse sentido, Sêneca exorta o discípulo Lucílio no sentido de esclarecer a necessidade do movimento do cuidado de si, do governar-se a si, afirmando: “observa-te a ti mesmo, analisa-te de vários ângulos, estuda-te”, pois somente a partir desse estado do cuidado de si é que se pode alcançar a tranquilidade, pautando suas ações em torno do desejo de saber o que fazer, o que é melhor para si, configurando-se num processo de autoconhecimento e aspiração para uma vida virtuosa. Dentro da mesma linha de pensamento, dispomos das palavras de Marco Aurélio, as quais reforçam o sentido e a exigência de um tempo para o cuidado de si. O imperador romano exorta a si mesmo, e a seus leitores potenciais, para que reconheçam que não há lugar específico ou a necessidade de isolamento para cuidar de si: “A gente procura para si retiros nas casas de campo, na beira-mar, nas 185 Carta 71, 36. Carta 1, 1. 187 Carta 62, 1. 186 77 serras; tu também costumas anelar vivamente por isolamentos desse gênero”.188 Porém agir dessa maneira é um engano, pois em qualquer lugar ou circunstância é propício recolher-se ao cuidado: “Tudo isso, porém, é o que há de mais estulto, quando podes retirar-te em ti mesmo à hora que o desejes [...]”.189 A busca por uma vida interior tranquila diz respeito não aos espaços físicos em que se encontra o homem, posto constituir o modus vivendi da própria alma. Em face disso, declara Sêneca: No entanto, no que concerne à tranquilidade do espírito é de pouca monta a escolha do local: a alma é que confere a cada coisa o seu valor respectivo. Já conheci gente triste que vivia em vilas risonhas e aprazíveis; já encontrei pessoas que, vivendo em completo isolamento, pareciam sempre atarefadíssimas. Não há, portanto, qualquer razão para pensares que o facto de não viveres na Campânia te impede de gozar uma serena vida 190 interior. Nessa direção, Sêneca reconhece que mudar de um lugar para outro em busca de um momento de tranquilidade não reflete nenhuma transformação, visto que esse momento só é alcançado quando a alma se entrega a si mesma por completo. O que se precisa entender é que estão nas próprias pessoas os motivos das suas aflições, portanto, almejar a tranquilidade de espírito só é possível mediante uma mudança em si próprio. “Na realidade, são elas a causa das próprias angústias, cuidados, aflições e receios. De que serve atravessar o mar andando sempre de uma cidade para outra? Se queres escapar dos males que te afligem, precisas de te tornar outro homem [...]”.191 Com efeito, o homem por excelência é o único animal dado ao cuidado de si, diferentemente dos demais animais. Não obstante, o que pesa essa máxima para o homem? Esse seria mesmo um privilégio do homem em detrimento dos outros animais? Na verdade há que se distinguir o valor atribuído pela natureza a cada um dos seres, segundo a justificativa da necessidade do cuidado de si propício apenas ao homem. Com isso, vale reportar-se à distinção feita por Sócrates em relação ao 188 MARCO AURÉLIO. Meditações, IV, 3. IV, 3. 190 Carta 55, 8. 191 Carta 104, 8. 189 78 cuidado com o corpo e com a alma, de modo que cuidar de si é necessariamente cuidar da alma.192 Os animais, como sabemos, são dotados pela natureza de uma capacidade instintiva que lhes permitem um viver em harmonia com a natureza, uma vez que, para eles, todas as coisas estão dadas, o que lhes possibilitam um cuidado apenas no âmbito físico para o seu viver, pois a partir do seu instinto ficam assegurados os cuidados básicos destinados à alimentação, descanso: “O tipo de movimento próprio dos animais irracionais é apenas aquele que a sua natureza lhes permite”.193 Ao homem diferentemente cabe-lhe velar por si mesmo, visto que a ele lhe foi dada a capacidade racional para poder gerenciar ele próprio o seu agir. Em face disso, podemos compreender que: Há uma scala naturae no estoicismo. Em entidades sem vida tais como as pedras ou a água, o pneûma divino constitui a coerência interna e as propriedades físicas (hexis), incluindo as mudanças. O pneûma permite que as plantas se sustentem a si mesmas (phýsis) e confere aos animais percepção e mobilidade (psykhé). Os seres humanos não só compartilham do tipo de pneûma que constitui a vida, como também são também governados por uma porção do pneûma em sua forma mais pura, a saber, a razão (diánoia). Na qualidade de princípio diretor (hegemonikón), o pneûma 194 racional determina todas as ações. Com isso, ensina-nos Sêneca na Carta 124, 20 sobre o valor da razão no homem: “Tal valor absoluto no homem é exclusivo dos seres racionais a quem é facultado saber porquê, dentro de que limites e de que modo agir”. Ainda, na mesma carta, Sêneca esclarece que a razão é bem exclusivamente do homem, como já comentado anteriormente, a qual o coloca acima de todos os outros seres: “[...] És um animal racional. Qual é então o teu bem próprio? A perfeita razão”.195 Contudo, isso não significa menosprezar os demais seres, haja vista que a natureza proveu a cada um com o seu valor, tornando-o perfeito dentro da sua realidade. “Os restantes seres são perfeitos em relação à sua natureza, mas não absolutamente perfeitos porque desprovidos de razão [...] os diversos seres só podem ser perfeitos em 192 Cf. pp. 63-64 deste capítulo. Carta 124, 19. 194 FRED, Dorothea. Determinismo estoico. In: INWOOD, Brad. Os Estóicos. Tradução Raul Fiker; preparação e revisão técnica Paulo Fernando Tadeu Ferreria. São Paulo: Ed. Odysseus, 2006, p. 206. 195 Carta 124, 23. 193 79 relação à sua espécie”.196 Por essa razão, cabe apenas ao homem o cuidado de si mesmo, visto que é coroado pelo bem em si que é a razão, a qual lhe faculta o direito de buscar os caminhos da felicidade, o seu bem viver. Como bem marca o pensador: “O animal irracional não conhece a felicidade nem as condições que permitem a felicidade, logo não existe o bem no animal irracional.197 E ainda: “O bem em si não pode de modo algum ser apanágio de um animal irracional, uma vez que é específico de seres mais dotados e perfeitos. O bem só existe onde existe a razão”.198 Ocorre que a ascensão à felicidade só é possível ao homem mediante um saber viver que, segundo Sêneca, é um princípio que necessita ser seguido de forma incessante, por toda a vida até morrer: “[...] enquanto vivermos, temos de aprender a viver!”.199 Com isso, cabe ao homem a responsabilidade pelo seu cuidado e o domínio de suas ações, resguardando para si um leque de outras atividades condizentes com a sua natureza racional. Nesse sentido, vejamos o que afirma o filósofo romano: Cada um deve procurar saber para onde vai, donde provém, em que consiste para si o bem e o mal, quais as coisas alcançar, quais as quais de evitar; deve saber que coisa é essa razão graças à qual se torna apto a discernir as metas a atingir e a evitar, essa razão que acalma a loucura dos 200 desejos e aniquila a ferocidade dos temores. Essa preocupação com o cuidado também é uma exigência em Marco Aurélio. Com relação ao chamado para o cuidado, o imperador romano assim exorta: “recobra os sentidos, reanima-te e, sacudido o sono, compreendendo que eram sonhos o que te molestava, olha de novo as coisas desperto, como as costumavas olhar”.201 O tema do cuidado de si pode ainda se concebido sob a fórmula de uma conversão202 a si, que implica uma maneira de o homem buscar em si mesmo um lugar seguro e confiável, como já apontamos anteriormente. Cabe, nesse movimento 196 Ibidem, 14. Ibidem, 15. 198 Ibidem, 13. 199 Carta 76, 3. 200 Carta 82, 6. 201 MARCO AURÉLIO. Meditações, VI, 31 . 202 A conversão a si sob o escopo do contexto estoico é diferente da tradição grega anterior, bem como do modelo delineado pelo pensamento cristão. Cf. FOUCAULT, M. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, pp. 188-190. 197 80 de retorno a si mesmo, a condição do encontro de um porto seguro que afaste tudo aquilo que possa significar perigo e desalento para o homem: “De qualquer modo evitemos quanto possível mesmo os incómodos, e não somente os perigos, coloquemo-nos em lugar seguro mas refletindo desde logo nos meios como afastar os motivos de temor”.203 Com efeito, o processo de conversão a si implica que sejamos capazes de “construir” interiormente uma muralha que impeça, a todo custo, que as coisas externas atinjam-nos. Somente nessa condição a alma estará imune aos ataques da fortuna. Lembra-nos Sêneca que “a alma que se aparta de tudo quanto é externo, que se defende no seu domínio próprio, alça-se por isso mesmo um lugar inacessível donde vê todos os dardos cair sem lhe tocarem [...]”.204 A mesma imagem descrita em nosso pensador pode ser também encontrada nas palavras do imperador romano: “Lembra-te de que o guia se torna inexpugnável quando, recolhido em si, [...] Por isso a inteligência isenta de paixões é uma fortaleza; o homem não tem abrigo mais fortificado onde se refugie e se livre, para o futuro, de cair prisioneiro”.205 Ocorre que, para se atingir a figura do homem forte ou mesmo para se acessar a fortaleza inexpugnável que há em si, é preciso que haja mudanças no seu modo de ser, ou seja, cabe ao homem transformar-se para enfim alcançar a conversão. Atingir essa meta requer esforço e um contínuo cuidado sobre si mesmo. Além disso, voltar-se em direção a si mesmo exige do homem a compreensão de que há coisas que estão ao seu domínio e, portanto, dependem da sua ação, enquanto que, por outro lado, existem outras coisas que fogem ao seu controle e não dizem respeito ao seu querer, como reforçará Epicteto posteriormente.206 Assim, avistamos em Sêneca a sua preocupação no que tange à sua transformação, a qual se concretiza totalizando mudanças. O retrato desse progresso é dado pelo próprio Sêneca: Verifico, Lucílio, que não apenas me estou corrigindo, antes estou me transfigurando. Não garanto, nem sequer espero, que nada já reste em mim sem necessitar de mudança! Como não hei de eu ter ainda muito que deva ser refreado, ou diminuído, ou elevado? Mas já é uma prova de que o espírito alcançou um degrau superior o facto de reconhecer os defeitos que 203 Carta 14, 3. Carta 82, 5. 205 MARCO AURÉLIO. Meditações, VIII, 48. 206 Cf. nota 62. 204 81 até então permaneciam ignorados: já é motivo para felicitar certos doentes o facto de eles próprios se reconhecerem doentes. [...] Desejaria compartilhar 207 contigo está súbita mudança operada em mim. Como se pode observar, o filósofo romano exalta com alegria as mudanças já ocorridas em sua alma e compartilha com Lucílio o seu processo de conversão a si. Contudo, alerta que ainda há muito que melhorar, mas que o início desse processo já se estabeleceu a partir do reconhecimento da própria doença. Elegendo essa etapa como um princípio do processo de conversão, do seu cuidado de si, ou seja, reconhecer o estado doentio e a necessidade de melhoria é um mérito dado à alma, aponta o filósofo, expressando sua própria correção, mais do que isso, uma transfiguração. Contudo, o filósofo compreende que a conversão a si é coisa séria, que deve ser realizada de maneira bem preparada e não de forma intempestiva. É o que expõe o pensador na Carta 11 ao relatar a Lucílio uma conversa ocorrida entre ele, Sêneca e um amigo do discípulo, na qual Sêneca se alegra com as mudanças já percebidas no rapaz. Contudo reclama sobre a preparação no processo de conversão: Estivemos conversando, o teu amigo e eu, e esta primeira conversa revelou-me o seu bom caráter [...], deu-me a conhecer quanto nele há de ânimo, inteligência, mesmo já de progresso no campo filosófico. Como que me deu a provar aquilo que virá a ser no futuro, tanto mais que a conversão 208 não fora preparada, mas ocorreu de improviso. Como vimos enfatizando, a conversão a si implica num retorno a si, num volver o olhar para si, de modo que nesse movimento o homem seja capaz de desviar o olhar das coisas exteriores para que possa concentrar-se em si mesmo. Isso visto de outro ângulo poderia ser interpretado como um excesso de individualismo, ou mesmo como uma apologia ao solipsismo moral, levando a crer que o cuidado de si desconsidera o compromisso com o cuidado com o outro. E aqui convém precisarmos um pouco melhor os desdobramentos do conceito. Recordemos que, na ética estoica, a discussão acerca do cuidado está intimamente ligada às questões referentes à oikeíosis209, a qual tem como referência 207 Carta 6, 1-2. Carta 11, 1. 209 Cf. notas 52 e 53. 208 82 a apropriação de si mesmo, e que poderia ainda, num sentido metafórico, ser entendida como “amor próprio”. Esse tema, por sua vez, segundo nos atesta Oliveira, reverberou na tradição filosófica ocidental por inúmeros moralistas, dentre os quais alguns apontaram que o ideal de amor próprio não se veiculava ao compromisso com os ideais de um amor universal, o qual por sua vez seria passível de desabar num genuíno egoísmo, desconsiderando qualquer preocupação relativa ao outro.210 Contrário a essa constatação, o filósofo romano apresenta uma abordagem diferenciada sobre o tema da apropriação sobre si mesmo. Sêneca ao seu modo demonstra a ideia de um cuidado com vistas ao desenvolvimento de uma prática moral que sustentasse em seu cerne o alcance de um cuidado com valores altruístas: “Quem só cuida de si e procura amizades com fins egoístas não pensa corretamente”.211 Decorre, nesse sentido, que o cuidado de si, ao contrário de concorrer para uma atividade solitária, espelha-se na verdade numa prática social.212 A partir desse entendimento, temos um Sêneca que empreende a tarefa de escrever dentro de um contexto das relações sociais, daí que encontramos em seus escritos as cartas consolatórias cada uma endereçada a alguém em especial que se encontrava mergulhada numa determinada situação, como, por exemplo, a Consolação a Márcia já destacada no primeiro capítulo; temos também as Cartas a Lucílio frutos da relação de amizade entre o mestre e o seu discípulo. Em todas essas epístolas, como também nos outros diálogos, temos Sêneca sempre ocupado com os resultados de seus ensinamentos. A relação de amizade que se estabelece entre ele e seus interlocutores213 é a recompensa maior. Assim, cuidar do outro se torna uma recompensa: “Apressa-te, pois, enquanto podes ser-me proveitoso, não vá a tua aprendizagem redundar em benefício de outro qualquer! [...] e sei que o que a minha idade já perdeu em vigor poderá recebê-lo da tua [...]”.214 E, acrescenta: “vem depressa até a mim, mas chega primeiro até a ti mesmo!”.215 Assim, o 210 Cf. OLIVEIRA, Luizir de. A arte de cuidar de si. In: CARVALHO, Helder B. A de, CARVALHO, M. C. M. (Org.). Temas de Ética e Epistemologia. Teresina: EDUFPI, 2011, p. 47. 211 Carta 9, 8. 212 Cf. FOUCAULT, M. História da Sexualidade, 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985, p. 57. 213 Talvez uma exceção pudesse ser feita à Consolatio ad Polybium que se reveste de um caráter mais adulatório e cujo objetivo era tornar o “amigo” propenso a interceder por ele junto ao Imperador a fim de conseguir que voltasse do exílio. Contudo, as ideias estoicas seguem presentes, mesmo em se tratando de um escrito controverso. 214 Carta 35, 2. 215 Ibidem, 4. 83 pensador romano, ao reivindicar a amizade de Lucílio, o faz compreender que primeiramente deve cuidar de si para então cuidar dos outros. A mesma preocupação reforça-se na Carta 104. Nela a ocupação com o outro é marcante. Sêneca reconhece a dedicação com que é tratado por sua esposa, posto estar ela sempre o exortando a cuidar da sua saúde, ao passo que também percebe que a vida de sua esposa depende da sua, visto que quanto mais cuidar de si, maior será sua condição para cuidar de Paulina216: “E como eu sei que a sua existência está totalmente dependente da minha, para velar por ela tenho de começar a velar por mim próprio”.217 E ainda nos revela sem hesitar que mesmo que infelizmente ele não consiga que Paulina o ame com a mesma intensidade de antes, percebe no modo como ela o trata seus desvelos para que ele se cuide com maior atenção. Sêneca enfatiza que é nobre reconhecer o afeto que outrem possa nutrir por nós, mas mantém no horizonte a lembrança de que o homem de bem não pode esquecer que o seu viver não deve durar para sempre, de acordo com o seu querer, mas sim enquanto for necessário.218 Considera Sêneca que, mesmo diante dessa postura, seria puro egoísmo não poupar a vida em prol daqueles que carecem da nossa presença, “quando o interesse dos familiares o exige, a alma deve impor a si mesma a vida; pode ter decidido o suicídio, pode mesmo já ter iniciado o processo: pois que desista e ponha à disposição dos que dela precisam”.219 Agir desse modo é uma prova de tamanha consideração com o seu próximo, porque aquele cuida de si, cuida pelo bem do outro também: “considero ainda prova da maior consideração pelo próximo o facto de cuidarmos com maior atenção da nossa velhice [...] caso verifiquemos que a nossa presença é agradável, útil preciosa para qualquer familiar”.220 Nesta linha, a reflexão ética exigida coaduna-se em relacionar a apropriação que se tem de si, ao mesmo tempo em que se observem as garantias de responsabilidade como fundação do cuidado com o outro. Sêneca, sensível a essa abordagem, elucida-nos sobre a necessidade de um acurado exame de consciência 216 Sêneca se casou duas vezes, da primeira esposa não se tem muitas informações, apenas que teve um filho e que veio a falecer em 41 d.C. Tempos depois, matrimoniou-se com Paulina com quem permaneceu até sua morte. 217 Carta 104, 2. 218 Cf. Ibidem, 3. 219 Ibidem, 3. 220 Ibidem, 4. 84 que concorra para a ampliação de uma prática menos egoísta e mais altruísta, “a boa consciência exige o testemunho dos outros; a má vive em contínua ansiedade, mesmo na solidão. Se os teus atos são honestos, deixa que todos os conheçam [...]”.221 A esse respeito, Oliveira, em consonância com o pensamento senequiano, destaca que “o objetivo dos homens deveria centrar-se num „cultivo de si‟ que se voltasse para o desenvolvimento de capacidades espirituais latentes e que não mantivesse no horizonte apenas a própria individualidade [...]”,222 mas que também fossem capazes de ampliar o seu espaço de ação “[...] em prol da comunidade para e na qual devem viver, trabalhar e produzir”.223 Assim, temos nas palavras do filósofo estoico romano o caminho para um agir de forma altruísta, negando o escopo de uma prática particularmente egoísta. A ênfase que é dada diz respeito ao cuidado de si como resposta ao cuidado dos outros: “[...] vivemos em comunidade. Não é mesmo possível alguém viver feliz se apenas se preocupar consigo, se reduzir tudo às suas próprias conveniências: tem de viver para os outros quem quiser viver para si mesmo”.224 Logo adiante, o filósofo relata que aquele que cuida de si também reverbera mudanças e melhorias para outrem, “feliz o homem que, não apenas pela sua presença, mas até só pela sua imagem torna os outros melhores!”.225 Posto isso, evidenciamos que a conversão a si, como pressuposto do cuidado de si, é encontrada em Sêneca num sentido que permite ter no horizonte não apenas um olhar de retorno a si em detrimento do cuidado dos outros, mas pelo contrário, como já assinalamos, perpassa uma prática que sinaliza o viver em prol de si e dos demais. Além disso, essa é uma prática difundida na filosofia estoica, a qual figura seu agir não com interesses em seu bem próprio, sendo ele espiritual ou mesmo material, mas cuja preocupação é de interesse comunitário. Assim, nos esclarece o filósofo de Córdoba: [...] nenhuma escola é mais benévola e mais branda, nenhuma tem mais amor pelos homens e maior atenção pelo bem comum como a proposta de 221 Carta 43, 5. OLIVEIRA, Luizir de. A arte de cuidar de si. In: CARVALHO, Helder B. A de, CARVALHO, M. C. M. (Org.). Temas de Ética e Epistemologia. Teresina: EDUFPI, 2011, pp. 47-48. 223 Ibidem, pp. 47-48. 224 Carta 48, 2. 225 Carta 11, 9. 222 85 ser útil, de atender com seu auxílio aos interesses não somente seus, mas 226 de todos, em geral, e de cada um, em particular. Do mesmo modo acena Marco Aurélio para o reconhecimento de que aquilo que é um bem para si também ecoa para a sua comunidade. Assim, afirma o filósofoimperador: Ora, o interesse de cada um vai com sua constituição e natureza; a minha é racional e social. Como um Antonino, minha cidade e minha pátria é Roma; como homem, o mundo. Logo, só é um bem para mim o que for útil a essas 227 cidades. Em face disso, o sentimento que se experimenta pela prática do domínio de si distancia-se do sentido correspondente a qualquer sofrimento ou constrangimento. Para o homem a experiência de cuidar de si remete a um tipo de sentimento de instância superior, fundada na satisfação de um “trabalho bem feito”. O caminho percorrido pelo cuidado de si não é outro que não o da felicidade, pois essa é uma tarefa à qual é preciso entregar-se com alegria, fruída por todos aqueles que cuidam de si, um sentimento fundado na imperturbabilidade tanto da alma como do corpo, uma vez que essa alegria incorruptível tem sua fonte no próprio homem. Assim, Sêneca nos ensina que uma sensação dessa natureza só pode ser atingida ao se despojar das coisas externas. No entanto, só pode ser alcançada se aprendermos a cuidar de nós mesmos, ao passo que devemos também aprender a sermos alegres. O convite é feito tanto para o seu discípulo Lucílio, bem como aos seus demais leitores: O que tens a fazer antes de mais, caro Lucílio, é aprender a ser alegre [...] A alegria de que estou falando e à qual me esforço por fazer-te aceder, essa é de natureza constante, e tanto mais dilatada, quanto íntima. Peço-te, Lucílio amigo, age da única maneira possível para obteres a felicidade: repele e despreza aqueles bens que só brilham por fora, que dependem das promessas de fulano ou de benesses de cicrano. Faz do verdadeiro bem o 228 teu alvo, busca a alegria dentro de ti [...]. O filósofo ainda reforça o que está considerando como a verdadeira alegria que é aquela que tem sua origem dentro nós mesmos: 227 228 MARCO AURÉLIO. Meditações, VI, 44. Carta 23, 3; 5-6. 86 Considera-te a ti próprio feliz somente quando toda a alegria nascer de ti mesmo, quando, ao ver os objectos que os homens conquistam, ambicionam, guardam como preciosidades, nenhum encontrares entre eles 229 que tu prefiras ou, melhor ainda, que tu sequer desejes. Não há outra fonte maior de felicidade que aquela adquirida pela posse de si mesmo. Por isso, Sêneca não deixa de exortar o discípulo para que aja sempre de forma a desconsiderar tudo aquilo que lhe for externo como motivo de prazer. O homem que almeja atingir esse controle sobre si mesmo deve aprender a se desviar das coisas que não possuem uma luz própria. E mais, não deve levar como garantia os bens que dependam dos outros, pois reconhecer nas outras coisas a fonte da nossa própria felicidade é percorrer caminhos pouco sólidos e favoráveis à queda, “[...] O homem feliz, insisto, é aquele que nenhuma circunstância inferioriza; que permanece no cume sem outro apoio além de si mesmo, pois quem se sustenta com o auxílio dos outros está sujeito a cair”.230 Aquele que insiste em confiar sua felicidade aos bens exteriores, corre eminentemente o risco de perder aquilo que já adquiriu, “não se apoia em bases sólidas que tira a sua satisfação de bens exteriores, pois acabará por perder o bemestar que obteve. Pelo contrário, um bem que nasce dentro de nós é permanente e constante e vai sempre crescendo [...]”.231 Por isso, o filósofo é contundente em afirmar que somente de posse de si mesmo, após reivindicar-se, o homem encontrará a firmeza de ânimo e a segurança diante da instabilidade dos seus pensamentos: “o que eu te desejo é o domínio sobre ti mesmo, é o que teu espírito, atormentado por pensamentos inconstantes, acabe por se afirmar e ganhar convicções sólidas, e se sinta contente de si mesmo [...]”.232 Em razão disso, vejamos a título de ilustração os passos seguidos pelo sábio, segundo nos informa Sêneca: [...] a alegria pode sofrer interrupções no caso de pessoas ainda insuficientemente avançadas, enquanto, no caso do sábio, o bem estar é um tecido contínuo que nenhuma ocorrência, nenhum acidente pode romper; em todo o tempo, em todo o lugar o sábio goza de tranquilidade! Por quê? Porque o sábio não depende de factores externos, não está à espera dos favores da fortuna ou dos outros homens. A sua felicidade está 229 Carta 124, 24. Carta 92, 2. 231 Carta 98,1. 232 Carta 32, 5. 230 87 dentro dele; fazê-la vir de fora seria expulsá-la da alma, que é onde, de 233 facto, a felicidade nasce! Além disso, ressalta em qual tipo de estrutura o sábio se tornou – numa verdadeira fortaleza: [...] O sábio, porém, sempre alerta, sempre pronto a responder a qualquer assalto, não recuará um passo mesmo que sobre ele caiam a pobreza, a desgraça, a ignomínia (grande desonra infligida por um julgamento público; degradação social; opróbrio; caráter daquilo que degrada, humilha; ação, palavra que desonra, que envergonha) ou a dor; impertérrito, o sábio 234 afrontará estes males, passará pelo meio deles. Em face disso, o filósofo esclarece que aquele que já alcançou um patamar mais alto no seu cuidado de si alcançou um prazer análogo à tranquilidade, posto estar mais imune às adversidades, capaz de suportar qualquer revés, uma vez que o prazer que se tem consigo mesmo é de foro mais íntimo e autêntico, de uma vivência plena e duradoura, como aquela que se pode observar no sábio. Sêneca nunca perde de vista as justificativas daqueles que impõe objeções frente aos preceitos estoicos, bem como em relação ao sábio, e ao seu domínio de si: “demasiado grandes são as vossas promessas, como demasiado duros são os vossos preceitos”.235 E segue ironizando essa atitude derrotista típica dos homens de caráter fraco, aqueles que desconsideram a força com que a natureza lhes proveu: “nós somos pessoas vulgares, e não podemos renunciar a tudo. Somos sensíveis à dor, com moderação; sentimos desejos, mas com peso e medida; somos atreitos à cólera, mas capazes de nos deixarmos aplacar”.236 O papel do filósofo, nesses casos, é mostrar que há outro caminho para tais limitações: “sabes porque é que consideramos impossível dominarmo-nos a nós mesmos?”.237 A resposta vem em seguida e diz respeito à nossa falta de credibilidade em nós mesmos como agentes capazes do autodomínio, e além de tudo, pelo fato de amarmos consideravelmente os nossos vícios, buscando justificálos ao invés de remetê-los a exclusão. 233 Carta 72, 4. Carta 59, 8. 235 Carta 116, 7. 236 Carta 116, 7. 237 Ibidem, 8. 234 88 Com efeito, Sêneca nos alerta para tais considerações e nos intima ao serviço do cuidado, justificando que o motivo das nossas faltas está implicado na nossa falta de vontade, do nosso pouco querer: “A natureza deu-nos energia suficiente. A questão está [...] em juntar todas as nossas forças e pô-las ao nosso serviço [...]. A falta de forças não passa de pretexto; o que temos na realidade é falta de vontade!”. 238 Com isso, o filósofo reafirma sua indignação: Estou farto de encontrar pessoas que não acreditam que seja possível alguém fazer o que elas próprias são incapazes de fazer; segundo elas, as nossas doutrinas excedem as possibilidades da natureza humana. Dessas pessoas eu tenho melhor opinião do que elas próprias: todas elas são 239 capazes de seguir nossa teoria, só que não o querem. Contudo, é importante ressaltar que cuidar de si mesmo não é uma tarefa fácil de empreender, considerando que cabe ao homem reconhecer por si mesmo os caminhos que deve trilhar para que possa responder pelas consequências das suas escolhas. O caminho é longo e sua travessia por vezes se compara à dos navegantes que seguem por mares violentos, marcados por tormentas e tempestades. O homem conhece bem esse estado de tormenta quando se deixa levar pelos ataques das paixões. Precisamos ser fortes para não sucumbir e ceder aos seus ditames. Novamente, a preocupação voltar-se-á para o impulso arrebatador das paixões: [...] não te deixes perturbar, pensa imediatamente que a maior parte dos homens, sem que qualquer mal os aflija nem os venha a atingir como coisa inevitável, se deixem ir à deriva guiada pelas suas paixões. Ninguém resiste ao próprio impulso que tomou [...]. Deixamos-nos guiar ao sabor do vento; receamos o ambíguo como se fosse indiscutível; não agimos com conta, 240 peso e medida, uma simples inquietação logo se transforma em terror! Porém, tentar extirpar as paixões parece tarefa inexequível ao homem, portanto, cabe apenas que “[...] sejamos capazes de controlar seus arroubos. E uma vez que extirpá-las não é tarefa humanamente possível, o melhor caminho é procurar deixá-las sob vigilância”.241 238 Ibidem, 8. Carta 104, 25-26. 240 Carta13, 13. 241 OLIVEIRA, Luizir de. A arte de cuidar de si. In: CARVALHO, Helder B. A. de, CARVALHO, M. C. M. (Org.). Temas de Ética e Epistemologia. Teresina: EDUFPI, 2011, p. 46. 239 89 Assim, Sêneca como um dos que navegou por entre os mares turbulentos, reconhece o combate diário que incorre no interior do homem, por isso recomenda que não descuidemos da nutrição da nossa alma, deixando-a apta para o combate, pois um mínimo descuido pode lavar-nos a vacilar: “devemos endurecer a alma, mantendo-a afastada de todas as seduções de prazer”.242 É, portanto, marcadamente com esse tom que Sêneca nos apresenta o exemplo de Aníbal, que descuidando da sua vigilância fora arrebatado pelas paixões: Um quartel de inverno bastou para amolecer Aníbal; este homem que atravessava indômito as neves dos Alpes sucumbindo às molezas da Campânia: vencedor na guerra, foi vencido pelos vícios. A nossa vida é também um combate, e uma expedição guerreira em que nunca nos podemos entregar ao repouso e ao prazer. Primeiro que tudo devemos derrotar os prazeres que, como vês, são capazes de dominar mesmo os 243 ânimos mais duros. Como Sêneca nos ensina, a vida é um campo de batalha contra as paixões. Não podemos ao menos pensar em abrir trégua, descansar ou mesmo amolecer, pois o descanso e a moleza são brechas fáceis para que os prazeres se instalem e nos levem a derrocada. Então, devemos a todo custo manter uma vontade firme, almejando moldar os nossos passos ao caminhar bem marcado do sábio, pois o mesmo se mantém reto na presença de si, como indica o filósofo: “o mesmo fará o sábio: fechar-se-á dentro de si, estará na presença de si próprio. Enquanto lhe for possível ordenar a vida à sua vontade [...]”.244 Portanto, querer cuidar de si, querer viver bem, eis o que cumpre reforçar: “deves organizar tua vida ato por ato e dar-te por satisfeito se cada um deles alcança o seu fim tanto quanto possível; ninguém pode impedir que leves cada ato a alcançar o seu fim”.245 Nesse sentido, o homem que assim vier a cuidar de si, uma vez de posse de si mesmo, há de ser contemplado com um viver desprendido de ansiedades e aflições, ao contrário do vulgo que cede aos seus vícios por não converter a sua força em benefício próprio. Com isso, nos avisa Sêneca que “[...] o mais feliz dos homens, o dono seguro de si próprio é aquele que aguarda o dia seguinte sem ansiedade. Quem 242 Carta 51, 5. Ibidem, 5-6. 244 Carta 9, 17. 245 MARCO AURÉLIO. Meditações, VIII, 32. 243 90 quotidianamente diz: “vivi”!, quotidianamente ficará a lucrar”.246 Possivelmente, o lucro ao qual o filósofo esteja fazendo menção reserve ao homem as consequências de um acurado cuidado no entorno de si, como já vimos pontuando, sendo que nele se expressa a prática de uma variedade de exercícios direcionados à nossa alma, com o intuito de clarear sua visão, orientá-la no curso do seu voo rumo à ação, além de desviar o homem da rota dos vícios e males. 2.4. Os exercícios espirituais em Sêneca No âmbito da filosofia estoica é imprescindível a vivência dos ensinamentos, uma vez que a escola tem como base tanto um discurso teórico, como também pode ser traduzida por “temas de exercício que devem ser praticados concretamente, caso se queira viver como um filósofo”.247 É por essa razão que o discípulo estoico é convidado a experienciar as três partes teóricas da sua filosofia. Assim, se avista uma lógica que não se restringe ao aspecto estritamente teórico, mas que corteja com uma prática aplicada à vida, ao dia a dia. A lógica, na sua parte prática, corresponde ao domínio do discurso interior, com vistas a se desviar das falsas representações, como no caso das paixões: “os estoicos consideravam que as paixões humanas correspondem a um mau uso desse discurso interior, isto é, de erros de juízo e de raciocínio”.248 Nesse caso, surge a necessidade de se velar por um discurso claro, destituído de erros e enganos. Do mesmo modo, exercitar a física estoica significa para o homem que ele reconheça o seu lugar no cosmos e proceda de acordo com as leis da natureza, aceitando alegremente sua vontade. Contudo, não importa apenas entrar em conformidade com as ações da natureza universal, mas é necessário que o homem esteja, igualmente, preparado para esses acontecimentos. É o que confirma Sêneca, afirmando que: O único porto onde pode abrigar-se esta vida agitada e conturbada está em saber desprezar as causalidades, em mantermo-nos firmes, em estarmos 246 Carta 12, 9. HADOT, Pierre. O que é a filosofia antiga? 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2004, p. 199. 248 Ibidem, p. 199. 247 91 preparados para receber em pleno peito os golpes da fortuna sem nos 249 encolhermos nem virarmos as costas. Nesse sentido, o alcance almejado com esse treino não se reduz simplesmente a ter consciência dos eventos vindouros como forma de atenuar o seu impacto, mas que se possa usufruir de um descanso e de uma tranquilidade para a alma. Com bem nota o filósofo romano, “que espécie de perturbação nos poderá causar a variedade e instabilidade da vida humana se nós estivermos firmes perante a instabilidade?”.250 Encontramos também reforço nas palavras de Epicteto ao apontar para esse mesmo equilíbrio anunciado por Sêneca: “não busques que os acontecimentos aconteçam como queres, mas quere que aconteçam como acontecem, e tua vida terá um curso sereno”.251 A física possibilita ao homem discernir entre os bens e males. A esse tipo de exercício denomina-se de previsão dos males e também da morte, o que, por consequência, acarretará uma profunda mudança no modo de agir do homem, pois uma vez consciente de que a morte não é um mal deverá agir como se sua ação fosse a última investida naquele instante, desprovida de egoísmo, leviandade e inconformismo com o destino.252 Assim, o pensador romano reconhece que “muitos há que andam miseravelmente à deriva entre o medo da morte e os tormentos da vida, sem querer viver nem saber morrer”.253 E, logo em seguida nos dá a receita para uma vida harmoniosa: “Se queres ter uma vida agradável deixa de preocupar-te com ela!”.254 Nessa direção, avançamos da física para a ética, ao observarmos que a física estoica apresenta ao homem as condições necessárias para o seu agir moral. Com isso, a ética se inscreve com base numa física que possibilita ao homem reconhecer os limites do seu poder de ação (o campo moral), das coisas que são marcadamente dependentes de causas externas (as leis da natureza) e que seguem um padrão racional e necessário. Essa compreensão termina por culminar numa mudança no próprio modo de agir, dado que perceber que aquilo que está sob o nosso controle diz respeito a 249 Carta 104, 22. Carta 101, 9. 251 Encheirídion, 8. 252 Cf. MARCO AURÉLIO. Meditações, II, 5. 253 Carta 3, 5. 254 Ibidem, 6. 250 92 nossa intenção moral e ao modo como julgamos os demais eventos, “todas as ações praticadas ao longo da vida são reguladas pela consideração do que é conforme a moral ou contrário a ela, é nesta consideração que residem aos motivos de fazer ou não fazer qualquer ação”.255 Desse modo, avistamos a seguinte perspectiva: aquele que tem consciência do seu agir, assim como do seu pensar e julgar vivencia a lógica; que reconhece o seu lugar no mundo, sabe quem ele é, e os limites do seu querer, exercita a física, que por sua vez designa uma mudança no seu modo de agir culminando na ética.256 Como vimos, a filosofia estoica, ao propor a vivência de seus ensinamentos por meio dos exercícios espirituais não se restringe às partes da sua filosofia separadamente, pelo contrário, elas são exercitadas em conjunto. A relação existente entre elas é de um todo inseparável em que cada uma delas recebe igual valor, como demonstram as ilustrações a respeito desta divisão: do animal, do ovo e etc., como já mencionamos anteriormente.257 Com efeito, esse mesmo esquema pode ser acessado em Sêneca, ao demonstrar a ligação entre as disciplinas da filosofia e seu caráter de indissociabilidade e as práticas do eu – o julgar, o querer e o agir: A virtude subdivide-se em quatro aspectos: refrear os desejos, dominar o 258 medo, tomar decisões adequadas, dar a cada um o que lhe é devido. Ora, o que eu necessito é de apaziguar os meus receios, de dominar as paixões que se excitam, de eliminar os meus erros, de reprimir a minha 259 luxúria, de aniquilar a minha avareza. Do mesmo modo, a prática de si é uma arte que requer todo um treinamento para se desenvolver, por isso Sêneca aponta para os exercícios espirituais, os quais se apresentam como receitas precisas para o alcance e o aprimoramento do cuidado. A aplicação dos exercícios espirituais é um hábito corrente em Sêneca. Nos seus escritos encontramos uma variedade deles: a meditação, o exame de consciência, do desprendimento das coisas, etc. É o que nos afirma Campos: “seus escritos são uma forma de exercícios espirituais que propõe tanto para si como para 255 Carta75, 18. Cf. HADOT, Pierre. O que é a filosofia antiga? 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2004, p. 203. 257 Cf. notas 24 e 25 desta dissertação. 258 Carta120, 11. 259 Carta 40, 5. 256 93 os outros, são também meditações sobre a existência, uma maneira de fixar suas ideias, de assegurar para si uma estabilidade”.260 A utilidade dos exercícios é de suma importância para o fortalecimento do espírito, como bem nota Sêneca, reconhecendo que até mesmo ele, sendo um estoico, carece indubitavelmente de se esforçar para fortalecer seu caráter, pois do contrário seria facilmente arrebatado pelos vícios. Desse modo, expõe ao seu discípulo Lucílio: Há que subtrair à influência do vulgo o ânimo fraco e pouco firme, na virtude: facilmente se passa para o lado do maior número. [...] Digo-te mais: mesmo nós – e se nós nos esforçamos por robustecer o nosso caráter! –, nenhum de nós seria capaz de fazer frente à avalanche dos vícios no meio de uma turba. Um só exemplo de luxo ou de avareza basta para provocar 261 muito mal [...]”. Assim, o filósofo atesta a necessidade do treino, o qual pode ser destinado tanto à alma, quanto ao corpo.262 Contudo, a alma deve ser o principal alvo desse treino, visto que o corpo, segundo o autor, merece apenas os cuidados básicos, mas nada em demasia, ou seja, o cuidado destinado a ele é apenas em função de não podermos viver sem ele, “admito que é inata em nós a estima pelo próprio corpo, admito que temos o dever de cuidar dele. Não nego que devamos dar-lhe atenção, mas nego que devamos ser seus escravos”.263 A escravidão nesse sentido se caracteriza por uma dedicação exclusiva ao corpo, de um cuidado em excesso, isto é, tudo o que for realizado seja declarado ao corpo. As consequências dessa escolha são mensuradas pelo filósofo. Declara-nos Sêneca: Um excessivo interesse pelo corpo inquieta-nos com temores, carrega-nos de apreensões, expõe-nos aos insultos; o bem moral torna-se desprezível para aqueles que amam em excesso o corpo. Tenhamos com ele o maior 260 Cf. CAMPOS, J. A. Segurado e. Introdução. In: SÉNECA, Lúcio Aneu. Cartas a Lucílio. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009, p. XXVIII. 261 Carta7, 6-7. 262 Exercícios do corpo e exercícios da alma: embora muitos textos façam alusão a eles, não existe nenhum tratado sistemático codificando de maneira exaustiva uma teoria e uma técnica do exercício (áskesis) filosófico. Pode-se supor que as práticas faziam, antes de tudo, parte de um ensino oral e eram vinculadas ao uso da direção espiritual. Notar-se-á somente que existiram tratados sobre o exercício agora perdidos. Sob esse título possuímos apenas um pequeno tratado do estoico Musônio Rufo. Depois de ter afirmado que os que principiam a filosofar têm necessidade de exercitar-se, distingue exercícios próprios à alma e exercícios comuns a alma e ao corpo. HADOT, Pierre. O que é a filosofia antiga? 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2004, p. 271. 263 Carta 14, 1. 94 cuidado, mas na disposição de o atirar às chamas quando a razão, a 264 dignidade, a lealdade assim o exigirem. Analisando um pouco mais de perto a situação dos que detêm um acurado cuidado com o corpo, e em especial destinam-se a exercitá-lo, como nos caso dos atletas, o filósofo compreende que se tal dedicação aos exercícios contemplasse a alma, ela seria dotada de uma robustez capaz de aguentar com firmeza, os golpes desferidos pela fortuna, pois mesmo caída e esmagada ao chão dado o seu vigor ressurgiria tal qual a mitológica fênix. Eis, as palavras de Sêneca: Ponho-me a pensar na quantidade dos que exercitam o físico, e na escassez dos que ginasticam a inteligência; na afluência que têm os gratuitos espetáculos desportivos, e na ausência de público durante as manifestações culturais; enfim, na debilidade mental desses atletas de quem admiramos as espáduas musculadas. E penso sobretudo nisto: se o corpo pode, à força de treino, atingir um grau de resistência tal que permite ao atleta suportar a um tempo os murros e pontapés de vários adversários, que o torna apto a aguentar um dia inteiro sob o sol abrasador, numa arena escaldante, todo coberto de sangue – não será mais fácil ainda dar à alma uma tal robustez que a torne capaz de resistir sem ceder aos golpes da fortuna, capaz de erguer-se de novo ainda que derrubada e 265 espezinhada?! Em todo caso, isso não significa dizer que o corpo não seja digno de exercitar-se, deve sim, mas seguido de certas restrições.266 Consequentemente, os exercícios do corpo devem ser da ordem de um treino rápido e fatigante, para que em seguida, o mais breve possível, se possa exercitar a alma, que por sua vez deverá ser trabalhada dia e noite. O seu melhoramento dar-se-á a partir de uma prática constante em que os sinais desse sucesso serão destacados dia após dia, pois se trata de uma forma de nutri-la e aperfeiçoa-la. Destaca o filósofo: Há exercícios fáceis e breves que fatigam o corpo rapidamente e nos poupam tempo. Tais exercícios merecem sobretudo a nossa atenção: a corrida, os exercícios com halteres, os vários tipos de salto [...] Escolhe algum destes exercícios, cuja execução não é difícil. Seja qual for o teu preferido, não deixas de passar depressa do corpo para a alma: a esta, dálhe exercício dia e noite. O exercício físico não te exigirá grande esforço; o 264 Carta14, 2-3. Carta 80, 2-3. 266 Sêneca expõe sobre seu treino diário, lembrando que essa parcela de dedicação ao corpo é mínima, mesmo sendo necessária. Cf. Carta 83, 3-5. 265 95 da alma, nem o frio ou calor o interrompe, nem mesmo a velhice. Cultiva, 267 por conseguinte, um bem que vai melhorando com a idade! O pensador romano reconhece que a prática desse treino merece uma maior atenção, de tal modo que sua execução se destina até mesmo e principalmente nos momentos de tranquilidade – o bom soldado assume para si o treino por excelência, como nos lembra Sêneca: “os soldados fazem manobras em tempo de paz, constroem paliçadas mesmo sem haver inimigos, treinam-se através de esforços supérfluos para serem capazes de afrontar as necessidades reais”.268 Do mesmo modo, os homens deveriam ocupar-se diuturnamente com o cuidado de si, sem se descuidar do seu treino e aplicando-se constantemente em busca de uma perfeição e de um melhor condicionamento, esforços necessários para o constante aprimoramento. Portanto, deve-se incorporar semelhante cuidado com a nossa própria alma, estarmos sempre vigilantes e ávidos com o nosso treino e que seja constante, para tornar a nossa alma apta para as dificuldades e ciladas da fortuna, pois “a perícia na luta só se adquire com a prática”.269 Nesse horizonte, o filósofo que pede emprestadas as palavras de Quinto Sêxtio, o qual afirma que o exército, conforme a previsão de ataque do inimigo, se mantém em constante alerta na posição de quadrado, pois o ataque é eminente e pode surpreender a partir de qualquer direção, conclui que “a mesma coisa – diz ele - deve fazer o sábio: todas as virtudes devem estar uniformemente alerta, de modo a que, mal deparem com o mínimo obstáculo, imediatamente se lhe oponham [...]”.270 O filósofo ainda confirma que não é somente numa luta armada que se pode mostrar o quanto se é forte e corajoso, a exemplo da alma: “não é só em combate, de armas na mão, que se pode dar mostras de uma alma corajosa e intrépida ante o perigo: o homem de coragem até jazendo num leito se impõe”.271 Aqui Sêneca segue com o entendimento de que mesmo o corpo estando doente e impossibilitado de agir, ainda assim, aquele que se preocupou em exercitar a sua alma estará apto para continuar lutando. É o chamado da Carta 20, que apresenta o exercício do desprendimento: “é altamente importante não nos deixarmos corromper pela 267 Carta15, 4-6. Carta 18, 6. 269 Carta 109, 1. 270 Carta 59, 7. 271 Carta78, 21. 268 96 vizinhança da riqueza; viver como pobre no meio da riqueza é indício de grande de alma”.272 Com efeito, essa prática se caracteriza em elegermos alguns dias da semana, e nos coloquemos numa condição de pobreza ilusória. A tarefa exige um despertar da nossa alma: “Há que despertar do sono a nossa alma, há que espicaça-la, há que mostrar-lhe como é exíguo o que a natureza nos concedeu. Ninguém nasce rico; no momento de vir à luz temos de nos contentar-nos com uma fralda e um pouco de leite [...]”.273 Porém, o filósofo adverte que essa prática carece ser acolhida não com o intuito de um capricho qualquer, mas seguramente visando o alcance da experiência. Daí que, sitiados pela miséria encenada, sejamos capazes de nos preparar para aquilo que há de vir realmente. Eis a compreensão do filósofo: Se não queres que um homem entre em pânico perante uma situação concreta, treina-o antes que tal situação ocorra. Este princípio foi posto em prática por aqueles que todos os meses imitavam uma situação de pobreza a tal ponto que atingiram quase a miséria extrema, na intenção de nunca 274 terem de recear o que de uma vez por todas aprendessem a suportar. O filósofo romano é rígido ao orientar o discípulo acerca dos modos de como incorrer na prática do treino, e espera que de modo algum ele seja displicente, mas que sua prática faça-se de modo convincente: “não, eu quero autenticidade na tua enxerga, no teu saio grosseiro, no teu pão duro e intragável!”.275 A ideia é familiarizar-se com a pobreza, pois uma vez recebida como hóspede em sua casa, o homem se recobrirá de segurança, porque agir dessa forma é o mesmo que desarmar a fortuna. Nesse sentido, a fortuna, ao arremessar em sua direção os seus golpes, encontrará um homem provido com seu treino e hábil para se desviar dos seus lances: “Treinemo-nos esgrimindo contra o poste: para a fortuna nos não encontrar impreparados, façamos com que a pobreza se nos torne familiar. Seremos ricos com muito maior tranquilidade se soubermos que não custa nada ser pobre!”.276 O pensador romano também vivencia esse ensinamento consigo mesmo, como destaca na Carta 87 em que Sêneca esboça seu contentamento ao relatar 272 Carta 20, 9. Carta 20, 13. 274 Carta 18, 6. 275 Ibidem, 7. 276 Carta 18, 8. 273 97 durante um passeio o seu desprendimento daquilo que considera desnecessário. Eis que reconhece nesse momento que muito daquilo a que se agarram os homens são coisas tão supérfluas que facilmente poderiam desprender-se delas. Assim, nos esclarece o pensador: Com um reduzido acompanhamento de escravos (apenas os que cabiam num só carro), sem outros apetrechos além do que trazíamos no corpo, eu e o meu amigo Máximo estamos já a gozar o segundo dia de uma tranquila existência. Ponho um colchão por terra e deito-me no colchão; de dois capotes que trago, um serve-me de lençol, o outro de cobertor. As refeições reduzem-se ao imprescindível, e são preparadas sem requintes culinários 277 [...]. Sêneca celebra essa experiência certificando que uma prática como essa só lhe propicia riqueza para a alma. O sentimento de contentamento que envolve o filósofo no exercício do desprendimento das coisas é por ele descrito de modo poético, pois suas atitudes renovadas “fazem para mim cada dia um dia de Ano Novo, que eu procuro tornar propício e feliz com bons pensamentos e grandeza de alma”.278 Assim, o alcance desse estágio nunca é maior do que quando nos despojamos daquilo que é desnecessário, bem como quando suprimimos o medo e encontramos a paz, ou ainda, quando somos brindados pela riqueza ao eliminarmos os desejos.279 Nessa direção, Sêneca ainda destaca um traço epicurista no exercício de abstinência, ao citar a prática de Epicuro, visto que este reservava para si alguns dias em que tinha o hábito de se alimentar apenas daquilo que fosse frugal, cumprindo saciar apenas as suas necessidades, e assim, encontrava o prazer. 280 Desse modo, o filósofo destaca a Lucílio o hábito de viver apenas com o que for necessário, pois uma vez tendo desprezado a riqueza, será mais fácil reluzir a 277 Carta 87, 2-3. Ibidem, 3. 279 Cf. Ibidem, 3. 280 Cf. Ibidem, 18, 9. A prática dos exercícios de abstinência era comum entre epicuristas e estoicos, contudo, vale ressaltar que em ambos essa prática discorria em sentidos diferentes: Na tradição epicurista o sentido ecoa sobre a satisfação encontrada nas coisas elementares, o prazer pleno podia ser acessado de maneira mais pura, mais estável do que aquele que retira das coisas supérfluas. Por outro lado, segundo os estoicos o seu sentido esta marcado em poder se preparar para as privações eventuais, compreender o quanto é fácil viver sem aquilo no qual se degustou pelo hábito, pela educação, etc. O propósito era mostrar que se pode viver apenas com o indispensável, ao ponto de cultivar no homem um estado de tranquilidade ante as privações possíveis. Cf. FOUCAULT, M. História da Sexualidade, 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985, p. 64. 278 98 felicidade sem a sua companhia, excluindo de si toda a ansiedade e angústia visto que estará preparado para quando ela partir. Assim, Sêneca buscando mais uma vez auxílio no pensamento de Epicuro: “uma verdadeira riqueza é a pobreza conforme a lei natural”.281 Com isso, o pensador segue anunciando que a lei natural tem por imposição apenas que o homem não passe fome, sede ou dor. Destarte, para evitar tudo isso não há necessidade de mendigar favores alheios ou mesmo se arriscar, pois daquilo de que se precisa, tem-se tudo à mão: “o indispensável está ao nosso alcance”.282 Em virtude disso “aquilo de que carecemos, ou é gratuito ou de baixo preço: a natureza contenta-se com pão e água!”.283 Para exemplificar esse cenário destacamos a figura de Estilbão, mencionada por Sêneca na Carta 9. Por ela sabemos que tratar-se de alguém que perdeu tudo o que tinha quando sua cidade sucumbiu em meio às chamas, tomada pelo inimigo. Contudo, o filósofo esclarece que Estilbão, mesmo encontrando-se nesta situação, figurava felicidade, e quando fora questionado se teria perdido algo, assim respondeu: “não, todos os meus bens estão aqui comigo. [...] Nada perdi”.284 Estilbão então carregava consigo apenas aquilo que o fogo não seria capaz de consumir, ou seja, as suas virtudes. Exemplos-limites, mas que ilustram de modo bastante evidente as propostas a que se atém. O conselho do filósofo com base no exemplo de Estilbão remete à renúncia de tudo aquilo que for desnecessário; em outras palavras, significa que precisamos nos despojar das coisas prescindíveis para que possamos seguir com pouca bagagem, pois para ser feliz não se precisa de muito. Assim, destaca o filósofo a Lucílio: “quanto a ti, continua, como até agora, a mostrar-te animoso e a diminuir as tuas bagagens! Nada do que possuímos nos é estritamente necessário”.285 A estas palavras podemos ainda acrescentar outra exortação de Sêneca no que tange à pratica da privação: “queres saber qual a justa medida das riquezas? Primeiro: aquilo que é necessário; segundo: aquilo que é suficiente!”.286 Desse modo, seguir o exercício do desprendimento significa especialmente desfazer as malas, jogando fora tudo aquilo que for banal, e assegurar apenas o que 281 Carta 4, 10. Ibidem, 11. 283 Carta 25, 4. 284 Carta 9, 18. 285 Carta 25, 4. 286 Carta 2, 6. 282 99 for necessário. A consequência disso é o engrandecimento da nossa alma e o alcance da tranquilidade.287 Além dessa prática, ecoa também em Sêneca outro tipo de exercício, o exame de consciência que já fora ensinado pelos pitagóricos, mas que se difundiu largamente. Para estes o exame de consciência revela-se como uma atividade a ser realizada no turno da noite: ao recolher-se para dormir deve-se examinar tudo o que foi realizado durante o dia, sem isenção, como estratégia ou mesmo um ritual de preparação para um sono tranquilo. O exame de consciência nos estoicos surge notadamente em duas etapas. A primeira constitui o “exame da manhã”, como relembra Marco Aurélio, “quando te custa levantar de manhã, tem presente este pensamento: desperta para um trabalho de homem. Enfada-me ainda sair para o mister para o qual fui posto no mundo? Ou fui constituído para me aquecer deitado sob as cobertas?”.288 Nesse caso, o exame da manhã destina-se a observar as ações que serão realizadas no transcorrer do dia. A preocupação nesse caso é avaliar o que se tem para fazer de imediato, isto é, ações que estejam próximas de serem realizadas, tais como os compromissos, tarefas distintas, como podem ser elencadas também as precauções a serem tomadas no percurso de uma ação. No que tange ao “exame da noite” seu ritual é totalmente distinto do exame da manhã, pois sua prática requer que sejam consideradas todas as ações realizadas no percurso do dia. Encontramos em Sêneca a prática desse exame, em que o filósofo procura rever suas faltas e tomar nota dos atos cometidos durante o dia, por consequência também almeja com isso a preparação para uma noite de sono profundo e tranquilo. Vejamos o que destaca o pensador sobre o exame da noite: O que há de mais belo do que esse hábito de inquirir sobre todo o seu dia? Que sono, este que sucede a essa revista dos próprios atos? O quanto é calmo (tranquillus), profundo (altus) e livre (liber) quando a alma recebeu 289 sua porção de elogio e de reprovação. 287 Cf. nota 277. MARCO AURÉLIO. Meditações, V, 1. 289 SÊNECA apud FOUCAULT, M. História da Sexualidade, 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985, p. 66. 288 100 O filósofo percebe que a tranquilidade que a alma pode fruir encontra-se mediada pela prática do exercício de exame de consciência. Por meio dele procurase avaliar os acertos seguidos de elogios, ou, por outro lado, o julgamento das suas reprovações. Em virtude disso, considera que somente aquele que tem consciência das suas ações pode tentar corrigir-se. Descuidar desse exame é incorrer no erro, pois antes de tudo há que perscrutar a própria consciência em busca dos seus erros, para em seguida corrigi-los. Nesse sentido, a orientação a que aponta o filósofo romano indica para um expediente, sobretudo jurídico: “tanto quanto possas, acusa-te, move processos a ti mesmo. Começa por fazeres ante ti próprio o papel de acusador, depois o de juiz, só depois o de advogado de defesa [...]”,290 cabendo ainda à imagem do juiz revestido de autoridade sentenciar uma vez ou outra uma pena a si próprio, adverte o pensador. Ademais, nenhuma atitude é possível de escapar ao crivo da consciência, pois uma vez cometidos os maus atos a própria consciência já se recrimina pela própria ação de tê-los feito. Por vezes, a tortura é tão intensa que nada é possível de confortar a angústia do sentimento da falta cometida. Assim, se configura a necessidade do exame de consciência, visto que é inútil tentar omitir algo que a própria consciência é capaz de delatar: “por isto nunca podem confiar no seu esconderijo nem mesmo os que estão bem escondidos, porque a consciência os acusa e os mostra a si mesmo como são”.291 Por outro lado, nada mais salutar que deixar transparecer a todos uma consciência tranquila. Desse modo, vejamos o que declara o filósofo: [...] vou observar-me com toda a atenção, vou fazer uma coisa da maior utilidade: avaliar com cuidado cada um dos meus dias. Habitualmente, ninguém auto-analisa a própria vida, o que só contribui para crescer os vícios. Todos pensamos no que estamos para fazer, e mesmo isso raramente, mas não atentamos no que já fizemos, quando afinal as 292 decisões quanto ao futuro estão dependentes do passado. Do mesmo modo, Marco Aurélio também acrescenta afirmando que essa atividade merece ser instituída tal como um hábito em nós: “Toma por hábito analisar tanto quanto possível a atitude de alguém e pergunta-te: “Com que fim este 290 Carta 28, 10. Carta 97, 16. 292 Carta 83, 2. 291 101 homem toma tal atitude?”. Começa por ti mesmo e sê o primeiro a ser examinado”.293 Como podemos perceber, Sêneca reclama para si o próprio exame, considerando de grande utilidade a análise de cada um dos seus dias, nas ações que prontamente serão realizadas e as que já sucederam. Contudo, pouco ou quase nunca se procura avaliar as ações transcorridas, eis que o pensador alerta que atentar para esse processo é saber conduzir as decisões futuras, pois elas estão necessariamente interligadas à revista das ações passadas. Com isso, Sêneca faz alusão nesse exercício ao cenário jurídico como se fosse um tribunal, em que as figuras do acusador, juiz e advogado devem ser assumidas pelo homem em seu próprio tribunal. Ademais, a prática do exercício de consciência em Sêneca tem ainda como alcance, sobretudo o seu melhoramento moral diário. Portanto, é dessa formação do caráter que falaremos adiante. 293 MARCO AURÉLIO. Meditações, X, 37. 102 3 O CARÁTER FORMATIVO DA FILOSOFIA SENEQUIANA O filósofo romano, ao adotar os exercícios espirituais, em especial o exame de consciência, não almeja tão somente julgar as suas faltas ao ponto de reproválas sob a condição de não recair sobre elas, bem como exaltar as ações que diligentemente foram dignas. Seu intento, sobretudo, é obter um aperfeiçoamento conduzido pela incessante busca de melhorar-se moralmente a cada dia. Mas esse ideal não é apenas uma prerrogativa do pensador, essa tarefa também merece ser destacada pelos demais homens, como ressalta ao seu discípulo: “Estudas perseverantemente e deixando tudo o mais apenas te aplicas ao teu quotidiano aperfeiçoamento: aprovo-te com satisfação, e não só te aconselho, como te peço que continues assim”.294 A necessidade do processo educativo é demonstrada por Sêneca ao seu discípulo Lúcilio ao longo de todo um contexto enunciado nas Cartas, em que considera que a base desse aperfeiçoamento esteja notadamente fundada na razão: “Ninguém, a não ser que formado a partir da base e totalmente orientado pela razão, pode estar apto a conhecer todos os deveres e saber quando, em que medida, com quem, de que modo e por que razão deve agir”.295 Ou seja, convém não apenas sermos capazes de agir e reagir face aos acontecimentos do destino, mas termos consciência dos fundamentos das nossas ações. Assim, o bem agir corresponde no nosso entender ao saber cuidar de si mesmo, o qual só pode ser atingindo mediante um exigente processo de educação do caráter. Daí que, segundo Sêneca, o processo formativo referente ao agir humano nutre como resultado a constituição de um homem capaz de desenvolver a racionalidade e a virtude em busca do agir bem e da vida feliz, ajustando-se dessa maneira ao preceito cunhado por Zenão: o homem deve viver segundo a natureza. Além disso, Sêneca também nos alerta quanto à imprescindibilidade da correção da nossa alma. Sua inquietação está associada às consequências que as más tendências possam causar ao se consolidarem na nossa alma, como enfatiza: “[...] como se disse, começarmos a formar e a corrigir a nossa alma antes que as 294 295 Carta 5, 1. Carta 95, 5. 103 más tendências cristalizem”.296 Todavia, mesmo a alma já estando contaminada, o importante é não se desesperar e manter o cuidado com ela de maneira intensa e resignada, e, assim, diluir as más tendências que lhe atormentam: “nem assim eu desespero: com esforço persistente, com cuidados aturados e intensos, todas as más tendências serão vencidas”.297 Dessa forma, o filósofo não descuida e, atento à premência da formação, recolhe aos seus cuidados o seu discípulo: “[...] quando eu via a natureza do teu carácter, deitei-te a mão, aconselhei-te, estimulei-te, e não te deixei avançar com lentidão, fiz-te de imediato ir para a frente”.298 Portanto, não há tempo a perder, pois de maneira enfática somos aconselhados pelo filósofo a essa mesma urgência: “Formemos, portanto, a nossa alma como se já estivéssemos no fim da vida. Não adiemos: ponhamos em dia as nossas contas com a vida!”.299 Com isso, destacamos que o ideal perseguido por Sêneca a ser alcançado a partir da educação do caráter é indispensavelmente o caminho do sábio. É o que esclarece a Lucílio ao observar que ele ainda demonstra certo apego ao tipo de vida que levava, e assim conclui que ainda falta clareza para a vida a que há de ascender, a vida do sábio: “embora tenhas uma antevisão da vida sábia e tranquila a que irás aceder, o brilho aparente da vida mundana continua a atrair-te, como se o facto de abandonares a sociedade equivalesse a caíres numa de obscuridade completa”.300 A respeito dessa visão ainda pouco clara do discípulo, Sêneca elucida informando-lhe que a vida a qual ele deve ascender é uma vida que radia luz própria análoga a do sábio: Estás enganado, Lucílio: passar da vida mundana à vida da sabedoria é uma ascensão! A luz distingue-se do reflexo por ter a sua origem em si mesma, enquanto o reflexo brilha com a luz alheia; a mesma diferença separa os tipos de vida: a vida mundana tira o seu brilho de circunstâncias exteriores, e o mínimo obstáculo imediatamente a torna sombria; a vida do sábio, essa brilha com a sua própria luminosidade! Os teus estudos farão de 301 ti um homem ilustre e famoso. 296 Carta 50, 5. Carta 50, 6. 298 Carta 34, 2. 299 Carta 101, 7. 300 Carta 21, 1. 301 Ibidem, 2. 297 104 Certamente, os temas abordados por Sêneca e explicitados ao discípulo Lucílio nas Cartas sempre esboçam a preocupação do filósofo em nao perder o objetivo de alcançar o melhoramento do homem. Esse, por sinal, é o ponto contundente do seu pensamento ao qual tudo está em estreita submissão. Aliás, é o próprio Sêneca quem socializa a sua intenção educativa e pedagógica: Estou trabalhando para a posteridade. Vou compondo alguma coisa que lhe possa vir a ser útil; passo ao papel alguns conselhos, salutares como as receitas dos remédios úteis, - conselhos que sei serem eficazes por tê-los experimentados nas minhas próprias feridas, as quais, se ainda não estão completamente saradas, deixaram pelo menos de me torturar. Indico aos outros o caminho justo, que eu próprio só tarde encontrei, cansado de 302 atalho. Nessa direção, tendo como perspectiva o processo formativo, o filósofo elege como crítica o tipo de educação que considera tão somente o alcance de certas habilidades intelectuais em detrimento do melhoramento humano.303 A escola, como assegura Sêneca, é um espaço em que “se investiga o que é o homem de bem, em que se aprende a ser homem de bem [...]”.304 Se desviar-se dessa orientação, acaba por oferecer uma educação marcada apenas pelas ocupações teóricas visando a formar “homens eruditos” e não homens bons, os esforços tornam-se vagos, vãos e sem propósito. Sêneca adverte: Gasta-se o engenho com questões supérfluas: estas teorias não tomam os homens bons, apenas os fazem eruditos. “Saber” é algo de muito mais vasto, e também mais simples: não são precisas muitas letras para nos darem um espírito bem formado; nós é que estamos habituados a desperdiçar tudo, e a filosofia não foge à regra. Sofremos de intemperança em tudo, até no uso das letras. Estudamos para a escola, não para a vida! 305 Isso justifica o posicionamento do filósofo em apontar para um tipo de ensino que estivesse voltado especificamente para a promoção do homem e do seu entorno, mostrando-se contrário à referência de um ensino baseado em verbalismo, 302 Carta 8, 2-3. São perfeitamente compreensíveis suas constantes críticas à educação de corte intelectual comprometida com a superficialidade, na qual se confundia cultura com sabedoria e instrução com educação. PEREIRA MELO, José Joaquim. O sábio senequiano: um educador atemporal. 247 f. tese (Pós-doutorado em História – UNESP- campus Assis). Assis, 2007a, p. 90. 304 Carta 76, 4. 305 Carta 106, 11-12. 303 105 destituído de uma prática. Contudo, entende que esse mesmo conteúdo valorize certos aspectos do homem, mas lamentavelmente sem acrescentar-lhe nenhuma mudança: “sem dúvida será capaz de arquitetar argumentos cheios de agudeza, mas sem qualquer utilidade para a sua vida, já que se torna mais enérgico mais moderado ou mais elevado por isso”.306 E, somente isso, nada mais. Por outro lado, o filósofo reconhece na filosofia o aspecto de encadeamento entre a teoria e a prática, “a filosofia, por seu lado, é em parte especulativa e em parte ativa, pois tanto se embrenha na contemplação como se atualiza através da ação”.307 Ademais, se apresenta despida de teor intelectual, inspirando naquele que se aproxima uma fortaleza para o seu espírito: “Em contrapartida, quem fizer da filosofia uma terapêutica tornar-se-á forte de espírito, cheio de autoconfiança, atingirá uma altura inigualável e tanto maior quanto mais dela nos aproximamos”.308 Dessa forma, Sêneca evidencia o objetivo da filosofia: A filosofia não é uma habilidade para exibir em público, não se destina a servir de espetáculo; a filosofia não consiste em palavras, mas em ações. O seu fim não consiste em fazer-nos passar o tempo com alguma distração, nem em libertar o ócio do tédio. O objetivo da filosofia consiste em dar forma e estrutura à nossa alma, em ensinar-nos um rumo na vida, em orientar os nossos atos, em apontar-nos o que devemos fazer ou por de lado, em sentar-se ao leme e fixar a rota de quem flutua à deriva entre escolhos. Sem ela ninguém pode viver sem temor, ninguém poder viver em segurança. A toda hora nos vemos em inúmeras situações em que 309 carecemos de um conselho: pois é a filosofia que no-lo pode dar. Nesse sentindo, “a filosofia, essa, ensina a agir, não a falar [...]”. 310 Não está reduzida a um escopo teórico, mas como se pode observar pelas passagens acima, concretiza-se na vida enquanto exercício da virtude. Ela é capaz de configurar a nossa alma, modelando-a. Serve como base para as nossas ações, norteia toda a vida tornando-se o fundamento de orientação para as nossas atitudes e escolhas. Em suma, a filosofia assume um caráter de bússola que conduz a vida do homem por entre as tempestades assegurando-lhe um porto seguro. Decerto, a principal preocupação do filósofo estoico refere-se à finalidade moral da filosofia. Afirma Sêneca que “é mais importante tornar-se mais virtuoso do 306 Carta 111, 2. Carta 95, 10. 308 Carta 111, 2. 309 Carta 16, 3. 310 Carta 20, 2. 307 106 que mais douto”.311 É o que conclama o seu discípulo a fazer: “corrigir os costumes, reforçar tudo aquilo que esteja fraco, ainda retirar de todas as coisas proveito para a sua formação moral, de modo a reprimir as paixões nocivas. Estudar, sim, não para saber mais, mas para saber melhor”.312 É com esse mesmo intuito que o filósofo também pratica esse método, e ainda confirma que todos, em determinados momentos, necessitam de certa distração. Mas, até mesmo de uma simples distração é vital que se extraia algum proveito para sua formação moral. Assim, assevera Sêneca a Lucílio: [...] Também nós, uma vez por outra, devemos distender o espírito e refazêlo com alguma distração. Importa, porém, que a distração seja profícua; ora, se reparares bem, mesmo destas especulações poderás retirar matéria útil à tua formação. Caro Lucílio, é este o método que eu uso: de qualquer conhecimento, por muito afastado que seja da filosofia moral, faço sempre o possível por extrair algum elemento que ofereça utilidade. [...] Em que podem as “ideias” de Platão fazer de mim um homem melhor? Que posso 313 eu tirar delas que me ajude a reprimir os desejos? Com efeito, o que importa para Sêneca é a vivência da doutrina estoica. Conhecê-la sem a devida aplicação na vida não corresponde exatamente ao ideal proposto pelo pensador romano: “[...] interioriza a filosofia no mais íntimo de ti mesmo e fundamenta a avaliação do teu progresso não em palavras que digas ou escrevas, mas sim na tua firmeza de ânimo e na diminuição dos teus desejos; comprova as palavras com atos!”.314 Daí que Sêneca concebe como essencialmente importante saber avaliar se a filosofia é entendida apenas como uma forma de conhecimento ou se realmente é vivenciada. Posto isso, vale ressaltar que para ele “o saber não se limita à compreensão das leis do universo e à busca de um fundamento da realidade, mas, sobretudo diz respeito à formação do homem; aponta notadamente para o ideal do sábio”. 315 Assim, destaca o pensamento senequiano que a sabedoria consiste na plena realização da filosofia, podendo ainda ser definida como uma arte de vida. 316 De 311 LI, William. Introdução. In: Sobre a brevidade da vida. São Paulo, Nova Alexandria, 1993, p. 16. Cf. Carta 89, 18, 23. 313 Carta 58, 25-26. 314 Carta 20, 1. 315 Cf. LI, William. op. cit., p. 16. 316 Cf. Ibidem. p. 16. Isto é, a filosofia adotada por Sêneca assume a condição da arte de viver, princípio recolhido dos antigos estoicos, que expressam que o saber de que necessitamos deve estar veiculado à tékhne toû bíou, ou seja, a arte de viver. 312 107 acordo com esse pensamento, enfatiza Pierre Hadot317, que a filosofia é um modo de vida que está vinculado a um discurso que corresponde efetivamente a uma escolha de uma maneira de viver e que exige daquele que a escolheu uma mudança radical e profunda. Ainda, apregoa que a filosofia é ao mesmo tempo amor e busca pela sabedoria, e que a sabedoria é necessariamente um modo de vida que pode ser traduzido como um estado de paz e harmonia da alma. Todavia, acrescenta Sêneca que a sabedoria não fora dada pelos deuses. O homem nasce desprovido da virtude; da natureza só recebemos as sementes que devem ser cultivadas, bem regadas para que se desenvolvam e frutifiquem: “A virtude, na realidade, não é um dom da natureza: ser bom necessita estudo”. 318 Por isso, essa é uma conquista que deve ser alcançada através de luta e de muito esforço, como declara a Lucílio, “ainda resta muito trabalho a fazer. Se desejas este objetivo, careces de muita atenção da minha parte, mas também de bastante esforço da tua”.319 Desse esforço se atinge o alvo estabelecido: A virtude autêntica, porém, só é possível a uma alma instruída, cultivada, uma alma que atingiu o mais alto nível através de uma contínua exercitação. Tendemos para esse nível, mas não o temos já de nascença; mesmo nos homens melhores, antes da iniciação filosófica, se pode haver 320 matéria-prima para a virtude, não existe ainda a virtude. Nesse contexto, Sêneca notadamente afirma que somente pela filosofia é que se pode alcançar a virtude, assim os deuses nos deram a vida, contudo o viver bem é algo provido pela filosofia.321 Ele ainda esclarece que se os deuses por sua benevolência tivessem tornado a filosofia um bem comum a todos, ou seja, se todos nós já nascêssemos munidos de sabedoria, ela, no entanto, abandonaria sua principal característica: “que é precisamente o facto de não ser devida ao acaso. Tal como as coisas são, o que faz dela um bem precioso e supremo é o facto de nos não ser dada, de cada um a obter com o próprio esforço, de ninguém a poder ir tomar de empréstimo”.322 Daí que Sêneca declara sua admiração ao perceber o esforço do discípulo em obter a virtude, ao vê-lo a progredir e sem meias palavras 317 Cf. HADOT, Pierre. O que é a filosofia antiga? 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2004, p. 18. Carta 90, 44. 319 Carta 27, 4. 320 Carta 90, 46. 321 Cf. Ibidem, 1. 322 Ibidem, 2. 318 108 festeja com a ascensão daquele que busca mesmo sitiado pelo cansaço o seu aperfeiçoamento moral. Assim, exclama o pensador: Mas quando o esforço visa a obtenção da virtude, nesse caso, quanto maior for a energia despedida, quanto menores o cansaço e as concessões ao repouso, tanto maior será a minha admiração e o meu grito de incitamento:” 323 Assim mesmo, coragem! Ânimo, tenta atingir o cume de um só fôlego! E diante daquele que atingiu o cume, o filósofo o descreve como belo, pois virtuoso é homem belo, “a virtude, de facto, passa bem sem ornamentos, antes tem em si mesma a sua beleza, além de dar formosura ao corpo que reside”. 324 É disso que ele trata na Carta 66 ao reportar a Clarano, um amigo e antigo condiscípulo, que apesar de não ter sido favorecido pela beleza física foi adornado pela virtude. Como bem nota, o filósofo: De uma choupana pode sair um grande homem, num pobre corpo disforme e franzino pode morar uma alma grande e bela. Creio mesmo que a natureza se compraz em produzir homens assim como prova de que a virtude pode nascer em qualquer lugar. E se pudesse criar almas puras desprovidas de corpo, decerto faria; agora faz muito mais do que isso: cria homens fisicamente deficientes, mas nem por isso menos capazes de vencer todos os obstáculos. Creio bem que Clarano nasceu como exemplo, para que todos pudéssemos ver que a alma não sofre da deformidade do 325 corpo, antes é este que se adorna com a beleza da alma! Com isso, não se pode avistar outro percurso traçado pela virtude, além daquele que é cotejado pelo belo, além de ser algo plenamente desejado: “Não há nada que suplante em valor e beleza a virtude; e tudo quanto fazemos em obediência aos seus ditames é um bem, e é, portanto, desejável!”.326 Assim, conclui Sêneca ao aconselhar Lucílio mostrando-lhe que será necessário antes de tudo para construir a sua felicidade entender a princípio que “é bom tudo o que implica a virtude, é mal tudo o que incluir a presença do vício”.327 Por sua vez, o que determina se uma coisa é virtuosa ou reprovável é necessariamente se ela coaduna com a virtude ou o vício. Assim, temos nas palavras do filósofo o seu entendimento sobre o bem e o mal, respectivamente: “Em 323 Carta 31, 4. Carta 66, 2. 325 Ibidem, 3-4. 326 Carta67, 16. 327 Carta 31, 5. 324 109 que consiste o bem? Na ciência. Em que consiste o mal? Na ignorância”. 328 E, por esse contexto Sêneca anuncia o papel da virtude, visto que se distância dos vícios: A virtude é algo elevado, excelso e régio, invencível, infatigável; o prazer é baixo, servil, fraco, passageiro; seu lugar e morada são os bordéis e as tavernas. Encontrarás a virtude nos templos, no foro, na cúria, em pé diante das muralhas, coberta de pó, tez queimada pelo sol, mãos calejadas; o prazer, pelo contrário, muitas vezes o verás escondido, em busca das trevas, ao redor dos banhos, saunas e nos lugares temerosos da vigilância do edil, mole, desfibrado, gotejando vinho e perfumes, descorados, 329 maquilados, embalsamado como um cadáver. Por seu turno, a filosofia se constitui como uma técnica da vida feliz, sua tarefa é conduzir o homem rumo à reta ação. Com esse objetivo em mente, é necessário compreender que, “já que a filosofia é uma ars vitae, e que a moral, portanto, é prática da moral, deve haver perfeita concordância entre a doutrina e ação”.330 Viver a filosofia significa, portanto, poder alinhar as ações às leis que regem o saber filosófico, de modo que a ação de cada indivíduo não seja incompatível com suas próprias palavras. Por esse esforço, conclama o filósofo: “adopta de uma vez por todas uma regra de conduta na vida e faz com que toda a tua vida se conforme com essa regra”.331 Dessa forma, o tipo de estudo ao qual se destina a filosofia vai além do conhecimento das coisas, visto que se caracteriza na aplicação da virtude e na prática do bem. Com isso, Sêneca nos afirma que é praticamente impossível encontrar a filosofia sem a virtude, bem como a virtude sem a filosofia,332 uma vez que o fim pretendido pela atividade filosófica revela-se particularmente numa vida sábia, e é próprio do sábio realizar uma vida no bem.333 Certamente, tendo a filosofia o papel de conduzir o homem pela via do seu aperfeiçoamento, conferindo-lhe a salvação e a plena realização da sua vida na virtude, tal atividade notadamente terá como recompensa “a liberdade permanente, a ausência de receio quer ante os homens, quer ante os deuses”. 334 Portanto, eis a nossa meta, onde devemos chegar – a liberdade. Segundo nos afirma o filósofo, a 328 Ibidem, 6. Da vida feliz, VII. 330 Cf. LI, William. Introdução. In: Sobre a brevidade da vida. São Paulo, Nova Alexandria, 1993, p. 17. 331 Carta 20, 3. 332 Cf. Carta 89, 8. 333 Cf. LI, William. op. cit., p. 17. 334 Carta 17, 6. 329 110 liberdade se subscreve exatamente quando o homem se encontra em total desapego das coisas, livre das suas necessidades e apto para lutar contra a fortuna. Assim, pondera o filósofo: [...] Se um dia sairmos deste mundo de lama para as regiões sublimes e superiores teremos à nossa espera a tranquilidade da alma e, eliminadas todas as causas do erro, obteremos a liberdade absoluta. Queres saber em que consiste a liberdade? Em não temermos nem os homens nem os deuses; em não desejarmos nada que seja imoral ou excessivo; em termos o maior domínio sobre nós próprios: sermos donos de nós mesmo é um 335 bem inestimável A isto acrescenta: [...] Tu não podes escapar ao inevitável, mas podes vencê-Io! Abre-se caminho à força, e esse caminho será a filosofia a indicar-to. Dedica-te a ela, se de facto queres salvar-te, se queres viver seguro e feliz, se queres, 336 enfim, e isso é o fundamental, ser livre. Segundo essa condição, a filosofia não pode ser relegada a um tipo de atividade em segundo plano, de menor valor. Sêneca esclarece que a dedicação para com a filosofia é de uma exigência capital. Cabe ao homem, primeiramente, dedicar-se à filosofia, eleger o tempo que for necessário para essa prática; o restante será dispensado para outras atividades. E ao que tange as demais ocupações a filosofia é criteriosa em afirmar, segundo nos declara Sêneca: [...] “eu não estou disposta a aceitar o tempo que vos sobejar, vós é que tereis apenas aquele de que eu não necessite”. Dirige todo o teu espírito para a filosofia, acompanha-a sempre, pratica-a sempre: uma enorme distância te separará dos demais homens; ficarás muito à frente do resto da 337 humanidade e os deuses pouco se distanciarão de ti. Do mesmo modo, o pensador assegura ao seu discípulo Lucílio que tanto ele quanto a filosofia são dignos um do outro e que essa relação só precisa de um simples gesto de amizade pare ser selada: “Tu és digno dela, como ela é digna de ti: uni-vos num recíproco abraço”.338 E mais, como reforça Pereira Melo: “Nessa dinâmica pedagógica, que em última instância leva à aquisição da virtude e, com 335 Carta 75, 18. Carta 37, 3. 337 Ibidem, 10-11. 338 Ibidem, 8. 336 111 esta, à conquista da felicidade, a liberdade e a filosofia desempenham papel decisivo. Ambas constituem a essência da conduta moral”.339 Diante disso, é possível ressaltar que a filosofia pelo seu processo educativo é capaz de romper os grilhões da escravidão humana, do seu tormento ante os homens e os deuses, libertá-la das enfermidades da alma, dos vícios e das paixões, do medo e do desejo, do seu estado de vencido. Enfim, tendo como resultado uma vida feliz revestida pela tranquilidade da alma. 3.1 A função do mestre na educação do caráter Como já destacamos, em sua proposta formativa Sêneca aponta, especificamente, para o alcance do modelo do sábio. Para a filosofia do Pórtico, o sábio é aquele que segue os ditames da razão, está alinhado à natureza, não é guiado pela paixão e o seu “caminhar” é sem orgulho - um homem virtuoso que abriga a sinceridade. São inúmeros os adjetivos que evocam o sábio no estoicismo. Para Sêneca, o sábio basta a si mesmo, afirma ao amigo Lucílio explicando-lhe o sentido dessa máxima “[...] o sábio basta-se a si mesmo para viver uma vida feliz, não simplesmente para viver, na medida em que para viver carece de muita coisa, mas para ter uma vida feliz basta-lhe possuir um espírito são, elevado e indiferente à fortuna”.340 O sábio toma a direção dos seus desejos, deliberando apenas sobre aquilo que está ao seu alcance, tem a consciência que, das coisas que estão no mundo, umas são passíveis da sua escolha, outras estão fora do seu alcance. As que dependem de si são as suas opiniões, os seus movimentos, desejos e ações. É nesse contexto que o sábio não se perturba diante dos acontecimentos; sua postura é manter-se imóvel diante das agruras advindas. Em todo caso, o que perturba o homem são singularmente as opiniões que dele decorrem sobre as coisas, dito de outra forma: o homem se deixa abalar pelos acontecimentos, principalmente ao opinar sobre eles, por vezes, acusando de mau aquilo que de fato não é, portanto, deve-se estar atento ao apontar as coisas, antes, devem-se apontar suas próprias opiniões. 339 PEREIRA MELO, José Joaquim. O sábio e o processo educativo senequiano. In: Revista Cesumar – ciências humanas e sociais aplicadas. v. 09, n.02, jul-dez/2004, p. 56. 340 Carta 9, 13. 112 Como bem marca Gazolla, o papel do sábio no discurso estoico se reveste da relação entre o sábio e o insensato, em que ambos são dados como estados permanentes de solidez. A busca por um modo de vida semelhante ao sábio se configuraria em uma ação inatingível, “transparece a antítese sábio-insensato. Ao mesmo tempo em que o Pórtico desdobra seu discurso, afirma que o sábio não é encontrável”.341 Assim, estaria fadada ao fracasso a ação formadora do Pórtico? Essa atitude não pode ser considerada, uma vez que a existência da figura do homem comum não se encontra nem no sábio e nem tampouco no insensato, restando para este o campo do agir moral, como bem enfatiza Gazolla, “nós, os homens comuns, somos aqueles que transitam no dia-a-dia, potencialmente entre as mudanças de estado, da virtude ao vício, da sabedoria à insensatez. Somos o campo de exercício da pedagogia estoica [...]”.342 Com efeito, cabe ao homem comum, mesmo não sendo o sábio, elevar-se a homem virtuoso e com todo esforço alcançar a sabedoria. Contudo, estaria o homem sozinho nesse esforço de correção e cuidado com a alma? Sêneca propõe, em sua filosofia, a presença do mestre como “diretor de consciência” na formação do indivíduo, pois o outro não tem por si só a capacidade de se desvencilhar dos vícios, das paixões, do egoísmo com suas próprias forças. Há, nesse processo, um caráter extremamente pedagógico e como tal carece da figura do mestre como educador para a formação do homem moral. Como já foi destacado, esse trabalho é direcionado tanto a Lucílio quanto a todos os seus leitores e ao próprio Sêneca que busca concomitantemente responder às inquietações da sua própria vida. Assim explica Sêneca: “[...] Andamos à deriva entre resoluções contrárias; não conseguimos ser fiéis a uma vontade livre, absoluta, constante. Dirás tu que é prova de insensatez não ter um propósito contínuo, um interesse permanente. Mas dessa insensatez como e quando nos conseguiremos libertar? Por si só, ninguém conseguirá sair do remoinho; é necessário alguém que estenda a mão e ajude a pisar em terra firme. Diz Epicuro que certos homens conseguiram atingir a verdade sem qualquer auxílio, desbravando eles mesmos o seu caminho; para esses, que elevaram a si próprios espontaneamente, vão os seus maiores louvores. Outros há, contudo, que 341 GAZOLLA, Rachel. O ofício do filósofo estoico: o duplo registro do discurso da Stoa. São Paulo: Ed. Loyola, 1999, p. 85. 342 Ibidem, p. 85 113 necessitam de apoio externo: são incapazes de marchar se não tiverem um 343 guia, mas, tendo-o, avançarão animosamente. Portanto, para Sêneca é impossível, mesmo que se despenda um esforço total, que se consiga alcançar a sabedoria sozinho. Faz-se necessária a presença de um guia, um condutor de consciência que lhe acene o caminho, que lhe mostre os preceitos a serem seguidos em prol da sua formação. Dessa forma, a escolha do mestre enquanto guia e condutor da formação moral, deve atender ao princípio da admiração do discípulo em relação à boa conduta do mestre. A esse respeito o filósofo expõe: Fica sabendo que o nosso espírito é deste último tipo: duro e trabalhoso. Caminhamos através de obstáculos. Lutemos, portanto, sem temer pedir o auxílio alheio. Perguntarás: “Mas a quem, a quem hei-de pedir auxílio?” Se queres um conselho, dirige-te aos antigos, que estão disponíveis: para nos auxiliar tanto podemos recorrer aos vivos como aos mortos. De entre os vivos, devemos escolher não aqueles que têm o verbo fácil e corrente, que repisam lugares comuns e se exibem em círculos restritos, mas sim os que comprovam as suas palavras com os próprios actos e ensinam o que devemos evitar sem nunca serem apanhados a fazer o que condenam. Em suma, escolhe para teu mestre alguém que te mereça admiração pelas 344 ações e não pelas palavras. Com efeito, é possível observar os pontos demarcados pelo filósofo que se assentam detidamente no contexto da sua filosofia: o discípulo encontra como critério de escolha para o mestre a admiração concedida segundo as ações do mestre, visto que por essa condição o discípulo obterá como benefício a correção ou, ainda, o aperfeiçoamento do seu caráter. Com bem nota Sêneca: De facto, quem convive diariamente com um filósofo obtém sempre algum beneficio: ou o seu caráter se aperfeiçoa, ou se torna mais apto ou aperfeiçoar-se. O poder da filosofia é tal que beneficia inevitavelmente não 345 só os iniciados, mas até os que a conhecem ocasionalmente. De igual modo, como já havíamos observado no diálogo platônico Alcibíades, Sócrates desempenha, com esforço, a atividade de mestre e guia, tarefa que lhe fora confiada, e sem a qual a vida não teria sentido. Com feito, sua maiêutica corrobora a necessidade de um guia na formação do homem, pois esse 343 Carta 52, 1-3. Carta 52, 7-8. 345 Carta 108, 4. 344 114 movimento não pode ser efetuado sem a intervenção do outro, a presença do mestre é fundamental e indispensável. Em Sêneca, há explicitamente o reconhecimento do sábio-filósofo como pedagogo da humanidade, e nessa relação o filósofo endossa segundo as palavras do seu mestre Átalo que ambos, mestre e discípulo necessitam objetivar o mesmo interesse, o primeiro será útil para que o segundo possa progredir.346 Decerto, Sêneca reconhece no diretor de consciência a influência de despertar no discípulo o espírito para o empreendimento da virtude, sendo este um modelo a ser seguido e observado. É preciso, sem dúvida, “termos acima de nós um mestre, alguém cuja aprovação procuremos alguém que, por assim dizer, participe dos nossos pensamentos. [...] importante será viver como se estivéssemos sempre perante o olhar de algum homem de bem”.347 À luz da relevância do mestre, Sêneca reconhece-se como tal e expõe a alegria de observar o desenvolvimento do seu discípulo, em que também compartilha com este um elo de amizade, “tu estás ligado a mim, és obra minha”.348 Com isso, o filósofo discorre sobre a satisfação do mestre ao ver o progresso do seu discípulo: Se o prazer que o agricultor sente pela árvore culmina quando ela dá fruto, se a alegria do pastor lhe vem das crias do seu rebanho, se qualquer homem sente no filho que criou como que a própria adolescência, nós, educadores espirituais, que pensas tu que sentimos ao ver subitamente 349 adultos os espíritos de que tomamos conta ainda débeis? Contudo, deve-se ressaltar sobre o progresso do discípulo que mesmo sem ter alcançado ainda o ideal proposto, é conveniente que ele possa usufruir do estádio em que já se encontra, ao passo que vai moldando o seu espírito em direção a um estado de equilíbrio para que possa ao mesmo tempo desfrutar dele. E nesse processo há uma grande expectativa por parte do mestre, visto que ele deve acompanhar os passos do discípulo como se fosse sua própria sombra. Donde Sêneca reveste-se de toda uma satisfação ao apontar para Lucílio o seu sentimento frente ao desejo de compartilhar com o amigo e discípulo a sua própria experiência, pois do contrário seria totalmente em vão o seu trabalho. Assim, enfatiza mais uma 346 Cf. Carta 108, 3. Carta 25, 5. 348 Carta 34, 2. 349 Ibidem, 1. 347 115 vez a responsabilidade assumida pelo mestre ante o seu discípulo. Vejamos o que testemunha Sêneca: Tu não podes conceber de quanto importância se reveste para mim cada dia. “Compartilha comigo tudo cuja eficácia experimentaste” – dirás tu. Eu não desejo outra coisa senão transmitir-te toda a minha experiência; aprender dá-me sobretudo prazer porque me torna apto a ensinar! E nada, por muito elevado e proveitoso que seja, alguma vez me deleitará se guardar apenas para mim o seu conhecimento. Se a sabedoria só me for concedida na condição de a guardar para mim, sem a compartilhar, então 350 rejeitá-la-ei: nenhum bem há cuja posse não partilhada dê satisfação. Convém perceber que Sêneca nos indica mais um elemento da sua prática pedagógica, sobretudo em função do seu ensino, como guia e condutor de almas. Considera, como critério do seu ensino e prazer elevado da sua prática, a oportunidade de aprender para ensinar e tudo isso de modo recíproco: “Há que usar de reciprocidade: enquanto se ensina aprende-se”.351 E, com isso, anuncia a relevância do discípulo em poder servir ao mestre, tanto quanto o mestre ao discípulo. “Não quero a tua presença apenas para que tu aproveites, mas também para que me aproveites: ambos poderemos ser muito úteis um ao outro!”.352 Até o mesmo o sábio que já atingiu a virtude, carece da presença de outro sábio para alimentar e estimular sua própria virtude: “A sua função é praticar a virtude e manter a sabedoria num estado de perfeito equilíbrio”. 353 Há, nesse sentindo, todo um jogo de trocas de maneira recíproca e obrigatória, pois os passos para se alcançar a perícia na virtude só é possível mediante a prática, melhor ainda se essa tarefa se realizar na presença de um outro. Como bem aponta Sêneca: A perícia na luta só se adquire com a prática; dois músicos aproveitam melhor se estudarem em conjunto. O sábio necessita igualmente de manter as suas virtudes em actividade, e por isso mesmo, não só se estimula a si 354 próprio como se sente estimulado por outros sábios. 350 Carta 6, 4. Ver também nota 302 sobre o trabalho que Sêneca está escrevendo, os conselhos para os outros das coisas que aprendeu. 351 Carta 7, 8. 352 Carta 6, 6. 353 Carta 109, 1. 354 Carta 109, 2. Com isso podemos perceber que o filósofo aponta como sucesso do processo de educação do caráter o exercício contínuo das suas virtudes. Contudo, essa prática será ainda mais estimulante e enriquecedora caso seja desenvolvida concomitantemente entre o mestre e discípulo, 116 Ainda sentencia o filósofo romano que compartilhar o que se sabe é um dos atributos de um mestre em prol do cultivo da alma. Contudo, o filósofo lamenta afirmando que nem sempre esse resultado é alcançado, ora pelo descuido dos mestres, ora pela intenção (querer) dos discípulos: "Mas nem sempre o resultado é satisfatório, ou porque os mestres nos ensinam a argumentar e não a viver, ou porque os discípulos procuram os mestres não com a intenção de cultivarem a alma, mas sim de aguçarem o engenho".355 E mais, sua crítica se estende ainda aos que se assentam nos bancos das escolas filosóficas apenas com o intuito de apreciar os belos discursos, com interesse de ouvir descuidado de qualquer aprendizagem, apenas como simples passatempo: “Não o faz para aprender a defender-se de algum vício, para interiorizar alguma lei moral que conduza ao aperfeiçoamento do caráter; vai lá apenas pelo prazer de ouvir”.356 Por conseguinte, pondera o filósofo sobre a autonomia do discípulo em relação ao mestre: “Não pretendo negar que sigo os meus predecessores; claro que os sigo, mas reservando-me o direito de descobrir; alterar ou abandonar alguma ideia; não sou escravo dos meus mestres, apenas lhes dou o meu assentimento!”.357 Desse modo, de acordo com sua proposta pedagógica Sêneca compreende que o discípulo ao alcançar o seu aperfeiçoamento não necessitará mais dispor do mestre, daí poderá dispensar o pedagogo, mas enquanto esse aspecto corretivo não for atingido, notadamente necessitará mirar-se sobre o exemplo de alguma autoridade. 3.2 O exemplo e a vontade: contribuições para a formação do caráter Assim, avistamos no contexto pedagógico das Cartas os exempla - elemento didático utilizado por Sêneca para atingir seu objetivo de educar visando ao progresso moral do homem.358 Os exempla também eram reconhecidos como um do contrário o processo incorrerá num fracasso a exemplo da educação de Nero, como já apontamos na nota 142. 355 Carta 108, 23. Sobre a crítica de Sêneca aos mestres que vivem em discordância com aquilo que apregoam ver Carta 108, 35-38. 356 Carta 108, 6. 357 Carta 80, 1. 358 Como já destacado no contexto da Consolação a Márcia na primeira parte deste trabalho. 117 recurso didático na sociedade romana.359 Nesses termos, vejamos o que constata Henri-Irénée Marrou a respeito dos exemplos enquanto aporte didático: Praticamente, a educação moral do jovem romano era alimentada por uma escolha de exemplos oferecidos à sua admiração; mas eram tirados da história nacional, e não da poesia heroica; o fato de muitos destes exempla serem legendários pouco importa: é como históricos que eram 360 apresentados e revividos. Nas Cartas, encontram-se registrados diversos exemplos configurados a partir de personagens aludidos com a intenção de justificar as afirmações e ilustrar com concretude os problemas postos em debate. A proposta serve como meio para aquele que está sendo educado, aconselhado a tomar como referência o modelo a seguir ou, por outro lado, desaprovar e reter com censura. Nesse sentido, são propostos os exemplos que devem ser praticados ou contraexemplos que deverão ser rejeitados. Ambos devem colaborar com a constituição do sujeito ético. Sêneca recorre a um variado grupo de personagens historicamente conhecidos. Na sua lista figuram nomes entre os quais podemos citar Sócrates, Platão, Catão, Júlio César e Augusto, e, ainda, as figuras míticas de Dédalo ou Ulisses. Diversos outros exemplos compõe a lista de Sêneca e são nomes que também guardam no seu anonimato o exemplo de grande coragem. Contudo, Sêneca não se furta a exprimir o seu pensamento diante de todas as figuras que se apresentam nos exempla, uma vez que a intenção do filósofo é assegurar para o discípulo, dentro do contexto desenvolvido, uma amostra concreta que possa levá-lo a perceber melhor as circunstâncias apresentadas em uma dada situação, o que nos faz entender que de forma alguma a exposição dessas figuras permeia o caráter de pura ornamentação, uma vez que as figuras são apresentadas às vezes como “exemplos a imitar, outras como exemplos a condenar, sempre com o intuito 359 Os mitos e exempla referentes aos grandes feitos de cidadãos romanos, registrados por historiadores, estadistas, filósofos e poetas romanos e contados, geração após geração, durante todo o período de existência de Roma, de sua fundação a sua decadência, ora com maior, ora com menor influência sobre os homens, possuíam uma função didática, justamente a de transmitir aos cidadãos romanos os valores pelos quais eles deveriam pautar suas ações para com a família, os deuses e, sobretudo, para com o Estado, gravar em seus corações a imagem, as representações de comportamentos e valores que se queria ver repetidos, imitados e emulados. CARBONERO, A.L. „Exempla Romana’: homens de „gloria‟ e mulheres de „honor‟. In: Notandum. Brasil; Portugual: Hottopos. v.12. p. 31-42. 2005. Disponível em http://www.hottopos.com/notand12/ale.htm. Acesso em 17/05/2013. 360 MARROU, Henri Irénée. História da educação na antiguidade. Trad. Mário Leônidas Casanova. São Paulo: E.P.U, 1990, p. 366. 118 inequivocamente moralizante”.361 É o que proclama também Marco Aurélio nas suas Meditações em relação a seguir os bons exemplos: “Nos escritos dos efésios figurava o conselho de lembrar-se amiúde de um dos antigos que praticavam a virtude”.362 Deste modo, exorta a Lucílio a perceber a importância que se deve dar aos olhos em detrimento do ouvido, uma vez que a eficácia do exemplo procede pelo observar e não pelo ouvir. É nesse contexto que Sêneca relembra ao discípulo o exemplo de Cleanto, pois, se acaso tivesse apenas ouvido os ensinamentos de Zenão, não teria apreendido com tanta veemência o ensino do mestre: “ele participou da vida do mestre, penetrou os seus segredos, observou até que ponto ele vivia de acordo com a sua doutrina”.363 Por outro lado, esclarece que, caso não se tenha mais à vista o exemplo a ser observado, cabe, portanto, relembrar dos bons exemplos, e, assim, segui-los, pois não será a falta da sua presença que destituirá a sua utilidade: “Embora o homem em si não o possamos ver mais, a grande virtude do herói, a grande nobreza da sua raça continua a viver no nosso espírito”.364 Como vimos, segundo o filósofo do Pórtico ninguém tem força suficiente por si mesmo para elevar-se ao seu progresso moral que, sobretudo é necessário outro que lhe sustenha. Todavia, todo esse movimento não será suficiente para o progresso moral do discípulo, uma vez que compreende que a força para gerenciar tal processo está no próprio discípulo, com isso termina por eleger em sua doutrina a vontade como elemento indispensável para o aperfeiçoamento da consciência moral: “para seres um homem de bem só precisas de uma coisa: a vontade”.365 A figura do mestre converte-se em mediador, aquele que orientará e estimulará a vontade do discípulo, pois “esta intervenção não seria frutuosa se não encontrasse capacidade e disposição naturais, apta para receber sua influência benéfica”. 366 Nessa direção, Sêneca destaca que o indício do progresso se instala quando a vontade se torna constante: 361 CAMPOS, J. A. Segurado e. Introdução. In: SÉNECA, Lúcio Aneu. Cartas a Lucílio. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009, p. XVII. 362 MARCO AURÉLIO. Meditações, XI, 26. 363 Carta 6, 6. 364 Carta103, 30. 365 Carta 80,04. 366 MONDOLFO, R. O homem na cultura antiga. Tradução de L. A. Caruso. São Paulo: Mestre Jou, 1968, p. 389. 119 Quando quiseres verificar se fizeste algum progresso, indaga se a tua vontade de hoje é idêntica à de ontem: uma mudança de vontade é indício de que a alma anda à deriva, aparecendo aqui ou ali conforme a levar o vento! O que está fixo e bem agarrado ao chão não erra ao acaso: o mesmo sucede ao sábio consumado, e, por vezes, mesmo àquele que ainda se 367 encontra em fase de aperfeiçoamento. A vontade ganha força no homem quando a sua meta aponta para o seu progresso moral, pois “não há vida filosófica, nem moral, sem um engajamento inicial da vontade fixando um objetivo, um fim último a todas as nossas ações”. 368 Notadamente, esse objetivo se traduz pelo soberano bem: “Sempre que quiseres saber qual a atitude a evitar ou a assumir, regula-te pelo bem supremo, pelo objetivo de toda a tua vida”.369 É a vontade que deve regular a nossa vida moral em toda ou qualquer situação, até mesmo em meio as demais dificuldades que se possa enfrentar será possível afirmar: “Tem sido essa a minha vontade!”.370 A vontade em Sêneca não está ligada simplesmente a um impulso momentâneo e descontínuo. Se, de início, ela se apresenta como ímpeto (impetus), seu movimento posterior será tornar-se hábito (habitus) estabelecendo uma morada perene na alma, como aconselha o filósofo, “conserva-o, dá-lhe forma, de modo a que esse ímpeto de hoje se torne configuração permanente da tua alma”. 371 Consequentemente, o passo seguinte será indubitavelmente manter-se perseverante, esse é o caminho para se manter firme em seus propósitos: “imprescindível persistir, é preciso robustecer num esforço permanente as nossas ideias, se queremos que se transforme em sabedoria o que apenas era boa vontade”.372 Não obstante, o filósofo assegura que poucos são aqueles que conseguem manter firme o curso de suas vidas, a grande maioria é levada de um lado para o outro como se fosse arrastada pelas águas de um rio. Mas, por outro lado, se quisermos seguir apenas por um único caminho precisamos “fixar de uma vez por todas o que queremos e manter-nos firmes nesse propósito”.373 Além disso, também aconselha que se deve querer e não querer sempre as mesmas coisas, isso é 367 Carta 35, 4. OLIVEIRA, Luizir de. Sêneca: uma vida dedicada à filosofia. São Paulo: Paulus, 2010, p. 125. 369 Carta 71, 2. 370 Carta 34, 2. 371 Carta 16, 6. 372 Ibidem, 1. 373 Carta 23, 8. 368 120 fundamental para o alcance da sabedoria,374 bem como para a convergência entre os nossos propósitos e as nossas ações. Com efeito, a luta persistente em direção ao aperfeiçoamento moral não diz respeito apenas ao seu discípulo Lucílio, mas de fato ao próprio Sêneca, o qual não se reconhece como sábio – sapiens, mas admite ser apenas um proficiens: “[...] um homem que sabe qual a meta ideal a atingir, e para lá caminha com o maior empenho conquanto saiba que ainda lhe falta muito a percorrer”.375 De fato, o sábio não existe. Segundo Oliveira, a perspectiva que resta ao homem comum é cuidar de si com vistas ao aperfeiçoamento: “Portanto, o importante é nos ocuparmos de nós mesmos, homens que aspiramos à sabedoria, mas que não somos, nem podemos jamais ser, sábios naquele sentido absoluto”.376 Nesse sentido, noticia o filósofo romano ao amigo Lucílio que as questões sobre o sábio devem ficar para outra oportunidade, pois Sêneca compreende que tanto ele quanto o seu discípulo ainda estão longe de alcançar o sábio, o que importa no momento é verter à atenção para o cuidado com as paixões violentas. Assim, assume Sêneca que ainda lhe falta muito a percorrer, ao compreender que aquele modo que ele mesmo considera definitivo e inabalável ainda não se fixou em seu espírito. Não obstante, afirma sem desanimar apontando de igual modo para a única solução a ser seguida: [...] ser firme e avançar sem descanso. O caminho que resta percorrer é mais longo que o já percorrido, mas grande parte do progresso consiste na vontade de progredir. De uma coisa tenho eu plena consciência: quero progredir, quero-o com toda a alma! Sei que também tu estás cheio de entusiasmo no sentindo de buscar atingir a virtude com todas as energias. 377 Avancemos, pois só assim a vida nos será de utilidade. Como ressalta Oliveira “a virtude é assimilada a uma divindade compassiva que não exige de seus adoradores oferendas materiais, mas apenas uma vontade pura”.378 Com isso, reconhece que “se o homem de bem é feliz, como proclamam os estoicos, a vontade, que basta para nos tornar bons, será também a condição da felicidade”.379 374 Cf. Carta 20, 5. Carta 87, 4, nota 17. 376 OLIVEIRA, Luizir de. Sêneca: uma vida dedicada à filosofia. São Paulo: Paulus, 2010, p. 137. 377 Carta 71, 36. 378 OLIVEIRA, op.cit., p. 130. 379 Ibidem, p. 130. 375 121 Com tal característica, a tarefa a ser empreendida refere-se à atitude do mestre em direcionar o discípulo à esfera da felicidade incutindo-lhe a virtude como que a cravasse em sua alma: “Do mesmo modo, nos homens que desejamos aliciar para a verdadeira felicidade, devemos inculcar os princípios de base, devemos meter dentro deles a virtude. [...] é preciso que a amem, que queiram viver com ela, que não possam passar sem ela”.380 Com efeito, esse é o caminho traçado por Sêneca para que o homem comum alcance a condição de um homem de bem, ou seja, somente por uma educação do caráter, estabelecida com persistência será possível ascender à virtude. 3.3 Sêneca: guia e educador de Nero Como vimos, a prática da filosofia enquanto exercício é ingente em Sêneca, bem como a assunção do filósofo como guia e condutor de almas, como comprovam as Cartas, contudo é possível perceber que essa exigência no pensamento senequiano é uma preocupação que se estende por toda a sua filosofia, sendo demarcada bem antes das Cartas a Lucílio, como se pode notar a partir da obra Da clemência. Vejamos então como se dá o papel de Sêneca como condutor de consciência na referida obra. No texto Da clemência, o filósofo romano descreve o seu conceito de clemência, o qual traduz o seu modelo de soberano e demonstra a preoucupação do filósofo com a formação moral daquele que se encontra no governo, visto que Sêneca se torna preceptor do Imperador Nero. Com efeito, a obra mormente assume um caráter político e filosófico, bem como pedagógico. Portanto, o intento em revisitar esta obra de Sêneca nos permite tanto compreender as nuances da vivência prática da filosofia senequiana, bem como analisar o caráter pedagógico inscrito na obra, uma vez que expressa a preocupação de educar moralmente o soberano com base no princípio da clemência. Em decorrência de intrigas palacianas, Sêneca é envolvido em um golpe no qual é acusado de adultério. Dessa vez, as investidas correspondem à esposa do Imperador Cláudio, Messalina. Em consequência da armadilha, o filósofo foi 380 Carta 95, 35. 122 sentenciado ao exilio381 na Ilha de Córsega durante oitos anos, lugar considerado inóspito e habitado por povos selvagens. O seu retorno a Roma se deu em 49 d.C., ocasionado pelo convite de Agripina, a nova imperatriz, conforme já havíamos apontado antes, ocasião em que se torna preceptor de Nero e se insere no cenário político interno de Roma. Sêneca é imcubido de preparar o príncipe, o futuro imperador de Roma, assumindo desse modo a educação382 de Nero. Com efeito, os anos no exílio fizeram Sêneca mergulhar mais profundamente nos seus estudos dedicando-se mais a filosofia, de modo que lhe acendera a chama do sentimento de por em prática o que fora aprendido. Nessa direção, Sêneca, que já sentira o peso das ações desmedidas do poder imperial, aponta para um modelo de educação do futuro imperador, “baseando-se não no reconhecimento da limitação do poder imperial, pois se tratava de um governo de inclinações abertamente tirânicas, mas sim na possilibidade de persuadir esse poder à concessão de clemência e bondade [...]”.383 Ademais, era o momento oportuno de elevar a Filosofia do Pórtico ao trono, como pensaram os primeiros filosófos, ao reproduzir em Nero a figura do rei-filósofo. Os esforços de Sêneca em direção à formação do jovem príncipe já podem ser sentidos a partir do discurso de posse de Nero em 54 d.C. Num segundo momento, a investida do filósofo se faz presente a partir da publicação da obra Da clemência, em 56 d.C. A obra tem como destino o jovem imperador e fundamenta-se no ensino do uso adequado do poder. Contudo, o conceito desse poder não figura apenas como um mero poder político, mas em Sêneca o poder anunciado dialoga nitidamente com o pensamento político estoico sobre o governo ideal, o qual deve 381 A vida encarregava-se de colocar Sêneca frente a frente com as dificuldades que vinha buscando compreender durante seus estudos. Aos 40 anos, período considerado o mais fértil da vida de um homem, estava longe de tudo e todos. E se, por um lado, isto seria uma das mais austeras provações que o seu espírito teria de suportar, por outro exerceu um efeito positivo em sua alma. O exílio serviria para abrandar-lhe o ímpeto, aprofundar os estudos e preparar-lhe para as novas e importantes tarefas futuras. OLIVEIRA, Luizir de. Sêneca: uma vida dedicada à filosofia. São Paulo: Paulus, 2010, p. 67. 382 Nero foi instruído por Sêneca durante três anos, essas atribuições também foram divididas com Burrus, um velho soldado do palácio. Além da incumbência de formar o futuro imperador, Sêneca assegurava outras funções atribuídas na organização do governo, por exemplo, como Senador; também consta em sua lista o cargo de cônsul designado. E, aos poucos foi se desvencilhando do cargo de preceptor para assumir o cargo de amicus principis, função desempenhada até deixar a corte em 62 d.C. Contudo, devido aos encalces dos seus inimigos que proliferavam inúmeras calúnias, as relações entre Sêneca e o Imperador foram abaladas. Em 65 Sêneca foi envolvido como cúmplice injustamente na conjuração de Pisão, e mesmo após a tentativa de justificação da sua inocência recebeu do Imperador a ordem para se suicidar, vindo a falecer aos dezenove dias do mês de abril. 383 OLIVEIRA, op.cit., p. 77. 123 seguir uma estrutura baseada segundo a lei da natureza e de uma virtude capaz de assegurar a harmonia, paz e a coesão social. Assim nos explica Cardoso, que se trata: [...] de um poder que deveria fundar-se naquilo que o estoicismo apregoa como ideal humano: a virtude, a excelência moral, a reta razão. O pensamento filosófico norteia a vida política, informa a reflexão sobre o poder, traz uma solução para os problemas referentes ao Estado, colocando a clemência como a virtude capital do governante, virtude essa estreitamente ligada aos princípios preconizados pelo 384 estoicismo. Na obra, Sêneca esboça as concepções acerca das suas ideias no campo da política, ao passo que também responde ao diagnóstico das carências do seu momento histórico-político.385 De fato, o momento histórico em que Sêneca viveu retém vários acontecimentos que apresentam a fragilidade no campo político. Daí temos que no regime político de Augusto (de 31 a.C. a 14 d.C.) a figura do imperador era central, e para onde convergia todo o poder, o qual esboçava as idiossincrasias na máquina estatal. Já no período que antecede a soberania de Nero, na qual percebemos a ascenção ao poder das figuras de Tibério, Calígula e Cláudio, o que ocorreu foi um empobrecimento das ideias filósoficas e políticas, em virtude de fatores refletidos na personalidade e no relacionamento dos imperadores com os seus súditos. Assim, com a morte de Cláudio e a chegada de Nero ao poder, abria-se a oportunidade de Sêneca elevar ao poder a filosofia, como já destacamos acima. Não é por engano que o filósofo é descrito como um homem que sempre teve uma postura ativa em seu tempo, por sua vez, podemos destarcar que “a necessidade de preencher o vazio ideológico fez com que a lucidez de Sêneca propusesse uma teoria política do poder fundamentada em um ideal caractereziado por uma virtude, a clementia”.386 Nessa direção, é possível observar o enfoque dado por Sêneca ao modelo de sua teoria de governo, a qual se encontra atrelada à clemência, visto que “formula uma teoria de governo autoritário, mas propondo a clementia como componente humanitário indispensável para que um governante tenha êxito no 384 CARDOSO, Z. A. Sêneca: um educador na Roma Imperial. Disponível em http://www.paideuma.net/textozelia.pdf.Acesso em 07/01/2013. 385 Cf. BRAREN, I. Introdução. In: SÊNECA. Tratado sobre a clemência. Petrópolis: Vozes, 2013, p. 9. 386 Ibidem, p. 10. 124 exercício do poder”.387 O soberano necessariamente deve ser um portador da clemência, porquanto no desenvolvimento do seu papel deve fazer uso dessa virtude atribuída de um caráter humanístico indispensável. A clemência interessa em primeira instância ao soberano. Segundo o pensamento senequiano, a clemência é uma virtude que cabe a todos, no entanto, deve ser vista como condição indispensável à prática do príncipe, uma vez que em decorrência do seu poder e autoridade muitas coisas podem ser realizadas e outras preservadas. Assim, exorta o filósofo àquele que detém todo o poder a fazer uso da clemência, pois ela “conserverá feliz e tranquila qualquer casa em que estiver entrado, mas, no palácio real, onde é mais rara, mais admirável será [...]”.388 Em decorrência disso, Sêneca aponta para as vantagens adquiridas ante a clemência. Portanto, são destacados para Nero os benefícios mediante a virtude da clemência, “[...] de uma forma geral: salva os inocentes, salvaguarda o interesse de todos; concede e garante a vida para todos; preserva e garante a segurança da comunidade”.389 Com efeito, diante da clemência de Nero, a repercussão do sentimento de admiração será unânime, alvo tanto daqueles que detém o poder, bem como daqueles ditos insignificantes, sem poder algum. Assim, expõe Sêneca: Entretanto, antes de tudo, aos poderosos e aos insignificantes, sobrevémlhe igual admiração pela tua clemência; pois cada um sente e espera menores ou maiores bens de acordo com a porção de sua sorte, porém da 390 clemência todos esperam o mesmo quinhão. No entendimento de Sêneca, a clemência se revela como uma temperança de espírito que se encontra naquele que detém o poder, de forma que, ao determinar o caráter da pena, seja capaz de demonstrar brandura. No entanto, devese observar que denominar a clemência de brandura, não significa uma inclinação para o perdão, visto que segundo o filósofo perdoar é o mesmo que absolver o culpado de uma pena merecida. A proposta é regular-se pela moderação encontrada na clemência, uma vez que o caminho do perdão não seria o mais justo: “mas aquilo que quiseres obter pelo perdão o sábio te concederá por um caminho mais honrado, pois poupará, 387 Ibidem, p. 11. SÊNECA. Da clemência, III (I, 5), 4. 389 VIZENTIN, M. Imagens do poder em Sêneca. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005, p. 133. 390 Da clemência, I, 9. 388 125 refletirá e corrigirá”.391 Com isso, o caminho a ser percorrido é o da correção ao alcance da virtude, assim testemunha Sêneca em relação ao sábio: A alguns, observando que sua idade permite recuperação, fará apenas admoestações verbais e não infligirá castigos. A outros, que visivelmente padecem com o que há de repugnante em seu crime, ordenará que permaneçam incólumes, porque foram ludibriados, porque cometeram o 392 deslize por causa do vinho. Ainda acrescenta o filósofo que cabe ao sábio assemelhar-se aos bons lavradores que também cuidam das suas árvores de modo a corrigí-las: “cuidam das que se entortaram por algum motivo, aplicando escoras para endireitá-las. Podam à volta de algumas árvores para não tolher o crescimento dos galhos, adubam outras, raquíticas por causa do solo fraco [...]”.393 Assim deve seguir o príncipe, semelhante ao sábio com a pretensão de corrigir de maneira justa como prescreve a clemência, visando o aperfeiçoamento dos demais e a coesão social. Doravante, adverte o filósofo que o homem que cometeu algum crime deve responder pelos seus atos e ser punido, uma vez que é falso pensar que a clemência se opõe a severidade: “os inexperientes julgam a severidade como o contrário da clemência, mas jamais uma virtude é contrária a outra virtude”.394 Na verdade, a clemência deve se opor a crueldade que se traduz como uma dureza de espírito daquele que executa a punição. Todavia, existem ainda aqueles que, mesmo não cumprindo nenhuma ordem de punição, são denominados de cruéis, pois torturam e matam suas vítimas pelo simples prazer de fazê-lo, sem terem queixa alguma, como é o caso dos piratas, e figuras como Busíris e Procusto.395 A compaixão é outra atitude que deve ser combatida, porque se relaciona a um tipo de sentimento de fraqueza ocasionado pela condição adversa de alguns, é próprio da compaixão se compadecer, daí decorrem o sofrimento e a tristeza. Diante disto, seria um erro confirmar uma sentença à base da compaixão, de sorte que “a 391 V (II. 7), 2. V (II. 7), 2. 393 V (II. 7), 4. 394 II (II. 4), 1. 395 O primeiro, reza a lenda grega, era um rei que torturava estrangeiros, já o segundo se tornou famoso por adaptar as pessoas à sua cama, pois com um martelo encontrava a medida exata para preenchê-la. 392 126 compaixão não observa a causa do castigo, mas o infortúnio do criminoso. A clemência se aproxima da razão”.396 De acordo com Braren, a clemência era “uma correção da lei cuja universalidade a fez imperfeita. Seria uma espécie de justiça exercida por uma instância superior, de caráter humanitário, que lhe permite sobrepor-se às leis escritas pelos homens”.397 Por esta razão, a clemência que em Sêneca segue como um princípio educativo que se revela oposta à crueldade, tanto quanto à compaixão, mas paralela à justiça e sob o comando daquele que se encontra detentor de um espírito de brandura. Nesse sentido, Sêneca considera que inverso ao sabor da clemência tem-se a crueldade que não deve fazer parte do contexto do soberano, o que nos leva a crer que um dos seus objetivos era notadamente desviar Nero dessa conduta. Ainda segundo as palavras de Braren, o modelo de clemência evocado por Sêneca traz consigo certos complementos de caráter político, jurídico e humanístico que denotam o interesse do filósofo com a formação moral do chefe de Estado.398 Desse ponto vista Sêneca deu elevada atenção à clemência tornando-a fundamento para a instrução moral do governante; por outro lado, este projeto só alcançaria sucesso mediante uma educação adequada em que a interiorização do conceito e a vivência prática dessa virtude fossem alcançadas. Nessa direção, já no início do texto Da clemência (I. I, 1) Sêneca se dispõe a servir como um espelho399 para Nero, a fim de lhe garantir as satisfações ao seguir a clemência: “dispus-me a escrever a respeito da clemência, ó Nero César, para que eu, de certa forma, desempenhasse a função de espelho e te mostrasse a tua pessoa como a que há de vir para a maior de todas as satisfações”.400 O espelho no contexto moral, refere-se a um objeto que reflete imagens capazes de conduzir o homem ao seu autoconhecimento, por sua vez reproduz tanto a imagem daquilo que se é – referindo-se a realidade dada carente de correção; bem como reflete o modelo a ser alcançado. Na proposta de Sêneca ao 396 Da clemência, III (II. 5), 1. BRAREN, I. Introdução. In: SÊNECA. Tratado sobre a clemência. Petrópolis: Vozes, 2013, p. 20. 398 Cf. Ibidem, p. 20. 399 Os estoicos elegeram como forma de aconselhamento para os seus governantes a publicação de tratados sobre como gerir bem o Estado. Esses tratados ficaram conhecidos como “espelhos de príncipes” e tinham como finalidade, além de formar o bom soberano, direcionar as suas virtudes sem favor das cidades. Cf. VIZENTIN, M. Imagens do poder em Sêneca. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005, p.91. 400 Da clemência, I, 1. 397 127 retomar a ideia do espelho de príncipe, o filósofo se autoelege como aquele que servirá de paradigma para a formação moral, “em alguns textos é o homem virtuoso que serve de espelho-modelo para outros [...] no De Clementia, em que Sêneca se dispõe ele próprio a servir de “espelho” de Nero”.401 Decorre que, ainda nas primeiras linhas do texto (De Clem. I, 1), o filósofo exorta a Nero que siga diariamente com o exercício de consciência, exercício que fora proposto pelos antigos estoicos e que Sêneca seguiu com diligência por toda a sua vida. Certamente, o que filósofo espera de Nero através desse exercício é que ele possa visualizar os seguintes propósitos: em primeiro lugar, reconhecer em Sêneca o modelo de sábio a ser seguido; em segundo, que Nero possa enxergar para além da sua realidade (o grande poder que têm nas mãos), e reconheça que de acordo com o seu comportamento ao menos dois caminhos podem ser previstos, ir em direção ao status de um nobre rei ou de um terrível tirano. Ademais, outro recurso já citado e que Sêneca põe em relevo em direção ao modelo do soberano, consta dos exempla, recurso que o filósofo dispõe como aparato didático no seu processo formativo. No Da clemência, Sêneca busca por meio do exemplum despertar no jovem imperador as virtudes necessárias para que ele se torne um imperador clemente. Decerto, os exemplos em Sêneca assumem fundamental importância de caráter pedagógico para a contextualização dos conceitos desenvolvidos no texto, “[...] é justamente a utilização de exemplos que permite a Sêneca a construção do plano sobre o qual a execução da obra se pautará, já que cada um deles pertence à categoria de situações especificas e possui um lugar previsto dentro da composição”.402 O filósofo romano objetivava, por meio dos exemplos, revelar a Nero os caminhos trilhados por príncipes e notáveis cidadãos romanos em direção à perfeição e ao exercício da autoridade, ao mesmo tempo em que também demonstraria as consequências das ações daqueles que caminharam no sentido oposto, que se deixaram arrebatar por sentimentos inferiores. Na prática Sêneca faz uso do exemplo de modo a infiltrar neles os pontos relevantes que possam ser utilizados como endereços apropriados de uma boa ou má conduta. Ademais, podemos destacar que a utilização dos exempla no contexto 401 402 VIZENTIN, M. op.cit., p. 93. Ibidem, p. 157. 128 da obra Da clemência é peça de fundamental importância para convencer o príncipe do uso da clemência e suas garantias. Por sua vez, dada a multiplicidade dos exemplos e a capacidade inerente que eles apresentam de impulsionar o agir a partir dos seus mais variados personagens, Sêneca não espera nada além de poder auxiliar Nero em sua conduta, tendo em vista que caso venha a lograr sucesso possa também inscrevê-lo na lista como exemplo para o seu tempo e além dele, fazendo-o adentrar para o contexto da história. Por certo, alinhar-se ao modelo da virtude da clemência requer do soberano que ele assuma responsabilidades e os seus desdobramentos, os quais Sêneca veementemente conclama a que Nero reconheça. Assim, justifica o filósofo romano: Mas tu te impuseste um enorme encargo. Ninguém fala mais do Divino Augusto, nem dos primeiros tempos de Tibério César, nem, querendo imitar um modelo, procura outro além do teu: avalia-te o teu principado por esta prova. [...] o povo romano enfrentava um grande risco, quando lhe parecia incerto para onde voltaria tua nobre índole. Agora, os votos públicos estão em segurança, pois não existe perigo de que 403 subitamente te esqueças de tua natureza. Nessa esteira, compreendemos, afinal, a postura que se espera do soberano clemente, a qual diz respeito ao tipo de conduta que deve estar atrelada às atitudes benevolentes, comedidas e educativas, o qual por sua vez deve rejeitar qualquer tipo de postura tirânica, cruel e irracional. Como bem sabemos, o caminho para alcançar esse padrão já fora revelado, pois ele se expressa a partir do exemplum utilizado por Sêneca, o qual é capaz de levar ao encontro da clemência, bem como demonstrar ao homem a via contrária, assim se observa que “o exemplo é apontado ora para demonstrar a justa medida na prática da clemência, ora para demonstrar aquilo que desvirtuava o homem em relação ao verdadeiro caminho para a clemência”.404 Com isso, o filósofo destaca a personalidade ideal a ser copiada por Nero, apontando-lhe através dos exemplos aquela que necessariamente deveria ser o seu paradigma, bem como aqueles os quais Nero deve se desviar. Para começar Sêneca inicia apontando primeiramente o tipo de conduta que Nero deveria necessariamente evitar, citando Faláris como exemplo de tirania, pois ficou 403 Da clemência, I, 6. PEREIRA COELHO, J. P. e PEREIRA MELO, José Joaquim. A educatio latina na obra De Clementia de Sêneca. In: Revista Educação e filosofia. Uberlândia, vol. 25, n.49, p. 99-119, jan./jul. 2011, p. 107. 404 129 conhecido pela prática de colocar ainda vivo seus inimigos dentro de um touro de bronze e em seguida queimá-los. Faláris, portanto é um dos exemplos de tirania e crueldade, segundo nos aponta Sêneca: Portanto, darei o nome de cruel àqueles que têm motivo para punir, mas não têm nenhuma medida, como Faláris, de quem afirmam que seviciou homens, por certo não inocentes, porém numa dimensão que ultrapassava 405 a medida do humano e do admissível. E, numa ordem contrária, agora atribuíndo todo o peso na virtude da clemência, o filósofo nos indica o exemplo de Augusto, que apesar dos anos que lançou a espada para matar a muitos, pode na velhice ser banhado pela clemência. A cena que servirá como destaque para este exemplo figura no perdão de Augusto que fora concedido a Lúcio Cina que, segundo os relatos, conspirava contra o príncipe. Decerto, após aceitar o conselho de sua esposa, Lívia, que de maneira sábia o interrompeu, passa a cultivar o exercício da clemência: “Aceitas um conselho de mulher? Faze o que os médicos costumam fazer quando os remédios habituais não dão resultado: tentam remédios contrários. Até agora não conseguiste nada com a severidade” 406 . Por esta razão, Lívia assinala que o caminho correto a seguir seria o da clêmencia, pelo ganho favorável que lhe seria concedido tanto pela reputação, como pelo ganho de um novo amigo e aliado: “[...] Tenta, agora, como a clêmencia poderia favorecer-te. Perdoa Lúcio Cina. Ele foi apanhado. Já não pode prejudicar-te mais, porém, para tua reputação, poder ser útil”.407 Portanto, no entorno desse exemplo podem ser eleitas duas possiblidades de ensino: a primeira quanto ao uso da clemência, e a segunda referente à disposição de receber conselhos nas deliberações específicas de um príncipe. Nesse âmbito, cabe destacar que o interesse de Sêneca seguindo os exempla é poder mostrar ao seu discípulo a grandeza das ações quando elas são mediadas, tipificadas pela clemência, que por sinal terminam por coadunar no bom uso do poder. Por outro lado, é preciso considerar que a estrutura dos exemplos senequianos conversa claramente com a condição de sua filosofia, a qual está voltada para uma conduta prática. Daí que os exemplos fazem uma nítida referência 405 Da clemência, II (II, 4) 3. VII. (I, 9) 6. 407 VII. (I, 9) 6. 406 130 às ações humanas, seja de modo racional ou irracional, e que por sua vez, guiados pelo propósito pedagógico inscrito na obra, possam imprimir em Nero à compreensão daquilo que se refere ao bem e ao mal. Nessa direção, Sêneca faz emergir mais uma imagem para exemplificar o modelo de conduta a ser seguido. Trata-se dessa vez da figura paterna, cujas ações são estabelecidas como parâmentro dentro do contexto das ações de Nero. Ao que nos parece Sêneca, ao eleger a figura paterna como modelo, amplia o contexto sobre as figuras dos exempla ao apontar dessa vez não mais as personagens históricas, mas reafirmando a tradição e o contexto do cidadão romano. A figura do pai, na ótica senequiana, volta-se para os princípios relacionados aos aspectos da moderação e da prudência, acima de tudo entre seus filhos, por isso, uma vez que, detendo o poder de vida e de morte dos seus, deveria agir com cautela e total determinação da prudência ao declarar algum castigo. Embora não fosse obrigado a prestar contas da educação dos filhos às autoridades romanas, não caberia ao pai permitir-se usar de atos violentos puramente gratuitos, ou mesmo abandonar à própria sorte a sua prole. Com isso, Sêneca nos concede o exemplo de Triconte, que fugindo às determinações da prudência, agiu de forma excessiva e irracional, o que terminou ocasinando a sua própria condenação: “[...] um cavaleiro romano segundo minha memória, porque matara o próprio filho a açoites, o povo trespassou a golpes de estilete, no fórum. A autoridade de César Augusto mal conseguiu arrancá-lo das mãos dos agressores, tanto de pais quanto de filhos”.408 Não obstante, a conduta que fundamenta a prática dos bons pais não dialoga com a ação de Triconte. Afinal, o pater familias em Sêneca é eleito com sua máxima autoridade, mas dosada pelo equilíbrio da producência como um legado em reconhecimento das tradições: A exemplo disto, Sêneca nos esclarece: Logo, qual é o seu dever? O mesmo dos bons pais, que costumam censurar seus filhos algumas vezes carinhosamente, outras vezes com ameaças e, às vezes, chegam até a admoestá-los a chicotadas. Acaso algum pai são de espírito, deserda o filho à primeira ofensa? [...] Tenta, antes, muitos outros recursos pelos quais possa reconduzir uma índole indecisa e já inclinada 409 pela pior postura. 408 409 Da clemência, XIII. (I, 5) 1. XII. (I, 14) 1. 131 Nesse sentido, o exemplo que cumpre com a tarefa do dever, pode ser mais bem representado por Tário, um pai que sentenciou seu filho ao castigo, mas o fez atento aos princípios que devem inspirar as boas disposições do príncipe, visto que após surpreender o seu próprio filho tramando contra sua vida, Tário que por direito tem em suas mãos o poder sobre a vida e a morte dos seus descendentes, escolhe castigá-lo com o exílio, inclusive provendo-lhe com uma renda mensal. Tal atitude só lhe rendeu admiração dos demais. Assim, como bem marca o exemplo acima, a ação do bom príncipe deve se respaldar em sentido à prática da clemência segundo o agir dos bons pais. Sêneca, assim, reconhece nas ações paternas um modelo para Nero no que tange a sua conduta. O filósofo compreende que em analogia à autoridade do pai, o príncipe deveria responder com a mesma clareza diante da vida e morte dos seus súditos, permitindo-se agir como os bons pais no momento de julgar algum litígio. Sêneca encontra fundamento em fazer tal analogia se apoiando no título de Pater Patrie410 outorgado a Nero, em 55 d.C. Pois uma vez reconhecido o poder lhe que fora concedido como Pai da Pátria, não deveriam restar dúvidas quanto ao modo de agir com seus filhos, desprendido dos sentimentos de brutalidade e ameaças, “acaso não parecerá o pior dos pais aquele que reprime os filhos com frequentes surras, mesmo pelos motivos mais leves?”,411 mas suas ações precisam se converter em atitudes de interesse educativo, “é esta a clemência que convém a um príncipe; aonde quer que vá torna as coisas mais amenas”.412 Assim, conclama Sêneca quanto ao propósito da clemência: O que deve ser feito pelo pai, deve também sê-lo pelo príncipe, a quem demos o nome de Pai da Pátria [...] Nós proclamamos Grande, Feliz, Augusto e o cumulamos com tudo o que pudemos atribuir em matéria de títulos a uma ambiciosa majestade. Mas, na verdade, denominamo-lo Pai da Pátria para que soubesse que lhe foi conferido o pátrio poder graças a seu grande comedimento em consultar os filhos e colocar seus próprios 413 interesses depois dos deles. 410 A despeito da titulação de Pater Patrie, o (Pai da Pátria) é um título atribuído a todo Imperador que por ordem de um grande feito torna-se merecedor pelo seu reconhecimento. Assim, veio a conquistálo primeiramente Cícero, depois César, Augusto e demais imperadores. Cf. VIZENTIN, M. Imagens do poder em Sêneca. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005, p. 36. 411 Da clemência, XIV. (I, 16) 3. 412 XIV. (I,16) 1. 413 XII. (I, 14) 2. 132 Ao que nos parece, se por acaso as ações que ora foram tipificadas como sendo próprias dos bons pais, fossem por contrário movidas por sentimentos de intolerância e crueldade dentro da família, por consequência teríamos um estado típico de ódio e revolta famíliar, fugindo ao escopo do modelo educativo. Sucessivamente, caso o Pai da Pátria agisse de maneira semelhante, inclinado apenas em disseminar a hostilidade, qual seria o lucro? O curso se daria pelo sentimento de vingança e ódio, certamente. A resposta de Sêneca é contudente quanto a isso: Porém, agora, o rei não tem nem mesmo o curso de sua vida assegurado, pois é necessário que tema tanto quanto quis ser temido, que observe as mãos de cada pessoa e, durante o lapso de tempo em que não for apanhado, que fique julgando ser objeto de procura e não tenha um 414 nenhum momento isento de medo. Contrário a essa atitude, sucede ao príncipe cativar nos súditos o sentimento de confiança e igualmente tratá-los com respeito e mansidão, pois estas são atitudes próprias de um rei pacífico em prol dos seus colaboradores. Além do mais, deve ter em mente que é neles que está sua fonte de segurança e, por conseguinte, de onde provém o seu amor. Portanto, uma vez assegurado os laços de união entre o príncipe e seus súdidos, não haveria mais motivos para insegurança: “Não há necessidade de construir elevadas cidadelas nos topos, nem de fortificar colina escarpdas nas encostas, nem de cortar os flancos dos montes, nem de se cercar com múltiplas muralhas e torres [...]”.415 De fato, o que tornará essa liberdade e esse estado de segurança possível encontrar-se-a salvaguardado na virtude da clêmencia. Desse modo, em decorrência dessa reciprocidade podemos vislumbrar o seguinte esquema: em virtude da ação do príncipe coroado pela clemência a coesão da sociedade seria mantida, ao passo que a segurança do rei estaria resguardada e abrigada fortemente sob a proteção do amor dos seus súditos. Por fim, esse é o Estado ao qual o príncipe deve almejar em que impere a ordem e a harmonia social. Com isso, os benefícios só tendem a se multiplicar e em nome da virtude cada vez mais afirmar contra qualquer forma de crueldade e tirania, uma vez que a 414 415 XVII. (I, 19) 5. XVII. (I, 19) 6. 133 imagem que reluz de um império ornamentado pela clemência reproduz “[...] a aparência de um império tranquilo e bem-estruturado outra coisa não é senão a de um céu sereno e brilhante”.416 Do mesmo modo, Sêneca compartilha conosco as ações correspondentes ao príncipe acrescido de prudência e sabedoria: [...] o príncipe que tem preocupações universais, atendendo mais alguns, menos outras, presta assistência ao Estado, como se fosse parte de si mesmo, inclinado às mais meigas soluções, mostrando, mesmo quando censurar é de utilidade, quão constrangido põe as mãos em ásperos corretivos. Em seu espírito nada é hostil, nada é selvagem. Exerce seu poder pacífica e saudavelmente, desejando dos cidadãos a aprovação de suas ordens; considerando-se suficientemente feliz, se puder tornar a sua boa sorte pública. Afável de conversa, fácil à aproximação e ao acesso, com fisionomia que cativa sobretudo as massas, amável, propenso às petições legítimas, e apenas ríspido em relação às ilegítimas: ele é amado, 417 defendido e respeitado pela nação inteira. Com efeito, a postura acima descreve literalmente o modelo de virtude no qual se assenta o príncipe clemente, o qual dentre as suas pregorrativas já mencionadas deve acima de tudo imprimir naqueles sobre os quais reina sua própria imagem virtuosa, bem como se apresenta como o mais indicado para atender a incumbência de prover a paz e a ordem em sua nação. Assim como frente ao exercício da clemência, Sêneca concebe o governante ideal, o qual se assemelha à atitude do sábido que age de forma deliberadamente racional. Entretanto, torna-se necessário enfatizar que Sêneca já tendo percebido os indícios das tendências tirânicas de Nero, empreende logo nos primeiros anos de seu reinado a seguinte análise sobre seu discípulo: Isto teria sido difícil, se a bondade não fosse natural em ti, mas encenada de vez em quando. Pois ninguém pode sustentar uma máscara durante longo tempo. Muito cedo, as coisas fingidas recaem em sua própria natureza. Sob cada uma delas existe alguma verdade e, como eu diria, brotam a partir desta sólida substância e, em seu devido tempo, 418 desenvolvem-se em algo maior e melhor. Daí enfatizar que o autor provavelmente movido pela preocupação com o caráter duvidoso de Nero, tenha atentado para a clemência como um projeto educativo para o bom governo. Por isso, no que tange ao processo educativo, e aqui 416 V. (I, 7) 1. XI. (I, 13) 4. 418 I. 6. 417 134 se faz menção ao conteúdo da clemência direcionada ao seu discípulo Nero, o filósofo entende que a postura a ser aplicada no ensino desse conteúdo, bem como de qualquer outro, não deve se assemelhar a uma condição de imposição. O ensinar e o aprender pela via senequiana supõe uma postura inversa: Qual mestre de estudos liberais é mais digno, aquele que escarnece dos alunos se a memória lhes tiver falhado, se seus olhos pouco ágeis tiverem vacilado na leitura, ou aquele que prefere corrigir e ensinar por meio de 419 recomendações e de respeito? A rigor o ensino deve cortejar a mansidão e a paciência, com vias a despertar no díscipulo a virtude. Com isso, esclarecemos que a missão do mestre é orientar e não impor sua vontade sobre o discípulo, o presente pensamento se configura em perceber no discípulo o seu querer, assim, destaca-se que “[...] a educação ocorria, primeiramente, por meio da interação do discípulo consigo mesmo, sendo papel do mestre, por meio do exemplo, colocá-lo em contato com outros sujeitos e objetos que fomentassem na alma a vontade para o aprendizado”.420 Nessa direção, Nero buscaria na vontade o fortalecimento para prosseguir no caminho da sabedoria e da virtude, como um escudo diante dos agentes externos que por ventura viessem atentar contra ele. Contudo, Nero só alcançaria sucesso em seu processo formativo como bem sabia Sêneca, caso disciplinasse seus desejos, os impulsos/vontades e julgamentos, ferramentas imprescindíveis para o sucesso moral. 419 XIV. (I, 16) 3. MERINO apud PEREIRA COELHO, J. P. e PEREIRA MELO, José Joaquim. A educatio latina na obra De Clementia de Sêneca. In: Revista Educação e filosofia. Uberlândia, vol. 25, n.49, p. 99-119, jan./jul. 2011, p. 110. 420 135 CONSIDERAÇÕES FINAIS Como pôde ser observado, Lúcio Aneu Sêneca é um fiel seguidor da filosofia do Pórtico, coroado como uma das vozes mais expressivas do estoicismo romano. Contudo, seu pensamento não foi balizado apenas pelas teorias da escola estoica, mas visitou igualmente as teses de diferentes autores, o que expressa por certo a sua liberdade em conversar com outros pensadores. Decerto, essa capacidade emerge de um Sêneca que tece com habilidade um diálogo privilegiado com as demais vozes e ao mesmo tempo converte-as ao contexto estoico. Com efeito, o filósofo romano coaduna-se com os princípios estoicos e propõe, em sua filosofia, a busca da felicidade pautada em uma ética que se expressa pela máxima do viver em harmonia com a natureza, sendo esta a fonte da felicidade e da virtude as quais coincidem com o soberano bem. Posto isso, o estoicismo elenca como proposta de harmonizar a relação entre o homem e a natureza, propondo práticas e regras de condutas que possam equilibrar a comunhão entre ambos. Assim, encontramos marcadamente em Sêneca a figura de um homem com ávida participação no cenário da Roma de seu tempo, ao passo que também sempre esteve preocupado em conciliar a sua vida aos ditames da sua filosofia, tarefa esta que se prolongou por toda a sua vida. Como vimos, o filósofo romano está preocupado com o campo da moral em sua filosofia, seu intento é a formação moral do homem que tenha como alcance a paz da alma. Vale ressaltar que os valores que estão inseridos nessa busca dizem respeito à paz interior e relacionam-se ao único bem, que é a virtude, que por sua vez encontra-se desvinculado de qualquer objeto externo vulnerável às vicissitudes da fortuna. A filosofia difundida por Sêneca está ligada intimamente ao percurso de uma atividade prática, seu olhar se volta notadamente para o homem concreto. A base das suas reflexões emerge de um contexto real que dispensa a composição de grandes discursos, arrolados à base de escolhas vocabulares e de um contexto rebuscado. Prova disto é que o filósofo torna suas próprias vivências palco da sua filosofia, interessa saber para Sêneca sobre a fraqueza do espírito humano, seus medos e temores diante da vida. Com isso, a luta do filósofo é árdua, mas também persistente e se volta contra o mundo e as suas fraquezas. 136 Sêneca percebe-se como a imagem do próprio soldado, disposto, com sua armadura, sempre pronto para lutar. O modelo do filósofo guerreiro é parâmetro tanto para Sêneca e seus discípulos, como para todos nós, uma vez que ele reconhece que a vida de todos os homens assemelha-se a um campo de batalha. Contudo, poucos são os que se esforçam a lutar e seguir o modelo proposto pela sua filosofia, assim são facilmente sucumbidos: pelos falsos julgamentos e pelas avalanches dos vícios. E, como o próprio filósofo reconhece que não é algo de extrema facilidade arrebatar todas as paixões do convívio humano, resta ao homem buscar ater-se ao mais próximo possível dos ditames de uma vida regada pela razão. Posto isto, o chamado do filósofo é notório: que se deva requerer o direito sobre nós mesmos, que sejamos capazes de investirmos em nós mesmos. Por conseguinte, que tenhamos tempo e disponibilidade para o cultivo do cuidado de si. O homem segundo o pensador terminar por utilizar muito mal o seu tempo, vê-se gasto com coisas de pouca ou nenhuma utilidade para si, o que termina por prejudicar a prática desse cuidado. O cuidado de si como aponta o filósofo romano ao seu discípulo Lucílio nas Cartas imprime a necessidade de se administrar o tempo que fora inutilmente despendido, que possa com toda a precisão reivindicar a si em primeiro plano, e por esse ângulo possa prescrever ele mesmo suas próprias ações, denunciando o que for melhor para si mesmo, ter ao seu entorno a capacidade de orientar suas decisões diante daquilo do que depende o seu querer. A sua aspiração deve empreender uma vida virtuosa e feliz, baseada num pleno processo de autoconhecimento. Para Sêneca o caminho para se atingir a felicidade só é possível através de um saber viver assegurado por uma intensa e contínua dedicação. A virtude como declara o filósofo não é dádiva dos deuses, mas a sua conquista só se alcança mediante um trabalho árduo, o qual dever incidir por toda a nossa vida, pois o prazo para se aprender a viver, resigna-se ao tempo que estivermos vivos, sem exceção. Doravante, declara o filósofo que é imprescindível para um acurado cuidado de si, a concretização de uma conversão em sua totalidade. Implica ao homem poder voltar a si mesmo como condição de desviar o seu olhar das coisas exteriores aplicando-se a si mesmo. Cabe, nessa prática, levar a alma a um estado de segurança capaz de forjar interiormente barreiras que impeçam os ataques externos 137 de toda sorte. Segundo destaca Sêneca importa alcançar um lugar seguro em que se possam ver todos os acontecimentos sem ao menos sermos atingidos e imunes passemos a largo desses eventos. Na verdade, o processo de conversão exige do homem uma mudança no seu modo de ser. Consequentemente, observamos em Sêneca sua análise em torno desse movimento de conversão no qual o próprio filósofo denomina de transfiguração. Em sua análise o filósofo expõe ao seu discípulo as reais mudanças às quais já lhe asseguram em sua alma e assevera indicando que pelo fato de ele próprio depor sobre a necessidade de um aperfeiçoamento em seu modo de vida já se torna um indício de grande felicidade para ele. Faz-se necessário pontuar que em nenhum momento Sêneca aponta para o contexto de um cuidado de si vinculado em bases egoístas, sua tarefa por contrário acena para um tipo de atividade que encontra nesse cuidado as bases para o cuidado e o respeito com o outro, uma vez que Sêneca reconhece claramente que estamos todos inseridos numa comunidade e para tanto devemos agir reciprocamente. Em Sêneca a prática do cuidado tem como requisito uma série de exercícios que propõe em primeira instância o seu aprimoramento. O filósofo, ciente da necessidade desse treinamento, justifica que ele próprio sendo um estoico usufrui dessa prática. Sua aplicação incorre como uma forma de robustecer o espírito contra os vícios. Sêneca é contundente ao afirmar que os exercícios sendo propícios tanto ao corpo quanto à alma, a esta última deve implicar o seu maior direcionamento, visto que alma bem nutrida é capaz de aguentar com firmeza os golpes advindos de qualquer direção. A dedicação ao treino exorta o filósofo, faz-se análoga ao treino de um soldado, o qual dele é requerido total esmero e convencimento, Sêneca não admite que o discípulo seja displicente, a precisão no treino é a sua garantia contra os golpes da fortuna. Notadamente, a mensagem de Sêneca diz respeito aos valores morais, sua preocupação está marcada nitidamente para o aperfeiçoamento moral do homem explicitamente fundado na razão, é da alma que o filósofo intenciona cuidar. A rigor, Sêneca lança mão dos exercícios com fins a esse aprimoramento, bem como destaca ainda um intenso exercício da vontade, como elemento indispensável para o alcance da perfeição moral. 138 Assim, a vontade se concretiza como um componente inicial do processo de educação do caráter, visto que Sêneca aponta ainda para a necessidade de um mestre para acompanhar esse processo de formação moral. Cabe, no entanto, a presença de um guia de consciência para acompanhar o discípulo, pois sozinho não teria condições suficientes para lutar contra os vícios e as paixões, e assim, galgar o caminho da sabedoria, bem como se reserva ao discípulo que voluntariamente disponha de tamanho esforço de sua parte. O ensino, como enfatiza o filósofo, deve corresponder de maneira recíproca entre mestre e discípulo, pois um deve estimular ao outro na prática da virtude: ao ensinar aquilo que se sabe, consequentemente também se aprende. O modelo perseguido por esse aperfeiçoamento moral, sem dúvida, está descrito na figura do sábio. Entretanto, como forma de viabilizar a aproximação do discípulo ao modelo do sábio, Sêneca investe nos exempla como ponto de inspiração para o aperfeiçoamento moral. Os exemplos dentro do tecido didático de Sêneca possibilitam ao discípulo a compreensão de modelos que merecem ser seguidos, e, por outro lado, aqueles que merecem total desaprovação para a formação do homem ético. Nesse contexto, Sêneca elege a filosofia como a única forma de conhecimento capaz de formar o homem moral, posto que a filosofia intenta como objetivo indicar o caminho a ser seguido, apontar o direcionamento para a vida, darnos segurança e firmeza em nossas escolhas. A intenção de Sêneca é formar o homem de bem e não o erudito. Decerto, indaga o filósofo: “Quem duvidará, Lucílio amigo, que, se devemos a vida aos deuses imortais, é à filosofia que devemos a vida virtuosa?”. 421 Eis, portanto as palavras do filósofo quanto à sua gratidão pelo ensino da filosofia, atestando com veemência o potencial da filosofia de nos curar dos vícios, das paixões, e assim, nos restituir a saúde: “Os meus estudos restituíram-me a saúde. É à filosofia que devo a minha convalescença, a minha recuperação, a ela devo a vida [...]”. 422 Por fim, a lição aprendida com Sêneca é a de que o homem ao qual se queira forjado pelo cuidado e formado pelo processo educativo moral faça-se compreender que a força que ele detém é dada pela natureza, capaz de suportar tudo o quanto lhe for arremessado pelas vicissitudes, portanto, cabe estar afinado 421 422 Carta 90, 1. Carta 78, 4. 139 com o seu julgamento reto seguindo a natureza e nutrido pela virtude numa vida sábia e feliz. Com efeito, este estudo não é conclusivo, mas espera-se através dele difundir o pensamento de Sêneca e a partir das leituras e releituras das suas reflexões imprimir a sua importância na contemporaneidade. 140 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AUBENQUE, Pierre. As filosofias helenísticas: estoicismo, epicurismo e ceticismo. In: CHÂTELET, François. História da filosofia – ideias e doutrinas. A filosofia pagã. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, volume 1. BERNARDI MIGUEL, Miriam Maria. Ideias educacionais de Sêneca nas cartas a Lucílio. 2005. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual de Maringá. Orientador: José Joaquim Pereira Melo. Maringá, 2005. BRAREN, I. Introdução. In: SÊNECA. Tratado sobre a clemência. Petrópolis: Vozes, 2013. BRUN, Jean. O epicurismo. Trad. Rui Pacheco. Lisboa: Edições 70. ______. O estoicismo. Trad. João Amado. Lisboa: Edições 70, 1986. CAMPOS, J. A. Segurado. Introdução. In: SÉNECA, Lúcio Aneu. Cartas a Lucílio. 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