O LUGAR DA AMIZADE NA CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE Maria Helena de Barros e Silva Em psicanálise, comumente estamos debruçados em temáticas que versam sobre o pathos, o excesso, a desmedida, as inibições, o sofrimento psíquico em suas inumeráveis vertentes. Pretendo, neste trabalho, pensar a vida de um outro lugar, colocar nossa investigação para um outro campo que não o do pathos e partir para a especulação sobre as possibilidades que a vida oferece para um viver criativo. Parto da premissa que as relações de amizade se oferecem como possibilidades de transformação subjetiva, através de vínculos que se mantêm no âmbito da alteridade, diferentemente dos vínculos passionais, que ficam às voltas com o ego ideal, nesse sentido numa permanente compulsão à repetição. Nossa premissa é que a amizade pode se constituir como um espaço fundamental na constituição da subjetividade, como forma de rompimento com a dimensão da paixão. Apresentar-se-ia, desta forma, como vértice de possibilidade de elaboração e tolerância às adversidades da vida. Neste projeto, portanto, saio do campo do psicopatológico e passo a tratar das experiências que a vida oferece, no campo do público, que se colocam como estruturantes e abrem novas possibilidades ao sujeito. Gostaria de tomar agora um filme como uma expressão privilegiada de como a amizade pode produzir novas formas de subjetivação, possibilitando a ampliação do mundo subjetivo, relações mais criativas do sujeito, resultando numa maior liberdade de viver. Trata-se do filme “O Agente da Estação”, um longa-metragem de Thomas McCarthy, de 2003. É a história de Fin, um homem pequeno, - anão- silencioso e muito circunspecto. Morava numa grande cidade e trabalhava com um senhor simples, de aparência cordial, negro, que tinha uma loja de consertar brinquedos. Eles trocam apenas algumas palavras entre si e os une um grande interesse pela história dos trens. Logo no início do filme o dono da loja morre e deixa como herança para o seu empregado uma estação de trem numa cidade do interior, para onde ele se muda. Lá chegando se instala, de forma precária, na antiga estação e retoma os seus hábitos solitários e silenciosos. Defronte da sua estação um rapaz de origem hispânica vende lanches. Este rapaz é espontâneo, alegre, falastrão. Despreza o fato de o novo vizinho ser anão e se aproxima sem o olhar estranho, simplesmente querendo aproximar-se, de seu modo simples e até indiscreto. Uma cliente do jovem hispânico, introspectiva, aparece para o costumeiro café. Entra em contato com Fin de forma desastrada, quase o atropelando na estrada, mas também sem o olhar de estranhamento para a forma de ser do senhor Fin. A idéia central do filme poderia ser entendida como se tratasse do preconceito frente ao diferente e as conseqüências deste na personalidade do sujeito. Do meu ponto de vista gostaria de realçar outro aspecto. O filme trata de três personagens, absolutamente diferentes entre si, dois dos quais num grande isolamento e a tentativa insistente do jovem hispânico em constituir um laço de amizade entre os três. E este vai conseguindo ultrapassar a muralha que Fin ergue contra qualquer proximidade com o outro. Também a jovem mulher, apesar do seu fechamento estabelece contato com Fin, de forma espontânea. É o jovem hispânico que traça as linhas de aproximação entre os três até constituírem uma forma de relação entre si. A partir deste contato, Fin se vê solicitado a sair de si, a se rever. Ele deixa de usar o paletó, arregaça as mangas da camisa, veste uma camisa colorida. E começa a ousar a ampliação do seu território, confrontando-se com o preconceito a ele dirigido pelos demais habitantes do vilarejo. A jovem senhora havia perdido um filho em um acidente e foi ao vilarejo para se esconder da sua dor. E se mantém solitária, embrenhada nas suas pinturas. Aos poucos vai podendo falar da sua dor. Fin vai estar lá, um pouco à distância, cuidando dela, junto com o jovem hispânico. Eles bebem e falam da vida. Eles partilham a simplicidade do encontro, conversam sobre as dores e os amores, sustentados pela presença do outro. Na relação de amizade que se constitui entre os três personagens constata-se a afirmação singular de cada sujeito e a possibilidade de mudanças que se operam, nos três personagens, a partir do encontro entre eles. Uma relação alteritária que impõe a abertura do sujeito às diferenças, sem negá-las ou apaziguá-las. O conflito resultante destas diferenças sendo a condição de possibilidade de mudanças, assim como o esforço do outro no sentido de respeitar estas diferenças. Nesta linha de reflexão, na qual se valoriza a singularidade e a alteridade, gostaria de me deter, rapidamente e de forma transversal, na medida em que não fomos à fonte destas idéias, na concepção de Hanna Arendt sobre a amizade como experimentação do político. Seguiremos, para empreender essa reflexão, a leitura de Ortega (2000) sobre os filósofos Hanna Arendt, Derrida e Michel Foucault. Primeiramente vamos precisar a noção do político, empreendida por Arendt. Para Arendt, a noção do político deve levar em conta, sempre, a pluralidade, condição para o agir humano na esfera pública. Esta concepção do político é decorrente das suas posições acerca do totalitarismo e como este é a condição de anulação do político, na medida em que, através do terror, anula a singularidade dos indivíduos, impedindo-os de interagir uns com os outros, na diferença. A dimensão do agir, em Arendt, é performativa. É na ação partilhada com os outros que se apresenta uma oportunidade de abertura performativa do mundo e do desvelamento da identidade individual. É no convívio com a diferença e a pluralidade que se abre a possibilidade de reflexão sobre a própria identidade e o significado de suas interações. O político é, portanto, algo que se dá enquanto espaço público, espaço do agir humano. É preciso apenas um espaço no qual os indivíduos possam se ligar através do discurso e da ação, criando algo novo. É neste sentido, diz Ortega, que a amizade é vista como exercício do político, na medida em que se coloca como forma de experimentação de sociabilidade e comunidade, uma procura alternativa às formas tradicionais de relacionamento. Uma tarde de domingo fui procurada por uma amiga. Ela diz que havia passado um ótimo dia com a filha mas precisava, antes de ir para casa – ela morava sozinha estar com uma amiga. Esta confissão que fizera me chamou atenção e pus-me logo a pensar o que se passara para ela construir esta afirmação tão forte. O que significava aquele espaço que se colocava como condição necessária, como um espaço de transição ao qual precisava experimentar, para então viver a experiência do estar só. Winnicott (1982) formula a capacidade de estar só como a capacidade de estar só na presença do outro. É uma experiência que se dá num espaço intermediário, no qual efetivamente não se pode falar de um eu que não seja pensado como um nós. Uma experiência fundante do sujeito que possibilita uma capacidade de estar só sem experimentar a solidão, pois estar só implica sempre num outro presente. Levanto a hipótese que ela precisava poder experimentar a capacidade de estar só na presença de um amigo, como numa experiência de transição, na qual uma distância se estabelecesse, onde podia experimentar uma presença não entranhada, que lhe garantisse, então, poder estar só sem a angústia da separação com a filha. As relações afetivas precisariam cultivar uma “boa distância”, pois o excesso de intimidade e proximidade produz confusão e entranhamento, sem que se produza a sensibilidade para a alteridade e singularidade do outro. A amizade se coloca, pois, como um campo rico, plural, no qual precisamos nos debruçar, para assim ampliar o espectro de conhecimento acerca dos modos de relação dos sujeitos com seus semelhantes. Referências Aulagnier, P. (1985) Os Destinos do Prazer: alienação, amor, paixão. Rio de Janeiro: Imago. Chiland, C. (1994) Homo Psychanalyticus. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. Ortega, F. (2000) Para uma Política da Amizade. Arendt, Derrida, Foucault. Coleção Conexões. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. Perrier, F. (1992) Ensaios da Clínica Psicanalítica. São Paulo: Escuta. Winnicott, D. (1982) O ambiente e os processos de maturação: estudo sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas.