TRAJETÓRIAS DE PUNKS EM LONDRINA: FORMAS DE RESISTÊNCIA
JUVENIL?
Polyanna Claudia Oliveira - Universidade Estadual de Londrina 1
Introdução
Estudar o tema da juventude implica compreender que, apesar da delimitação etária
atribuída a grupos de indivíduos, outras questões de estruturação política, econômica e social
perpassam a elaboração dos comportamentos, das atitudes e das atividades atribuídas a eles,
sem deixar de levar em questão a ação dos jovens na construção de suas próprias práticas
sociais. Nesse sentido, não se pode deixar de lado a análise da relação das “juventudes” com
as instituições, dentre elas a escola, a família, a igreja e o Estado, instituições em constante
processo de mudança histórica. Assim, estudar o punk enquanto uma construção coletiva que
abarcam criticas à estrutura social através da música, visual e de uma mídia alternativa através
dos fanzines, pode esboçar uma interessante reflexão sobre a sociedade e sobre a(s)
juventude(s) enquanto criação histórico-social.
Nesse sentido, a primeira bibliografia utilizada refere-se ao punk em um contexto
nacional e internacional. Sim, o punk é um “fenômeno” internacional!2. Outras
bibliografias/filmografias e programas radiofônicos utilizados na pesquisa são sobre o punk
em Londrina. A primeira fonte foi o livro “Enterrado vivo: Identidade punk e território em
Londrina” (2004).
Utilizei como fonte também o “Rádio-documentário Grito Primal- Uma história sobre
o punk em Londrina PR- 2012” produzido por Lucas Chicarelli de Godoy e Fagner Bueno.
Nesse programa participam alguns integrantes da “primeira geração de punks” em Londrina, e
dois punks de agora. A monografia “Coletivo Cancrocítrico: O fanzine como mídia radical e
1
Graduanda do curso de Ciências Sociais na Universidade Estadual de Londrina, sob orientação da professora
Dra. Leila Sollberger Jeolás/[email protected]
2
No livro A filosofia do punk Mais do que barulho dá para de ter uma noção da dimensão do punk como um
fenômeno internacional. Em suas primeiras páginas estão as capas dos livros traduzidos para a língua lituana,
chinesa, alemã e inglesa.
1
de defesa da identidade punk em Londrina” (2012), também de autoria de Godoy, é outro
material utilizado para analise, tal qual o documentário “Hard Money: Do it Yourself,
produzido por Cientista3.
Pretendo pensar os elementos que permitem a unificação/base de uma identidade
punk: o fanzine, o visual e a musica, bem como as singularidades produzidas a partir das
construções de diferentes lugares e relaciona-los com as trajetórias de vida das pessoas
envolvidas com o universo punk na cidade. Entendo esses elementos como forma de
resistência de uma microcultura4 que, a princípio, se constrói na fase da juventude, sendo o
primeiro momento a ser analisado para poder buscar compreender se há resistência nas
praticas atuais das trajetórias desses atores sociais, quais são elas e resignificações sofridas na
fase da vida adulta.
Alem da bibliografia/filmografia, apoio-me em entrevistas pautadas nas histórias de
vida de pessoas que participaram de um período de maior efervescência punk em Londrina,
mas que já não se encontram no período definido como juventude.5 A opção metodológica por
trajetórias de vida se deu pelo fato de ser uma abordagem que permite reconstruir a história de
uma microcultura, através de trajetórias individuais, no caso, de punks de Londrina. É
importante salientar que através dos relatos de histórias de vida, o individuo ao fornecer
matéria para o conhecimento sociológico, não é mais o objeto de estudo, trazendo para o foco
da análise suas relações, nas quais se encontra imerso e permite, dessa maneira, a
compreensão do momento histórico e da dimensão dessas relações sociais (BRIOSH e
TRIGO, 1987).
A escolha das pessoas entrevistadas foi dotada de um intuito: compreender como
marcadores de diferença podem influir nas formas de se relacionar. Procurei selecionar os
entrevistados percebendo a diferença de classe (classe baixa, média ou alta), gênero (homem,
mulher, homossexual) e geração (há uma diferença de idade de 10 anos entre o entrevistado
mais novo e o mais velho). Feixa (2008) defende que para se fazer uma analise das culturas
juvenis em um nível mais “operativo” é preciso considerar:
3
Luis Eduardo F. Silva foi entrevistado e colaborou com vários materiais para essa pesquisa. Mais conhecido
como Cientista, por ter cursado Ciências Sociais, é integrante da banda Hard Money, Surface, fundou a primeira
banda punk de Londrina “Desordem e Regresso”. É produtor de documentários sobre o punk em Londrina e
criou o selo Lab Rec e lança as coletâneas HC Scene.
4
A escolha do conceito microcultura está justificada nas considerações finais.
5
Os entrevistados possuem de 32 à 42 anos de idade.
2
a) Em el plano de las condiciones sociales, entendidas como ele conjunto de
derechos y obrigaciones que definen La identidad Del joven em el seno de
uma estructura social determinada, las culturas juvenis se construyen com
materiais provenientes de las identidades de gênero, classe, etnia y
território.
b) En el plano de las imagines culturales, entendeidas como el conjunto
atributos ideológicos y simbólicos asignados y/o apropriados por lós
jóvenes, las culturas juveninile se traducen em estilos más menos visibles,
que integran elementos materiales e inmateriales heterogêneos, proenientes
de la moda la musica, el lengauage, las práticas culturales y las atividades
focales. Estos estilos tenem uma existência histórica concreta, son a menudo
etiquetado por lós médios de comunicácion de masas y pasan a atarer la
atención publica durante um período de tiempo, aunque después decaigan y
desaparezcan (tambiéns son corrientes lós revivals)
Assim sendo, o material bibliográfico e fonográfico, as entrevistas formais sobre a
história de vida de pessoas que “viveram” e construíram o punk em Londrina, bem como as
conversas informais com punks jovens, formaram o corpus do material para a análise do que
se define como uma microcultura juvenil, sua potencialidade como forma de resistência e/ou
suas resignificações na atualidade.
Retraçando uma breve história do Punk
Ao que se refere à questão da (des)construção da musicalidade propriamente punk,
criação de estilo e uma mídia alternativa e/ou radical, é importante compreender os contextos
históricos. Há divergências sobre a origem do punk. Para Antonio Bivar (2007) ele teria
surgido na Inglaterra em 1976 com a banda Sex Pistols. Já para O´Hara (2005) o estilo
musical teria sido criado em Nova York no final dos anos 1960 e início da década de 1970,
enquanto os ingleses consolidaram o visual e a atitude política.
Em 1965 nos Estados Unidos, bandas como “Velvet Underground” e “The Stoogs”,
apesar de não apresentarem a sonoridade punk, com batidas pesadas e letras com criticas
sociais, já traziam traços de um descontentamento com a cena do rock daquele momento, cada
vez mais complexo, no sentido da necessidade de preparo técnico para fazer as musicas e a
consequente inviabilidade de muitos jovens fazerem o seu próprio “som”.
A linha artística da vez era o minimalismo. Esse movimento artístico preocupava-se
em usar a menor quantidade de artefatos para se produzir algo. O resgate da filosofia
existencialista trazia questionamentos que indagava jovens sobre a postura do movimento
hippie com suas roupas coloridas e seu otimismo exacerbado para resolver questões sociais a
partir do lema “Peace and Love”. Os autores beats influenciados pelo existencialismo, que
3
queriam tudo o que fugisse “aos rigores escolares-futuro-vida doméstica” (BIVAR, p. 14,
2007), por sua vez, foram lidos por muitos jovens que participariam do movimento hippie,
passando por uma releitura/reapropriação estética e comportamental por parte dos punks.
Dentro desse contexto geral de produção e movimentação (juvenil) artística
underground, surgia o que a imprensa estadunidense passou a denominar “Punk”. Apesar de
se iniciar ali o “choque estético”, através dos estilos criados por esses jovens, como o uso de
roupas pretas e calças jeans rasgadas, que até hoje é utilizado por muitos punks, é importante
salientar que: a) a sonoridade não era propriamente punk; b) não havia ali uma imprensa
alternativa como a produção de fanzines; c) tampouco havia um envolvimento político-social
desses jovens. Elementos esses que posteriormente seriam essenciais à postura e/ou ao
movimento punk.
Em 1975, na Inglaterra, Malcolm Maclarem, dono de uma loja de discos de rock e
roupas para o público jovem, percebe o ar de austeridade dos norte-americanos sobre a banda
de seus amigos “New York Dolls”, e os desgastes de uma cena musical em um contexto de
descrença e denúncia de um “rock”, cada vez mais incorporado pela mídia de massa,
perdendo o seu intuito contestador. Nesse contexto, Maclarem muda o perfil de sua loja de
roupas para Ted Boys, trazendo componentes sadomasoquistas, roupas pretas numa estética
com “tendências” minimal-existencialistas, tal como as que eram encontradas em Nova
Iorque. Ele decide empresariar a banda Sex Pistols, cujos integrantes eram frequentadores da
sua loja. Após a apresentação dessa banda em um concurso de travestis, com a presença da
alta imprensa de Londres, surgiram nessa cidade várias bandas e grupos envolvidos com a
então denominada ideologia e música punk.
Segundo Bastos (2005, p. 300), ali os jovens passaram a estruturar um movimento de
bandas que começou a se configurar “de maneira anárquica, autônoma e não comercial como
existente em várias partes do mundo até hoje em dia...”. Assim como Bastos (2005), concordo
que o punk surgiu nos Estados Unidos, pois como ele defende, por onde quer que o punk
surja, ele surge através de bandas (música e musicalidade) e de visuais, tal como ocorreu em
Nova Iorque em 1965 e em Londres em 1966. Além disso, ele ressalta que os movimentos
juvenis de contracultura se dão em momentos anteriores aos da percepção pela imprensa. Daí
a necessidade de cientistas-pesquisadores sociais atentarem para informações primárias, como
depoimentos e entrevistas de participantes/militantes para melhor compreender as
particularidades de um movimento.
4
O “surgimento” do punk no Brasil deu-se primeiro em São Paulo. Desde 1950, já
havia jovens do subúrbio paulista interessados e que consumiam produtos da indústria
fonográfica que chegava do exterior. Aqui, no final da década de 1970, período do “milagre
brasileiro”, já estavam consolidados uma indústria cultural e um mercado de consumo
especificamente jovem. Muitos jovens da classe baixa estavam empregados e dispunham de
uma renda, consolidando um mercado consumidor jovem (GROPPO, 2000). Nesse período,
muitos jovens conheceram e se interessaram pela postura punk (NETO, 2004).
No início da década de 1980, momento em que o punk entrou de vez na cena
brasileira, agora num contexto de altas taxas de desemprego, a mídia divulgou o punk, ainda
de forma deturpada. Porém, o interesse e a busca de materiais “punks” deram-se pelos
próprios jovens de forma mais independente, ou seja, para além do que a mídia passava,
disseminando e trocando materiais entre eles, ao mesmo tempo em que começaram a produzir
o seu “próprio som”. Abramo afirma que a propagação internacional do punk no Brasil tem a
ver com uma identificação mais ideológica, fruto de uma “conjuntura geracional semelhante
(...). A mesma situação de desemprego, pobreza e violência; a mesma identificação com a
complexidade a distância do rock de então; a falta de locais de diversão (...).” (ABRAMO,
1994, p. 93-4).
Em Londrina, os punks e suas primeiras manifestações apareceram em 1984
(AVANCINI; ITO, 1994; NETO, 2003). De acordo com Neto “Chegaram primeiro os sons
das bandas paulistas e as notícias pela imprensa, o que detonou uma onda de buscar mais
conhecimentos sobre o punk por parte dos jovens (...).” (NETO, 2004, p.76). Segundo a
antropóloga Elena Andrei apud Avancini e Ito (194, p.39) “a identidade das manifestações
socioculturais entre Londrina e São Paulo é comum. Os londrinenses costumam se inspirar na
vanguarda da capital paulista para compor seu universo cultural. E o punk também não fugiu
a regra, mesmo sendo uma forma de expressão marginal.” Vejamos um pouco sobre o punk
em Londrina analisando os três elementos básicos da cultura punk: fanzine, musica e visual.
Microcultura punk: fanzine, visual, música
Fanzine
Retraçarei elementos da microcultura punk no intuito de elucidar as manifestações
artísticas e comportamentais construídas por esse grupo. A começar pelos fanzines, em todas
5
as referências pesquisadas (BIVAR, 2005, CHICARELLI, 2012, OLIVEIRA, 2006), eles
tiveram grande importância na disseminação das ideias e da musica punk, dentro de uma
perspectiva underground. Fanzine é “uma contração das palavras inglesas fanatic e magazine
que em português pode ser traduzida como ´revista do fã’ ” (BIVAR, 2005, p 51). A
princípio foi criada pelos fãs de ficção científica e, posteriormente, foi apropriada pelo
público underground (MAGALHÃES apud AVANCINI; ITO).
Em Londrina, o fanzine punk com maior durabilidade foi o do Coletivo Cancrocítrico
ao longo dos anos de 1988 à 1993, apesar das reuniões do coletivo terem se estendido até
1995.6 Na analise do contexto de produção dos fanzines é possível elucidar a (trans)formação
da identidade punk londrinense. Sobre o nome do Coletivo, um dos membros fixos do
coletivo, Luís Eduardo Cientista, diz:
Cancrocítrico é uma doença que dá na laranja. Era comum aqui no Paraná
e nas regiões que produziam laranja. Então ‘laranjas” eram as pessoas
alienadas, que se deixavam levar pela situação, pela rotina, pelo senso
comum; para nós estas pessoas eram como laranjas. E agente queria ser
essa doença, esse cancro, que destruísse as laranjas, ou seja, conscientizar
eles. Não matar, mas conscientizar. (CHICARELLI, 2012, p.62).
O coletivo Cancrocítrico não era só um fanzine, mas o objetivo era também publicar
os ideais do coletivo que organizava shows, eventos e debates. As principais ideias divulgadas
eram “o antimilitarismo e contra o serviço militar obrigatório, pelo voto nulo, contra o
consumismo, contra o racismo e em defesa da ecologia. Discute ainda as questões do
feminismo e anarquismo”. (CHICARELLI, 2012, p. 73). Vários autores publicavam suas
ideias, fazendo, assim, com que o fanzine possuísse divergências sobre um mesmo assunto.
Artigos publicados em veículos midiáticos da grande mídia, como jornais e revistas de
Londrina e do Brasil7; textos de outros fanzines; artigos retirados da imprensa operária,
6
Em 1993 foi criado o coletivo anarquista Gralha Negra, cujo veiculo de comunicação também era o zine. Fabio
Andrei Correa, na entrevista publicada na monografia “Coletivo Cancrocítrico: o fanzine como mídia radical e
da defesa da identidade punk em Londrina” (CHICARELLI, 2012, p. 96) diz que, apesar de fazer parte desse
coletivo pessoas que participaram do Cancrocítrico, também participavam no Gralha Negra pessoas de gerações
diferentes desse coletivo. Enquanto esse em seu período de duração teve cinco integrantes fixos, o Gralha Negra
tinha uma maior rotatividade de colaboradores e mais participantes. Ambos tinham ações diretas como
construção a participação de manifestações e reuniões de discussões. Ressalta-se que apesar do fanzine Coletivo
Cancrocítrico possuir citações e reflexões sobre o anarquismo, os membros fixos não consideravam como um
coletivo anarquista.
7
Um interessante argumento usado por CHICARELLI (2012, p. 57) é que a mídia alternativa não existe de
forma isolada, negocia com a grande imprensa e a imprensa alternativa, criticando fortemente a mídia. No
fanzine Coletivo Cancrocítrico a critica mais direta é sobre a televisão.
6
feminista, universitária, pesquisas na biblioteca, materiais enviados por pessoas de outras
localidades, ou de sindicato eram utilizados no fanzine do Coletivo Cancrocítrico. O material
era divulgado no “corpo à corpo” e as distribuições fora do município de Londrina muitas
vezes eram feitas pelo correio. As tiragens variavam pelo tamanho da cidade e vínculo/
amizade das pessoas que disseminavam no fanzine.
Considerações importantes que possibilitam pensar a identidade punk em Londrina
através do fanzine, mas especificamente do Coletivo Cancrocítrico:
a) A necessidade de uma imprensa não oficial que dissesse a “verdade”. A imprensa
oficial para chamar a atenção do leitor, distorce as noticias com o objetivo de atingir
determinados grupos de compradores em potencial. Assim a imprensa oficial visa
apenas o lucro. A produção dos fanzines não visava lucro e o dinheiro usado na
produção os fanzines era dos participantes do coletivo ou oriundo da arrecadação de
dinheiro dos shows organizado. Eles acreditam que não dependendo do dinheiro de
patrocínio alheios não precisam distorcer suas ideias. Um ex-fanzineiro que venha a
trabalhar na imprensa oficial pode, até certo ponto, dependendo da sua personalidade e
dos seus objetivos, manter suas características anteriores (critica- grifo meu). Porem,
ao serem cooptados pela grande imprensa as críticas tenderam a ser mais amenas,
contendo menores questionamentos ou estes eram ocultados nas musicas, nas poesias
e nos quadrinhos.8 Fanzine, antes de qualquer coisa é um tipo de compromisso, é
preciso superar os problemas (resistir- grifo meu) e não deixar o sistema viver
(CHICARELLI, 2012, p. 61);
b) O fanzine também era usado para divulgar bandas punks;
c) Ao longo dos seis anos de duração do Coletivo Cancrocítrico, houve uma necessidade
de afirmação do que é e do que não é ser punk. Havia uma grande divergência de
ideias e, logo, da definição do próprio ser punk. A ideia anti-drogas, apesar de não ser
unanime (como a já citada publicação de dois artigos com ponto de vista divergentes
sobre o uso de drogas), era propagada. Não queriam que o punk se “sujasse: punk
bêbado, punks infiltrados, arruaceiros, viver perigosamente, dar porrada e andar
chapado” (CHICARELLI, 2012). Nesse sentido é possível pensar na necessidade de,
8
Essas críticas foram retiradas da edição 17 do Coletivo Cancrocrítico. Essa analise servirá de subsídio para
analise de pessoas que participaram das primeiras gerações de punk em Londrina e que durante ou após maior
momento de efervescência do punk, tornaram-se jornalistas ou assessores de imprensa da mídia oficial.
7
naquele período, “provar que punk não (necessariamente, grifo meu) estava ligado à
violência e drogas como a mídia oficial propagava”.9
d) Punk seria uma forma de ser consciente. Cancrocítrico é uma doença que dá nas
laranjas. Há uma analogia entre laranja e pessoa politicamente alienada. Em suas 10
primeiras edições, o fanzine recebia o subtítulo de “Anti-laranja”. Assim a criação da
identidade parte da negação de outra, nesse sentido do alienado que não se engaja
politicamente. A edição 4 do fanzine sugere a união dos conscientes, sejam eles
skinheads, anarquistas e/ou punks, não tendo ainda uma maior elucidação das
convergências e divergências de ideários, suponho que devido à uma nova formulação
da ideologia do punk em Londrina .10 Os inconscientes querem apenas fama, dinheiro,
drogas, sexo;
e) Há identificação do punk com a classe trabalhadora. Termos como exploradores e
explorados, trabalhador e patrão são encontrados nos artigos. É importante lembrar
que o Brasil vivia um momento de abertura após ditadura civil e militar;
f)
No decorrer dos seis anos de atuação e publicação do fanzine Coletivo Cancrocítrico,
ampliou-se a visão sobre o que é ser punk, admitindo que havia várias maneiras de sêlo, e segunda a entrevista com Cientista, não é possível colocar uma regra sobre o que
é ser punk.
g) O conteúdo passou a ter menos enfoque no underground (musica e comportamento
punk) e tentou abranger mais pessoas que não necessariamente ocupavam esses
lugares
Visual
O visual punk, com destaque para o corte de cabelo e a vestimenta, é outro elemento
importante da “cultura” punk. Abramo (1994) vê nos “estilos espetaculares” dos/as punks
brasileiros uma forma de apresentar-se à sociedade, através de manifestações estilísticas em
uma conjuntura de “estreitamento das possibilidades de arquitetar uma vida satisfatória
através da carreira profissional e mesmo de sustentar a participação nos espaços da escola, do
9
Em 1979 o Fantástico propaga uma ideia do punk como violento e há denuncia que até pagaram bebida para os
punks darem a entrevista. Pesquisando essa notícia, encontrei uma outra reportagem do Fantástico do ano de
2007. Eles “confundem” skinheads com carecas e passam uma visão sobre punk totalmente equivocada, ligandoos apenas a gangues e à violência. Em uma das declarações do vocalista da banda “88 não” há a equivocada
afirmação: punk não possui regras, nem bandeiras e procura contestar tudo o que têm nessa sociedade”.
10
É importante lembrar o limite das analises, no que tange à pesquisa, que mostra parte das opiniões através do
material bibliográfico/filmográfico e pelas entrevistas.
8
consumo e da diversão” (ABRAMO, 1994, p. 82). Dentre outros signos relacionados ao lixo,
a suástica utilizada pelos primeiros punks em suas roupas, representava também uma forma
agressiva de confronto, dado o significado associado ao nazismo. Nem sempre por razões
ideológicas, às vezes como tentativa de escapar à incorporação pelo mercado, conforme
Caiafa apud Abramo (1994). Na reformulação ou “revival” do punk, quando o anarquismo foi
incorporado de forma séria como um dos nortes das praticas punks, a suástica foi abolida do
visual punk.
A hipótese da intenção de criar um “estilo espetacular”, no intuito de chamar a atenção
da sociedade é confirmada na entrevista de Tikinho, guitarrista do Lixomania dada a um
repórter do Estadão que questiona o por que das vestimentas agressivas dos punks: “É a única
maneira de chamarmos atenção para o caos em que vivemos. Se eu fosse mais um ofice-boy
da Avenida 7 de Abril, você não estaria me entrevistando”. (BIVAR, 2007, p. 104)
A cor predominante das roupas e dos calçados é preta. Em muitas peças de roupas
são colocados patches, pedaços de panos com desenhos e frases escritas relacionadas ao punk,
tais como, nomes de bandas, frases de contestação, preferências políticas, indignação à
corrupção, um “chamar para a luta...”. Eles são costurados nas calças, jaquetas e camisetas.
Os patches são confeccionados por punks através de serigrafias. Muitas peças de roupa punk
são customizadas com rebites, principalmente nas jaquetas.
Muitos punks usam coturnos e adotam cortes de cabelos diferenciados criando um
visual propriamente punk. Espetam ou raspam as laterais do cabelo fazendo um moicano, às
vezes erguendo o cabelo que fica no meio da cabeça. Esse corte de cabelo era usado por
algumas tribos indígenas norte-americanas, e têm como significado a resistência dos índios
frente aos opressores colonizadores brancos. São diversas as formas de cortes/penteados do
cabelo. Há também aqueles que não se preocupam com essa parte da estética punk, ou não
usam devido aos preconceitos encontrados para arrumar um trabalho, onde sofrem até
ameaças de serem despedidos, os que simplesmente deixam os cabelos crescerem, e os que
fazem dreads em seus cabelos, influência da absorção da cultura dos rastafáris, estilos que
foram integrando o movimento punk no decorrer dessas quase quatro décadas.
Com relação ao estilo punk, é importante acrescentar a discussão de Abramo (1994,
86-88) sobre o assunto. Para a autora, o estilo, diferentemente da moda, parte da criação
consciente, eleição e ordenação intencional de artefatos. Assim os/as punks utilizaram
elementos já presentes e os reordenam no intuito de chocar, chamar a atenção, deslocar e
9
adaptar elementos contestatórios de outros grupos, montando assim um estilo próprio. Já a
moda, nesse contexto, seriam as reproduções feitas pela indústria e pelo mercado que,
segundo ela, não “envolvem um processo de criação e identificação com questões e atuações
de um grupo social”. Nesse contexto, Abramo levanta as seguintes questões (1994): a)
“quando esses objetos são recolocados num novo conjunto, são enfatizados determinados
detalhes, antes irrelevantes; são aproveitados de um modo diferente daquele para o qual tinha
sido previamente destinados, e isso provoca subversão e transformação dos usos e sentidos
dados para outros novos (...) b) O estilo subcultural11 precisa ser visto sempre em uma relação
de oposição a um outro “código cultural”; c) Os objetos usados pelos grupos subculturais, se
tornam homólogos e “seus problemas sua auto-imagem. O grupo passa assim a ser
simbolizado pelas peças que usa, e o estilo torna-se uma significativa manifestação de
identidade do grupo e das questões por eles formuladas”. d) apesar de o punk ter como uma
das suas principais propostas de ir ao desencontro do mainstream e da indústria cultural e
mercado, essa procura se apropriar das inovações de contestação inerentes do estilo e/ou
símbolos desse grupo, “buscando captar as novas criações para oferecê-las como símbolos de
identidade juvenil”, diluindo e esvaziando os significados imbuídos de negação ao sistema.
A partir das entrevistas realizadas, da bibliografia e fonografia pesquisadas, é possível
fazer algumas observações sobre o visual nos primórdios do punk em Londrina. A estética
punk pode preceder a própria ideia da identidade punk. No radiodocumentário “Grito
Primal”(2012), sobre o “primeiro contato do punk com a ‘civilização’” em Londrina,
Cientista diz :“ A gente tocava samba e era punk. O Pacheco ia tocar de moicano, os caras
chamavam ele de Bob Cuspe12”. Em outro momento diz: “quando eu cortei moicano eu fui
agredido”.
Isso saiu até na Folha (de Londrina). Eu tinha mudado pra Vila Nova, os
caras me agarraram e com uma tesoura tentaram cortar meu moicano.
Andando na Leste Oeste de moicano, eu levei uma banana na nuca, o
pessoal xingava você. Quando eu mudei da Vila Nova eu era chamado de
viado. Primeiro o pessoal se assusta com aquela linguagem mas depois
tenta se aproximar. Ate com mulheres era difícil ter contato naquela
época.(Grifo do autor sobre o nome do jornal de grande circulação em
Londrina (Marcio - entrevista radiodocumentário Grito Primal 2012).
11
Subcultura foi um conceito criado e adotado por estudiosos da escola de Birmingham uma vez que
compreendiam que jovens criavam um etilo a partir da reorganização dos elementos da relação de classe
subalterna/ parental e que era expressa no estilo (FILHO, 2007).
12
Bob Cuspe é um punk criado por Angeli nos quadrinhos Chiclete com Banana, uma revista que começou a ter
publicações em 1980 e até hoje é considerada um dos mais importantes publicações de quadrinhos adultos. Além
de Angeli, ilustrava os quadrinhos Luiz Gê, Glauco, Roberto Paiva, Glauco Mattoso e Laerte Coutinho.
10
No mesmo radiodocumentário Cibié disse que, aos quatorze anos, teve que cortar o
moicano ou então seria despedido. Continua relatando que naquela época faziam as próprias
camisetas, pintavam as calças, por que não tinham onde comprar. Marcio (2012) diz: As lojas
vendiam artigos de rock, ou melhor, vendiam “subgêneros de metal, rock em si, mas punk era
raro”. No documentário “Hard Money: Do it yourself”, Reinaldo diz: “Nunca tínhamos
ouvido falar em punk, como hoje é moda. Na época ser punk para algumas pessoas era moda.
Tinha roupas de grife que lançava as roupas “Punk Rock Dead”. Eram pessoas abastadas e
que tinham de tudo, de ordem pessoal e de posses e queria se tornar punk”. Devido ao
desencontro de informações, perguntei ao Cientista, que acredita que Reinaldo provavelmente
se referia a um período anterior.
Na mesmo radio-reportagem, Dik, uma das primeiras mulheres13 a usar visual punk
em Londrina declarou: “a questão da aparência tem esse componente mesmo da recusa da
cultura. Não é simplesmente usar uma roupa e chamar a atenção. Chamar a atenção sim, mas
com um propósito determinado. Eu fiz moicano de menina na época só eu, só eu. Quando eu
ia no bar Gran Mauzoléu eu tinha que ficar me escondendo dos fotógrafos”.
No material analisado e nas entrevistas feitas sobre a importância das vestimentas e do
visual em geral, achei interessante alguns pontos levantados pelos entrevistados14. Quando
Rodrigo Frota mudou de Londrina para Porto Seguro, deixando assim de conviver com punks
londrinenses, ele relata:
Cheguei lá e meus rebites todos enferrujaram, meu cinto de rebite, minha
pulseira e meus colares, tive que abandonar todo o meu visual punk e foi ai
que eu falo que eu virei maloqueiro, porque eu já não sabia me vestir mais.
Eu vestia qualquer camisa, qualquer bermuda e parecia um “malaco”
porque eu não tinha mais identidade. Você deixa de ser punk e não sabe
mais como se comportar, se vestir. E uma coisa é sentar no chão e ter um
visual punk. Outra coisa é sentar numa praça com camisetão e uma
bermuda, puta você é um mendigo, bem isso mesmo. Uma coisa é você ser
punk e catar bituca. Outra coisa é você largadão de camisetão, bermuda e
chinelo e pegar uma bituca do chão. Tu és um mendigo. Meu amigo
Marcelinho fala, ser mendigo é seu próximo passo. Tem que deixar de ser
punk logo, daí você vira mendigo. Todo mundo fala:” você ta largado,
maloqueiro.”...é a questão do visual né, daí você cria, fica anos vestindo um
visual e gosta e aquilo faz parte da sua vida. Mas vai passando um tempo e
você vai ficando velho. Eu acho que nem é uma questão de você ficar
velho... você vai tendo outras necessidades. Você não tem muita paciência
13
No trabalho de conclusão de Curso pretendo adentrar mais nas peculiaridades da mulher no meio punk, que
é/era predominantemente masculino.
14
Ressaltando que os comentários sobre visual foram ditos sem a indução por perguntas.
11
pra por cinta de rebite, por isso e por aquilo, vamos pintar o cabelo. Não,
você vai deixando e vai deixando e aí você vai perdendo um pouco a sua
identidade. Não é porque você enjoou, você não teve mais tempo, eu acho.
Você precisa fazer mais uma tatoo, você precisa pintar o cabelo de tal cor,
você precisa pintar um protesto naquela camiseta. Você vai cansando um
pouco disso. Pelo menos foi isso que aconteceu comigo. Você vai
desencanando. Porem, vai vestindo qualquer coisa também. Porque você
também não quer se vestir como um playboy, como um emo, como um psyco.
Você perde sua identidade punk, mas você não quer parecer com nenhuma
outra coisa. Eu jamais cortaria o cabelo pras pessoas olharem pra mim e
dizer, aquele aí é um psyco. Não quero parecer um cluber, não quero
parecer nada. E você vai ficando com um visual totalmente assim, camiseta
e bermudão. Só presta atenção pra ver se tem alguma coisa idiota escrita
em inglês. Ou alguma coisa religiosa, alguma coisa que eu não me
identifique. Mas eu vou voltar à aderir ao clássico que é calça jeans,
camiseta e tênis. Mas as vezes eu tenho vontade. Esta marcado um show do
Cólera e faz anos que eu não vou em um show.
No radiodocumentário Cientista diz “Daí as pessoas que estão na rua me veem de
bermuda e boné e perguntam “esse moleque não vai crescer?”. Eu gosto de andar assim. Eu
trabalho assim”. Já Cibié afirma que nunca pode ter/ abusar do visual porque não seria aceito
no trabalho.
Através dos principais elementos da estética punk, é possível apontar alguém como
punk
pela
vestimenta.
O
interessante
é
que
se
não
fosse
pela
bibliografia/filmografia/radiodocumentário, não teria identificado os entrevistados como
pessoas que participaram da cena punk, porque hoje, na fase da vida adulta, possuem poucos
elementos visuais que os identificariam como tais, talvez alguma camiseta de banda. Porém,
em todas as falas percebe-se a preocupação de que através de suas vestimentas não sejam
identificados elementos que aparentem concordar com a moda.
Musica
A música é outro elemento central da cultura punk.15 Com uma cena musical que cada
vez mais exigia conhecimento técnico, equipamentos caros e um “saco” para ficar ouvindo
15
Saliento que tenho pouco conhecimento sobre a musicalidade punk. As próximas colocações partem de uma
visita/entrevista informal em que discuti sobre musica e punk e escutei alguns vinis. Apesar de considerar a
musicalidade como um dos elementos centrais do punk, o intuito nesse trabalho e das próximas colocações, é
procurar compreender a identidade punk em Londrina. Mais especificamente à musica, esse capítulo apresenta
a resistência à não cooptação pela industria cultural, à música como “caminho” para o aprendizado, e não como
um ponto em si mesma. Como considerado por Marc Bayard no livro Punk como Filosofia Mais do que Barulho
e por estar “tratando de ideias e não de estilos musicais específicos (que são muitos). Deixo isso para os críticos
de musica”. (O’Hara, 2005, p.16)
12
músicas longuíssimas e solos intermináveis, os jovens montaram suas bandas com rifles de
poucos acordes, no intuito de resgatar a simplicidade do genuíno rock.
Segundo Chacon (s/d, p. 21-22), o rock surgiu nos Estados Unidos e teve como
influencia a pop music, o rhytman and blues e o country e western music. O blues seria a
origem corpórea do rock. Reprimidos pela sociedade desde os tempos da escravidão, a mão de
obra negra se refugiava no blues e na dança para dar vazão pelo corpo, ao protesto que as vias
convencionais não permitiam. A country and western music seria a versão branca do
sofrimento dos pequenos camponeses brancos. Já a produção da pop music não tinha intuitos
de trazer ideias de mudança nos status quo dos jovens, num momento em que vigorava uma
tendência conservadora por parte da mídia estadunidense. Ainda segundo Chacon (s/d, p. 5),
“o rock pressupõe a troca, ou melhor, a integração do conjunto ou do vocalista com o seu
público, procurando estimulá-lo a sair de sua convencional passividade perante os fatos”.
Assim é (ou deveria ser).
Pelo menos na construção do punk como ideologia e movimento juvenil, tentou-se
resgatar o rock com esse propósito, quase apagado pelos interesses comerciais das grandes
gravadoras e da mídia em geral. Diga-se de passagem, a inicial “produção” do rock teve
grande propósito de conquistar um novo público, o jovem que entrava no mercado de trabalho
que passou a ter espaços específicos de lazer, e que, em contato com outros jovens podia
adquirir produtos destinados a esses.
É nesse contexto que entra a ideologia D.I.Y. (Do It Yourself) - o “Faça você mesmo”,
dos punks. Faça você mesmo seu fanzine, faça você mesmo seu visual, faça você mesmo sua
música. Depois de assimilar o resgate da simplicidade do rock, mesmo que cooptado pela
indústria cultural e dos “charlatões” de plantão que viam ali a possibilidade de ganhar
dinheiro, chegou a hora daqueles jovens, muitos de classes abastadas, poderem rebelar-se e
resignificar o seu meio com aquilo que tinham. É a resposta para à mídia, que conseguiu
cooptar a própria noção resgatada de rebeldia do rock, massificando-os, descaracterizando o
seu real aspecto radical. Sobre a música, o que engloba a postura, o visual e a propagação:
O punk rock diferiu do rock n´roll tradicional não apenas no som, no
conteúdo das letras e no estilo de se apresentar, mas também na maneira
como as bandas dirigem seus negócios e interagem com seu publico. O
“movimento” tende a não aceitar e mesmo desmascarar, “astros do rock” e
bandas que cobrem grandes quantias para tocar ou por seus discos (...). Os
grupos de punk rock “incitavam outras pessoas a montarem seus próprios
grupos- tentavam romper as barreiras tradicionais astro/ público. Qualquer
13
um podia ser o ‘astro’ ou ninguém podia! Tudo de que se precisa é
equipamento e o desejo de montar uma banda punk. As bandas punks
tradicionalmente se ajudam conseguindo shows em outras cidades,
organizando turnês, lançando discos, etc. Houve poucos casos de
competição fora das bandas que regularmente se “vendem” para obter mais
públicos e lucros. As bandas punks tendem a tocar apenas entre si, porque
têm ideias semelhantes entre cooperação e não têm atitudes competitivas
que prevaleçam na industrial musical. (O´HARA, 2005, p. 152)
Há bandas que se dizem alternativas e que lançam selos independentes ou em
pequenas gravadoras para ganhar mais dinheiro ou público. Com a proposta inicial de passar
uma mensagem semelhante do punk, ou eles mesmos se considerarem punks, são rejeitados
pelo publico/proposta punk. Isso porque ao envolverem dinheiro, ao fazer um contrato com
uma gravadora, ficam ao seu arbítrio que pode intervir, muitas vezes censurando o conteúdo
das letras, o ritmo, postura da banda, ou qualquer coisa que possa ser ameaça e prejudique a
venda dos discos, o que também exclui a possibilidade de acesso ao material fonográfico e
aos shows para os que estão sem dinheiro. Ao produzirem o material fonográfico em uma
gravadora, os “alternativos” defendem-se, dizendo que essa é a forma de alcançar um maior
público e assim transmitir mais sua mensagem (O’HARA, 2005).
No intuito de fugir da cooptação da agregação das gravadoras e da mídia em geral, foi
criado o ritmo hardcore. Hardcore traduzido para o português significa “casca grossa”. Com
versões mais extremas da musicalidade punk, as letras com teor político são ainda mais
agressivas e as batidas mais rápidas. O hardcore não é escutado apenas por punks, mas
também por skatistas, entre outros grupos. Diga-se de passagem, que não fugiu da ação
mercadológica, mas, assim como outros ritmos musicais, também resiste ao mercado e à
indústria cultural, no sentido de não tornarem a musica em um “negócio”.16
Com relação aos “antiprincípios”, que já vinham há muito tempo sendo praticados
pelos punks, no interior do seu movimento, mas passaram a ser cada vez mais explicitados
discursivamente e radicalmente enfatizados como prática de defesa e repulsa do movimento
punk com relação à industria cultural, a partir da eclosão do revival punk, Bastos afirma
(2005, p.102):
16
Outros ritmos foram criados como o crossover, uma “mistura” de hardcore punk com metal; o crust, uma
espécie de hardcore com batidas ainda mais velozes com o uso de d-beats e riffs de guitarra, tocados
rapidamente; o grindcore, que pode mesclar o hardcore e metal e rock industrial extremo e o noisecore que é
uma variação ainda mais extrema do grind. Os três últimos ritmos citados possuem vocais guturais ou como
dizem “rasgadão”. São musicas, ou anti-músicas, com pouco tempo de duração. A criação dessas é no sentido de
não cooptação pelo mercado fonográfico. As letras das musicas muitas vezes tratam de temas políticos, niilismo,
pró-libertação animal, etc.
14
Também devido à necessidade cada vez maior de se diferenciar da cultura
de massa e do sentido consumista da mesma, os punks, embasados no teor
contracultural do seu movimento, criaram, gramatical e verbalmente, o que
podemos denominar de os antiprincípios do punk, os quais aqui defino como
sendo princípios contraculturais da cultura punk e do movimento punk, que
podem ser assim denominados porque se constroem em relação antagônica
e de negação a certas dominações institucionais (políticas, econômicas,
sociais, comportamentais, etc...) impostas pelo “sistema”, suscitando assim
posturas e situações de militância (relativamente) autônomas e
autonomistas no seio do(s) movimento(s) (anarco)punk(s), daí o porque da
derivação prefixal “anti” na criação da nomenclatura desses
(anti)princípios contraculturais (ex: anti-música, anti-estética).
“Desordem e Regresso” foi a primeira banda punk autoral de Londrina. A primeira
demo17 não tinha nome, e foi gravada com um rádio gravador. A segunda demo chamava
“Situação Brasileira” foi gravada da mesma forma, porém com uma qualidade melhor. “Era
tudo muito precário, sem instrumento, sem nada, no ‘faça você mesmo’ diz Cientista. Essas
fitas eram copiadas e distribuídas. O encarte da segunda demo foi feita em uma máquina
elétrica. Em uma entrevista, Cientista (2013) remontou a história da banda:
A Desordem e Regresso começou em 1986... na minha cabeça. Eu tinha a
vontade e estava chamando várias pessoas, mas ninguém queria tocar
comigo, porque eu não sabia tocar, não tinha dinheiro, não tinha
instrumento, não tinha nada. Só por causa disso ninguém queria tocar
comigo. Só que eu já começava a escrever as letras. E a banda nem se
chamava Desordem e Regresso, chamava-se Desespero. Aí de tanto eu
encher o saco dos outros, o Éder e o Kalil disse que iam tocar comigo, e a
gente até tentou fazer um ensaio na minha casa que durou poucos minutos,
até os vizinhos quase chamarem a policia. E foi esse o primeiro ensaio do
que veio a se tornar a Desordem e Regresso. Aí um amigo meu, o Pacheco,
viu que eu estava batendo cabeça, procurando gente e não conseguia. E ele
já tocava e falou: “vou tocar com você, até conseguir um baterista. Daí eu
disse: “Maravilha, se você já sabe tocar me ensina também”. Ele disse que
conhecia um cara que se chama “Abelha” que tocava guitarra e disse que o
convidaria pra tocar na banda. Assim o Pacheco apresentou a proposta pro
Abelha e ele topou. E eu fazia um fanzine chamado Coletivo Cancrocítrico,
no começo era eu, o Marcos e o Jean. Aí eu chamei o Jean pra fazer o vocal.
O Jean nunca tinha cantado, não tinha experiência musical, não sabia nada.
E isso era legal, o cara não tinha experiência e você dava as letras , que não
tinha rima, não tinha nada, não tinha começo nem fim. E ele conseguia
encaixar na musica e ficava super legal. Era uma pessoa que já tinha o dom.
E começamos a ensaiar com o Desordem e Regresso, Pacheco na bateria,
Abelha na guitarra, eu no baixo e Jean no vocal. Essa formação durou de
1988 à 1990. E em 1990, 1991 o Pacheco assumiu o vocal porque o Jean
deixou a banda. Tocamos mais alguns shows e a banda veio acabar de vez.
17
Demo é uma gravação musical demonstrativa amadora, feita em estúdio ou não, sem vínculo com gravadoras,
para estudos musicais, ou primeiras propostas do que futuramente pode vir a ser um álbum de música.
15
Em 1993 nos reunimos para gravar uma musica para o HC Scene18 3. Até
então a Desordem e Regresso não tinha nenhuma música gravada em
estúdio(...) Aí eu chamei o Abelha e o Jean. O Pacheco faleceu em 1992 e eu
toquei a bateria e o baixo, e assim fizemos a única gravação em estúdio do
Desordem e Regresso. Antes de nós até tinha bandas que tocavam punk
rock, mas eu considero a Desordem e Regresso a primeira banda punk de
Londrina primeiro porque foi a primeira banda formada por punks, e nas
outras bandas era um monte de cara interessado, mas não era punk ainda. E
era a primeira banda autoral. A gente já começou fazendo musica, não
tocávamos cover ou reproduzindo o que já rolava fora. Começamos com
musicas próprias. E eram punks tocando musica punk. Não éramos apenas
simpatizantes que tocavam punk rock (...) O Pacheco e o Abelha
começaram a se destacar, eles tocavam muito bem, e se interessaram mais
em tocar metal e deixaram a banda meio de lado. Foi nessa época que a
banda deu um tempo e que nasceu o Hard Money, que foi uma banda que
marcou a cena de Londrina.
Sobre a questão da musicalidade Cibié e Marcos na entrevista para o
radiodocumentário Grito Primal comentam :
Eu vi que como tinha um lance de ser do interior, a gente tinha que chocar
mais quem era da capital, então a gente chocava mais através do hardcore,
que é um punk rock mais rápido. É o Regime Carcerário. Em um
documentário que teve ai o pessoal falou que espalhou que a gente era antimusica. Nem tanto né. No caso a gente é anti-musica, mas não tanto pela
musica em si, mas pela indústria da musica.
São recorrentes as falas19 de pessoas que participaram das primeiras gerações de punks
sobre as dificuldades que se tinha para tocar, seja pela falta de recursos (dinheiro para
comprar instrumentos e gastos com os eventos que eram pagos por quem os organizava), seja
pelo custo da aprendizagem (aprenderam tocar tocando, sozinhos), seja pela dificuldade para
18
O HC Scene é uma compilação em cd produzido desde 1994. Nesses 9 anos foram produzidos 7 cds .Várias
bandas nacionais e internacionais já passaram pelos HC Scene, num total de 156 bandas.Possui o objetivo de
divulgar o maior número de bandas para aquelas pessoas dispostas a conhecer coisas novas e ter uma ideia do
que está acontecendo no chamado cenário Hardcore, além de divulgar outras iniciativas do nosso underground
(Fanzines, outras bandas, etc) e estimular a reflexão.
19
Essas constatações foram feitas a partir das entrevistas formais, e do Radiodocumentário Grito Primal: Punk
Londrina e do documentário Hard Money: Do it Yourself. Participaram dessas discussões Rodrigo Frota (punk
maloqueiro), Cientista (banda Desordem e Regresso, Surface, Hard Money) Cibié (atualmente apresenta o
programa Maximum Rock N Roll na Alma Londrina Rádio Web, uma emissora sem fins lucrativos, de caráter
cultural e independente), Carolina Avancini (jornalista da Folha de Londrina, jornal de grande circulação em
Londrina, ex-integrante da banda Cegas, Grogues e Violentas), Paulão Rock n’ roll, Bianca (vocalista da banda
Hard Money), Redson (1962-2011) vocalista e fundador da banda Cólera), Rodrigo Lima (baterista da banda
Dead Fish)
16
transportar os instrumentos e para conseguir lugar para tocar20. Nesse sentido há criticas sobre
a atual “facilidade” ao acesso a instrumentos, do tipo o “papai compra uma guitarra de
R$3000,00”, ou de que a “tecnologia afastou as pessoas”, pensando que há tempos atrás, as
trocas e acesso aos materiais eram feitos por cartas, visitas e não havia facilitadores para tais
acessos e contatos como após a disseminação da internet . Majoritariamente acham que
atualmente os esforços para conhecer e ter acesso ao material fonográfico ou para montar e
manter uma banda são poucos e os contatos entre as pessoas são superficiais.
É importante salientar também a adesão e/ou aceitação de ritmos/musicas populares
e/ou urbana de contestação não comercial por parte de alguns punks jovens. Em minha
vivencia com anarco-punks ou punks anarquistas percebi que muitos gostam de rap nacional,
estilo de musica no Brasil muitas vezes é produzida nas periferias e ali têm seu espaço para
divulgação. As letras tratam da realidade das favelas com temas como tráfico de drogas,
violência e denúncias pelo descaso e corrupção por parte dos políticos. Percebi que alguns
punks, que não anarquistas, não gostam do funk carioca dizendo que é um tipo de música mal
feita e que estimula “promiscuidade”. Já os anarcopunks ou punks anarquistas que conheci,
acham que é uma forma de cultura popular e apoiam no sentido de não ser uma arte elitizada,
no sentido do “Faça você mesmo”, uma vez que precisa de poucos recursos, dinheiro e
especialização musical. Esses não se limitaram a escutar os funks que, assim como alguns
sons punks, foram transformados em produtos da indústria cultural. Conheceram outros funks
que estão à margem da indústria fonográfica como o anarcofunk que, assim como o rap, não
foram cooptados pelo mercado pelo teor critico de suas letras.
Considerações finais
“Evidentemente, a reflexão a respeito da escolha taxonômica apropriada
deve servir de ponto de partida, apenas, para a tarefa mais fundamental de
construção e experimentação de estratégias (multi)metodológicas que nos
habilitem tanto a aprender os múltiplos significados individuais quanto a
avaliar as possíveis ou patentes ressonâncias coletivas das variadas formas
(propositivas, subversivas, adaptativas, escapistas,triviais) de resistência
(sub)cultural juvenil- à falta de oportunidades econômicas ou de mobilidade
social; as dificuldades materiais e humilhações simbólicas; as autoridades
ou ao descaso do mundo adulto; à banalidade da vida cotidiana e das
expressões culturais mainstream; as hierarquias opressivas internas e
externas.” (FILHO, 2007, p. 71)
20
Um episódio interessante foi quando o show da banda “Desordem e Regresso” no Colégio Max foi cancelado,
após a direção se deparar com “pessoas estranhas”. O show teve que ser realizado em um local pequeno onde a
banda ensaiava.
17
A partir da elucidação da identidade punk em Londrina, da analise bibliografica,
filmografica e entrevistas de historias de vida, dentre outros materiais, como reportagens
entrevistas em jornais com os punks da primeira geração, demos, questionei sobre a
abordagem conceitual do trabalho. Com a expansão internacional do punk enquanto
movimento predominantemente juvenil, muitas mudanças ocorreram desde o seu surgimento
e muitas “vertentes”, resignificações e criações foram atribuídas a eles, logo é importante
fazer uma revisão conceitual sobre o assunto, aplicando-a as peculiaridades do trabalho de
campo em questão.
Muitos são os estudos nas ciências sociais sobre os punks ao se falar sobre juventude
no decorrer das mais de quatro décadas após o seu surgimento. Entre esses, está o conceito de
subcultura criado por teóricos da escola de Birmingham, enquanto reflexo e resignificação de
artefatos da vida parental/classe no intuito de resolver ainda que “magicamente” questões de
classe que era expresso através da criação de estilos (FEIXA, 2008, FILHO 2007). A partir da
analise do material citado, tal qual a criação da identidade punk a partir dos três elementos
citados (fanzine, visual e musicalidade), pode ser equivocado aplicar tal conceito, uma vez
que, através da pesquisa, percebeu-se pouca relação com a questão parental/classe. Há pessoas
de diferentes classes sociais que participaram das primeiras gerações punks em Londrina. O
estilo apesar de ser um importante elemento na identificação, algumas vezes não era utilizado
devido à questões de trabalho e foi salientado que ser punk era muito mais do que visual. As
primeiras formulações sobre o punk em Londrina, mais do que querer mostrar o que é,
preocupou-se em mostrar o que não era, devido a distorção da mídia e o preconceito das
pessoas que de alguma forma eram informadas por essas. Outra restrição ao conceito é
desconsiderar as praticas criativas e independentes dos jovens.
Abramo (1994) em seus estudos sobre o punk no Brasil pensou-o em uma
conceituação em termos de uma juventude internacional e apropriou-se do conceito de
“estilos espetaculares”, uma vez que esses jovens queriam chamar atenção da sociedade com
seus visuais que junto as suas atitudes eram agressivos e contestatórios. Nesse sentido, aponto
também como um limite conceitual para essa pesquisa, pelas proposições acima apontadas.Tal
qual o conceito cena musical, também não se aplicaria, pois sua abordagem
“almeja
justamente proporcionar uma imagem mais nítida desta relação entre o local e a música que se
produz nele” (FERNANDES, FILHO,2005) .
18
Dayrell (1999) diz que a música poderia estar tomando frente às instituições
tradicionais perante a presente pluralidade de identidades juvenis na globalização, defendendo
assim o conceito de “grupos de estilos”. Tal pressuposto também não se aplicaria aos estudos
sobre trajetórias punks de Londrina uma vez que, a musicalidade no que se refere aos
agrupamentos e construção de identidades não se deu a principio pela musica. Nem por isso
há como negar a importância da identificação/ união através da musica. Como esse autor
afirma, o punk pode ser compreendido como um grupo que se agrega “ a partir de uma
proposta ideológica explicita, expressas no visual, na musica e em rituais próprios, num
sentimento de união que ultrapassa a utilização estética, tendo uma conotação de fidelidade
aos ideais construídos” (1999, p. 32)
Optei pelo conceito de microcultura pois segundo a observação de Feixa ao comentar
Wulff “ em uma perspectiva etnográfica puede ser útil el concepto de microcultura, que
describe el flujo de significados y valores manejados por pequeños grupos de jóvenes em la
vida cotidiana, atendendo a situaciones locales concretas” (Wulff apud Feixa, 1988, p.87)
Assim, retraçar uma possível identidade punk, para posteriormente analisar as formas de
resistência e se estas se perpetuam e se ressignificam com o passar dos anos, é questionar se a
há relação entre identidade punk e juventude enquanto uma condição transitória (Feixa,
2008).
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20
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