O NASCIMENTO
Urbano Félix Pugliese do Bonfim
*
O pior é enfrentar os sorrisos. Quando o filme Tropa de Elite começou pensei um Pelo amor de
Deus a vida é dura. O problema não são as mortes pulando em minha frente, somente. A questão não
é o fuzil incrustado nos olhos. As balas perdidas. O trabalho ausente. A vida nas favelas chorosamente
dividida entre os amigos e os inimigos.
Acredito na Vida, ainda. Os sonhos são problemas maiores. Onde eles estão? Os breves risos
de esguelha no cinema foram retumbantes em meu ser. Por que a descrença ainda grassa?
Quando o Capitão Nascimento sobe a favela é uma mortificação seqüencial. Sorrimos. Não
sabemos quem é o inimigo. Como saberíamos? Nunca me foi dito. Não pararam a vida para indicar a
mim o manual de instruções do viver. Somos contratantes de uma película cinematográfica pela
metade e instransponível. Chorei sozinho.
A imbricação do crime organizado com a polícia são panos de fundo de um processo de
mortificação do Ser Humano pobre no Brasil do absurdo. Estamos fadados a repetir o erro, por plena
covardia de investir no acerto. Não agirei como os corifeus da hipocrisia, viciados em aplausos,
sofredores compulsivos da ânsia por tapinhas nos ombros e elogios recheados de fel. Não careço. No
dealbar do século XXI, acredito na prisão e na polícia como instituições necessárias. Apenas não
creio na prisão dos pobres como solução inexorável das mazelas gerais.
Tomo a antipatia no colo. A vida ensinou-me a entender o morrer. Destruição de fantasias
tornou-se um mote doloroso. O processo de nascimento da democracia não condiz com as estatísticas
demonstradas no sítio eletrônico do Ministério da Justiça. Pobres que presos, perdidos. Todos tentados
a tirar a tentação da testa. Tanta tentativa. Tantos tiranos.
Em verdade, não insistimos em saber da vida de Wangari Maathai. Não temos tempo. Tudo
passa rápido demais. Os sonhos. A vida. A morte. Tudo passa. Até o desejo de término da dor. As
vidas tomam os seus lugares e vão, dormindo, até o ponto de chegada. Sem paradas. Sem estações de
transbordo. Sem solavancos maiores. Vidas mortas. Vidas sem vida. Vidas petrificadas pelo ânsia de
tornar-se o indesejado.
A covardia de anunciar a paz como insistência faz coro em meio aos desejos violentados. Os
trabalhadores da dor levantam bandeiras.
Chorar não faz parte do filme. Para aqueles não violentos: a ingratidão. A paz não pode subir o
morro das hipocrisias. Finca, na espera, a própria vitalidade. O direito penal em nada contribui para
o fortalecimento das vidas dos fracos. Os débeis sociais continuam a viver a própria vida, sem férias,
sem compaixão, sem intervalos.
Outro dia um palhaço de circo agradeceu ao público os aplausos, sorrindo. Tirou o chapelão e
curvou-se. O nariz vermelho rutilou em meio aos sorrisos. Ele informou que toda a trupe da alegria
estava satisfeita. Muito obrigados, gratos, agradecidos por vocês sorrirem. Assim continuaremos a
história.
O filme passará. Porém, alguns filmes ficarão. Espero, ansioso, o momento da morte da história
contada. Sentando na varanda. Vento no rosto. Embalando João Victor, contarei o invivido. Por
mim, por você, por todos.
* Advogado criminalista. Professor de direito penal da FABAC. Membro da Comissão de Direito Humanos da OAB/BA.
Especializando em Educação Universitária na Faculdade Baiana de Ciências. Mestrando em Direito Público na Faculdade de
Direito da Universidade Federal da Bahia. [email protected]
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